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Processo nº 584/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama para a conferência, ao abrigo do disposto n.º 3 do
art. 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), da
decisão sumária proferida pelo relator que decidiu não conhecer do recurso de
constitucionalidade interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães,
de 26 de Fevereiro de 2008, que negou provimento ao recurso interposto da
sentença do 1.º Juízo Criminal da Comarca de Viana do Castelo.
2 – A reclamação estriba-se na seguinte argumentação:
«É grande a preocupação do recorrente com este caso.
Pois, a manter-se a decisão implicaria não apenas a inibição de conduzir mas a
inevitável perda do emprego de motorista de Agência de viagens, com o serviço de
transporte de passageiros de Portugal para a Suiça e vice-versa.
Sem emprego, ficaria em causa a subsistência do recorrente e, inclusive, de seus
pais, pessoas idosas, com dificuldades económicas, com quem vive e auxilia com o
seu ordenado.
A razão por que mantém o recorrente a impugnação da sanção que lhe foi aplicada
é que considera não ter cometido tamanho delito para sofrer sanção tão grave,
além da coima, de ser impedido de conduzir pelo longo período de 4 meses (!),
com consequências nefastas na sua vida pessoal e familiar.
E desde logo na questão da medição do teor de alcoolemia, o recorrente deverá
referir que chegou a colocar a hipótese da contraprova, para o que foi
dissuadido pelo Sr. Agente que o interpelou, referindo-lhe que se tinha ingerido
bebidas pouco tempo antes ainda podia ser pior”
Acabando o recorrente por não o fazer, e reservando-se à sua “sorte”.
Porém, face à “pesada” sanção, não se conforma o arguido com o “resultado”.
E não aceita por que, se já entendia que o resultado da medição lhe parecia
exagerado, verifica que a decisão judicial da impugnação admite a possibilidade
de erro no aparelho em causa.
Eis portanto a questão.
Na douta decisão sumária ora reclamada é entendida que a dimensão normativa do
art. 81º, nºs 1 e 2 do Código da Estrada não foi aplicada pelo acórdão
recorrido.
Tal, porém, pela leitura que fazemos, salvo o devido respeito, não é o nosso
entendimento.
Como refere o acórdão recorrido, além do mais, no relatório, foi proferida
sentença que julgando improcedente a impugnação, manteve a condenação do arguido
como autor de uma contra-ordenação, p. e p. pelo art. 81º, nºs 1 e 2 do CE, na
coima de € 500 e na sanção acessória de inibição de condução pelo período de 120
dias.
E, na decisão, nega provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
E confirmando-a, em nosso entender, aplica a referida norma.
Tal como é dito por Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, in Breviário de
Direito Processual Constitucional, Recurso de Constitucionalidade, Coimbra
Editora, 1997, p. 40, “A aplicação da norma tanto pode ser expressa como
implícita”, com menção da jurisprudência nesse sentido (Ac.s 88/86, 47/90,
235/93).
Acrescentando, “O não conhecimento por parte de um tribunal da
inconstitucionalidade de uma norma, quando podia e devia fazê-lo equivale a
aplicação implícita da mesma” (Ac. 318/90).
Porém, “in casu”, até se considera que a conheceu.
Independentemente da bondade da decisão, nomeadamente não considerando de
conhecimento geral a existência de erro nas medições que pode atingir os 30%
(cf. Portaria nº 748/94, de 3/10, actualmente substituída pela Portaria nº
1556/2007, de 10/12, com as disposições regulamentares ali mencionadas), quando
é público e notório que os alcoolímetros não garantem a fiabilidade absoluta,
com divulgação da existência de margens de erro pela anterior Direcção Geral de
Viação. Aliás, tratando-se de normas publicadas, e, tal como é dito pelo Ac. RP,
de 2/4/2008, 1ª Secção, Proc. 479/2008, in, www.trp.pt, inseridas em diplomas
legislativos, logo de conhecimento geral e como norma legal.
Acrescentando ser a margem de erro uma “suspeita/certeza (...) fundada e de
conhecimento geral (…) como facto notório – que são os factos do conhecimento
geral ou conhecimento público (e não se diga que algo publicado no D.R. não é de
conhecimento público) 514º 1 CPC ex vi art. 4º CPP (…)”.
Assim como imprimindo um traço perfeitamente distintivo das garantias no direito
de mera ordenação social e do processo criminal, sendo a lei – art. 41º, nº 1,
RGIMOS – que prescreve serem aplicáveis os preceitos reguladores deste, e, por
outro lado, o art. 32º, C. R. P., tal como decidiu o Ac. do STA, de 28/5/2008,
2ª Secção, Proc. nº 31/08, i, www.dgsi.pt/jsta, o próprio “nº 10 deste (…)
preceito dispõe expressamente que são assegurados ao arguido, em quaisquer
processos sancionatórios, contra-ordenações incluídas, os direitos de audiência
e de defesa, (…) pois que têm que concretizar, desde logo, a possibilidade de
recurso ou impugnação judicial do acto sancionatório e a possibilidade efectiva
de contraditar eficazmente os elementos trazidos pela acusação.
Cfr., por todos, o acórdão do Tribunal Constitucional nº 220/89, in Boletim do
Ministério da Justiça 384, p. 326”.
Acrescentando,
“Em comentário àquele inciso normativo, os constitucionalistas Gomes Canotilho e
Vital Moreira, in CRP anotada — 4ª edição, p. 526, nota XVII, referem tratar-se,
aí, “de uma simples irradiação, para esse domínio sancionatório, de requisitos
constitutivos do estado de direito democrático”, assacando a tais processos
sancionatórios, “carácter para-penal”, consequentemente de natureza pública.
E o acórdão do Tribunal Constitucional nº 265/01, de 19 de Junho, assinala que
“não só se aplicam, ao ilícito contra-ordenacional, garantias
constitucionalmente atribuídas ao direito penal (v.g. princípios da legalidade e
da aplicação da lei penal mais favorável), como também existe um evidente
paralelismo entre o processo penal e o processo contra-ordenacional que é
conformado por princípios básicos daquele, tendo em atenção os interesses
subjacentes” (Acórdão desta Secção do STA de 12/3/08, in rec. nº 1.053/07).
No mesmo sentido, pode ver-se o Acórdão desta Secção do STA de 27/2/08, in rec.
nº 1.057/07”.
Posições que contestam manifestamente a sufragada no acórdão recorrido.
Ainda assim, a questão suscitada tem que ver com a insegurança resultante da
admissibilidade de erro na determinação do pressuposto de facto de uma sanção, e
que, de todo o modo, nem se vislumbrando que, pelo menos, fosse aplicada a maior
margem de erro abstractamente admitida em tais circunstâncias como forma de a
minimizar, mais não fosse, em homenagem ao princípio “in dubio pro reo”.
O acórdão recorrido faz exposição daquilo que considera ser o regime aplicável à
luz da Constituição, que cita, nomeadamente, o seu art. 32°, concluindo pela
improcedência do recurso nessa parte.
Quanto à segunda parte, da douta decisão ora reclamada, é ela apresentada em
dois segmentos, quais sejam reproduzindo o acórdão recorrido, aludindo a não
concretização das razões da violação de cada uma das normas constitucionais que
o recorrente invoca, e que, ainda assim, face ao Ac. nº 424/2007, do TC, sempre
tal improcederia. Acrescentando ainda que em face dos acórdãos citados que se
pronunciaram sobre a alegada questão de inconstitucionalidade orgânica, nada
disseram sobre a sua desconformidade material.
Pelos fundamentos constantes do recurso interposto para o Tribunal “a quo”, o
recorrente considera, com todo o respeito, que se trata de questão distinta a
por si invocada, que, no seu entender, merece ser apreciada.».
3 – O Ministério Público emitiu parecer em que disse:
«1.º
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2º
Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da decisão
reclamada que deverá naturalmente ser, por inteiro, confirmada.».
4 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
«1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
na sua actual versão (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de
26 de Fevereiro de 2008, que negou provimento ao recurso interposto da sentença
do 1.º Juízo Criminal da Comarca de Viana do Castelo, pretendendo a apreciação
da “inconstitucionalidade das normas do art.º 81.º, nºs 1 e 2, do C. E., por
violação dos princípios da certeza e segurança jurídica, da dignidade da pessoa
humana, consignados pelos art.ºs 1.º e 2.º da Constituição da República
Portuguesa; e relativamente à possibilidade da suspensão da execução da sanção
acessória de inibição de conduzir, com limitação às contra-ordenações graves, e
condenação anterior, nos últimos cinco anos, do art.º 141.º, nºs 1 e 2, do C.
E., na redacção dada pelo D. L. n.º 44/2005, quando o não permita em relação às
contra-ordenações qualificadas como muito graves, por contrário aos art.ºs 1.º,
2.º, 13.º e 32.º, n.º 10, e dos princípios neles consignados”.
2 – O recorrente impugnou, sem sucesso, perante aquele Tribunal de
Viana do Castelo, a decisão do Governo Civil de Viana do Castelo que lhe aplicou
a sanção acessória de inibição de condução pelo período de 120 dias, pela
prática de uma contra-ordenação de condução automóvel sob a influência do
álcool, nos termos das disposições combinadas dos art.ºs 81.º, nºs 1 e 2, 138.º
e 146.º do Código da Estrada.
3 – O recorrente interpôs recurso desta sentença para o Tribunal da
Relação, tendo na sua motivação, e condensando argumentação antes desenvolvida,
concluído do seguinte jeito, na parte que interessa ao presente recurso de
constitucionalidade:
“[…]
4.ª Pelo que permitindo essa norma [art.º 81.º, nºs 1 e 2, do Código
da Estrada] a condenação de um condutor com base num teste de alcoolemia
efectuado por aparelho cujo resultado é errado, ainda que mesclado como erro
máximo admissível, enferma tal norma de inconstitucionalidade por violação dos
princípios da certeza e segurança jurídica, da dignidade da pessoa humana,
consignados pelos art.ºs 1.º e 2.º da Constituição da República Portuguesa”;
…
9.ª Ou seja, não sendo consideradas, nomeadamente, as circunstâncias
do caso, a censurabilidade sobre a sanção anterior como suficiente advertência,
o que viola claramente os princípios basilares da culpa, igualdade,
proporcionalidade, razoabilidade;
10.ª Como garantias constitucionais, decorrentes, outrossim,
designadamente dos arts. 1.º, 2.º, 13.º e 32.º, n.º 10, da Lei Fundamental;
11.ª Pelas mesmas razões, relativamente à possibilidade da suspensão
da sua execução, como limitação às contra-ordenações graves, e condenação
anterior, nos últimos cinco anos, pelo normativo do art.º 141.º, nºs 1 e 2, do
C. E., na redacção dada pelo D.L. 44/2005, de 23/2, não o permitindo
relativamente às contra-ordenações qualificadas como muito graves;
12.ª Considerando-se, por isso, tais normas, quando assim o imponham
ou impeçam, igualmente inconstitucionais”.
4 – O acórdão recorrido negou provimento ao recurso jurisdicional.
No que importa à primeira questão acima enunciada, e depois da
elaboração de um juízo probatório de facto no sentido de o recorrente haver
acusado “uma “TAS (registada) de 1,08 g/L correspondente a uma TAS no mínimo
(deduzido o erro máximo admissível, na percentagem de 7,5% - Port. 748/94 de
13AGO e norma NFX20-01 da CML) de 1,00 g/l”, o acórdão concluiu que
“sustentando-se a argumentação num facto nuclear não provado, sempre teria de
improceder o recurso nesta parte”.
E sob a nota de que “ainda assim, dir-se-á o seguinte”, o aresto
agora em causa acabou, em síntese, por consignar que se o recorrente tinha
dúvidas sobre a exactidão do resultado indicado pelo aparelho deveria ter
solicitado a contra-prova, mediante análise de sangue” e que “não é com base
numa dúvida subjectiva e arbitrária do arguido, assente num desconhecido
«conhecimento geral» [que poderá] considerar a possibilidade de verificação de
uma margem de erro de 30%”.
Por seu lado, no que respeita à questão da suspensão da pena
acessória, o acórdão recorrido discreteou do seguinte jeito:
“Invocando as mesmas normas constitucionais, também aqui o
recorrente se limita à afirmação da inconstitucionalidade da impossibilidade
legal de suspender a execução das sanções acessórias nas contra-ordenações muito
graves. Remete-se para o que acima se escreveu na alínea c), a propósito da
necessidade de serem concretizadas as razões da violação de cada uma das normas
constitucionais invocadas.
Acrescenta-se apenas que não se vislumbram as razões que poderão
sustentar tal entendimento. Nada impõe que o legislador preveja a possibilidade
de ser suspensa a execução de todas as sanções, nomeadamente as mais graves”.
Na alínea c) da decisão recorrida, a que se refere este trecho,
escreveu-se, por seu turno:
“[…]
O recorrente não contesta que se verificam os elementos típicos
objectivos para a sua condenação como reincidente. Alega, porém, que a sua
condenação nessa qualidade viola as normas dos arts. 1.º, 2.º, 13.º e 32.º, n.º
10, da CRP por não terem sido consideradas, nomeadamente, as circunstâncias do
caso, a censurabilidade sobre a sanção anterior como suficiente advertência’
É uma formulação que não pode proceder, porque o recorrente
limita-se a enunciar o seu entendimento, sem concretizar, ou tentar concretizar,
as razões da violação de cada uma das normas constitucionais que invoca. Como se
sabe, alegar não é só afirmar que se discorda da decisão recorrida, mas
atacá-la, especificando não só os pontos em que se discorda dela, mas também as
razões concretas de tal discordância.
[…]”.
5 – Não obstante o recurso para o Tribunal Constitucional haver sido
admitido pelo tribunal a quo, tal não impede que não se tome conhecimento do
mesmo, dado essa decisão o não vincular, como se estabelece no n.º 3 do art.º
76.º da LTC.
Assim e porque se verifica uma situação que se enquadra na hipótese
recortada no n.º 1 do art.º 78.º-A da LTC, passa a decidir-se imediatamente.
6 - Estabelecem os art.ºs 280º, n.º 1, al. b), da CRP, e 70º, n.º1,
al. b), da LTC que cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões dos
tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada
durante o processo.
Segundo a jurisprudência constante e uniforme deste Tribunal, só
podem constituir objecto desse recurso constitucional normas jurídicas que
tenham constituído ratio decidendi da decisão (cf., por exemplo, o Acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 18/96, publicado no DR II Série, de 15 de Maio de
1996, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
Coimbra, 1998, p. 821).
O recurso de constitucionalidade, tal como foi gizado pelo
legislador constitucional – com natureza instrumental e relativamente a normas
jurídicas –, tem em vista o controlo da conformidade com a Constituição (as
normas e princípios constitucionais) das normas jurídicas que tenham sido
convocadas como suporte normativo da concreta decisão proferida.
Sendo assim, estão arredados do objecto do recurso os outros actos
admitidos na ordem jurídica, embora estes façam aplicação directa das normas e
princípios constitucionais, como acontece com as decisões judiciais (sentenças e
despachos), os actos administrativos e os actos políticos.
Deste modo, não pode, no recurso de constitucionalidade, sindicar-se
a correcção jurídica da sentença, seja no que se refere à determinação, no plano
do direito infraconstitucional, da norma aplicada ao caso, seja no que importa à
operação de subsunção das circunstâncias do caso ao quadro normativo elegido e
ao resultado de uma tal actividade cognitivo-decisória, seja mesmo no que
concerne à aplicação que a mesma faça directamente das normas de direito
infraconstitucional e das normas e princípios constitucionais.
A violação directa das normas e princípios constitucionais pela
decisão judicial, atenta a circunstância de não vigorar entre nós o meio
constitucional do recurso de amparo, apenas pode ser conhecida no plano dos
recursos de instância previstos na respectiva ordem de tribunais.
Não obstante o recurso de constitucionalidade respeitar a uma
decisão judicial e a decisão naquele proferida no sentido da
inconstitucionalidade ou da constitucionalidade da(s) norma(s) jurídica(s) nele
sindicadas poder afectar a manutenção da decisão, na medida em que um juízo nele
tirado sobre a questão de constitucionalidade em sentido desconforme com o
efectuado na decisão proferida pelo tribunal recorrido obrigará à reforma desta,
o objecto do recurso é tão só a norma jurídica que constitua a ratio decidendi
da decisão. Nesse recurso apenas cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se
sobre se a norma jurídica concretamente aplicada é ou não constitucionalmente
válida.
Acresce, por outro lado, que a questão de inconstitucionalidade
dessas normas há-de ser suscitada em tempo e de modo funcionalmente adequado
para que o tribunal recorrido pudesse conhecer dela.
Como nota José Manuel M. Cardoso da Costa (A jurisdição
constitucional em Portugal, 3.ª edição revista e actualizada, 2007, págs. 40 e
segs.), «quanto ao controlo concreto – ao controlo incidental da
constitucionalidade (…), no decurso de um processo judicial, de uma norma nele
aplicável – não cabe o mesmo, em primeira linha, ao Tribunal Constitucional, mas
ao tribunal do processo. Na verdade, não obstante a instituição de uma
jurisdição constitucional autónoma, manteve-se na Constituição de 1976, mesmo
depois de revista, o princípio, vindo das Constituições anteriores (…), segundo
o qual todos os tribunais podem e devem, não só verificar a conformidade
constitucional das normas aplicáveis aos feitos em juízo, como recusar a
aplicação das que considerarem inconstitucionais (…). Este allgemeinen
richterlichen Prüfungs – und Verwerfungsrecht encontra-se consagrado
expressamente (…), e com o reconhecimento dele a Constituição vigente permanece
fiel ao princípio, tradicional e característico do direito constitucional
português, do “acesso” directo dos tribunais à Constituição (…). Quando, porém,
se trate de recurso de decisão de aplicação de uma norma (…) é ainda necessário
que a questão da inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo,
em consequência do que o juiz tomou posição sobre ela (…). Compreende-se, na
verdade, que a invocação da inconstitucionalidade unicamente ex post factum
(depois de proferida a decisão) não seja suficiente para abrir o recurso para o
Tribunal Constitucional (sob pena, além do mais, de se converter num mero
expediente processual dilatório)».
Mas suscitar uma questão de constitucionalidade corresponde a
problematizar relativamente a uma concreta norma/dimensão normativa/critério
normativo, adrede precisada, a sua validade constitucional com base na violação
de parâmetros constitucionais concretamente explicitados, não tendo essa
natureza a utilização de expressões vagas ou genéricas que não tenham capacidade
semântica para permitir que o tribunal ad quem se aperceba de qual a concreta
questão de constitucionalidade normativa que deve conhecer.
7.1 – Como resulta do relato feito, verifica-se que o recorrente
colocou uma questão de constitucionalidade relativa a um entendimento ou
dimensão normativa do art.º 81.º, nºs 1 e 2, do Código da Estrada que não foi
aplicada pelo acórdão recorrido.
O recorrente integra no critério normativo cuja constitucionalidade
sindica um elemento hipotético de tipo factual cuja verificação concreta é
rejeitada pela decisão recorrida, qual seja o de que o preceito em causa
“permite a condenação com base num critério de alcoolemia efectuado por aparelho
cujo resultado é errado, ainda que mesclado como erro máximo admissível”.
Não pode, pois, tomar-se conhecimento do recurso de
constitucionalidade relativo a essa questão.
7.2 – No que importa à segunda questão de constitucionalidade,
reportada ao art.º 141.º, nºs 1 e 2, do Código da Estrada, constata-se que o
tribunal recorrido a julgou improcedente, por considerar que a mesma lhe foi
colocada, pelo recorrente, “sem concretizar, ou tentar concretizar, as razões da
violação de cada uma das normas constitucionais que invoca”, limitando-se, a
mais disso, a dizer “acrescenta-se apenas que não se vislumbram as razões que
poderão sustentar tal entendimento. Nada impõe que o legislador preveja a
possibilidade de ser suspensa a execução de todas as sanções, nomeadamente as
mais graves”.
Pode, pois, considerar-se que a questão de constitucionalidade não
foi suscitada em termos de o tribunal recorrido dela poder conhecer, ou seja,
que, pelos termos genéricos e imprecisos que foram utilizados, não foi
problematizada adequadamente qual a questão a resolver pelo tribunal de recurso.
É que tanto se poderá entender que o recorrente questiona a validade
constitucional da norma. por esta contemplar uma solução que se afasta do
princípio geral assumido quanto à possibilidade de suspensão das penas de
prisão, no domínio criminal, pelos art.ºs 50.º e segs. do Código Penal, como
controvertê-la, por a suspensão da inibição da sanção acessória estar prevista
para as contra-ordenações qualificadas como graves e não também para as muito
graves.
Deste modo fracassa o pressuposto do recurso de constitucionalidade
da exigência de adequada e atempada suscitação da questão de
constitucionalidade.
De qualquer jeito, entendendo que a questão de constitucionalidade
alegada relativamente ao art.º 141.º, nºs 1 e 2, do Código da Estrada tenha por
objecto a dimensão normativa segundo a qual não é consentida a suspensão da
sanção acessória de inibição de conduzir veículos automóveis relativamente a
contra-ordenações qualificadas como muito graves pelo art.º 146.º do mesmo
Código [em contrário do previsto relativamente às contra-ordenações qualificadas
como graves pelo art.º 145.º do mesmo compêndio normativo) e por fundamento de
inconstitucionalidade os princípios constitucionais da culpa, igualdade,
proporcionalidade e razoabilidade, reportados aos art.ºs 1.º, 2.º, 13.º, 32.º,
n.º 10, da Constituição da República Portuguesa, sempre haverá de concluir-se
pelo não provimento do recurso.
Na verdade, tendo apreciado a questão de inconstitucionalidade
material de tal preceito, com fundamento na violação do princípio da
proporcionalidade, o Acórdão n.º 424/2007, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt concluiu pela sua não inconstitucionalidade.
E se é certo que a questão foi aí analisada explicitamente apenas em
função de tal parâmetro constitucional, não deixaram os demais parâmetros
constitucionais com pertinência para a decisão de ser tidos implicitamente em
conta, dado o Tribunal Constitucional não se achar vinculado aos fundamentos de
inconstitucionalidade alegados, podendo “fazê-lo com fundamento na violação de
normas ou princípios constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação
foi invocada” (art.º 79.º-C da LTC).
De resto, a não violação dos alegados “princípios da culpa e da
igualdade” é, por demais, evidente, dado as contra-ordenações em causa apenas
serem puníveis a título de culpa e não ser arbitrária a opção do legislador de a
considerar de grau mais elevado no caso das contra-ordenações qualificadas como
muito graves por contraposição às qualificadas apenas como graves.
E quanto ao dito princípio da “razoabilidade”, há que registar que o
mesmo integra o princípio da proporcionalidade.
De resto, aquele juízo poderia igualmente ser inferido dos Acórdãos
nºs 603/2006, 604/2006, 629/2006, 6/2007, 32/2007, disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt, que, havendo-se pronunciado em sentido negativo
sobre a alegada questão de inconstitucionalidade orgânica, nada disseram sobre a
sua desconformidade material, sendo que, a existir, o deveriam ter feito.
De tudo resulta que não poderá tomar-se conhecimento do recurso e
que, a dever ser ele tomado, a referida norma do 141.º, nºs 1 e 2, do Código da
Estrada, não poderia ser julgada inconstitucional.
8 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 7 UCs.
B – Fundamentação
5 – Contrastando os argumentos da reclamação com os fundamentos da
decisão reclamada, constata-se que o reclamante, verdadeiramente, nem sequer
chega a refutá-los.
Na verdade, o reclamante não contesta o facto de o critério
normativo cuja constitucionalidade colocou ao tribunal ad quem, referente ao
art.º 81.º, nºs 1 e 2, do C. da Estrada, não ter sido aplicado pela decisão
recorrida, por integrar «um elemento hipotético de tipo factual cuja verificação
concreta é rejeitada pela decisão recorrida, qual seja o de que o preceito em
causa “permite a condenação com base num critério de alcoolemia efectuado por
aparelho cujo resultado é errado, ainda que mesclado como erro máximo
admissível”».
Do mesmo passo, o reclamante nada diz também quanto à circunstância
de não ter sido suscitada em termos adequados, perante o tribunal a quo, a
segunda questão de constitucionalidade, reportada ao art.º 141.º, nºs 1 e 2, do
Código da Estrada, nem quanto à sua manifesta improcedência afirmada,
igualmente, na decisão reclamada, mediante adesão aos fundamentos constantes do
Acórdão n.º 424/2007, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
Pela sua bondade, são, assim, de acolher e reiterar tais fundamentos
da decisão reclamada.
Na sua reclamação, o reclamante limita-se, ao fim e ao cabo, a
contradizer a correcção e justiça da decisão recorrida em si própria, em face do
direito aplicado.
Ora, tendo, como já se disse, o recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade por objecto apenas normas jurídicas, escapa à competência do
Tribunal Constitucional efectuar qualquer reexame da bondade da decisão
recorrida, em face do direito aplicado, ainda que este diga respeito a normas ou
princípios constitucionais que tenham sido directamente aplicados, como é do
princípio in dubio pro reo.
Tem, portanto, de concluir-se pelo indeferimento da reclamação.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação e condenar o reclamante nas custas, fixando a taxa
de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 8 de Outubro de 2008
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos