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Processo n.º 796/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. interpôs recurso para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC, do acórdão do Tribunal de Relação de Évora de 29 de
Novembro de 2007, que considerou susceptível de resolução em benefício da massa
insolvente, ao abrigo do regime jurídico instituído pelo Código da Insolvência e
da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 57/2004, de 18 de
Março (CIRE), um contrato de compra e venda de (parte de) uma fracção autónoma
de um imóvel, celebrado anteriormente à entrada em vigor desse Código entre o
recorrente, como comprador, e o insolvente, como vendedor.
Pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da norma resultante
do n.º 1 do artigo 120.º do CIRE em conjugação com o n.º 1 do artigo 12.º do
Código Civil, interpretada no sentido de que o regime de resolução de actos
prejudiciais à massa previsto naquele primeiro preceito legal é aplicável a
contratos celebrados anteriormente à sua entrada em vigor.
2. Tendo o recurso sido admitido e prosseguido, o recorrente apresentou
alegações em que sustenta o seguinte:
“(…)
A interpretação perfilhada no R. acórdão do Tribunal da Relação de Évora, na
interpretação que fez de tais normas, permitindo a sua aplicação retroactiva do
novo regime legal ao contrato de compra e venda celebrado em 31/07/2003, é
inconstitucional:
a) Porque viola o princípio da confiança que os cidadãos em geral e o recorrente
em particular devem depositar nas normas que o Estado cria para vigorar nas
relações jurídicas que estabelecem num determinado período temporal em que
moldam as suas expectativas e vontades ao abrigo de um determinado quadro
jurídico sem que fosse de prever que posteriormente à conclusão de tal negocia
viesse a ser alterado radicalmente tal instituto, aplicando-se o mesmo
retroactivamente, traindo-se a confiança e segurança jurídica daqueles que
confiaram na estabilidade e segurança jurídica de tais normas em vigor à data do
negócio jurídico realizado e concluído e sem respeito pelos direitos entretanto
adquiridos e que o princípio constitucional do Estado de Direito democrático tem
de salvaguardar e preservar.
b) Bem como o princípio da segurança jurídica contemplado no artigo 2.º da CRP,
como subprincípios normativos que o Estado de Direito democrático tem de
respeitar;
(,..).”
A “Massa Insolvente de B.” sustenta que o acto já era impugnável ao
abrigo do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de
Falência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93 (CPEREF), pelo que a sua
resolubilidade ao abrigo do novo regime é insusceptível de afectar aquele mínimo
de certeza e segurança na ordem jurídica ou o princípio da confiança que o
recorrente diz violados.
II- Fundamentos
3. A situação de facto a que foi aplicada a norma cuja apreciação de
constitucionalidade se pretende surge assim caracterizada na decisão recorrida:
O recorrente celebrou, em 31 de Julho de 2003, um contrato de compra e venda de
metade de uma fracção autónoma de um prédio. O vendedor foi declarado insolvente
por sentença de 21 de Abril de 2006, em processo instaurado em 30 de Março de
2006. Em Outubro de 2006, o administrador da insolvência remeteu ao recorrente
uma notificação a declarar resolvido esse contrato, invocando como fundamento o
n.º 1 do artigo 120.º do CIRE. O recorrente impugnou judicialmente a decisão de
resolução do contrato, suscitando, além do mais, a inconstitucionalidade da
norma do n.º 1 do artigo 120.º do CIRE em conjugação com o n.º 1 do artigo 12.º
do Código Civil, na interpretação de que o novo regime legal se aplica aos
contratos celebrados anteriormente à sua entrada em vigor.
No âmbito dessa impugnação, veio a ser proferido o acórdão recorrido
que, quanto a esta questão, decidiu o seguinte:
“Defende ainda o agravante que, celebrado em 31/07/2003 o contrato de compra e
venda objecto de resolução, é aplicável a lei à data da celebração do contrato,
ou seja, o CPEREF e não o (Dec-Lei 53/2004 de 18 de Março, que entrou em vigor
em 18 d Setembro.
Com efeito, o Código a Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo
Decreto-Lei 57/2004, de 19 de Março, entrou em vigor no dia 15 de Setembro de
2004, substituindo o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e
Falência, aprovado pelo Decreto-Lei 132/93, de 23 de Abril
Mas o actual Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas é obviamente
aplicável ao caso sub judice, sem que da sua aplicação resulte a
inconstitucionalidade alegada.
Vejamos.
A situação de insolvência de B., foi reconhecida por decisão de 21-04-2006.
A lei aplicável ao presente processo e que regula todas as relações jurídicas
conexas ou atingidas pela declaração de insolvência é o Código da Insolvência e
da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 57/2004, de 19 de
Março e republicado pelo Decreto-Lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto em vigor
desde 15 de Setembro de 2004.
Trata-se do princípio geral de aplicação das leis no tempo consagrado no art.º
12.º do C. Civil, não se trata de aplicação retroactiva da lei nova.
Aliás, como expressamente consta da decisão sob censura, que acompanhamos
inteiramente, já na lei anterior os artigos 156.º a 160.º do CPEREF, conjugados
com os artigos 610.º a 618.º do CC, permitiam atacar actos como aquele que foi
resolvido pelo administrador da insolvência.
Já no domínio da lei anterior quem praticasse actos que fossem susceptíveis de
prejudicar os interesses dos credores sabia, ou tinha obrigação de saber, que
esses actos eram atacáveis em benefício dos credores.
É certo que, de acordo com o artigo 156.º, n.º 1, alínea c) do CPEREF, os actos
praticados a título oneroso pelo falido só eram atacáveis se tivessem ocorrido
nos seis meses anteriores à data da abertura do processo conducente à falência,
mas também é verdade que o art.º 157.º do mesmo diploma salvaguardava sempre a
possibilidade de recurso à impugnação pauliana.
O que a lei nova fez foi alterar o equilíbrio entre resolução e impugnação
pauliana, alargando a possibilidade de resolução e restringindo de necessidade
de recurso à impugnação pauliana, com vista a, na globalidade do regime e com
maior agilidade, alcança os efeitos que já se pretendia obter antes.
Em suma, perante o acervo legislativo anterior não deixava ser expectável que
pessoas que praticassem os actos ora previstos nos 120.º e 121.º do CIRE vissem
a sua conduta impugnada em benefício do interesse dos credores.
Eis por que inexiste qualquer aplicação retroactiva da lei, mostrando-se
prejudicada consequentemente a inconstitucionalidade suscitada perante tal
pressuposto, além de que se não descortina igualmente qualquer
inconstitucionalidade por “violação do principio da segurança jurídica e
confiança dos cidadãos na ordem jurídica que os rege”, não vislumbrado sequer da
acuidade no caso, dos dispositivos constitucionais referenciados e menos ainda
do suscitado abuso de direito.”
4. Importa começar por em destaque o preceito de que foi extraída a norma
sujeita a apreciação, o artigo 120.º do CIRE, que dispõe o seguinte:
“Artigo 120.º
Princípios gerais
1. Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos prejudiciais à
massa praticados ou omitidos dentro dos quatro anos anteriores à data do início
do processo de insolvência.
2. Consideram-se prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem,
dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da
insolvência.
3. Presumem-se prejudicais à massa, sem admissão de prova em contrário, os actos
de qualquer dos tipos referidos no artigo seguinte, ainda que praticados ou
omitidos fora dos prazos aí contemplados.
4. Salvo nos casos a que respeita o artigo seguinte, a resolução pressupõe a má
fé do terceiro, a qual se presume quanto a actos cuja prática ou omissão tenha
ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e
em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente
relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa
data.
5. Entende-se por má fé o conhecimento, à data do acto, de qualquer das
seguintes circunstâncias:
a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência;
b) Do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em
situação de insolvência iminente;
c) Do início do processo de insolvência.”
Note-se que, no presente recurso de fiscalização concreta, somente está em causa
a apreciação da norma do n.º 1 do artigo 120.º do CIRE, em conjugação com o n.º
1 do artigo 12.º do Código Civil, quando interpretada no sentido de que o regime
de resolução de actos prejudiciais à massa aí previsto é aplicável aos contratos
onerosos celebrados pelo insolvente em data anterior à entrada em vigor do CIRE.
Não interessa o segmento da norma que respeita a “actos omitidos”, nem a
dimensão que abrange os actos gratuitos. É delimitação que se impõe porque o
acto questionado é um contrato de compra e venda e porque o carácter gratuito ou
oneroso dos actos impugnáveis é um dos factores relevantes na definição dos
regimes de impugnabilidade, sendo essa natureza gratuita ou onerosa susceptível
de colocar problemas de constitucionalidade distintos, inclusivamente face aos
princípios constitucionais invocados.
5. A verificação de que os devedores insolventes, ou na iminência da
insolvência, frequentemente recorrem a expedientes que podem agravar a situação
dos seus credores, mediante a prática de actos que visem ou tenham por efeito a
dissipação ou ocultação do seu património ou o privilégio de uns credores em
benefício de outros, desde há muito tem levado a que os sistemas jurídicos
incluam no regime falimentar instrumentos de conservação da garantia
patrimonial, mais simples, mais céleres e mais eficazes do que aqueles que
integram o correspondente regime geral, em ordem a permitir aos credores, ou ao
liquidatário da massa em benefício destes, obter a tutela da integridade da
garantia contra tais actos, quando realizados num “período suspeito” mais ou
menos amplo.
Disso dá notícia João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2ª ed., pg. 309, n.
665, quando refere:
“A consagração deste tipo de defesa “cega” dos interesses dos credores, em
processo de falência, foi logo adoptada pelo legislador do Código Comercial de
1833, que impôs a “nulidade” de todas as constituições de hipotecas sobre bens
do falido e pagamentos de dívidas deste não vencidas, efectuados nos vinte dias
anteriores às abertura da falência (art 1133. e 1134.º), assim como de todos os
actos gratuitos translativos da propriedade de bens do falido outorgados nos
quarenta dias anteriores àquela data (art 1135.º). A mesma política foi retomada
pelo Código de Falências, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 25.981, de 26 de Outubro
de 1935, que consagrou no art 32.º, a “anulação” de determinados actos aí
tipificados. Este regime do Código de Falências de 1935 transitou, com ligeiras
alterações, para o Código de Processo Civil de 1939, aprovado pelo Decreto n.º
29.637, de 28 de Maio, constando do art 1168º, cujo conteúdo não sofreu
modificações com a revisão operada pelo Decreto-Lei nº 44.129, de 28 de Dezembro
de 1961, passando a integrar o art. 1200.º. O Decreto-Lei n.º 47.690, de 11 de
Maio de 1967, que introduziu no C.P.C. as adaptações exigidas pela entrada em
vigor do Código Civil de 1966, na redacção do art 1200.º, substitui o termo
“anular” por “resolver”, o qual se manteve em vigor até à aprovação em 1993do
C.P.E.R.E.F. que no art 156.º continuou a permitir a resolução de determinados
actos praticados pelo falido no período considerado suspeito, o mesmo sucedendo
com o actual C.I.R.E. que conferiu uma nova configuração a este direito de
resolução.
A previsão desta resolução legal, além da impugnação pauliana colectiva, também
ocorre em Itália, sob a designação de revocatória fallimentare nos artigos 64.º
e 65.º, da Leg. Fall, em França, nos art L621 – 107.º e 108.º, do Code de
Commerce, em Espanha, no art 71, nº 2, da Ley Concursal, e no Brasil, nos art
52.º e 53.º, da Lei de Falências, sob a designação de revogatória falencial.”
Como se vê, um dos meios a que o legislador falimentar costuma
recorrer com essa finalidade de encontrar remédio contra actos do insolvente
prejudiciais ou potencialmente prejudiciais aos credores é a figura da resolução
em benefício da massa insolvente. Outro, é a impugnação pauliana a favor da
massa. Qualquer deles com especialidades relativamente aos correspondentes
institutos do direito civil, seja no capítulo dos requisitos e dos efeitos, seja
mediante o estabelecimento de presunções de prejuízo ou de má fé, reflectindo
normativamente a realidade relativamente à qual se pretende (re)agir.
Centrando a atenção nos dois últimos diplomas disciplinadores do regime
falimentar – o CPEREF, por ser o que estava em vigor à data do contrato objecto
de resolução, e o CIRE, por ter sido o aplicado pela decisão recorrida –,
verifica-se que o CIRE alargou o campo de aplicação da figura da resolução, em
benefício da massa, de actos praticados pelo insolvente, passando a abranger
hipóteses que anteriormente apenas permitiam o recurso à acção de impugnação
pauliana pelo liquidatário ou por qualquer credor em benefício comum, a
designada “impugnação pauliana colectiva” (artigo 160.º do CPEREF).
Com efeito, no âmbito do CIRE podem ser resolvidos pelo administrador, em
benefício da massa, mediante carta registada com aviso de recepção, dentro de
seis meses sobre o conhecimento do acto mas nunca depois de dois anos sobre a
declaração de insolvência, os actos e negócios do insolvente prejudiciais à
massa praticados (ou omitidos) dentro dos quatro anos anteriores à data do
início do processo, (artigo 120.º, nº 1), considerando‑se acto prejudicial todo
aquele que diminua, frustre, dificulte, ponha em perigo ou retarde a satisfação
dos interesses dos credores (artigo 120.º, n.º 2).
A figura da resolução passou a abranger duas modalidades, quanto aos respectivos
pressupostos. Por um lado, manteve-se o direito de resolução por parte do
liquidatário em benefício da massa, sem necessidade de demonstração de quaisquer
requisitos, de actos incluídos num catálogo legal, desde que realizados num
período considerado suspeito relativamente ao início do processo de insolvência.
É a chamada “resolução incondicional” (artigo 121.º do CIRE). A par desses,
alargou-se a faculdade de resolução a qualquer acto que tenha os efeitos
prejudiciais à massa previstos no n.º 2 do artigo 120.º, desde que praticado
dentro dos quatro anos anteriores à data do início do processo de insolvência e
o terceiro beneficiário do acto tenha agido de má fé.
Relativamente a actos onerosos que não correspondam ao catálogo do artigo 121.º
(casos de “resolução incondicional” na terminologia legal), é pressuposto da
resolução a má fé do terceiro adquirente, entendida como o conhecimento de
qualquer das seguintes circunstâncias (artigo 120.º, n.º 5):
a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência;
b) Do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em
situação de insolvência iminente;
c) Do início do processo de insolvência.
A má fé assume aqui carácter mais objectivo do que no regime geral
(artigo 612.º do Código Civil), prescindindo-se da prova do conhecimento do
carácter prejudicial do acto, perante situações que com toda a probabilidade o
revelam.
De âmbito mais restrito era o elenco de situações em que CPEREF – recorde-se,
vigente à data da celebração do contrato de compra em discussão – permitia ao
liquidatário recorrer ao mecanismo da resolução dos actos do insolvente para
tutela dos interesses dos credores.
O artigo 156.º do CPEREF dispunha que eram passíveis de resolução, por
iniciativa do liquidatário, os actos prejudiciais à massa desde que celebrados a
título gratuito nos dois anos anteriores à abertura do processo [n.º 1, alínea
a)], a partilha em determinadas condições, celebrada um ano antes da mesma data
de abertura [n.º 1, alínea b)] e, no que directamente interessa ao presente
recurso, “os actos a título oneroso realizados pelo falido, nos seis meses
anteriores à data da abertura do processo conducente à falência, com sociedades
por ele dominadas, directa ou indirectamente, ou, no caso de falência de
sociedades ou de pessoa colectiva, com sociedades que dominem, directa ou
indirectamente, o capital da sociedade ou pessoa colectiva falida ou por esta
dominadas, ou com os seus administradores, gerentes ou directores”.
Os demais actos, onerosos ou gratuitos, que implicassem prejuízo para a massa
ficavam sob alçada da acção de impugnação pauliana. Acção que tanto podia ser
instaurada pelo liquidatário como pelos credores e cujo resultado, quando
favorável, aproveitava a todos e não somente ao proponente da acção (artigos
159.º e 160.º).
Facilitando a tarefa do liquidatário (ou do credor impugnante), o
artigo 158.º estabelecia a presunção de terem sido celebrados de má fé pelas
pessoas que neles participaram certos actos, designadamente:
“(…)
a) Os actos realizados pelo falido a título oneroso, nos dois anos anteriores à
data da abertura do processo conducente à falência, em favor do seu cônjuge, de
parente ou afim até ao 4º grau, da pessoa com quem ele vivesse em união de facto
ou de pessoas a ele ligadas por um qualquer vínculo de prestação de serviços ou
de natureza laboral, bem como de sociedades coligadas ou dominadas por ele;
(…)
d) Os actos a título oneroso realizados pelo falido dentro dos dois anos
anteriores à data da abertura do processo conducente à falência, em que as
obrigações por ele assumidas excedem manifestamente as da contraparte;
(…).”
Comparando os dois regimes em sucessão, fácil é constatar que o CIRE ampliou
substancialmente o campo de aplicação da figura da resolução, permitindo este
remédio para situações que até então teriam de ser objecto de “acção pauliana
colectiva”. A par dos actos do insolvente que abrangeu no que designa por
“resolução incondicional” e que corresponde, no essencial, à modalidade
tradicional do direito de resolução em benefício da massa (artigo 121.º), o
legislador passou a permitir a resolução de qualquer acto, praticado ou omitido
dentro dos quatro anos anteriores à data do início do processo de insolvência,
que tenha diminuído o património do insolvente ou frustrado, dificultado, posto
em perigo ou retardado a satisfação dos seus credores. Mas, importa salientá-lo,
desde que o terceiro beneficiário do acto tenha agido de má fé, assim
aproximando os requisitos da “resolução condicionada”dos estabelecidos para a
impugnação pauliana (artigos 610.º e 612.º do Código Civil).
6. No litigio em que se enxerta o presente recurso, aprecia-se a resolução
extra‑judicial, levada a cabo pelo administrador da massa insolvente, de um
contrato de compra e venda de ½ de uma fracção predial, em que o ora recorrente
interveio como comprador e o insolvente como vendedor, ocorrido em data anterior
à do início da vigência do CIRE.
Entende o recorrente que a aplicação do CIRE se traduz em aplicação retroactiva
do novo regime. E, embora reconheça que a retroactividade da lei não é
genericamente proibida pela Constituição, sustenta que, com esse âmbito de
aplicação, a norma que permitiria ao liquidatário optar pela resolução, viola o
princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança, ínsito no princípio
do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição.
Diverso é o entendimento do acórdão recorrido, segundo o qual não há
retroactividade ao dar à norma o alcance de facultar a resolução de contratos de
compra e venda celebrados em momento anterior à entrada em vigor do novo regime
legal, uma vez que se trata de lei que rege directamente sobre o conteúdo da
relação jurídica independentemente dos factos que lhe deram origem.
Efectivamente, a jurisprudência dos tribunais comuns não é uniforme
quanto a esta questão.
Tem sido sustentado que o regime de resolução em benefício da massa insolvente
previsto no CIRE se aplica aos contratos celebrados antes da sua entrada em
vigor e que subsistam para além dela porque, ao dispor sobre a resolução de um
contrato, está a reger sobre o conteúdo da relação jurídica emergente desse
contrato, e não sobre requisitos de validade (substancial ou formal) do mesmo,
caindo na previsão da 2ª parte do nº 2 do artigo 12.º do Código Civil (Neste
sentido, que é o do acórdão recorrido, decidiu o acórdão de 18/12/2007, P. n.
2797/07, da mesma Relação).
Mas outras decisões há no sentido de que as novas disposições da resolução em
benefício da massa insolvente, constantes dos artigos 120.º e segs. do CIRE são,
inaplicáveis aos actos e contratos do insolvente celebrados anteriormente ao
início da vigência deste diploma, porque a regra de sucessões na lei no tempo a
aplicar será a do n.º 1 do artigo 12.º do Código Civil. Donde decorre que o CIRE
não pode aplicar-se, no que respeita ao regime de resolução aos actos praticados
pelo insolvente que sejam anteriores ao início da sua vigência, já que, ao
determinar a sua resolubilidade enquanto forma de cessação dos mesmos, está a
dispor sobre os seus efeitos e não sobre o conteúdo da relação jurídica surgida
entre as partes com abstracção do facto que lhes deu origem (Cf. Acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça, de 30/9/2008, P. 08A1825).
Ao Tribunal Constitucional compete apenas, tomando como um dado que
o novo regime legal da resolução é aplicável a contratos onerosos celebrados
anteriormente à sua entrada em vigor, porque essa foi a ratio decidendi do
tribunal da causa, apreciar se uma tal solução normativa viola normas ou
princípios constitucionais, designadamente, os princípios da segurança jurídica
e da protecção da confiança, ínsitos no artigo 2.º da Constituição. Que tal
aplicação da lei nova configure uma situação de retroactividade da lei ou de
mera retrospectividade ou retroaactividade inautêntica é distinção que – sendo
importante em sede de balanceamento ou ponderação dos interesses
constitucionalmente protegidos, uma vez que uma é mais agressiva para esses
interesses do que a outra – não é decisiva para, apenas com base nessa
qualificação, inclinar definitivamente num ou noutro sentido quanto à violação
dos princípios constitucionais invocados, uma vez que estes podem ser tocados,
embora em diferente grau, pela aplicação da lei nova a situações jurídicas que,
por algum dos seus elementos, se liguem a ocorrências anteriores à sua entrada
em vigor.
7. Como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, a Constituição
não consagra um princípio geral de proibição de leis retroactivas.
O princípio da não retroactividade da lei encontra-se consagrado na
Constituição, de modo expresso, unicamente para a matéria penal, desde que a lei
nova não seja mais favorável ao arguido (nºs 1 e 4 do artigo 29.º), para as leis
restritivas de direitos, liberdades e garantias (nº 3 do artigo 18.º) e para o
pagamento de impostos (artigo 103.º, n.º 3). Fora desses domínios não é vedada
ao legislador a emissão de normas com eficácia retroactiva. Como se ponderou,
por exemplo, no acórdão nº 304/2001 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), citando Vieira de Andrade (Os Direitos
Fundamentais na Constituição da República Portuguesa, p.309), “entender o
contrário representaria, ao fim e ao resto, coarctar a «liberdade constitutiva e
a auto-revisibilidade» do legislador, características que são «típicas», «ainda
que limitadas», da função legislativa”.
Todavia, na sequência de entendimento que vem já da Comissão Constitucional, é
também firme na jurisprudência do Tribunal que o princípio do Estado de direito
democrático (consagrado no artigo 2º da Constituição) postula “uma ideia de
protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na
actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito
das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas”, razão pela
qual “a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária
ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a
comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de
direito democrático terá de ser entendida como não consentida pela lei básica”
(cf., entre vários outros nesse sentido, o Acórdão nº 303/90, in “Acórdãos do
Tribunal Constitucional”, 17º V., pág.65).
Em cada caso, haverá que proceder a um justo balanceamento entre a protecção das
expectativas dos cidadãos, decorrentes do princípio do Estado de direito
democrático, e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, ao qual,
inequivocamente, há que reconhecer a legitimidade (senão mesmo o dever) de
tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as
soluções mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam
«tocadas» relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte. Um
tal equilíbrio, será postergado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação
pela lei nova, esta vai implicar uma alteração intolerável, arbitrária,
demasiado onerosa e opressiva nas relações e situações jurídicas já
constituídas, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam
contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do
ordenamento jurídico que regia aquelas relações e situações. Em tais casos, a
lei viola aquele mínimo de certeza e segurança que as pessoas devem poder
depositar na ordem jurídica de um Estado de direito, impondo-se, então, a
intervenção do princípio da protecção da confiança e da segurança jurídica que
está implícito no princípio do Estado de direito democrático, por forma que a
obstar a que nova lei vá desrespeitar os mínimos de certeza e segurança dos
destinatários na ordenação da sua vida de acordo com a ordem jurídica vigente.
8. Por conseguinte, apenas uma retroactividade (ou uma retrospectividade)
intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária (é dizer:
insuportável) os direitos e expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos,
viola o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito
democrático. Ora, nada disto pode afirmar-se relativamente à solução
normativa em causa, quer se conceba a aplicação imediata da lei nova a contratos
de compra e venda celebrados no domínio de vigência do Código anterior como
retroactividade autêntica ou inautêntica.
Como vimos, no domínio do CPEREF, em vigor à data do contrato em
causa, o terceiro que celebrasse com o insolvente contratos desse tipo que
diminuíssem a garantia patrimonial dos credores, desde que se verificasse o
requisito da má fé por sua parte, ficava sujeito a ver o bem objecto do contrato
restituído à massa (pelo menos, na medida do prejuízo causado aos credores; cf.
JOÃO CURA MARIANO, op. cit., pg. 312), convertendo-se a sua contraprestação em
crédito comum. Portanto, à data da celebração do contrato cuja resolução está em
causa (2003), enquanto não decorresse o prazo de 5 anos a contar de tal acto
(artigo 628.º do Código Civil), de acordo com a lei vigente naquela data, o
terceiro hipoteticamente de má fé (obviamente, supondo que a hipótese normativa
venha a confirmar-se nos factos provados) não poderia confiar na estabilização
da situação jurídica resultante do contrato. Ora, a “resolução condicionada”
regulada no CIRE, não diverge substancialmente, quanto aos seus pressupostos e
efeitos, da “impugnação pauliana colectiva” prevista no CPEREF. Como atrás se
preveniu, fora do elenco constante do art.º 121.º do CIRE, continua a exigir-se
a má fé por parte do adquirente para que a resolução possa operar.
É certo que, além da maior objectividade da noção de má fé e de
outras divergências de pormenor, a “resolução condicionada” opera por via
extrajudicial (foi esta a interpretação adoptada pela decisão recorrida, mesmo
quanto à resolução de contratos para cuja celebração a lei exige escritura
pública) enquanto que a impugnação pauliana exigiria a propositura de uma acção.
Mas o efeito prático-jurídico obtido por qualquer das vias é substancialmente
coincidente quanto aos seus pressupostos e efeitos. Num caso com os contornos do
presente, o terceiro adquirente, supostamente de má fé, estaria sujeito a ver o
efeito primacial do contrato de compra e venda ser posto em crise até 2008,
mediante impugnação pauliana colectiva, com a consequente reversão do bem para a
massa falida e a transformação da sua contraprestação, ao menos em parte que
excedesse o enriquecimento da massa, em crédito comum reclamável no concurso. No
mesmo pressuposto de verificação de má fé da sua parte e antes de expirar aquele
prazo, vê operar o direito de resolução em benefício da massa insolvente,
sofrendo a mesma ablação patrimonial quanto à coisa adquirida e ficando
investido em direito de crédito idêntico ao que lhe atribuiria a lei vigente à
data da celebração do contrato (cfr. n.ºs 1 e 3 do artigo 159.º do CPEREF e n.ºs
1, 4 e 5 do artigo 126.º do CIRE).
Perante a similitude de efeitos prático-jurídicos dos regimes em
sucessão, a sujeição de situações como aquela que no presente processo foi
considerada ao regime da lei nova não merece censura constitucional por
desrespeitar aquele mínimo de certeza e segurança dos destinatários na ordenação
da sua vida de acordo com a ordem jurídica vigente que constituiu limite à
retroactividade ou à retrospectividade da lei, decorrente do princípio da
segurança jurídica e da protecção da confiança que se extrai do artigo 2.º da
Constituição.
Aliás, ainda que à diversidade de institutos correspondesse maior
diversidade de pressupostos substantivos e de consequências práticas do que
aquela que realmente se verifica, dificilmente poderia triunfar a pretensão de
inconstitucionalidade da lei nova, por se aplicar a contratos onerosos já
cumpridos, considerando os pressupostos subjectivos e as limitações temporais
que estabelece. Com efeito, a inconstitucionalidade da lei por violação deste
princípio supõe sempre a existência de expectativas legítimas na continuidade de
uma dada situação jurídica. Desde logo, como refere JORGE REIS NOVAIS, Os
Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, pág. 267, “não
teriam qualquer peso posições dos particulares sustentadas em ilegalidades ou em
omissões indevidas do Estado, bem como as correspondentes pretensões a que o
Estado não emitisse lei destinada a corrigir tais situações”. De modo que,
pressupondo a resolução uma actuação contratual de má fé, no momento do
contrato, por parte do adquirente, a tutela dos interesses deste na conservação
do acto, no confronto com o interesse de conservação da garantia patrimonial dos
credores do insolvente e com a prossecução do interesse geral do crédito que lhe
vai co-envolvida, sempre seria menos resistente à retroactividade da lei.
Em conclusão, não viola o princípio da segurança jurídica e da
protecção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito consagrado no
artigo 2.º da Constituição, a norma do n.º 1 do artigo 120.º do CIRE, em
conjugação com o n.º 1 do artigo 12.º do Código Civil, quando interpretada no
sentido de que o regime de resolução de actos prejudiciais à massa aí previsto é
aplicável aos contratos onerosos celebrados pelo insolvente em data anterior à
entrada em vigor daquele Código.
III- Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e condenar o recorrente nas
custas, fixando a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) UCs.
Lisboa, 28 de Janeiro de 2009
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão