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Processo n.º 382/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
Na presente acção declarativa de condenação, com processo sumaríssimo, que o
Hospital de Santo André, E.P.E. intentou contra A., em que se pretendia que o
réu fosse condenado a pagar ao autor a quantia de € 106,00, acrescida das taxas
moderadoras, por tratamentos médicos a que foi submetido no estabelecimento
hospitalar, que correu termos no Tribunal Judicial da comarca de Leiria, veio a
ser decidido a final não aplicar a norma do artigo 2º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º
198/95, de 29 de Julho, na redacção dada pelo artigo único do Decreto-Lei n.º
52/2000, de 7 de Abril, quando interpretada no sentido de obrigar ao pagamento
dos serviços prestados apenas pelo facto de o utente não ter cumprido o ónus de
demonstração de titularidade do cartão de utente no prazo de dez dias
subsequentes à interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de
saúde, com fundamento em inconstitucionalidade por violação do disposto nos
artigos 2º, 18º e 64º da Constituição da República Portuguesa.
Desta decisão interpôs o magistrado do Ministério Público recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.° 1, alínea a),
da Lei do Tribunal Constitucional, vindo a produzir, no seu seguimento, as
seguintes alegações:
1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.
O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da
decisão, proferida no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, nos autos de
processo sumaríssimo movidos pelo Hospital de Santo André, EPE a A., na parte em
que recusou aplicar, com fundamento, em inconstitucionalidade, a norma constante
do artigo 2°, n° 3, do Decreto-Lei n° 198/95, na redacção emergente do
Decreto-Lei n° 52/00, na medida em que impõe ao utente economicamente carenciado
o efectivo pagamento dos serviços clínicos prestados, como mera consequência do
incumprimento de um ónus de natureza formal e secundária — dever acessório de
identificação do utente através do cartão, a realizar no prazo peremptório de 10
dias contados da interpelação – independentemente da efectiva possibilidade de a
Administração o poder identificar cabalmente, através dos elementos fornecidos e
disponíveis.
Tal questão não é nova na jurisprudência constitucional: na verdade, ela já foi
objecto do Acórdão n° 67/07 e da decisão sumária n° 557/07 (e, mais
recentemente, da proferida pela 2ª Secção no Processo n° 376/08), sendo uniforme
o julgamento de inconstitucionalidade de tal dimensão normativa.
Correspondendo tal solução ao entendimento propugnado pelo Ministério Público
nas alegações produzidas no processo em que veio a ser proferido o Acórdão n°
67/07 e não suscitando o caso dos autos nenhuma particularidade relevante,
entendemos que deverá ser aplicada, também aqui, a referida corrente
jurisprudencial.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
É inconstitucional, por violação conjugada dos artigos 2°, 18° e 64°, da
Constituição a norma constante do artigo 2°, n° 3, do Decreto-Lei n° 198/95, de
29 de Julho, na redacção emergente do artigo único do Decreto-Lei n° 52/2000,
interpretada no sentido de obrigar ao pagamento dos serviços prestados apenas
pelo facto de o utente não ter cumprido o ónus de demonstração da titularidade
do cartão de utente, no prazo de 10 dias subsequentes à interpelação para o
pagamento dos encargos com os cuidados de saúde prestados.
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado na
decisão recorrida.
Não houve contra-alegações.
Cabe apreciar de decidir.
II. Fundamentação
Conforme resulta da matéria dada como assente, o Réu deu entrada no serviço de
urgências do Hospital de Santo André, E.P.E., em 1 de Setembro de 2006, para aí
receber assistência médica. Os tratamentos médicos efectuados importaram no
valor de € 106,00 e as taxas moderadoras referentes a exames médicos realizados
correspondiam ao montante de € 17,60. O estabelecimento hospitalar notificou o
Réu para informar acerca das circunstâncias de tempo, modo e lugar do acidente,
bem como para liquidar a respectiva factura. E não tendo obtido qualquer
resposta, ao abrigo do disposto no artigo 2º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 198/95,
de 29 de Julho, na redacção dada pelo artigo único do Decreto-Lei n.º 52/2000,
de 7 de Abril, interpôs acção condenatória para pagamento das importâncias
devidas pela prestação de cuidados de saúde.
É essa disposição que o tribunal recorrido julgou inconstitucional, por violação
do disposto nos artigos 2º, 18º e 64º da Constituição da República, e que cabe
agora analisar.
O Decreto-Lei n.º 198/95 criou o cartão de utente do Serviço Nacional de Saúde,
que é emitido pelos serviços competentes da administração regional de saúde da
área da residência do titular (artigo 4º), e que, fora certas situações
excepcionadas na lei, se destina a ser apresentado perante instituições ou
serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, para efeito de prestação de
cuidados médicos, requisição e acesso a meios auxiliares de diagnóstico e
prescrição e aquisição de medicamentos (artigo 3º).
Na sua redacção originária, o artigo 2º desse diploma dispunha:
1- O cartão de identificação do utente constitui um meio facultativo, com
natureza substitutiva, de comprovação da identidade do seu titular perante a
instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde e as entidades
privadas na área da saúde.
2- O cartão de identificação do utente é de emissão gratuita e substitui, para
os efeitos referidos no número anterior, qualquer outro cartão ou documento de
identificação do seu titular.
Como se depreende ainda do preâmbulo do diploma, a instituição do cartão de
utente, de emissão gratuita e natureza substitutiva, sendo idêntico aos já
existentes para utentes de subsistemas de saúde, constituía uma medida de
simplificação do acesso dos cidadãos ao Serviço Nacional de Saúde, sem pôr em
causa os princípios da universalidade e da equidade deste Serviço, e pretendia
assegurar uma mais fácil identificação pessoal nos serviços de saúde, eliminando
procedimentos burocráticos e facilitando a atribuição da isenção das taxas
moderadoras e o reconhecimento de situações de isenção, além de permitir uma
mais adequada articulação entre o Estado e as entidades privadas legal ou
contratualmente responsáveis por encargos decorrentes de prestações de saúde.
O citado Decreto-Lei n.º 52/2000 introduziu uma única alteração a esse diploma,
passando a conferir à referida disposição do artigo 2º a seguinte redacção:
1- O cartão de identificação do utente deve ser apresentado sempre que os
utentes utilizem os serviços das instituições e serviços integrados no Sistema
Nacional de Saúde ou com ele convencionado.
2- A não identificação dos utentes nos termos do número anterior não pode, em
caso algum, determinar a recusa de prestações de saúde.
3- Aos utentes não é cobrada, com excepção das taxas moderadoras, quando
devidas, qualquer importância relativa às prestações de saúde quando devidamente
identificados nos termos deste diploma ou desde que façam prova, nos dez dias
seguintes à interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde
prestados, de que são titulares ou requereram a emissão do cartão de
identificação de utente do Serviço Nacional de saúde.
O objectivo da modificação legislativa, como também resulta da respectiva nota
preambular, foi o de promover a generalização do uso do cartão de utente no
sistema de saúde, implementando para tal desiderato duas condicionantes que são
assim explicitadas:
Esclarece-se que a não exibição do cartão não pode em circunstância alguma pôr
em causa o direito à protecção na saúde constitucionalmente garantido, evitando
que o problema burocrático ou administrativo da identificação do utente do
Serviço Nacional de Saúde impeça a realização das prestações de saúde.
Todavia, torna-se necessário associar consequências à não identificação do
cartão e que assentam no pressuposto que o utente não identificado não é
beneficiário do Serviço Nacional de Saúde, associando o ónus do pagamento
directo do utente pelos encargos decorrentes de cuidados de saúde, quando não se
apresente devidamente identificado nas instituições e serviços prestadores ou
não indique terceiro, legal ou contratualmente responsável. Esta
responsabilização prática das instituições e serviços integrados no Serviço
Nacional de Saúde fica agora mitigada pela possibilidade de o utente se eximir
da responsabilidade pelos cuidados de saúde prestados requerendo o respectivo
documento de identificação.
O Decreto-Lei n.º 52/2000 teve, pois, em vista incentivar o uso do cartão do
utente pela população, passando a sancionar com a sujeição ao pagamento dos
serviços de saúde prestados, a falta de prova da titularidade do direito, dentro
de um prazo curto e peremptório subsequente à interpelação para pagamento,
quando o interessado não tenha apresentado o cartão de identificação na ocasião
da utilização dos serviços.
O Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se pronunciar quanto à
constitucionalidade material da referida disposição no já citado acórdão n.º
67/2007, tendo concluído que uma norma que impõe ao utente economicamente
carenciado o efectivo pagamento dos serviços clínicos prestados como mera
consequência do incumprimento de um ónus procedimental ou formal, de natureza
manifestamente secundária, é incompatível com o princípio da proporcionalidade e
com o carácter universal e tendencialmente gratuito do Serviço Nacional de
Saúde, expressão da consagração constitucional do direito à saúde, implicando a
violação dos artigos 2.º, 18.º e 64.º da Constituição.
Para assim decidir, teve em linha de consideração que o regime em causa tem por
consequência a necessidade do pagamento pelo utilizador dos serviços prestados,
sem ter previsto a forma pela qual a interpelação para pagamento dos encargos
decorrentes dos serviços prestados vem a ter lugar e sem permitir sequer a
valoração de uma eventual ausência de culpa do utente no incumprimento do dever
acessório em questão.
Esta jurisprudência foi depois reiterada pelas decisões sumárias n.ºs 557/07 e
278/08.
Não parece ser esse, no entanto, o único entendimento possível.
O direito à protecção da saúde, consagrado no artigo 64º da Constituição,
enquanto direito social, tem como principal implicação a exigência de criação
pelo Estado de um serviço nacional de saúde, que deverá ser universal, e, como
tal, dirigido à generalidade dos cidadãos, geral, em termos de abranger todos os
serviços públicos de saúde e todos os domínios e cuidados médicos, e
tendencialmente gratuito, por forma a que as pessoas tenham direito ao serviço
sem qualquer encargo ou mediante o pagamento de uma taxa que, pelo seu montante,
não seja impeditiva do acesso ao serviço (Gomes Canotilho/Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, Coimbra, pág.
827).
Por seu lado, a Lei de Bases da Saúde, que constitui o instrumento pelo qual o
legislador concretizou aquela vertente constitucional do direito à protecção da
saúde, caracteriza o Serviço Nacional de Saúde como um serviço universal quanto
à população abrangida, destinado a prestar integradamente cuidados globais ou
garantir a sua prestação, tendencialmente gratuito para os utentes, em função
das condições económicas e sociais dos cidadãos, com garantia de equidade no
acesso (Base XXIV da Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto). E esclarece que são
beneficiários do Serviço Nacional de Saúde todos os cidadãos portugueses (Base
XXV).
Ainda que deva entender-se que os preceitos relativos aos direitos económicos,
sociais e culturais não se encontram em principio sujeitos ao regime de
aplicabilidade imediata dos direitos, liberdades e garantias, não pode deixar de
reconhecer-se que esses preceitos contêm normas jurídicas vinculantes, que se
impõem positivamente ao legislador. O grau de conformação legislativa é variável
consoante o carácter mais ou menos determinado ou determinável da imposição
constitucional respectiva, pelo que o legislador fica sempre vinculado às
directrizes materiais que resultem expressamente ou por via interpretativa das
normas que imponham, nesse domínio, tarefas específicas.
Nestes termos, os preceitos constitucionais relativos a direitos sociais servem
também de padrão positivo do controlo da constitucionalidade das leis, podendo
justificar uma declaração de desaplicação de norma, embora o juiz deva aceitar,
nesse âmbito, o poder de conformação do legislador e só em casos limitados, em
função de um certo conteúdo mínimo do direito que se torne determinável por
interpretação da norma constitucional, é que é possível concluir pela existência
de inconstitucionalidade quando o direito ordinário não tenha sequer cumprido
esse limite mínimo (sobre todos estes aspectos, Vieira de Andrade, Os direitos
fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3ª edição, Coimbra, págs.
397-401).
E, por identidade de razão, pode igualmente haver lugar a inconstitucionalidade
por violação dos princípios constitucionais ínsitos no Estado de direito
democrático, como sucede quando a lei, em cumprimento de imposições que decorram
da consagração constitucional de direitos sociais, venha a regular as prestações
destinadas a assegurar a realização desses direitos em termos que restrinjam
injustificadamente o âmbito dos beneficiários, seja através de um tratamento
legal discriminatório, seja por via da adopção de medidas que se mostrem
desproporcionadas (referindo-se à possível verificação de inconstitucionalidade
por violação do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio, Vieira de
Andrade, ob. cit., pág. 402).
Nesta perspectiva, e tomando como ponto de referência o princípio da
proporcionalidade, a que a decisão recorrida deu particular atenção, não pode
ainda deixar de ponderar-se que este princípio impõe que a solução normativa se
revele como idónea para a prossecução dos fins visados pela lei, se mostre
necessária por não ser viável ou exigível que esses fins sejam obtidos por meios
menos onerosos para os direitos dos cidadãos, e se apresente ainda como uma
medida razoável, e, por isso mesmo, não excessiva ou desproporcionada (Gomes
Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., págs. 392-393).
Só pode, no entanto, considerar-se verificada a violação do princípio da
proporcionalidade relativamente ao direito à saúde, encarado na sua dimensão
positiva como um direito de conteúdo mínimo, se estivermos na presença de uma
efectiva restrição ao exercício desse direito.
A este propósito cabe distinguir entre a restrição e o condicionamento ao
exercício de direitos. Como refere Jorge Miranda, «a restrição tem que ver com o
direito em si, com a sua extensão objectiva; o limite ao exercício de direitos
contende com a sua manifestação, com o modo de se exteriorizar através da
prática do seu titular. A restrição afecta certo direito (em geral ou quanto a
certa categoria de pessoas ou situações), envolvendo a sua compressão ou, doutro
prisma, a amputação de faculdades que a priori estariam nele compreendidas; o
limite […] pode desembocar ou traduzir-se qualificadamente em condicionamento,
ou seja, num requisito de natureza cautelar de que se faz depender o exercício
de algum direito, como a prescrição de um prazo (para o seu exercício), ou de
participação prévia […]». Nesse sentido – acrescenta o mesmo autor -, o
«condicionamento não reduz o âmbito do direito, apenas implica, uma vezes, uma
disciplina ou uma limitação da margem de liberdade do seu exercício, outras
vezes um ónus» .
Por outro lado, a restrição também se não confunde com a regulamentação ou
preenchimento ou desenvolvimento legislativo do conteúdo do direito. Uma coisa é
regulamentar, por razões de certeza jurídica, de clarificação ou de delimitação
de direitos; outra coisa é restringir com vista a certos e determinados
objectivos constitucionais (Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 3ª
edição, Coimbra, págs. 329-330.
No mesmo sentido aponta Jorge Reis Novais, que define a restrição como «a acção
ou omissão estatal que afecta desvantajosamente o conteúdo de um direito
fundamental, seja porque se eliminam, reduzem ou dificultam as vias de acesso ao
bem nele protegido e as possibilidades da sua fruição por parte dos titulares
reais ou potenciais do direito fundamental seja porque se enfraquecem os deveres
e obrigações, em sentido lato, que da necessidade da sua garantia e promoção
resultam para o Estado»; o que permite distinguir a restrição de um direito
fundamental das situações de regulamentação do seu exercício, que se reporta
antes à «regulação dos pormenores práticos do exercício de um direito em ordem a
facilitar ou adequar a sua efectivação nas condições complexas das relações da
vida (…)» (As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas
pela Constituição, Coimbra, 2003, págs.157 e 177).
Por outro lado, conforme vem sendo sublinhado pelo Tribunal Constitucional,
«[s]ó as normas restritivas dos direitos fundamentais (normas que encurtam o seu
conteúdo e alcance) e não meramente condicionadoras (as que se limitam a definir
pressupostos ou condições do seu exercício) têm que responder ao conjunto de
exigências e cautelas consignado no artigo 18º, nºs 2 e 3, da Lei Fundamental».
Para que um condicionamento ao exercício de um direito possa redundar
efectivamente numa restrição torna-se necessário que ele se mostre desadequado e
desproporcionado de modo a que possa dificultar gravemente o exercício concreto
do direito em causa (acórdão n.ºs 413/89 (publicado no Diário da República, II
Série, de 15 de Setembro de 1989), cuja doutrina foi refirmada, designadamente,
no acórdão n.º 247/02).
Revertendo ao caso concreto, constata-se que o Decreto-Lei n.º 198/95 começou
por introduzir o cartão de identificação do utente do Serviço Nacional de Saúde,
como um meio alternativo de comprovação da qualidade de beneficiário, que seria
destinado a substituir qualquer outro documento pelo qual fosse igualmente
possível efectuar essa prova. A alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º
52/2000, mediante a nova redacção dada ao artigo 2º, teve em vista impor o uso
do cartão de utente como o único meio de identificação perante os serviços de
saúde, estipulando concomitantemente a presunção de que o interessado não é
beneficiário do Serviço Nacional da Saúde, encontrando-se, por isso, sujeito ao
pagamento dos encargos com a assistência médica, quando não tenha feito a prova,
nos dez dias seguintes à interpelação para pagamento, de que é titular do cartão
de identificação ou requereu já nos serviços competentes a sua emissão.
À luz das normas e princípios constitucionais, nada pode obstar, no entanto, a
que o legislador implemente, por razões de política legislativa, um mecanismo de
identificação dos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde, em ordem a
assegurar a agilização do funcionamento das unidades prestadoras de cuidados de
saúde.
Por outro lado, face ao regime legal, a exigência da apresentação do cartão de
utente não põe em causa a obrigatoriedade da prestação dos cuidados médicos, tal
como desde logo resulta do disposto no n.º 2 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º
198/95, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 52/2000, que expressamente
determina que a não identificação dos utentes nos termos previstos «não pode, em
caso algum, determinar a recusa de prestações de saúde»
Nestes termos, a sujeição dos utentes, segundo o disposto no n.º 3 do mesmo
preceito, à demonstração, dentro do prazo de dez dias seguintes à interpelação
feita pelos serviços de saúde, de que são titulares ou requereram a emissão do
cartão de identificação de utente do Serviço Nacional de Saúde, como forma de se
eximirem ao pagamento dos encargos devidos com os cuidados de saúde prestados,
não representa uma restrição ao direito à saúde mas um mero condicionamento de
natureza procedimental relativo ao seu exercício e que tem essencialmente em
vista estimular a implementação prática do sistema de identificação do universo
dos beneficiários.
Acresce que essa exigência não se mostra excessiva ou intolerável em termos de
poder considerar-se que afronta o princípio da proporcionalidade, porquanto o
interessado poderá com toda a facilidade efectuar a prova da sua qualidade de
utente, ainda em tempo útil, bastando-lhe que demonstre ter já solicitado a
emissão do cartão de identificação ainda que à data da prestação de cuidados de
saúde não pudesse ser considerado titular. Acresce que a cobrança dos encargos
com a prestação dos cuidados de saúde, em caso de não cumprimento, pelo utente,
do prazo cominado na lei, não é automática mas depende da iniciativa do serviço
de saúde competente, pelo que nada obsta que possa ser ponderada, em cada caso
concreto, uma eventual causa justificativa do incumprimento.
Não há, pois, motivo para manter o julgado.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) não julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2º, 18º e
64º da Constituição da República Portuguesa, a norma do n.º 3 do artigo 2º do
Decreto-Lei n.º 198/95, de 29 de Julho, na redacção dada pelo artigo único do
Decreto-Lei n.º 52/2000, de 7 de Abril, quando interpretada no sentido de
obrigar ao pagamento dos serviços prestados apenas pelo facto de o utente não
ter cumprido o ónus de demonstração de titularidade do cartão de utente no prazo
de dez dias subsequentes à interpelação para pagamento dos encargos com os
cuidados de saúde;
b) e, em consequência, conceder provimento ao recurso e revogar a decisão
recorrida para que seja reformada de acordo com o juízo de constitucionalidade
agora formulado.
Sem custas.
Lisboa, 22 de Outubro de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão