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Processo n.º 619/08
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
Sumário
O assistente A. recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do
Tribunal da Relação de Guimarães que, no provimento do recurso interposto pelo
arguido, absolveu este do crime pelo qual vinha condenado, bem como do pedido de
indemnização civil que contra ele fora deduzido.
Por despacho do Desembargador Relator, esse recurso não foi admitido.
Inconformado com o assim decidido apresentou o recorrente reclamação para o
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, onde refere que no caso concreto não
pode ter aplicação uma interpretação lógica da alínea e), do n.º 1, do art.
400.º, do CPP, devendo antes recorrer-se a uma interpretação teleológica e
sistemática, uma vez que se pretendeu garantir um outro nível de cognição quando
as decisões proferidas nas instâncias sejam completamente opostas.
O Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a reclamação com a
seguinte fundamentação:
“Em processo penal, para que seja admissível recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça é necessário que se verifique alguma das situações previstas no art.
432.º do CPP.
Assim, impõe-se desde logo fazer apelo à alínea b) do referido art. 432.º, onde
se determina que se recorre para o STJ “de decisões que não sejam irrecorríveis
proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do art. 400.º” E deste
preceito destaca-se a alínea e) do seu n.º 1, na redacção introduzida pela Lei
n.º 48/2007, de 29/08, que estabelece serem irrecorríveis os “acórdãos
proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da
liberdade”.
Independentemente de uma série de questões de ordem lógica e sistémica que a
disposição suscita, que seriamente dificultam a interpretação, no caso o acórdão
questionado revogou a decisão da 1.ª instância que condenara o arguido pela
prática de um crime de difamação, p. e p. pelos arts 180.º e 183.º, n.º 2, ambos
do CP, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 7 euros, absolvendo-o da
prática desse crime.
Deste modo, não é admissível o recurso para este Supremo Tribunal, nos termos do
art. 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, por esta norma pressupor uma decisão
condenatória, e não absolutória, como condição de admissibilidade do recurso.
E também o recurso não era admissível ao abrigo da redacção anterior do art.
400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, por ao crime dos autos ser aplicável pena não
superior a cinco anos de prisão.”
O assistente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional desta decisão, nos
seguintes termos:
“Efectivamente a Decisão proferida, a qual considera que a interpretação do
artigo 400º, nº 1, alínea e) do C.P.P., pressupõe uma decisão condenatória, e
não absolutória, como condição de admissibilidade de recurso, o que é
inconstitucional, por violar o princípio da proporcionalidade e igualdade e por
permitir uma interpretação que põe em causa os princípios da tipicidade e
legalidade em direito penal, sendo que, também o “assistente” tem direito à
Justiça, o que está aqui em causa.
Vigora em direito e processo penal o princípio da legalidade e da tipicidade, o
que aliás é imperioso num estado de direito, sendo a sua defesa um imperativo
constitucional.
A forma como se encontra tipificada a disposição ao abrigo da qual se interpôs o
recurso para o Supremo Tribunal de Justiça sustenta a sua admissibilidade.
A interpretação feita e que nega a possibilidade de recurso não tem qualquer
sustentáculo no elemento literal do preceito invocado, nem acolhimento no âmbito
dos princípios da taxatividade e da legalidade.
Assim não seria se, a decisão da primeira instância fosse no sentido da do
tribunal de Apelação, sendo que, neste caso, o legislador, e no sentido do
espírito de Lei, e aí sendo lançando mão do elemento sistemático e teleológico,
não o permitiu.
Não é o caso em apreço, sendo que, à decisão condenatória da primeira instância
se seguiu um acórdão absolutório. É o caso. E foi precisamente este que caiu no
âmbito do juízo de prognose do legislador, daí terem tratamento legislativo
diferente. Se assim não fosse o porquê de terem tratamento e previsão
legislativa autónoma ou individual, sendo também diferente a solução adoptada em
termos de admissão (ou não) de recurso??
A questão da inconstitucionalidade ora invocada foi levantada na reclamação
efectuada para esse Supremo Tribunal de Justiça, daquela não admissibilidade.”
O recurso para o Tribunal Constitucional não foi admitido pelo Vice-Presidente
do Supremo Tribunal de Justiça, pelas seguintes razões:
“Face ao disposto no n.º 2 do art. 72.º da LTC, o recurso previsto na alínea b)
do n.º 1 do art. 70.º da LTC só pode ser interposto pela parte que haja
suscitado a questão da inconstitucionalidade “de modo processualmente adequado
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar
obrigado a dela conhecer”.
E, manifestamente, como a doutrina tem assinalado, é momento inidóneo para
suscitar uma questão de inconstitucionalidade o requerimento de interposição de
recurso para o Tribunal Constitucional, por, após a sua apresentação, o tribunal
a quo já não poder emitir juízos de inconstitucionalidade.
O recorrente teve oportunidade processual de suscitar a questão da
inconstitucionalidade antes do despacho que ora impugna, uma vez que a
interpretação encontrada neste despacho, no que concerne à norma do art. 400.º,
n.º 1, alínea e), do CPP, coincide com a do despacho que não admitiu o recurso
para este Supremo Tribunal.
Isto, tendo em conta que a questão da inconstitucionalidade não foi suscitada
adequadamente na reclamação de fls. 2 e segs., ao contrário do que vem dito no
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, uma vez
que nela apenas se refere que “(…) é o próprio direito ao acesso aos Tribunais
que está em causa, pondo esta inadmissibilidade do recurso em causa direitos
constitucionais”.
No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 421/2001 – DR, II Série de 14.11.2001
entendeu-se “... que uma questão de constitucionalidade normativa só se pode
considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente
identifica a norma que considera inconstitucional, indica o principio ou a norma
constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que
sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma
questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a
afirmar, em abstracto, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem
indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a
inconstitucionalidade a uma decisão ou a um acto administrativo”.
Segundo estes ensinamentos, não se considera suscitada qualquer questão de
inconstitucionalidade.”
O recorrente reclamou desta decisão, apresentando os seguintes argumentos:
“Efectivamente, considera-se haver inteligibilidade da inconstitucionalidade,
desde logo porque a norma em questão, mais concretamente a alínea e) do nº 1 do
artº 400 do C.P.P. estava identificada. Ora, se o que estava em causa era a sua
interpretação no sentido de restringir o direito de recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça no caso em concreto, quando se refere que é o próprio
direito ao acesso aos Tribunais que está em causa, pondo esta inadmissibilidade
do recurso direitos constitucionais.
No entanto, na reclamação muito mais é dito para que concretamente se pudesse
aferir que o que resulta é uma interpretação da norma em questão que não tem
qualquer suporte no seu elemento literal, sendo que, salvo o devido respeito, o
recurso ao elemento lógico como elemento único interpretativo, abstraindo do
elemento literal, teleológico e sistemático, não poderá colher mormente no
âmbito do direito e processo penal onde os princípios da legalidade e
taxatividade são garante de direitos liberdades e garantias.
Curiosamente é o próprio STJ que reconhece que a interpretação do preceito legal
em questão não é por assim dizer pacífica, ou isenta de dificuldades.
O requerente só poderia por em causa a constitucionalidade desta interpretação,
de onde resulta, pelo menos do elemento literal do preceito normativo, que
aquilo que era uma expectativa legítima de interposição de recurso se gorou
quando o mesmo não foi admitido pela mesma, uma vez que o fundamento do recurso
era outro.
A questão da inconstitucionalidade deste entendimento, e do tipo de
interpretação que foi feito, e qual o preceito normativo em causa, e
consequências constavam da reclamação, que infra segue:
“O assistente intentou procedimento criminal contra o arguido dos autos.
Em sede de primeiro instância, o arguido foi condenado, em peno de multa, pela
prático de um crime de difamação praticado através de órgão de comunicação
social, previsto e punido nos termos dos artº(s) 180 e 183 nº 2 do Código Penal.
O arguido, inconformado, recorreu para o Venerando Tribunal da Relação de
Guimarães, tendo sido proferido Despacho absolutório.
Ora, inconformado com o teor do mesmo acórdão, absolutório, reitera-se.
Não conformado, o assistente interpôs Recurso daquele Acórdão absolutório, ao
abrigo do previsto no artº 400 alínea d) o contrário e do artº 401º do C.P.P
Ora, foi precisamente este recurso interposto que não foi admitido, decisão com
a qual o aqui reclamante não se conforma.
Efectivamente, a pretensão do arguido tem cabimento legal.
Não poderá valer o “elemento lógico” invocado para deitar por terra a pretensão
do reclamante.
A “interpretação lógica” ao abrigo do artº 400 nº 1, alínea e) não pode ter aqui
aplicação.
Efectivamente, não pode ser um diploma penal posterior á prática dos factos, e o
seu “elemento lógico”, a deitar por terra uma pretensão legítima e uma legítima
expectativa do assistente em recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça desta
decisão.
Mais, aquilo que o Douto Tribunal da Relação tem por elemento lógico, e que
imputa por assim dizer para um erro do legislador, deve pois, recorrer-se de uma
interpretação teleológica e sistemática, sendo que, salvo o devido respeito, o
que se pretendeu foi, neste tipo de caso concreto, em que a decisão é
diametralmente oposto à da primeira instância, garantir um outro nível de
cognição.
É efectivamente ousado, proceder através de um alegado “elemento lógico”
posterior, derrubar algo que o elemento literal, sistemático e teleológico
suportam.
Salvo o devido respeito, é o próprio direito ao acesso aos Tribunais que está em
causa, pondo esta inadmissibilidade do recurso em causa direitos
constitucionais.
O que se pretende é que o recurso já interposto no Venerando Tribunal da Relação
de Guimarães seja objecto de conhecimento.”
Deverá pois ser admitido o Recurso para esse Digníssimo Tribunal.”
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação apresentada
pelas razões constantes do despacho reclamado.
*
Fundamentação
No sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade, a
competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas
(hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o
sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de
inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si
mesmas consideradas.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º
1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua
admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão
de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo
72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio
decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente.
Aquele primeiro requisito (suscitação da questão de inconstitucionalidade
perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada) só se
considera dispensável nas situações especiais em que, por força de uma norma
legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão
recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o
recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de
constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo
essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de
constitucionalidade.
Como acima se referiu a suscitação da questão de constitucionalidade perante o
tribunal recorrido tem que ser efectuada de forma adequada, de modo a que este
fique vinculado a conhecê-la.
Para que esta exigência se mostre preenchida o recorrente deve ter identificado,
com o mínimo de precisão e clareza, a norma ou a interpretação normativa cuja
inconstitucionalidade invoca.
Constitui orientação pacífica deste Tribunal a de que (utilizando a fórmula do
acórdão n.º 367/94) “ao suscitar-se a questão de inconstitucionalidade, pode
questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão-só uma
interpretação que do mesmo se faça (…) Esse sentido (essa dimensão normativa) do
preceito há-de ser enunciado de forma que no caso de vir a ser julgado
inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de,
tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a
saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa deve
ser aplicado, por, deste modo, violar a Constituição.”
Ora, o recorrente limitou-se a dizer, na reclamação apresentada perante o
Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, depois de discutir a decisão
reclamada no plano infra-constitucional, que “salvo o devido respeito, é o
próprio direito ao acesso aos Tribunais que está em causa, pondo esta
inadmissibilidade do recurso em causa direitos constitucionais”.
Limitando-se a arguição de violação de parâmetro constitucional à
inadmissibilidade do recurso, não se questiona qualquer norma, segmento de
norma, ou interpretação normativa, mas sim o sentido da própria decisão de não
admissão do recurso, pelo que não se pode considerar que foi suscitada
adequadamente perante o tribunal recorrido qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa que este devesse conhecer.
Estando ausente este requisito essencial ao conhecimento do recurso de
constitucionalidade, revela-se correcta a decisão de não admitir o recurso
interposto para o Tribunal Constitucional, pelo que deve ser indeferida a
reclamação apresentada.
*
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A. da decisão do
Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça proferida nestes autos em
23-6-2008.
*
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 29 de Julho de 2008
João Cura Mariano
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos