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Processo n.º 622/08
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., Limitada, deduziu impugnação judicial (processo n.º 659/04.0BEALM, do
Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada) da liquidação do Imposto Municipal
sobre Imóveis, relativo ao ano de 2003, referente ao prédio inscrito na matriz
sob o artigo U-01638, da freguesia do Lavradio, Concelho do Barreiro, no
montante de €. 47.060,98.
Por sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, em 24 de
Novembro de 2006, foi julgada improcedente a impugnação, tendo sido mantida a
liquidação impugnada.
Desta decisão recorreu a impugnante para o Tribunal Central Administrativo Sul
que, por acórdão proferido em 16-10-2007, negou provimento ao recurso, mantendo
a decisão recorrida.
Desta decisão voltou a recorrer a impugnante para o Supremo Tribunal
Administrativo que, por acórdão proferido em 21-5-2008, não admitiu o recurso
interposto, face à não verificação dos requisitos expressos no n.º 1, do artigo
150.º, do C.P.T.A..
Desta decisão recorreu o impugnante para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da
alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, nos seguintes termos:
“a) O presente recurso é interposto nos termos da al. b) do n.° 1 do art 70.° da
Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.°
85/89, de 7 de Setembro e pela Lei n.° 13-A/98, de 26 de Fevereiro;
b) Pretende a recorrente ver apreciada a inconstitucionalidade do n.° 1 do art.
150.° do CPTA, na interpretação segundo a qual, não se considere como claramente
necessária para uma melhor aplicação do direito a admissão de recurso em que se
invoquem nulidades e inconstitucionalidades, sobre as quais nem a 1ª Instância,
nem o Tribunal Central Administrativo se pronunciaram apesar de em tempo
invocadas, por violação do art. 20.° e do Princípio do Estado de Direito
Democrático consagrado no art. 2.°, ambos da Constituição da República
Portuguesa (CRP);
c) Mais pretende a recorrente ver apreciada a inconstitucionalidade do art.
109°, em compaginação com os arts. 53.° e 94°, parágrafo 2.°, todos do Código da
Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações (CIMSISSID), na interpretação
segundo a qual, instaurado procedimento de avaliação, proferido despacho que
repristine artigo matricial anteriormente em vigor, tal alteração exista e não
seja notificada ao titular de direito de superfície, por violação do art. 268.°,
n.° 3, e do Principio da Confiança, integrante do Principio do Estado de Direito
Democrático, consagrado no art. 2°, ambos da CRP.
d) A questão da inconstitucionalidade referida em b) apenas no presente
requerimento de recurso foi suscitada, porquanto somente surgiu em consequência
do decidido no douto Acórdão ora recorrido;
e) As questões de inconstitucionalidade referidas em c) foram suscitadas na
Impugnação Judicial dirigida ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, nas
Alegações de Recurso interposto da Sentença de 1 Instância para o Tribunal
Central Administrativo Sul e nas Alegações de Recurso interposto do Acórdão do
Tribunal Central Administrativo Sul para o Supremo Tribunal Administrativo.”
Por decisão sumária proferida em 28-7-2008, não se conheceu do recurso
relativamente à questão enunciada na alínea c), e negou-se provimento,
relativamente à questão enunciada na alínea b) do respectivo requerimento de
interposição.
Esta decisão, relativamente à parte que negou provimento ao recurso, teve a
seguinte fundamentação:
“O recorrente pretende que o Tribunal Constitucional fiscalize a
constitucionalidade da norma constante do n.° 1, do artigo 150.°, do CPTA, na
interpretação segundo a qual, não se considere como claramente necessária para
uma melhor aplicação do direito a admissão de recurso em que se invoquem
nulidades e inconstitucionalidades, sobre as quais nem a 1ª Instância, nem o
Tribunal Central Administrativo se pronunciaram apesar de em tempo invocadas,
por violação do artigo 20.° e do Princípio do Estado de Direito Democrático
consagrado no artigo 2.°, ambos da C.R.P.
Previamente, convém precisar que efectivamente a decisão recorrida considerou
que o recurso para o S.T.A. em que se invocassem nulidades do acto
administrativo impugnado ou a violação de normas constitucionais, não podia ser
conhecido nos termos do artigo 150.º, n.º 1, do CPTA, não tendo contudo
assumido que essas questões não tenham sido objecto de apreciação pelas
instâncias recorridas.
Devendo o objecto da fiscalização de constitucionalidade limitar-se a normas ou
interpretações normativas que integrem a ratio decidendi da decisão recorrida,
apenas cumpre verificar a constitucionalidade da interpretação assumida pelo
acórdão do S.T.A. e que se resume à posição de que não podem ser fundamento de
recurso, nos termos do artigo 150.º, do CPTA, a invocação de nulidades do acto
administrativo impugnado ou a violação de normas constitucionais.
O presente recurso versa a temática do direito de recurso, em especial a vexata
quaestio da exigência constitucional de diversos graus de jurisdição, neste
caso de um terceiro grau de jurisdição (recurso de decisão do Tribunal Central
Administrativo para o Supremo Tribunal Administrativo).
Entendeu o tribunal a quo que a invocação de determinados argumentos (nulidades
do acto administrativo impugnado e violações de preceitos constitucionais) não
eram susceptíveis de justificar a admissibilidade do recurso excepcional para o
S.T.A., previsto no artigo 150.º, do CPTA.
Não cabe aqui sindicar ou tecer considerações relativamente ao acerto ou
desacerto da interpretação jurídica destas normas concretamente levada a cabo
pela decisão recorrida.
Apenas interessa saber se o resultado hermenêutico expressa ou implicitamente
alcançado pelo tribunal a quo respeita as regras ou princípios constitucionais.
Um olhar minimamente atento sobre as regras que conformam a extensão da
recorribilidade no âmbito das diferentes jurisdições permite chegar à conclusão
de que a regra geral adoptada pelo legislador ordinário no nosso sistema
processual é a da recorribilidade das decisões judiciais para instâncias
superiores.
Essa tem sido aliás a orientação geral dos diversos sistemas jurídicos desde a
introdução da appelatio do direito processual romano, apesar da existência de
tribunais de recurso hierarquicamente superiores não deixar de suscitar opiniões
críticas, sobretudo em épocas de “revolução” (referenciando estas críticas, vide
ARMINDO RIBEIRO MENDES, em “Direito processual civil III – Recursos”, pág.
121-123, da ed. da A.A.F.D.L., de 1982).
Contudo, olhando a Constituição não vemos nenhum preceito que consagre
expressamente, em termos genéricos, o direito a um duplo grau de jurisdição.
A Revisão Constitucional de 1997 procedeu somente à alteração do artigo 32.º,
n.º 1, da Constituição, autonomizando expressamente o recurso no contexto das
garantias de defesa que o processo penal deve assegurar.
Este direito ao recurso, como garantia de defesa, tem sido identificado pelo
Tribunal Constitucional com a garantia do duplo grau de jurisdição quanto a
decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões penais respeitantes à
situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer
outros direitos fundamentais. Ao mesmo tempo que isso é reconhecido, não se
deixa igualmente de afirmar que a Constituição não assegura o duplo grau de
jurisdição quanto a todas as decisões proferidas em processo penal, havendo
assim de admitir-se que a faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em
certas fases do processo e que, relativamente a certas decisões, possa mesmo não
existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial do direito
de defesa do arguido.
Tal exigência viria a vigorar cumulativamente na ordem jurídica portuguesa por
força da entrada em vigor, em 1 de Março de 2005, do Protocolo n.º 7 à Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, cujo artigo 2.º consagrou também expressamente,
como valor supra-legal, o “direito a um duplo grau de jurisdição em matéria
penal”.
No plano constitucional processual administrativo e fiscal não se encontra
expressamente consagrada qualquer norma sobre recursos.
Porém, são vários os preceitos constitucionais dos quais se pode retirar uma
consagração implícita do direito ao recurso, nomeadamente aqueles que se referem
ao Supremo Tribunal Administrativo e aos Tribunais administrativos e fiscais de
instância hierarquicamente inferior (artigos 212.º, n.º 1 e 3, da C.R.P.).
Desta previsão constitucional de tribunais de diferente hierarquia resulta que o
legislador ordinário não pode eliminar, pura e simplesmente, a faculdade de
recorrer em todo e qualquer caso, na medida em que tal eliminação global dos
recursos esvaziaria de qualquer sentido prático a competência dos tribunais
superiores e deixaria sem conteúdo útil a sua previsão constitucional.
Mas, para além desta limitação, o legislador ordinário dispõe de uma ampla
margem de liberdade na conformação do direito ao recurso.
Foi no uso dessa liberdade que no artigo 150.º, n.º 1, do CPTA, admitiu que “das
decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo pode
haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo, quando
esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica
ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão de recurso
seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.
A previsão deste terceiro grau de jurisdição, de utilização excepcional, não
resultou de qualquer imperativo constitucional, nomeadamente do disposto no
artigo 20.º, da C.R.P., ou de qualquer sub-princípio da ideia de Estado de
direito democrático, adoptada no artigo 2.º, da C.R.P., mas apenas da ampla
liberdade de conformação que o legislador ordinário dispõe nesta matéria.
Por isso, uma interpretação restritiva do mencionado preceito, como a que
efectuou o acórdão recorrido não ofende qualquer preceito constitucional,
nomeadamente os indicados pela recorrente.
A posição aqui expressa corresponde a posição genérica consolidada do Tribunal
Constitucional (v.g. Acórdãos n.º 447/93, 489/95, 1124/96, 202/99, 373/99,
415/2001, 26/2002, 302/2005, 689/2005, 399/2007, 500/2007 e 40/2008, todos
acessíveis no site www.tribunalconstitucional.pt), pelo que importa proferir
decisão sumária de improcedência do recurso, nesta parte, nos termos do artigo
78.º - A, n.º 1, da LTC.
*
O recorrente vem reclamar da parte da decisão que negou provimento ao recurso
por si interposto para o Tribunal Constitucional, tendo concluído do seguinte
modo a reclamação apresentada:
“1º. A questão submetida pela reclamante a esse Tribunal Constitucional, não
radica na problemática da exigência constitucional de um duplo grau de recurso,
razão pela qual, a douta Decisão reclamada é nula por omissão de pronúncia.
2º. O princípio do Estado de direito democrático, abrange o direito de acesso ao
direito e à tutela jurisdicional efectiva, consagrados no art. 20.º da CRP.
3º. O direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva constitui
um direito fundamental, consistindo numa garantia imprescindível de protecção
de direitos fundamentais.
4º. O direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, carecendo
de conformação através da lei, vincula o Estado a criar os necessários meios que
os garantam.
5º. Não tendo sido conhecidas as nulidades e consequentes violações da Lei
Constitucional, arguidas em sede de 1ª Instância e no recurso interposto para o
TCA Sul, a tutela jurisdicional da reclamante não foi efectiva, mas antes
puramente formal, consubstanciando uma má aplicação do direito.
6º. O legislador consagrou no n.º 1 do art. 150.º do CPTA, um recurso
excepcional, admissível no caso de este ser claramente necessário para uma
melhor aplicação do direito.
7º. Em face do não conhecimento das nulidades invocadas nas instâncias
anteriores, as quais manifestamente deveriam ter sido conhecidas, a Revista
deveria ter sido admitida, salvaguardando-se uma tutela jurisdicional efectiva,
de harmonia com o art. 2.º e art. 20.º da CRP.
8º. O art. 150.º do CPTA, 2.ª parte, é inconstitucional na interpretação
segundo a qual, não se considere como claramente necessária para uma melhor
aplicação do direito a admissão de recurso em que se invoquem nulidades e
inconstitucionalidades, sobre as quais nem a 1ª Instância, nem o Tribunal
Central Administrativo se pronunciaram apesar de em tempo invocadas, por
violação do art. 20.º e do princípio do Estado de direito democrático consagrado
no art. 2.º, ambos da CRP.”
A Recorrida pronunciou-se no sentido de ser indeferida a reclamação apresentada.
*
Fundamentação
O reclamante apenas discorda da parte da decisão sumária que conheceu do mérito
do recurso.
Fundamenta a sua reclamação na alegação que a decisão reclamada apreciou a
questão submetida pela reclamante a esse Tribunal Constitucional, abordando a
problemática da exigência constitucional de um duplo grau de recurso, quando a
questão respeita ao princípio do Estado de direito democrático, no segmento em
que abrange o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva,
consagrados no art. 20.º da CRP.
O requerente no seu requerimento de interposição de recurso pediu a fiscalização
da constitucionalidade da norma constante do n.° 1, do artigo 150.°, do CPTA,
na interpretação segundo a qual, não se considere como claramente necessária
para uma melhor aplicação do direito a admissão de recurso em que se invoquem
nulidades e inconstitucionalidades, sobre as quais nem a 1ª Instância, nem o
Tribunal Central Administrativo se pronunciaram apesar de em tempo invocadas,
por violação do artigo 20.° e do Princípio do Estado de Direito Democrático
consagrado no artigo 2.°, ambos da C.R.P.
Conforme se realçou na decisão reclamada a decisão recorrida limitou-se a
considerar que o recurso para o S.T.A., em que se invocassem nulidades do acto
administrativo impugnado ou a violação de normas constitucionais, não podia ser
conhecido nos termos do artigo 150.º, n.º 1, do CPTA, não tendo contudo
assumido que essas questões não tenham sido objecto de apreciação pelas
instâncias recorridas.
Como o objecto da fiscalização de constitucionalidade deve limitar-se a normas
ou interpretações normativas que integrem a ratio decidendi da decisão
recorrida, apenas cumpre verificar a constitucionalidade da interpretação
assumida pelo acórdão do S.T.A. e que se resume à posição de que não podem ser
fundamento de recurso, nos termos do artigo 150.º, do CPTA, a invocação de
nulidades do acto administrativo impugnado ou a violação de normas
constitucionais, independentemente de ter existido ou não omissão de pronúncia
sobre essas questões nas decisões das instâncias inferiores.
Esta interpretação não nega o direito a que essas questões devam ser apreciadas
pelos tribunais administrativos, e que uma eventual falta de pronúncia possa ser
atacada através do incidente de arguição de nulidade, mas sim que possam
fundamentar uma apreciação em sede de recurso pelo S.T.A., nos termos da forma
de recurso excepcional do artigo 150.º, do CPTA.. Não é, pois, o direito geral a
uma apreciação jurisidicional que está em causa, mas sim o direito a uma
apreciação pela instância superior dos tribunais administrativos, através de
recurso.
E relativamente ao direito ao recurso, conforme se refere na decisão reclamada,
na senda da jurisprudência deste Tribunal, do texto constitucional apenas
resulta que o legislador ordinário não pode eliminar, pura e simplesmente, a
faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, na medida em que tal eliminação
global dos recursos esvaziaria de qualquer sentido prático a competência dos
tribunais superiores e deixaria sem conteúdo útil a sua previsão constitucional.
Mas, para além desta limitação, o legislador ordinário dispõe de uma ampla
margem de liberdade na conformação do direito ao recurso.
Ora, a previsão de um terceiro grau de jurisdição, de utilização excepcional,
não resulta, pois, de qualquer imperativo constitucional, nomeadamente do
disposto no artigo 20.º, da C.R.P., ou de qualquer sub-princípio da ideia de
Estado de direito democrático, adoptada no artigo 2.º, da C.R.P., mas apenas da
ampla liberdade de conformação que o legislador ordinário dispõe nesta matéria.
Por isso, uma interpretação restritiva do mencionado preceito, como a que
efectuou o acórdão recorrido não ofende qualquer preceito constitucional,
nomeadamente os indicados pela recorrente.
Pelas razões expostas concorda-se com o sentido da decisão reclamada, devendo,
por isso, ser indeferida a reclamação apresentada pelo recorrente.
*
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por CPB – Companhia
Petroquímica do Barreiro, Limitada, da decisão sumária proferida nestes autos em
28-7-2008.
*
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º deste diploma).
*
Lisboa, 7 de Outubro de 2008
João Cura Mariano
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos