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Processo n.º 354/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O Ministério Público interpôs recurso, ao abrigo da alínea a) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, da sentença do
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, de 17 de Janeiro de 2008, na parte em
que recusou aplicação ao “critério de apreciação de insuficiência económica
previsto no ponto I,1, alínea c), do anexo à Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho e
os artigos 6.º, 8.º e 9.º e os anexos para que remetem, tudo da Portaria n.º
1085-A/2004, de 31 de Agosto”.
A decisão recorrida, proferida num processo de impugnação da decisão
administrativa de indeferimento parcial do pedido de apoio judiciário,
considerou que os critérios de apreciação da insuficiência económica que emergem
do referido conjunto normativo constituem intolerável restrição do direito
fundamental de acesso ao direito, violando o n.º 1 do artigo 20.º da
Constituição, quando conduzem a que um interessado, idoso, aposentado, com
rendimento mensal líquido de €288,14, somente tenha direito a apoio judiciário
na modalidade de pagamento faseado da taxa de justiça e não à dispensa de
pagamento de taxa de justiça e outros encargos com o processo.
Apenas o Ministério Público alegou.
Sustenta que a situação é plenamente equiparável àquelas que foram
apreciadas pelo Tribunal nos acórdãos n.ºs 125/08, 126/08 e 127/08 e conclui que
deve declarar-se a inconstitucionalidade da norma extraída do ponto I,1, alínea
c) do Anexo à Lei n.º 34/04, de 29 de Julho, em conjugação com os artigos 6.º,
8.º e 9.º da Portaria n.º 1085-A/04, de 31 de Agosto e respectivos anexos,
interpretada no sentido de que seja considerado para efeitos de cálculo do
rendimento relevante do requerente do benefício de apoio judiciário, na
modalidade de dispensa total de taxa de justiça, o rendimento do seu agregado
familiar, nos termos aí rigidamente impostos, sem permitir aferir em concreto da
real situação económica do requerente, em função dos seus rendimentos e
encargos, por violação do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição.
3. Recordemos os elementos essenciais do caso, como a decisão
recorrida os revela.
A ora recorrida requereu à Segurança Social a concessão de apoio
judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o
processo, com vista a intentar uma acção de demarcação. Porém, considerando que
a requerente e o respectivo agregado familiar tem um rendimento superior a
metade e menor do que duas vezes o valor do salário mínimo nacional (total
líquido de €6.916, a que, para efeitos de protecção jurídica corresponde o
rendimento anual relevante de €2.836), foi-lhe concedido, somente, o benefício
de pagamento faseado da taxa de justiça.
Julgando procedente a impugnação deduzida pela requerente, a
sentença recorrida concedeu-lhe o apoio judiciário pretendido, com base na
seguinte fundamentação.
“(…)
No caso dos autos, verifica-se que por efeito da aplicação do critério de
apreciação da insuficiência económica previsto no ponto I, 1, alínea c), do
anexo à lei nº 34/004, de 29 de Julho e dos resultados da fórmula constante da
Portaria 1085-A/2004, de 1 de Agosto, a Segurança Social concluiu que a
requerente tinha condições económicas para lhe ser deferido apoio judiciário na
modalidade de pagamento faseado.
Analisando o rendimento líquido do agregado familiar da requerente, tendo em
conta o valor global desse rendimento e a sua provável distribuição por catorze
meses, verifica-se que tal rendimento corresponde, per capita, a € 246,98
mensais e, se se distribuir tal rendimento anual por doze meses, equivalerá a um
rendimento mensal per capita de €288,14.
É notório que se trata de um rendimento exíguo, ainda para mais tratando-se de
pessoa idosa, certamente com gastos acrescidos de saúde, alguns deles
eventualmente sem comparticipação.
O resultado daquele critério e da referida fórmula é ainda mais chocante se
atentarmos no valor do salário mínimo nacional, presentemente de €426,00, valor
que é considerado, por exemplo para efeitos de penhorabilidade, correspondente
ao mínimo de subsistência (artigo 824º, nº 2, parte final, do Código de Processo
Civil).
É certo que no artigo 20º, nº 2, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, existe uma
“válvula de escape” à frieza dos números imposta pela Portaria nº 1085-A/2004,
de 31 de Agosto, mecanismo que porém não foi usado pela Segurança Social e que
não é facultado ao requerente do apoio judiciário.
Assim, no caso concreto, afigura-se-nos que a aplicação do critério de
apreciação de insuficiência económica previsto no ponto I, 1, alínea e), do
anexo à lei nº 34/2004, de 29 de Julho e dos critérios matemáticos vazados na
Portaria nº 1085‑A/2004, de 31 de Agosto e que conduzem a que alguém com
rendimento mensal líquido de € 288,14, apenas tenha direito a apoio judiciário
na modalidade de pagamento faseado de taxa de justiça, sendo a prestação
trimestral de tal pagamento faseado de € 80,00, se traduz numa intolerável
restrição do direito fundamental de acesso ao direito.
A situação ainda é mais caricata se se atentar que para a causa para que se
pretende o apoio judiciário (atribui-se-lhe o valor de € 10.000,00), a taxa de
justiça devida por cada parte no processo é de € 288,00, sendo a taxa de justiça
inicial devida por cada parte de € 144,00, estando o beneficiário de apoio
judiciário sujeito, por força do disposto no artigo 13º da Portaria 1085-A/2004,
de 31 de Agosto, ao pagamento da taxa de justiça total do processo, isto é,
sofrendo um encargo maior do que sofreria se não beneficiasse de apoio
judiciário. Ora, o não beneficiário de apoio judiciário só se sujeita ao
pagamento de tal valor caso venha a sucumbir totalmente na acção e apenas a
final terá que suportar tal valor.
Pelo exposto, porque se entende que a aplicação do critério de apreciação de
insuficiência económica previsto no ponto I, 1, alínea c), do anexo à lei nº
34/2004, de 29 de Julho e dos critérios matemáticos da Portaria nº 1085-A/2004,
de 31 de Agosto conduzem, no caso concreto, pelo que se expôs, a uma
desproporcionada e injustificada restrição do direito fundamental de acesso ao
direito, desaplicam-se, por inconstitucionalidade material o critério de
apreciação de insuficiência económica previsto no ponto I, 1, alínea e), do
anexo à lei nº 34/2004, de 29 de Julho e os artigos 6º, 8º e 9º e os anexos para
que remetem, tudo da Portaria nº 1085-A/2004, de 31 de Agosto.
Considerando um rendimento mensal líquido de € 288,14, tendo em conta a idade
avançada da requerente, facto que, toma previsíveis encargos de saúde, alguns
deles certamente não comparticipados, tendo em conta o valor da taxa de justiça
de € 288,00 que a requerente terá de suportar necessariamente no processo para
que requereu apoio judiciário, afiguram-se-nos reunidas as condições para que se
conclua que a requerente não tem condições económicas para suportar a mencionada
taxa de justiça.
Nesta medida, por força da desaplicação do critério de apreciação de
insuficiência económica previsto no ponto I, 1, alínea c), do anexo à lei nº
34/2004, de 29 de Julho e dos citados normativos da Portaria nº 1085-A/2004, de
31 de Agosto já citados e numa apreciação casuística do caso, afiguram-se-nos
reunidos os pressupostos para que seja deferido o apoio judiciário requerido
pela recorrente.
4. É indiscutível que a sentença recorrida recusou aplicação ao critério de
apreciação da insuficiência económica extraído do ponto I, 1, alínea c) do Anexo
à Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, e dos artigos 6.º, 8.º e 9.º da Portaria n.º
1085-A/2004, de 31 de Agosto, que considerou violar o n.º 1 do art.º 20.º da
Constituição ao conduzir a que alguém com um rendimento mensal líquido de
€288,14 não possa beneficiar de apoio judiciário na modalidade de dispensa de
pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo mas, apenas, do
seu pagamento faseado. Foi determinante, nesse juízo de inadequação de tal
critério legal ao princípio constitucional de que a justiça não pode ser
denegada por insuficiência de meios económicos, o facto de ele não permitir a
ponderação casuística da situação do interessado, nomeadamente, dos seus
encargos de saúde previsíveis.
Deste modo, na medida em que o afastamento do critério resultante
das normas em causa resulta de não abrir espaço de ponderação das concretas
despesas que o requerente de apoio judiciário tem de suportar, a questão de
constitucionalidade colocada pode reconduzir-se, como é proposto pelo Ministério
Público, à apreciada pelo Tribunal nos acórdãos citados nessas alegações. Em
todos eles, foi essa insensibilidade do critério legal a encargos que afectavam
sensivelmente a capacidade do requerente para fazer face às despesas do processo
que levou ao juízo de inconstitucionalidade (encargos, aliás, de diversa
natureza: no processo de que emerge o acórdão n.º 125/2008, estava em causa a
não consideração da situação económico‑social ostensivamente degradada de um
agregado familiar numeroso, vivendo em condições habitacionais precárias e
carecendo do apoio das instituições de apoio social; no caso subjacente ao
acórdão 126/2008, estava em causa considerarem-se inatendíveis penhoras que
incidiam sobre o vencimento do requerente e do cônjuge; naquele que deu origem
ao acórdão 127/2008, o factor de afectação da capacidade económica do requerente
não atendido foram os gastos com a amortização de um empréstimo para aquisição
de um automóvel).
5. Disse-se no referido acórdão n.º 126/2008, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt (os acórdãos n.º 126/2008 e 127/2008 têm
fundamentação substancialmente idêntica), depois de lembrar a jurisprudência do
Tribunal no sentido de que da Constituição não decorre que a justiça deva ser
gratuita, mas que o Estado tem o imperativo constitucional de providenciar para
que os interessados carecidos de meios económicos se não vejam, por esse facto,
impedidos de defender em juízo os seus direitos, o seguinte:
“O conceito de insuficiência económica surge, assim, como um dos conceitos
nucleares do regime constitucional do acesso ao Direito e aos tribunais.
O artigo 8.º, n.º 1, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, determina que se
“encontra em situação de insuficiência económica aquele que, tendo em conta
factores de natureza económica e a respectiva capacidade contributiva, não tem
condições objectivas para suportar pontualmente os custos do processo.”
Por força do disposto no n.º 5, do artigo 8.º, da Lei 34/2004, de 29 de Julho,
na redacção originária, a prova e a apreciação da insuficiência económica do
requerente da protecção jurídica devem ser feitas de acordo com os critérios
estabelecidos e publicados em anexo à referida lei.
O Anexo da referida lei é composto pelas seguintes normas:
«I – Apreciação da insuficiência económica
1 – A insuficiência económica é apreciada da seguinte forma:
a) O requerente cujo agregado familiar tem um rendimento relevante para efeitos
de protecção jurídica igual ou menor do que um quinto do salário mínimo nacional
não tem condições objectivas para suportar qualquer quantia relacionada com os
custos de um processo;
b) O requerente cujo agregado familiar tem um rendimento relevante para efeitos
de protecção jurídica superior a um quinto e igual ou menor do que metade do
valor do salário mínimo nacional considera-se que tem condições objectivas para
suportar os custos da consulta jurídica e por conseguinte não deve beneficiar de
consulta jurídica gratuita, devendo, todavia, usufruir do benefício de apoio
judiciário;
c) O requerente cujo agregado familiar tem um rendimento relevante para efeitos
de protecção jurídica superior a metade e igual ou menor do que duas vezes o
valor do salário mínimo nacional tem condições objectivas para suportar os
custos da consulta jurídica, mas não tem condições objectivas para suportar
pontualmente os custos de um processo e, por esse motivo, deve beneficiar do
apoio judiciário na modalidade de pagamento faseado, previsto na alínea d) do nº
1 do artigo 16º da presente lei;
d)…
2 – Se o valor dos créditos depositados em contas bancárias e o montante de
valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado de que o
requerente ou qualquer membro do seu agregado familiar sejam titulares forem
superiores a 40 vezes o valor do salário mínimo nacional, considera-se que o
requerente de protecção jurídica não se encontra em situação de insuficiência
económica, independentemente do valor do rendimento do agregado familiar.
3 – Para os efeitos desta lei, considera-se que pertencem ao mesmo agregado
familiar as pessoas que vivam em economia comum com o requerente de protecção
jurídica
Por seu turno, os artigos 6.º a 10.º, da Portaria n.º 1085-A/2004, com as
alterações introduzidas pela Portaria n.º 288/2005, de 21 de Março, que procede
à concretização dos critérios de prova e de apreciação da insuficiência
económica, têm o seguinte conteúdo:
«SECÇÃO II
Apreciação do requerimento
Artigo 6.º
Rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica
1 — Para efeitos do disposto no anexo da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, o
rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica (YAP) é o montante que
resulta da diferença entre o valor do rendimento líquido completo do agregado
familiar (YC) e o valor da dedução relevante para efeitos de protecção jurídica
(A), ou seja, YAP = YC–A.
2 — O rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica (YAP) é expresso
em múltiplos do salário mínimo nacional.
Artigo 7.º
Rendimento líquido completo do agregado familiar
1 — O valor do rendimento líquido completo do agregado familiar (YC) resulta da
soma do valor da receita líquida do agregado familiar (Y) com o montante da
renda financeira implícita calculada com base nos activos patrimoniais do
agregado familiar (YR), ou seja, YC= Y+ YR.
2 — Por receita líquida do agregado familiar (Y) entende-se o rendimento depois
da dedução do imposto sobre o rendimento, das contribuições obrigatórias dos
empregados para regimes de segurança social e das contribuições dos
empregadores para a segurança social.
3 — O cálculo da renda financeira implícita é efectuado nos termos previstos no
artigo 10.º da presente portaria.
Artigo 8.º
Dedução relevante para efeitos de protecção jurídica
1 — O valor da dedução relevante para efeitos de protecção jurídica (A) resulta
da soma do valor da dedução de encargos com necessidades básicas do agregado
familiar (D) com o montante da dedução de encargos com a habitação do agregado
familiar (H), ou seja, A = D + H.
2 — O valor da dedução de encargos com necessidades básicas do agregado familiar
(D) resulta da aplicação da seguinte fórmula:
em que n é o número de elementos do agregado familiar e d é o coeficiente de
dedução de despesas com necessidades básicas do agregado familiar, determinado
em função dos diversos escalões de rendimento, de acordo com o previsto no anexo
I.
3 — O montante da dedução de encargos com a habitação do agregado familiar (H)
resulta da aplicação do coeficiente h ao valor do rendimento líquido completo do
agregado familiar (YC), ou seja, H = h×YC, em que h é determinado em função dos
diversos escalões de rendimento, de acordo com o previsto no anexo II.
Artigo 9.º
Cálculo do valor do rendimento relevante
para efeitos de protecção jurídica
O valor do rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica, especificado
nos artigos anteriores, é calculado através da fórmula prevista no anexo III
desta portaria.
Artigo 10.º
Cálculo da renda financeira implícita
1 — O montante da renda financeira implícita a que se refere o n.º 1 do artigo
7.º é calculado mediante a aplicação de uma taxa de juro de referência ao valor
dos activos patrimoniais do agregado familiar.
2 — A taxa de juro de referência é a taxa EURIBOR a seis meses correspondente ao
valor médio verificado nos meses de Dezembro ou de Junho últimos, consoante o
requerimento de protecção jurídica seja apresentado, respectivamente, no 1.º ou
no 2.º semestre do ano civil em curso.
3 — Entende-se por valor dos bens imóveis aquele que for mais elevado entre o
declarado pelo requerente no pedido de protecção jurídica, o inscrito na matriz
predial e o constante do documento que haja titulado a respectiva aquisição.
4 — Quando se trate da casa de morada de família, no cálculo referido no n.º 1
apenas se contabiliza o valor daquela se for superior a € 100 000 e na estrita
medida desse excesso.
5 — O valor das participações sociais e dos valores mobiliários é aquele que
resultar da cotação observada em bolsa no dia anterior ao da apresentação do
requerimento de protecção jurídica ou, na falta deste, o seu valor nominal.
6 — Entende-se por valor dos veículos automóveis o respectivo valor de mercado».
Da leitura conjugada destes preceitos resulta que com a Lei nº 34/2004, a
concessão de protecção jurídica a quem, tendo em conta factores de natureza
económica e a respectiva capacidade contributiva, não tem condições objectivas
para suportar pontualmente os custos de um processo (cfr. artigo 8.º, nº 1, da
Lei nº 34/2004), passou a depender do valor do rendimento relevante para
efeitos de protecção jurídica (artigos 8.º, n.º 5, e 20.º, nº 1, e ponto 1. do
Anexo da Lei nº 34/2004), o qual é calculado através da aplicação de fórmulas
matemáticas, constantes da lei.
O preenchimento da situação de carência económica, merecedora de apoio
judiciário, deixou, assim, em regra, de ser efectuado casuisticamente pelo
decisor, perante o universo de circunstâncias do caso concreto, ou através do
funcionamento de presunções ilidíveis estabelecidas na lei, como sucedia nas
legislações anteriores à Lei n.º 34/2004, para resultar da aplicação rígida e
tabelar de fórmulas matemáticas, legislativamente consagradas, a determinados
dados do caso concreto.
A esta mudança de opções legislativas não terá sido estranha a avaliação da
aplicação prática da anterior Lei n.º 30-E/2000 que havia atribuído aos serviços
de segurança social a apreciação dos pedidos de concessão de apoio judiciário,
retirando tal competência aos tribunais, os quais passaram apenas a julgar as
impugnações das decisões daquelas entidades administrativas.
Na verdade, o Ministério da Justiça, autor da proposta que esteve na base desta
reforma legislativa no domínio do apoio judiciário, justificou esta mudança nos
seguintes termos:
“O regime de apoio judiciário consagrado na Lei n.º 30-E/2000, de 20 de
Dezembro, não contemplava um conceito de insuficiência económica, propiciando
assim uma apreciação subjectiva (dependente da avaliação pessoal do jurista
encarregue da mesma) e geograficamente heterogénea dos pedidos de apoio
judiciário pela Segurança Social. Tal disparidade de procedimentos de avaliação
revelou-se uma fonte evidente de iniquidade do sistema de concessão de apoio
judiciário.
Com a criação do critério de insuficiência económica pretendeu-se introduzir
maior rigor na concessão do benefício, uniformizando os critérios de concessão
do mesmo nos diversos centros decisores da Segurança Social. Tal critério de
concessão, por ser objectivo e transparente, permitirá a qualquer requerente
saber se tem ou não direito ao benefício e em que modalidade e medida.” (no site
www.mj.gov.pt).
Nos termos da Portaria n.º 1085-A/2004, o rendimento relevante para efeitos de
protecção jurídica resulta da diferença entre o valor do rendimento líquido
completo do agregado familiar do requerente e o valor da soma dos encargos com
necessidades básicas do agregado familiar, com o montante da dedução de encargos
com a habitação do agregado familiar, traduzindo-se assim o conceito de
rendimento relevante para efeitos de apoio judiciário no rendimento disponível
permanente, ou seja, na fracção do rendimento do agregado familiar que não está
afecto a despesas, que pela sua natureza, são indispensáveis à sobrevivência do
requerente e seu agregado familiar.
Concretizando um pouco mais os critérios legais aplicáveis à matéria em questão,
importa observar que as despesas consideradas como elegíveis correspondem a duas
categorias da classificação económica das despesas de consumo:
a) Despesas pessoais básicas, que incluem as efectuadas com alimentação,
vestuário e higiene.
b) Despesas com a habitação.
O volume destas despesas é calculado através da aplicação de coeficientes de
dedução que variam em função do rendimento e que, no caso do coeficiente de
dedução das despesas pessoais, variam também em função do número de elementos
que constituem o agregado familiar.
Os coeficientes de dedução das despesas são fixados em função da despesa média
anual por agregado familiar e segundo os escalões de rendimento líquido do
agregado familiar.
Uma vez que se trata de despesas com bens e serviços necessários, os
coeficientes são decrescentes em função do aumento do nível de rendimento, o que
confere um carácter progressivo ao critério de avaliação da insuficiência
económica, ou seja, o benefício médio concedido é decrescente com o rendimento.
Os acima referidos propósitos de tornar a decisão de concessão de apoio
judiciário objectiva e uniforme, além de terem conduzido ao desprezo de despesas
correspondentes à satisfação de necessidades básicas de cariz não permanente,
como as despesas com saúde e educação, determinaram que o montante das despesas
a considerar seja um valor tabelado presumido, resultante da aplicação de um
coeficiente legalmente determinado ao valor do rendimento do agregado familiar
do requerente, não permitindo, assim, a ponderação de todas as despesas
efectivamente realizadas.
Este critério de avaliação das situações de insuficiência económica para efeito
de concessão de apoio judiciário, pela sua rigidez, permite que lhe possam
escapar situações de efectiva incapacidade económica para satisfazer os custos
com uma acção judicial (v.g. pessoas que tenham avultados gastos permanentes com
despesas médicas).
Contudo, a própria Portaria n.º 1085-A/2004, ao mesmo tempo que prevê este
regime de apuramento das situações de insuficiência económica através da
aplicação rígida e tabelar de fórmulas matemáticas, não deixa ela própria de
admitir no respectivo artigo 2.º que “o disposto na presente portaria não
prejudica a possibilidade de ser concretamente apreciada a situação económica
dos requerentes de protecção judiciária, nos termos previstos no n.º 2, do
artigo 20.º, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho”.
Este artigo 20.º, n.º 2, dispõe o seguinte:
“Se os serviços da segurança social, perante um caso concreto, entenderem não
dever aplicar o resultado da apreciação efectuada nos termos do número anterior,
remetem o pedido, acompanhado de informação fundamentada, para uma comissão
constituída por um magistrado designado pelo Conselho Superior da Magistratura,
um magistrado do Ministério Público designado pelo Conselho Superior do
Ministério Público, um advogado designado pela Ordem dos Advogados e um
representante do Ministério da Justiça, a qual decide e remete tal decisão aos
serviços da segurança social.”
Contudo, esta comissão nunca foi constituída, pelo que a possibilidade de
consideração da real situação económica do requerente de apoio judiciário na
fase administrativa do procedimento nunca foi utilizada.
O tribunal recorrido, apesar de sustentar que, no caso em apreciação, se
justificava a ponderação de despesas concretas do requerente, afastando-se a
aplicação das tabelas matemáticas constantes da Portaria n.º 1085-A/2004,
entendeu não o fazer, com fundamento na utilização da faculdade prevista no
transcrito artigo 2.º desta Portaria, pelo que interpretou este normativo no
sentido do mesmo não poder ser aplicado pelo tribunal em sede de impugnação
judicial.
Não existindo assim, na interpretação da decisão recorrida, uma cláusula de
salvaguarda que permita ao tribunal considerar todas as despesas relevantes do
requerente do apoio judiciário, evitando a denegação da concessão desse
benefício a quem apresente uma situação de real insuficiência económica, não se
encontra garantida a possibilidade das pessoas recorrerem aos serviços de
justiça para defenderem os seus direitos, sem impedimentos de natureza
económica, o que ofende o disposto no artigo 20.º, n.º 1, da C.R.P.”
6. Estas considerações são transponíveis para a situação em apreço,
pelo que também agora se conclui pela inconstitucionalidade das normas em
apreciação.
Decisivo é que o critério legal é insensível à existência concreta
de encargos especiais a que o interessado (e restantes membros do agregado
familiar relevante) não pode razoavelmente eximir-se, como são as despesas de
saúde, e que afectam negativamente a sua capacidade para fazer frente aos
pagamentos que são condição da prática de actos processuais correspondentes à
defesa dos seus direitos e interesses legítimos pela via judiciária. Ao não
consentirem a sua ponderação, as normas em causa não permitem determinar a
capacidade efectiva do requerente do apoio judiciário para suportar os custos do
processo. O sistema impede que se considerem como despesas relevantes
dispêndios a que os interessados se não podem subtrair e que efectivamente
diminuem a sua capacidade económica. Não se garante, como é constitucionalmente
imposto, de acordo com reiterada jurisprudência deste Tribunal, que o sistema
de apoio judiciário assegure efectivamente o acesso aos tribunais por parte dos
cidadãos economicamente carenciados.
Acresce que, se pode aceitar-se a irrelevância, para este efeito, de
certo tipo de despesas ou encargos que traduzem a opção por um trem de vida que
não é razoável “repercutir” sobre a comunidade através dos mecanismos de apoio
judiciário, tal não pode suceder quanto às despesas de saúde, que são, em regra,
forçadas e a cuja compressão ou diferimento não é exigível que o cidadão proceda
para fazer face ao pagamento da taxa de justiça, porque são elas próprias
expressão da realização de um direito constitucionalmente previsto (n.º 1 do
artigo 64.º da Constituição). Sobretudo quando substancialmente se trata, apesar
do nomen e da técnica de cobrança, de adiantamentos para assegurar a possível
responsabilidade (preparos na anterior nomenclatura) e não da efectivação da
obrigação de custas devidas a final. Aliás, nesta efectivação sempre o credor se
depararia com o limite à realização coerciva decorrente do artigo 824.º do
Código de Processo Civil.
Por último, independentemente de poder ou não extrair-se argumento
válido, no plano da apreciação da conformidade do sistema legalmente instituído
à Constituição, da circunstância de nunca terem sido criadas as condições para
que interviesse o mecanismo previsto pelo n.º 2 do artigo 20.º da Lei n.º
34/2004, importa notar que também na decisão recorrida se entendeu que essa
“válvula de escape” é mecanismo a ser usado (apenas) pela Segurança Social, não
sendo “facultado ao requerente do apoio judiciário”. Significa isto, na lógica
da decisão recorrida, que a não utilização do meio ordenado à ponderação
individualizada previsto nesta norma não constitui vício susceptível de ser
feito valer em sede de impugnação da decisão administrativa (actualmente, a
intervenção do órgão colegial foi substituído pela outorga de um poder de
apreciação individualizada ao dirigente máximo dos serviços da Segurança Social.
A Lei n.º 47/2007 eliminou o primitivo n.º 2 do artigo 20.º da Lei n.º 34/2004,
e aditou o artigo 8.º‑A, cujo n.º 8 dispõe que “Se, perante um caso concreto, o
dirigente máximo dos serviços de segurança social competente para a decisão
sobre a concessão de protecção jurídica entender que a aplicação dos critérios
previstos nos números anteriores conduz a uma manifesta negação do acesso ao
direito e aos tribunais pode, por despacho especialmente fundamentado e sem
possibilidade de delegação, decidir de forma diversa daquela que resulta da
aplicação dos referidos critérios”). Não cabendo ao Tribunal Constitucional
censurar esta interpretação efectuada no plano infraconstitucional, nenhum
argumento pode retirar-se do aludido preceito no sentido da moderação da rigidez
do sistema de determinação da insuficiência económica resultante das normas em
exame e da sua adequação às exigências constitucionais.
Improcede, pois, o recurso. Apenas deve notar-se, tendo presente a
proposta de julgamento de inconstitucionalidade apresentada pelo Ministério
Público, que o referido conjunto normativo apenas está em causa no aspecto que
respeita à não ponderação dos encargos, designadamente com despesas de saúde, e
não à determinação dos rendimentos (input) do agregado familiar.
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Julgar inconstitucionais por violação do n.º 1 do artigo 20.º da
Constituição, as normas constantes dos artigos 6.º, 8.º e 9.º da Portaria n.º
1085-A/2004, de 31 de Agosto, e do ponto I, 1, alínea c) do Anexo à Lei n.º
34/2004, de 29 de Julho, interpretadas no sentido de que, na determinação da
insuficiência económica do requerente do benefício de apoio judiciário, não há
lugar à ponderação dos encargos concretamente suportados pelo agregado familiar,
designadamente, com despesas de saúde.
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 22 de Outubro de 2008
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão