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Processo n.º 224/2008
3ª Secção
Relator: Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de impugnação judicial, a impugnante A., S. A. interpôs
recurso por oposição de julgados, para o Pleno da Secção de Contencioso
Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, da decisão nesses autos proferida
pelo Tribunal Central Administrativo Sul em 4 de Julho de 2007.
No tribunal recorrido, por despacho do relator datado de 1 de Outubro de 2007,
foi o recurso julgado findo, com invocação do disposto no artigo 284º, n.º 5, do
Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), por se ter entendido que
não se verificava a identidade de situações de facto que constituía um dos
necessários pressupostos do recurso.
A impugnante deduziu então reclamação para a conferência, pedindo a final que
fosse proferido acórdão que reconheça a existência de oposição de julgados, com
o consequente prosseguimento para alegações, e, em alternativa, se declare
inconstitucional o n.° 5 do artigo 284.° do CPPT por permitir que seja o
Tribunal a quo a verificar a oposição de julgados, por violação do artigo 165°,
n.° 1, alínea p), da Constituição da República, por se ter alterado a
competência dos tribunais nesta matéria sem a necessária autorização
legislativa, e ainda por violação do princípio da proporcionalidade e da tutela
jurisdicional efectiva consagrada nos artigos 2.º e 20.° da mesma Lei
Fundamental.
Em conferência, pelo acórdão de 22 de Janeiro de 2008, o Tribunal Central
Administrativo Sul julgou improcedente a reclamação, fundamentando a sua posição
quanto à suscitada questão de constitucionalidade, nos seguintes termos:
[…]
E, sobre a questão da competência para conhecer da oposição de acórdãos ser do
STA, pelo que o art. 284°, n° 5 do CPPT é inconstitucional por violação do art.
165°, n°1, alínea p) da CRP e princípios constitucionais da proporcionalidade e
tutela jurisdicional, louvamo-nos, com a devida vénia, na douta resposta da
recorrida FªPª.
Na verdade, como é entendimento do Tribunal Constitucional, importa distinguir
entre as intervenções legislativas directamente votadas à definição da
competência e as que, inscrevendo-se no domínio da regulamentação processual,
todavia acabam por interferir apenas indirecta, acessória e necessariamente com
aquela competência; as primeiras são normas de competência e as segundas, puras
normas de processo.
E 'A Constituição distingue com nitidez entre a matéria da competência e a
matéria do processo; qualquer que seja o nível ou grau de definição da
competência dos tribunais, reservado à Assembleia da República seguramente que
nele não entram as modificações da competência judiciária a que deva atribuir-se
simples carácter processual' (Acds do TC n° 400/87 in D. Rep., 2a série de
21/Dez/87 e n° 329/89, ibidem, de 22/Jun/89);
'Por outro lado, tem o mesmo Tribunal entendido não haver invasão da reserva de
competência da Assembleia da República quando se não altera a prévia
distribuição de competência entre as várias ordens de tribunais (tributários e
judiciais)';
A necessidade de autorização legislativa apenas é exigível se ocorre modificação
das regras de competência judiciária material, com natural reflexo na
distribuição das matérias pelas diversas espécies de tribunais' -cfr. Acd. n°
114/00 in Acd do TC, pág. 415;
Assim, é o Relator do TCA que terá de apreciar todas as questões atinentes quer
à própria admissibilidade do recurso quer à efectiva existência de oposição de
acórdãos, podendo julgar o recurso deserto, findo ou sem efeito – conforme os
casos -, ou ordenando o seu prosseguimento, nos precisos termos do art° 284° do
CPPT, sem que isso constitua violação da CRP.
Este entendimento tem sido também o perfilhado pelo Pleno da Secção do
Contencioso Tributário do STA, designadamente nos Acórdãos de 29/10/2003 e
26/11/2003, nos processos 01234/03 e 01559/03 (de que, aliás, retirámos as
transcrições de acórdãos do TC acima reproduzidas).
Assim, não se encontrando preenchidos os pressupostos para a aceitação do
presente recurso com fundamento em oposição de julgados, deve o mesmo ser
rejeitado, confirmando-se a validade da interpretação do douto Despacho
recorrido e considerando improcedente a presente reclamação.
E o artigo 284° do CPPT não sofre de qualquer inconstitucionalidade por permitir
uma eventual decisão do TCAS sobre a não verificação da invocada oposição de
acórdãos.
A impugnante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto no artigo 70°, n° 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional,
pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 284°, n.°
5, do CPPT com fundamento em inconstitucionalidade orgânica e violação do
princípio da proporcionalidade e do direito à tutela jurisdicional efectiva, e
ainda a inconstitucionalidade da norma do artigo 62°, n.° 1, do Código do IRC,
na versão vigente em 1996, na interpretação segundo a qua «a Administração
Tributária encontra-se vinculada a aplicar o regime da neutralidade fiscal,
quando (...) o contribuinte não opte pelo regime normal de tributação».
Tendo sido admitido o recurso, a recorrente formulou, nas suas alegações, as
seguintes conclusões:
1ª A norma do artigo 284°, n.° 5, do CPPT, introduzido pelo Decreto-Lei n.°
433/99, de 26 de Outubro, que atribui ao tribunal a quo competência para o
julgamento da questão preliminar da existência de oposição de acórdãos e, com
base nessa apreciação em concreto, decidir, por assim dizer «em causa própria»,
do prosseguimento de recurso com fundamento nessa oposição, é inconstitucional.
2ª. Através da norma do artigo 284°, n.° 5, do CPPT, foi alterada uma
competência, a relativa ao julgamento preliminar da existência da oposição de
acórdãos, que antes era do Supremo Tribunal Administrativo, e passou agora a ser
do tribunal recorrido, no caso dos autos o TCA Sul
3ª. A norma do artigo 284°, n.° 5, do CPPT, ao afectar, sem a necessária
credencial parlamentar, a prévia distribuição de competências entre tribunais
administrativos e tribunais tributários no que toca ao «seguimento» do recurso
por oposição de julgados, viola o actualmente disposto no artigo 165°, n.° 1,
alínea p), da Constituição.
4ª A norma do artigo 284º, n.° 5, do CPPT reduz injustificadamente, e em sentido
contrário às exigências da proporcionalidade, o alcance e efectividade de um
tipo de recurso previsto na lei, por comparação com o anterior regime legalmente
consagrado.
5ª A luz do regime em vigor aquando da instauração do presente processo, a lei
admitia a interposição de recurso por oposição de acórdãos, no âmbito do qual a
decisão sobre o «seguimento» do mesmo cabia ao Supremo Tribunal Administrativo,
em toda uma categoria de casos, excluindo tal competência, em virtude do
disposto na norma impugnada, apenas quando estivessem em causa matérias do
contencioso tributário essencialmente relacionadas com a liquidação de tributos,
casos em que o «seguimento» do recurso caberia ao Tribunal a quo.
6ª Ao restringir o alcance do recurso por oposição de julgados para uma
categoria de casos delimitados sem justificação objectiva, a norma do artigo
284°, n.° 5, do CPPT viola os princípios da proporcionalidade e da tutela
jurisdicional efectiva, consagrados nos artigos 2°, 20.° e 268.° da
Constituição.
Em contra-alegações, a Exma. Representante da Fazenda Pública conclui do
seguinte modo:
a) O artigo 284°, n° 5, do CPPT não sofre de qualquer inconstitucionalidade;
b) Os artigos 284° e 286° do CPPT embora revogatórios do disposto nas alíneas b)
do art. 22° e o) dos arts. 24° e 30º do ETAF, não padecem de
inconstitucionalidade orgânica, por atinentes a matéria processual, da
competência do Governo, ainda que interferindo, mas apenas indirectamente, com a
competência respectiva, não violando a alínea p) do n° 1 do art. 165° da CRI’;
e) A atribuição de competência ao tribunal a quo para poder rejeitar o recurso
interposto com fundamento em oposição de acórdãos, se verificar não verificação
dos respectivos requisitos, além de constituir uma mera alteração processual,
refere-se apenas às normas de competência dentro de uma mesma ordem de
tribunais, os tribunais administrativos e fiscais (alínea b) do n° 1 do art.
209° da CRP);
d) Qualquer restrição que se veja nesta solução não constitui violação
constitucional dos princípios da proporcionalidade e da tutela jurisdicional
efectiva uma vez que nem a vinculação jurídico-material do legislador aos
comandos constitucionais elimina a liberdade de conformação legislativa que lhe
assiste nem o direito à tutela judicial efectiva implica a possibilidade de
recurso jurisdicional de todas as decisões dos tribunais.
Cabe apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Delimitação do objecto do recurso.
2. Na reclamação para a conferência do despacho do relator que julgou findo o
recurso por oposição de julgados, a recorrente limitou-se a suscitar a questão
da inconstitucionalidade do n.° 5 do artigo 284.° do CPPT, com fundamento em
violação do artigo 165°, n.° 1, alínea p), e ainda em violação dos princípios da
proporcionalidade e da tutela jurisdicional consagrados nos artigos 2.º e 20.°,
todos da Constituição da República.
No requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, a
recorrente afirmou que pretendia ver ainda apreciada a constitucionalidade da
norma do artigo 62°, n.° 1, do Código do IRC, na interpretação segundo a qual a
Administração Tributária se encontra vinculada a aplicar o regime da
neutralidade fiscal, quando o contribuinte não opte pelo regime normal de
tributação.
No entanto, essa segunda questão de constitucionalidade não foi objecto de
apreciação pelo tribunal recorrido, inexistindo quanto a ela os pressupostos de
admissibilidade do recurso a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da
LTC.
O objecto do recurso deve, pois, considerar-se circunscrito à disposição do n.°
5 do artigo 284.° do CPPT, que vem arguida de inconstitucionalidade orgânica e
de violação dos princípios da proporcionalidade e da tutela jurisdicional
efectiva.
Mérito do recurso.
3. A norma em causa, inserindo-se no Título V referente aos recursos de actos
jurisdicionais praticados no processo judicial tributário, sob a epígrafe
«oposição de julgados», dispõe o seguinte:
1 - Caso o fundamento for a oposição de acórdãos, o requerimento da
interposição do recurso deve indicar com a necessária individualização os
acórdãos anteriores que estejam em oposição com o acórdão recorrido, bem como o
lugar em que tenham sido publicados ou estejam registados, sob pena de não ser
admitido o recurso.
2 - O relator pode determinar que o recorrente seja notificado para apresentar
certidão do ou dos acórdãos anteriores para efeitos de seguimento do recurso.
3 - Dentro dos 8 dias seguintes ao despacho de admissão do recurso o
recorrente apresentará uma alegação tendente a demonstrar que entre os acórdãos
existe a oposição exigida.
4 - Caso a alegação não seja feita, o recurso será julgado deserto, podendo, em
caso contrário, o recorrido responder, contando-se o prazo de resposta do
recorrido a partir do termo do prazo da alegação do recorrente.
5 - Caso o relator entenda não haver oposição, considera o recurso findo,
devendo, em caso contrário, notificar o recorrente e recorrido para alegar nos
termos e no prazo referido no n.º 3 do artigo 282.º
Resulta essencialmente deste n.º 5 - preceito que aqui está particularmente em
foco – que é ao relator no tribunal recorrido que cabe averiguar se existe
oposição de julgados para efeito de ordenar o prosseguimento do recurso,
competindo-lhe desde logo julgar o recurso findo quando conclua que se não
verificam os requisitos de que depende a admissão do recurso e, entre eles, a
identidade da questão fundamental de direito relativamente à qual se invoca a
contradição de jurisprudência.
Não era esse o regime que provinha do artigo 30º do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais de 1984, que até então vigorava, que atribuía ao Pleno
da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo a
competência, não apenas para conhecer do julgamento do conflito (alínea b), mas
para a apreciar a questão preliminar sobre a existência da oposição de julgados
(alínea c).
Essa dupla regra de competência contenciosa relativamente a uma mesma espécie de
recurso tinha a ver, por sua vez, com o próprio regime procedimental aplicável
ao recurso para uniformização de jurisprudência, que, por efeito da aplicação
subsidiária dos artigos 765º e seguintes do Código de Processo Civil (normas
entretanto revogadas pela reforma processual civil de 1995/1996, mas que se
entendia serem ainda aplicáveis no domínio da jurisdição administrativa e
fiscal), contemplava uma primeira fase processual destinada a verificar a
existência de oposição (cujo julgamento competia a uma formação mais restrita –
artigo 31º, n.º 2, do ETAF) e uma fase subsequente, caso o processo devesse
prosseguir, que visava o julgamento do conflito, em que intervinham todos os
juízes da Secção (artigo 31º, n.º 1, do ETAF).
Revogando a citada disposição do artigo 30º, alínea c), do ETAF, o artigo 284º,
n.º 5, do CPPT veio atribuir ao relator no tribunal recorrido, com possibilidade
de reclamação para a conferência, a pronúncia relativa à questão preliminar,
implicando que o recurso só deva seguir para o tribunal ad quem, após a
apresentação das alegações, quando não haja obstáculo ao conhecimento da matéria
de fundo.
É, todavia, esta inovação que a ora recorrente entende encontrar-se ferida de
inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva relativa de competência
da Assembleia da República tal como consagrada na alínea p) do n.º 1 do artigo
165º da Constituição da República.
De facto, este preceito vem atribuir competência exclusiva à Assembleia da
República, salvo autorização ao Governo, em matéria de «organização e
competência dos tribunais e do Ministério Público», ao passo que a autorização
legislativa concedida pelo artigo 51º da Lei n.º 87-B/98, de 31 de Dezembro, em
matéria de processo tributário, e ao abrigo da qual foi aprovado o CPPT, não faz
qualquer alusão à apontada alteração de competência para a apreciação do recurso
por oposição de julgados.
É, no entanto, entendimento do Tribunal Constitucional, frequentemente
reiterado, que a referida reserva parlamentar inclui a «definição da competência
judiciária ratione materiae, ou seja, a distribuição das matérias pelas
diferentes espécies de tribunais dispostos horizontalmente no mesmo plano, aí se
incluindo a definição de matérias cujo conhecimento cabe aos tribunais judiciais
e aos tribunais administrativos e tributários e a distribuição de competências,
dentro da ordem jurisdicional comum, pelos diferentes tribunais de competência
genérica e de competência especializada ou específica (assim, por exemplo, o
acórdão n.º 690/2006 e toda a jurisprudência nele citada).
Nesse sentido se explanou no acórdão n.º 114/2000:
Na verdade, a necessidade de autorização legislativa apenas é exigível se ocorre
modificação das regras de competência judiciária material, com natural reflexo
na distribuição das matérias pelas diversas espécies de tribunais.
Assim sucederia se a norma em causa dispusesse sobre a competência dos
tribunais, ao subtrair, por exemplo, competência a certa espécie de tribunais,
atribuindo-a a outra. Seria óbvio que se legislara sobre competência dos
tribunais, uma vez que a uns se retirara a possibilidade de conhecer da matéria
em causa e a outros se concedera essa competência – o que significa modificar a
competência de tais órgãos, como explicitamente se salientou no acórdão nº
72/90, deste Tribunal, publicado no Diário da República, I Série, de 2 de Abril
de 1990.
Como igualmente se ponderou noutro aresto, '[...] para editar normas que visem
modificar as regras de competência judiciária material (ou seja: para modificar
as regras atinentes à distribuição das matérias pelas diversas espécies de
tribunais) que o mesmo é dizer pelos diferentes tribunais dispostos
horizontalmente (no mesmo plano), sem que, por conseguinte, haja entre eles
relação de supraordenação e subordinação, o Governo tem de estar munido de
autorização legislativa.
É que, seja qual for o alcance a atribuir à reserva legislativa, no ponto em que
ela tem por objecto a definição da «competência dos tribunais», há-de
incluir-se, aí, sem dúvida, a definição da competência dos tribunais (maxime,
dos tribunais judiciais) ratione materiae (-).
A esse mesmo resultado se chegou no acórdão n.º 329/89 (publicado no Diário da
República, 2ª Série, de 22 de Junho de 1989), por referência à correspondente
norma do artigo 168º, alínea q), na redacção decorrente da revisão
constitucional de 1982, em que se analisou, em situação em tudo similar, a
reserva parlamentar respeitante à competência do Ministério Público, que esse
preceito igualmente contempla.
Aí efectua-se a importante distinção entre as intervenções legislativas
directamente votadas à definição e determinação daquela competência e as que,
visando outro objectivo, se inscrevem num domínio de regulamentação processual,
e que acabam por interferir apenas indirecta, acessória e necessariamente com o
quadro ou a distribuição legal das incumbências e faculdades cometidas ou
atribuídas ao Ministério Público e aos seus agentes.
E acrescentou-se a este propósito:
Com efeito, no primeiro caso, trata-se de normas que devem, indiscutivelmente,
qualificar-se como «de competência», ao passo que, no segundo caso, já as normas
não merecem aquela qualificação, mas uma outra (v. g., a de puras normas «de
processo»). Assim sendo, se as primeiras normas caem certamente no âmbito da
reserva do artigo 168.º, nº. 1, alínea q), da Constituição (ressalvada apenas,
porventura, a questão, a que começou por aludir-se, do seu nível ou grau), já as
segundas não devem incluir-se nesse âmbito.
E este entendimento mais se radica se as normas do segundo tipo considerado
deverem, justamente, ser qualificadas como de pura natureza «processual» (que é,
aliás, a hipótese em que mais facilmente pode ocorrer a situação tida em vista).
Isso porque do próprio artigo l68º, n. ° 1, e do artigo 167.° da Constituição
decorre uma clara e inequívoca diferença de tratamento, sob o ponto de vista da
extensão da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, entre
a matéria da «competência» dos tribunais e do Ministério Público e a matéria de
«processo»: com efeito no tocante a esta última, aquela reserva só abrange
(salvo, porventura, algum domínio residual e parcelar, ainda coberto por outras
alíneas dos citados preceitos) o processo «constitucional» (artigo 167º., alínea
h)), o «processo criminal» (artigo 168º, nº 1, alínea c)) e o «regime geral» do
processo das contra-ordenações (artigo l68º, nº 1, alínea d)).
De resto, cumpre dizer que a distinção que se deixa traçada — entre normas que
directa ou autonomamente vêm dispor sobre a competência (neste caso, do
Ministério Público) e normas que só consequencialmente com ela implicam - já
antes encontrou acolhimento na jurisprudência deste Tribunal, e também para se
concluir que as da segunda espécie não caem dentro da reserva do artigo 168º, nº
1, alínea q), da Constituição: tal reserva estava em causa então na parte
respeitante à «competência dos tribunais», mas as situações são perfeitamente
paralelas, Tratava-se de saber, nesse outro caso — versado no Acórdão n.° 404/87
(Diário da República, 2.ª série, de 21 de Dezembro de 1987), tirado pela 2ª
Secção —, se um diploma regional da Madeira, mandando observar nas acções de
remição de colonia o processo urgente de expropriação por utilidade pública e
deferindo, assim, a um conjunto de árbitros a fixação da correspondente
indemnização, violava aquela reserva; ora, o entendimento do Tribunal foi
justamente o de que tal violação não se verificava, porque não se estava perante
uma intervenção do legislador regional destinada autonomamente a alargar a
competência dos árbitros previstos no artigo 64.° do Código das Expropriações,
mas antes em face de «uma norma que manda observar uma certa forma de processo
para determinados litígios e que, consequentemente, implica que tal resolução
seja confiada à instância decisória que a lei geral definidora dessa forma de
processo especificamente institui, em primeira linha para ela. E concluía-se:
ora, qualquer que seja o nível ou grau de definição da competência dos tribunais
reservado à Assembleia da República, seguramente que nele não entram as
modificações da competência judiciária a que deva atribuir-se simples carácter
processual, como acontece no presente caso.
Todos esses considerandos são plenamente transponíveis para o caso em que a
reserva parlamentar incide, no quadro da mesma disposição constitucional, sobre
a competência dos tribunais, e têm evidente aplicação à situação dos autos.
Na verdade, o que está em causa, na discutida norma do artigo 284º, n.º 5, do
CPPT, não é uma modificação das regras de competência judiciária em razão da
matéria, mas unicamente uma alteração do regime processual aplicável ao recurso
por oposição de julgados, implicando que a fase inicial do recurso, destinada a
verificar a existência de oposição, passe a ser atribuída ao tribunal
recorrido.
Não há aí uma qualquer alteração inovatória da competência entre tribunais de
diferentes espécies, mas apenas uma nova distribuição de competência dentro da
mesma ordem de tribunais que constitui uma mera decorrência da reformulação do
procedimento do recurso e que não põe, por isso, em causa a reserva de
competência legislativa da Assembleia da República.
4. Invoca, no entanto, a recorrente, em segunda linha, que a referida norma do
artigo 284º, n.º 5, acaba por desvirtuar o recurso por oposição de julgados, na
medida em que confere ao próprio tribunal a quo o poder de decidir sobre o
prosseguimento do recurso, o que poderá acarretar a violação do princípio da
proporcionalidade e do direito à tutela judicial efectiva.
Deve recordar-se aqui que o recurso por oposição de julgados tem como principal
objectivo assegurar a uniformidade da jurisprudência, que constitui, de resto,
uma função específica dos tribunais superiores, pelo que só indirectamente acaba
por ter reflexo na regulação jurisdicional do caso concreto.
Ainda que tenham perdido o carácter vinculativo e obrigatório que o artigo 2º do
Código de Processo Civil conferia aos assentos (julgado inconstitucional pelo
acórdão do Tribunal Constitucional n.º 810/93 e depois revogado pelo Decreto-Lei
n.º 329-O/95, de 12 de Dezembro), os acórdãos de uniformização de jurisprudência
mantêm a sua essencial função orientadora para os demais tribunais quanto à
interpretação a adoptar relativamente à questão jurídica sobre que exista uma
divergência jurisprudencial.
E assim se compreende que a recente reforma de processo civil tenha
reintroduzido o recurso para uniformização de jurisprudência, com a natureza de
recurso extraordinário, como tal, incidente sobre uma decisão já transitada em
julgado – e que fora já instituído na ordem jurisdicional administrativa através
do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (artigo 152º) –, e que esse
recurso, tal como já sucedia no domínio do direito processual penal, possa ser
interposto no exclusivo interesse da unidade do direito, sem possuir qualquer
efectiva influência na decisão da causa (artigo 766º do Código Civil, na
redacção do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, e artigo 447º do Código
de Processo Penal, cuja redacção foi mantida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de
Agosto).
Acresce que a alteração legislativa proposta pelo CPPT, que está aqui em causa,
incide - como já se anotou – sobre um aspecto meramente procedimental do recurso
por oposição de julgados, e, ao atribuir ao relator no tribunal recorrido a
competência para decidir o seguimento do recurso, e, portanto, a averiguação dos
requisitos da sua admissibilidade (que anteriormente pertencia a uma formação
restrita do tribunal ad quem), está a aplicar uma regra que é geralmente seguida
no regime procedimental dos recursos, que sempre pressupõe uma primeira
apreciação do juiz recorrido sobre a existência das condições da admissibilidade
do recurso (vejam-se os artigos 685º-C do CPC, 414º, n.º 1, do CPP, 145º do CPTA
e 282º do CPPT).
Certo é que a citada disposição do artigo 284º, n.º 5, do CPPT não prevê
qualquer meio processual específico de controlo jurisdicional da decisão do
relator, implicando que, nos termos gerais, a decisão de não admissão de recurso
possa ser apenas passível de reclamação para a conferência - artigo 700º, n.º 3,
do CPC (neste sentido, também, embora por referência à norma correspondente da
lei processual administrativa, Alfredo de Sousa/Silva Paixão, Código de
Procedimento e de Processo Tributário Comentado e Anotado, Coimbra, 2000, pág.
719).
No entanto, esta solução jurídica, afastando-se embora do regime tradicional que
previa, em caso de indeferimento do recurso, a reclamação para o presidente do
tribunal superior (agora substituída por uma reclamação para o tribunal de
recurso – artigo 688º do CPC), corresponde ao regime geral de impugnação das
decisões do relator (artigos 700º, n.º 3, do CPC e 27º, n.º 2, do CPTA) e tem
aplicação, em situação similar, no que se refere ao despacho do relator que não
receba recurso interposto da decisão da secção de contencioso administrativo do
Supremo Tribunal Administrativo para o Pleno do mesmo Tribunal - artigo 144º,
n.º 4, do CPTA (era esse já o entendimento jurisprudencial na vigência da Lei de
Processo nos Tribunais Administrativos, conforme decorre do acórdão do STA de 10
de Fevereiro de 1987, Processo n.º 21135-A).
Em todo este condicionalismo, e reconhecendo-se ao legislador uma ampla margem
de conformação na definição do regime procedimental que devam seguir os
diferentes meios específicos de dirimição de litígios, não se afigura que a
opção legislativa de atribuir ao próprio tribunal recorrido a actividade
judiciária de verificação dos pressupostos de admissão de recurso constitua uma
solução que afecte de modo desproporcionado ou excessivo o direito de acesso aos
tribunais, tal como consagrado no artigo 20º da Constituição. Tanto assim que
ela se se encontra justificada, conforme decorre do diploma preambular do CPPT,
por razões de simplificação processual que visariam garantir uma maior
celeridade processual na resolução do conflito jurisprudencial (considerações
que estiveram igualmente presentes, aquando da reforma processual civil de
1995/1996, na substituição do antigo recurso para o tribunal pleno pelo
julgamento ampliado de revista previsto no artigo 732º-A do CPC, pelo qual se
pretendia o mesmo efeito de aceleração dos mecanismos de uniformização de
jurisprudência - cfr. preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro).
Quando muito poderia dizer-se que a atribuição ao tribunal recorrido da decisão
sobre a admissão do recurso por oposição de julgados afecta o princípio do
processo equitativo, enquanto modalidade do direito de acesso aos tribunais,
quando se entenda que a intervenção do tribunal a quo no procedimento recursório
que poderá conduzir à revogação da sua própria decisão é susceptível de violar
as garantias de imparcialidade e objectividade que devem pautar a actuação
judicial.
Há que notar, no entanto, que a recorrente não pode arrogar-se um direito à
uniformização de jurisprudência – que constitui antes um interesse geral da
comunidade inerente ao bom funcionamento dos tribunais -, mas apenas beneficiar
de uma possível revogação de uma decisão judicial desfavorável por via de um
mecanismo processual que assenta na conveniência de harmonizar o entendimento
jurisprudencial relativamente a uma dada questão jurídica.
E, de todo o modo, não procede aqui o argumento de que o tribunal recorrido está
a pronunciar-se em «causa própria», ao tomar posição sobre o seguimento do
recurso interposto contra uma sua anterior decisão. Na verdade, o que está em
apreciação, nessa fase procedimental, é a mera averiguação dos requisitos de
admissibilidade de recurso, que não envolve a aplicação de quaisquer conceitos
indeterminados, mas corresponde antes a um exercício vinculado de avaliação de
elementos objectivos: a legitimidade do recorrente; a tempestividade do recurso;
e, como requisito específico do recurso por oposição de julgados, a identidade
da questão fundamental de direito sobre que existe divergência jurisprudencial,
que pressupõe a identidade dos respectivos pressupostos de facto.
Por outro lado, a reclamação para a conferência do eventual despacho de não
admissão do recurso, proferido pelo relator, já oferece suficientes garantias de
controlo jurisdicional da legalidade da decisão.
Os tribunais estão vinculados a critérios de isenção, objectividade e
imparcialidade no exercício da respectiva actividade e não poderão, por isso,
deixar de agir, em cada circunstância, em conformidade com o direito. Sendo
certo que qualquer actuação dolosa ou gravemente culposa dos magistrados
judiciais no exercício das suas funções é passível de responsabilidade civil,
criminal ou disciplinar (artigos 5º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, 1083º
e segs. do CPC e 14º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do
Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de
Dezembro).
Em qualquer caso, não é possível caracterizar uma situação de violação do
princípio do processo equitativo quando não está em causa uma diminuição das
garantias formais do processo mas uma hipotética suspeição sobre os juízes a
quem a lei atribui a competência legal para decidir.
5. Todas as precedentes considerações valem também para demonstrar que a norma
do artigo 284º, n.º 5, do CPPT não ofende o princípio da tutela jurisdicional
efectiva.
Na verdade, como se deixou entrever, não está em causa qualquer denegação do
direito ao recurso, mas uma mera alteração do regime procedimental relativo à
apreciação da questão preliminar da existência de oposição de julgados.
Por outro lado, mesmo que se entenda que o novo regime dificulta ou elimina, na
prática, a possibilidade de prosseguimento do recurso por oposição de julgados –
o que carece de ser demonstrado -, importa considerar que o princípio da tutela
jurisdicional efectiva não garante um ilimitado direito ao recurso.
Como o Tribunal Constitucional tem frequentemente afirmado, o direito de acesso
aos tribunais, mesmo na sua dimensão garantística de direito de acção, a que se
reconduz o princípio da tutela jurisdicional efectiva, não impõe ao legislador
ordinário que assegure sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de
jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. A
existência de limitações à recorribilidade funciona como um mecanismo de
racionalização do sistema judiciário e por isso se aceita que o legislador
disponha de liberdade de conformação quanto à definição dos requisitos e graus
de recurso (acórdãos 125/98, 72/99 e 431/02). Um duplo grau de jurisdição está
constitucionalmente consagrado unicamente no âmbito do processo penal, e ainda
assim não relativamente a todas as decisões proferidas, mas em relação às
decisões condenatórias do arguido e às decisões respeitantes à situação do
arguido em face da privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros
direitos fundamentais (acórdãos 353/91, 373/99, 387/99, 459/00, 417/03, 390/04,
610/04, 104/05, 616/05, 2/06, 36/07 e 313/07; veja-se sobre estes aspectos,
também, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa
Anotada, vol. I, 4ª edição revista, pág. 418; Jorge Miranda/Rui Medeiros,
Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, pág. 200).
O recorrente não pode invocar, por conseguinte, à luz do apontado princípio da
tutela jurisdicional efectiva, um direito a um duplo grau de recurso e, muito
menos, um direito à uniformização da jurisprudência, pelo que, também neste
plano, a norma do artigo 284º, n.º 5, do CPPT, mesmo com o sentido que a
recorrente lhe atribui, não gera qualquer incompatibilidade com a lei
constitucional.
III. Decisão
a) Termos em que se decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 284º,
n.º 5, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT);
b) Negar provimento ao recurso, confirmando o juízo de inconstitucionalidade
formulado na decisão recorrida
Lisboa, 29 de Julho de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Gil Galvão