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Processo nº 717/07
Plenário
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. O pedido
O Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, ao abrigo
do artigo 281.º, nº 2, al. g), da Constituição da República Portuguesa (CRP),
vem requerer a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade
e da ilegalidade das normas contidas nos artigos 19.º, n.º 1, al. c), 20.º e
59.º da Lei nº 2/2007, de 15 de Janeiro (Lei das Finanças Locais), preceitos
relativos às relações financeiras entre o Estado e os municípios.
As normas em causa, cujas epígrafes são, respectivamente, “Repartição de
recursos públicos entre o Estado e os municípios”, “Participação variável no
IRS” e “Participação no IRS em 2007 e 2008”, dispõem da seguinte forma:
Art. 19.º, nº 1, al. c): “A repartição dos recursos públicos entre o
Estado e os municípios, tendo em vista atingir os objectivos de equilíbrio
financeiro horizontal e vertical, é obtida através das seguintes formas de
participação: (…) Uma participação variável de 5% no IRS, determinada nos termos
do artigo 20º, dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva
circunscrição territorial, calculada sobre a respectiva colecta líquida das
deduções previstas no nº 1 do artigo 78º do Código do IRS”.
Art. 20.º: “1 – Os municípios têm direito, em cada ano, a uma
participação variável até 5% no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal
na respectiva circunscrição territorial, relativa aos rendimentos do ano
imediatamente anterior, calculada sobre a respectiva colecta líquida das
deduções previstas no n.º 1 do artigo 78.º do Código do IRS.
2 – A participação referida no número anterior depende de deliberação sobre a
percentagem de IRS pretendida pelo município, a qual deve ser comunicada por via
electrónica pela respectiva câmara municipal à Direcção-Geral dos Impostos, até
31 de Dezembro do ano anterior àquele a que respeitam os rendimentos.
3 – A ausência da comunicação a que se refere o número anterior ou a recepção da
comunicação para além do prazo aí estabelecido equivale à falta de deliberação.
4 – Caso a percentagem deliberada pelo município seja inferior à taxa máxima
definida no n.º 1, o produto da diferença de taxas e a colecta líquida é
considerado como dedução à colecta do IRS, a favor do sujeito passivo, relativo
aos rendimentos do ano imediatamente anterior àquele a que respeita a
participação variável referida no n.º 1, desde que a respectiva liquidação tenha
sido feita com base em declaração apresentada dentro do prazo legal e com os
elementos nela constantes.
5 – A inexistência da dedução à colecta a que se refere o número anterior não
determina, em caso algum, um acréscimo ao montante da participação variável
apurada com base na percentagem deliberada pelo município.
6 – Para efeitos do disposto no presente artigo, considera-se como domicílio
fiscal o do sujeito passivo identificado em primeiro lugar na respectiva
declaração de rendimentos.
7 – O produto da participação variável no IRS é transferido para os municípios
até ao último dia útil do mês seguinte ao do respectivo apuramento pela
Direcção-Geral dos Impostos.”
Art. 59º: “Em 2007 e 2008, a participação a que se refere a alínea c) do nº 1 do
artigo 19º é de 5%.”
3. Fundamentos do pedido
3.1. De inconstitucionalidade
Para fundamentar o seu pedido, o Presidente da Assembleia Legislativa da Região
Autónoma da Madeira utilizou vários argumentos que de seguida serão expostos:
a) Violação do dever de solidariedade do Estado para com as regiões autónomas
Em breves palavras, invoca-se a violação do princípio constitucional da
solidariedade do Estado para com as Regiões Autónomas, extraído dos artigos
225.º, nº 2, da CRP (“o art. 225º, n.º 2, da Constituição (…) não deixa de ser
sensível à construção de um dever de solidariedade nacional em prol das Regiões
Autónomas”), 227.º, n.º 1, al. j) (este preceito, “sendo mais específico, faz
ancorar uma possível dimensão do dever de solidariedade nacional numa
perspectiva tributária”), e 229.º, n.º 1 (“Ainda noutro trecho, a Constituição
Portuguesa volta a lembrar este dever de solidariedade nacional para com as
Regiões Autónomas”), por força da “redução do montante até 5% da receita do IRS
que deve ser totalmente atribuída à Região Autónoma da Madeira”, sendo essa
“situação tanto mais chocante quanto é certo se acentuarem as disparidades
derivadas do carácter insular do território do arquipélago da Madeira, que assim
vê decepada uma parte considerável das receitas financeiras de que precisa”.
b) Violação dos direitos autonómicos na participação das receitas
dos impostos estaduais gerados e cobrados nas regiões autónomas
A este propósito é alegada uma orientação constitucional geral,
segundo a qual a autonomia regional não se concebe sem uma autonomia financeira,
“pela qual as Regiões Autónomas pudessem dispor de receitas próprias, nos vários
tipos de receitas financeiras existentes”. No entender do Requerente, “resulta
evidente que a partilha, ainda que limitada, de uma receita regional com os
municípios – no caso das receitas de IRS gerado e cobrado na Região Autónoma da
Madeira – não se afigura conforme a esta orientação constitucional”.
c) Violação do direito, constitucional e legal, de audição das
regiões autónomas
Por último, é invocado um vício de natureza procedimental resultante
de a “Região Autónoma da Madeira não ter sido devidamente auscultada na
instrução do procedimento legislativo de elaboração da Lei do Orçamento de
Estado para 2007” [certamente um lapso do autor do pedido, pois do que se trata
é da nova Lei das Finanças Locais], o que consubstanciaria a violação do direito
de audição consagrado no artigo 229.º, n.º 2, da CRP, e concretizado nos artigos
90.º e seguintes do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da
Madeira (doravante EPA-RAM – aprovado pela Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto) e na
Lei de audição dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas (Lei n.º
40/96, de 31 de Agosto). De forma mais concreta, é referido que um tal direito
constitucional e legalmente consagrado não foi respeitado no caso em análise,
uma vez que a “Assembleia da República não voltou a ouvir a Assembleia
Legislativa da Região Autónoma da Madeira após ter introduzido alterações
substanciais no texto que viria a ser a versão final da Lei das Finanças Locais
em comparação com a versão inicialmente apresentada”. Deste modo, prossegue-se,
“a omissão de uma segunda audição por parte da Assembleia da República infringiu
por completo o núcleo essencial deste direito de audição, ao não lhe [à
Assembleia Regional] ter dado a oportunidade de uma segunda pronúncia, e
impedindo-se assim de levar à consideração do decisor legislativo novos
argumentos que este eventualmente devesse ponderar para assumir uma solução
definitiva”. Este “segundo dever adicional de audição, que corresponde a um
direito adicional de pronúncia por parte da Assembleia Legislativa” decorre de
forma inequívoca da Lei n.º 40/96, mais concretamente do seu artigo 7.º (realce
nosso)
3.2. De ilegalidade
São apontados dois fundamentos para a ilegalidade das normas em
questão:
a) Violação da norma do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da
Madeira que garante a totalidade da receita gerada no território regional em
sede de IRS
Quanto a este específico fundamento, invoca-se que não foi respeitado o nº 1 do
artigo 112.º (Receitas fiscais) do EPA-RAM, o qual estabelece que “são receitas
fiscais da Região, nos termos da lei, as relativas ou que resultem,
nomeadamente, dos seguintes impostos: a) Do Imposto sobre o Rendimento de
Pessoas Singulares”.
Argumenta-se que esta norma deve ser lida à luz do artigo 107.º, n.º 3, do
EPA-RAM, relativo ao poder tributário da Região (“A Região dispõe, nos termos do
Estatuto e da lei, das receitas fiscais nela cobradas ou geradas, bem como de
uma participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com
um princípio que assegure a efectiva solidariedade nacional, e de outras
receitas que lhe sejam atribuídas e afecta-as às suas despesas”) e, de forma
mais genérica, daquela orientação constitucional geral, já mencionada, que se
consubstancia na afirmação da autonomia financeira das Regiões Autónomas.
Ora, alega-se que a Lei das Finanças Locais (mais concretamente, aqueles
preceitos acima mencionados), “ao determinar a possibilidade de partilhar essa
receita, unicamente regional, com os municípios, implica uma derrogação parcial
desta norma estatutária, o que se afigura inadmissível”. Inadmissibilidade
fundada na circunstância de que “a norma estatutária tem uma posição reforçada
em relação a uma lei comum, como é a Lei das Finanças Locais, dada a função que
se reconhece aos Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas de, no
sistema político regional, valerem como sub-Constituições, assim prevalecendo
sobre quaisquer outras normas legais que não possuam valor reforçado”.
b) Violação superveniente da norma da Lei das Finanças das Regiões Autónomas que
garante a totalidade da receita gerada na Região da Madeira em sede de IRS
Um outro fundamento de invalidade das normas em análise prende-se com o facto de
que elas se tornaram ilegais por força da entrada em vigor da Lei Orgânica n.º
1/2007, de 19 de Fevereiro (Lei das Finanças das Regiões Autónomas).
Mais concretamente, elas atentarão contra o artigo 16.º deste diploma legal, nos
termos do qual “constitui receita de cada Região Autónoma o imposto sobre o
rendimento das pessoas singulares: a) Devido por pessoas singulares consideradas
fiscalmente residentes em cada Região, independentemente do local em que exerçam
a respectiva actividade”. A leitura deste preceito deverá ser conjugada com o
artigo 51.º, n.º 1, do mesmo diploma, o qual dispõe que “as competências
administrativas regionais, em matéria fiscal, a exercer pelos governos e
administrações regionais respectivas, compreendem: (…); b) O direito à entrega,
pelo Estado, das receitas fiscais que devam pertencer-lhe, de harmonia com o
disposto nos artigos 14º e seguintes”. Entende o autor do pedido que nada é
dito, nos incisos invocados, quanto à “possibilidade de a receita regional em
causa ser partilhada com o Estado ou com qualquer outra entidade, como seria a
hipótese dos municípios. Daí que a sua redução, mesmo que num montante que
chegue aos 5%, se afigure ilegal por contradição desta orientação firme da Lei
das Finanças das Regiões Autónomas, que tem uma posição prevalecente em relação
à Lei das Finanças Locais (…)”.
Para justificar a prevalência das Lei das Finanças das Regiões Autónomas sobre a
Lei das Finanças Locais são invocados alguns argumentos.
Antes de mais, o eventual valor reforçado da primeira em relação à segunda (“a
haver uma lei de valor reforçado (…) é esta última [Lei das Finanças das Regiões
Autónomas] que deve merecer tal qualificação”), fundado no “seu papel
complementar, referido constitucionalmente, na definição do regime de autonomia
financeira das Regiões Autónomas”.
Num registo algo diferente, invoca-se que, “mesmo abstraindo dessa
qualificação”, se torna “imperioso reconhecer o carácter mais específico, no
tocante ao regime financeiro das regiões autónomas, das normas que especialmente
versam a construção da autonomia financeira regional, incluindo os diversos
tipos de receitas das Regiões Autónomas, tarefa de que melhor se desincumbem
naturalmente os Estatutos Político-Administrativos e a Lei de Finanças das
Regiões Autónomas, do que a Lei das Finanças Locais”.
Por último, e deslizando para o plano da aplicação das leis no tempo, alega-se
que, apesar de a Lei das Finanças Locais e a Lei das Finanças das Regiões
Autónomas terem entrado em vigor no mesmo dia, “ambas assim retroagindo ao dia 1
de Janeiro de 2007”, a verdade é que se deve considerar que a última é “uma lei
posterior (…), dado que o critério de desempate para uma vigência que começou no
mesmo dia só pode ser o da posteridade da respectiva publicação, tendo a Lei das
Finanças das Regiões Autónomas sido publicada depois – em 19 de Fevereiro de
2007 – do dia em que foi publicada a Lei das Finanças Locais – em 15 de Janeiro
de 2007, querendo isso dizer que, no conflito inter-normativo, vai prevalecer a
norma posterior sobre a norma anterior”.
4. Resposta do autor da norma
Notificado, nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei
do Tribunal Constitucional, o Presidente da Assembleia da República informou
que, em defesa do exercício das suas competências, apenas cuidará, na sua
resposta, da questão da alegada violação do direito de audição das Regiões
Autónomas, a qual rejeita. Quanto aos outros fundamentos de
inconstitucionalidade e ilegalidade invocados pelo autor do pedido, deu por
reproduzidos os pareceres da Comissão de Orçamento e Finanças e da Comissão do
Poder Local, Ambiente e Ordenamento do Território relativos à Proposta da Lei
n.º 92/X, em ambos se concluindo que “a proposta de lei n.º 92/X, assim como os
projectos de lei n.º 312/X e n.º 319/X, reúnem os requisitos constitucionais,
legais e regimentais aplicáveis para poderem subir a Plenário da Assembleia da
República para apreciação na generalidade”.
Reportando-se, portanto, em exclusivo à questão da observância do direito de
audição das Regiões Autónomas, e para sustentar a sua posição, o Presidente da
Assembleia da República forneceu a cronologia dos acontecimentos, mais
concretamente dos passos mais importantes do procedimento legislativo que
conduziu à aprovação da Lei das Finanças Locais e que podem interessar à Região
Autónoma da Madeira.
Desse circunstanciado relato há a reter o seguinte: a Proposta de Lei nº 92/X
foi enviada, através de ofício, ao Presidente da Assembleia Legislativa Regional
da Madeira, em 8 de Setembro de 2006. No dia 6 de Outubro de 2006 foi publicado
no Diário da Assembleia da República o Parecer da Comissão do Planeamento e
Finanças da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira. A Proposta em
apreço foi discutida e aprovada na generalidade nos dias 11 e 12 de Outubro,
respectivamente. No dia 16 de Novembro, no termo da discussão na especialidade,
procedeu-se à sua votação, também na especialidade, pelo Plenário. No dia 16 de
Dezembro de 2006, foi publicado no Diário da Assembleia da República o Decreto
n.º 93/X.
Deixando de parte a mera cronologia dos factos, o Presidente da Assembleia da
República sustenta a sua posição em três argumentos fundamentais.
Antes de mais, e “como questão prévia à tomada de posição sobre a alegação do
requerente”, o Presidente da Assembleia da República chama à colação um “dever
de especificação das alterações” e, com base nele, alega que “o Tribunal
Constitucional não pode conhecer do pedido nesta parte, pois que o Requerente
não especificou quais são as «alterações substanciais no texto que viria a ser a
versão final da Lei das Finanças Locais em comparação com a versão inicialmente
apresentada», limitando-se a fazer alusão às mesmas, ficando o Tribunal
Constitucional e demais partes sem saber quais serão as alterações substanciais
a que se refere o Requerente”. Nestes termos, e apesar do despacho inicial de
admissão do pedido, deve o Tribunal Constitucional rejeitar parcialmente o
pedido do requerente pela sua “insuficiência e manifesta obscuridade”.
Admitindo que este argumento não seja suficiente para “se concluir pela rejeição
parcial do pedido”, então, apoiando-se na factualidade atrás descrita, reitera
que cumpriu o dever de audição das Regiões Autónomas, solicitando aos
respectivos órgãos de governo, atempadamente, os devidos pareceres.
Isto é tanto mais evidente quanto é certo que o requerente considera que a
violação do núcleo essencial do direito de audição das Regiões Autónomas apenas
acontece devido ao facto de não ter ocorrido uma segunda pronúncia por parte da
RAM, na sequência das tais “alterações substanciais”.
Ainda assim, caso o Tribunal Constitucional entenda que estes motivos não colhem
e, em consonância, não rejeite parcialmente o pedido do requerente, o Presidente
da Assembleia da República chama a atenção para a circunstância de que o
requerente apenas solicitou ao Tribunal Constitucional que apreciasse a
constitucionalidade de três artigos específicos do diploma em análise, não tendo
incluído no pedido “– nem no objecto do processo – que fosse declarada a
inconstitucionalidade global da Lei n.º 2/2007”. Deste modo, entende o
Presidente da Assembleia da República que “deve o tribunal rejeitar, nesta
parte, o pedido do Requerente”.
Se assim não o entender, então, “o Tribunal Constitucional estará limitado a
fazer um julgamento sobre a alegada «alteração substancial» da primeira versão,
apenas tendo como objecto de ponderação os artigos 19.º, n.º 1, al. c), 20.º e
59.º da Lei das Finanças Locais”. Isto, uma vez que, no seu pedido, o requerente
circunscreveu a apreciação da constitucionalidade a esses mesmos preceitos e não
a outros. Ora, como defende o Presidente da Assembleia da República, em virtude
do n.º 5 do artigo 51.º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, “o Tribunal
Constitucional só tem poderes jurisdicionais para «declarar a
inconstitucionalidade ou a ilegalidade de normas cuja apreciação tenha sido
requerida», daqui decorrendo que todas as alterações efectuadas aos restantes
artigos da Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro, não podem ser tidas em consideração
pelo Tribunal Constitucional, contrariamente ao que parece decorrer das
alegações do Requerente”.
Dito isto, o Presidente da Assembleia da República passa a demonstrar que, no
que respeita aos preceitos objecto de apreciação no pedido, não se verifica
qualquer alteração substancial em relação à versão inicial da nova Lei das
Finanças Locais.
Assim, quanto ao artigo 59.º, “ele é exactamente igual ao artigo 59.º da
Proposta de Lei n.º 92/X, de 16 de Novembro – logo, daqui não resulta qualquer
alteração substancial”.
No que respeita à alínea c) do artigo 19.º, “ela corresponde à concentração numa
única alínea das alíneas c) e d) do artigo 19.º da Proposta de Lei n.º 92/X, de
16 de Novembro – logo, daqui não resulta qualquer alteração substancial”.
Por último, quanto ao artigo 20.º, “ele corresponde ao artigo 20.º da Proposta
de Lei n.º 92/X, de 16 de Novembro, salvo o ajuste percentual no seu n.º 1,
ajuste esse que apenas decorre da fusão das alíneas c) e d) do artigo 19.º da
Proposta de Lei n.º 92/X, de 16 de Novembro – logo, também daqui não resulta
qualquer alteração substancial”.
Em face do exposto, cabe apenas concluir “não terem existido, com directa
influência no objecto deste processo, quaisquer alterações substanciais que
determinassem uma nova audição dos órgãos regionais e, por esse motivo, deve
improceder o pedido do Requerente quando invoca ter existido uma violação do
direito constitucional e legal de audição das regiões Autónomas”.
Em jeito de conclusão, refere o Presidente da Assembleia da
República que “ciente das competências regionais existentes sobre esta matéria,
o n.º 3 do artigo 63.º da Lei nº 2/2007, de 15 de Janeiro, estabelece
especificamente que a aplicação, nas Regiões Autónomas, dos artigos 19.º, n.º 1,
al. c), 20.º e 59.º da Lei das Finanças Locais (…), efectua-se mediante decreto
legislativo regional”.
5. O memorando
Discutido em Plenário o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal
Constitucional, nos termos do artigo 63º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação
do Tribunal, cumpre agora decidir de harmonia com o que então se estabeleceu.
II – FUNDAMENTAÇÃO
5. Questões prévias
5.1. Delimitação do objecto do pedido
Antes de mais, importa salientar que resulta de toda a argumentação
apresentada pelo requerente que este não pretendeu questionar a
constitucionalidade da fórmula (ou parte dela) de cálculo das transferências do
orçamento do Estado para os municípios, contida nos artigos 19.º, n.º 1, al. c),
20.º e 59.º da Lei nº 2/2007. Efectivamente, apenas foi colocada em crise a sua
aplicação às Regiões Autónomas, no caso concreto, à Região Autónoma da Madeira
(RAM). Deste modo, a actuação deste Tribunal no presente caso limitar-se-á, nos
termos do pedido, à apreciação da questão da aplicação à Região Autónoma da
Madeira do regime de transferências contido nas normas em apreço.
5.2. Legitimidade do requerente
De acordo com o disposto na alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º da CRP, os
Presidentes das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas possuem
legitimidade processual activa no âmbito do processo de fiscalização abstracta
sucessiva, estando, contudo, essa legitimidade materialmente limitada.
Assim, podem requerer ao Tribunal Constitucional a declaração, com força
obrigatória geral, da inconstitucionalidade de normas, quando o pedido “se
fundar em violação dos direitos das regiões autónomas”.
Este pressuposto está verificado, no caso em análise, pelo que, no que respeita
às três questões de constitucionalidade levantadas pelo autor do pedido, não se
suscitam dúvidas quanto à sua legitimidade processual activa.
No que se refere ao pedido de declaração de ilegalidade, aquela norma
constitucional condiciona a legitimidade, entre outros, dos Presidentes das
Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas, os quais apenas poderão requerer
a declaração de ilegalidade das normas quando esteja em causa a “violação dos
respectivos estatutos”.
Cumpre deste modo averiguar se as situações de ilegalidade em causa resultam da
violação do Estatuto da Região Autónoma da Madeira.
Quanto ao primeiro fundamento, a norma que estipula que são receitas fiscais da
Região aquelas relacionadas ou que resultem, nomeadamente, do Imposto sobre o
Rendimento de Pessoas Singulares, está plasmada no artigo 112º, nº 1, do EPA-RAM
– o qual, como refere o requerente, deve ser lido à luz do artigo 107.º, n.º 3,
do mesmo estatuto –, pelo que, de um ponto de vista estritamente formal, foi
observado o requisito material de legitimidade processual activa contido no
artigo 281.º, n.º 2, al. g), da CRP.
Porém, pelas razões que indicaremos adiante (nº 8.4.), não se justifica o
tratamento autónomo da alegada ilegalidade por violação do artigo 112º do
EPA-RAM.
Situação distinta é aquela que se verifica em relação ao segundo fundamento
invocado. Efectivamente, o que está em discussão é a alegada violação, por parte
da Lei das Finanças Locais, da Lei das Finanças Regionais. Independentemente da
averiguação sobre a natureza reforçada da lei que é reputada de parâmetro de
validade das normas em apreciação, a verdade é que não está em causa a violação
de nenhuma norma do EPA-RAM. Em consonância, há que concluir pela falta de
legitimidade processual activa do Presidente da Assembleia Legislativa da Região
Autónoma da Madeira relativamente a esta específica causa de pedir, pela simples
razão que aquela lei alegadamente violada em algumas das suas disposições não
integra o EPA-RAM, em suma, não integra um estatuto político-administrativo,
conforme exigido pela parte final da alínea g) do n.º 2 do artigo 281º da CRP.
Dito isto, cabe apreciar os fundamentos de inconstitucionalidade invocados pelo
autor do pedido.
5.3. Conexão entre os três preceitos cuja inconstitucionalidade se suscita
Uma última nota, porém, no que respeita à apreciação do pedido de fiscalização.
Uma vez que existe uma conexão instrumental necessária entre os três preceitos
agora sindicados, o Tribunal irá dar particular relevância ao artigo 19.º, n.º
1, al. c), sendo certo que o juízo que acerca dele fará valerá, mutatis
mutandis, para os restantes preceitos.
6. Da alegada inconstitucionalidade por violação do dever de audição das regiões
autónomas
O requerente invoca o desrespeito pelo dever, de fonte, simultaneamente,
constitucional e legal, de audição das Regiões Autónomas consagrado,
respectivamente, nos artigos 229.º, n.º 2, da CRP (“Os órgãos de soberania
ouvirão sempre, relativamente às questões da sua competência respeitantes às
regiões autónomas, os órgãos de governo regional”), e 2.º da Lei n.º 40/96, de
31 de Agosto, que regula a audição dos órgãos de Governo próprio das regiões
autónomas (“1 – A Assembleia da República e o Governo ouvem os órgãos de governo
próprio das Regiões Autónomas sempre que exerçam poder legislativo ou
regulamentar em matérias da respectiva competência que às regiões digam
respeito”).
As normas estatutárias da Região Autónoma da Madeira não determinam
expressamente o dever de audição sobre alterações, entretanto, introduzidas em
iniciativa legislativa já alvo de audição pelos órgãos próprios da região,
limitando-se o artigo 89.º, n.º 1, do EPA-RAM a fixar que “1 – A Assembleia e o
Governo da República ouvem os órgãos de governo próprio da Região Autónoma
sempre que exerçam poder legislativo ou regulamentar em matérias da respectiva
competência que à região diga respeito”.
No caso vertente, o que é questionado pelo requerente é o facto de não ter sido
facultada à Assembleia Legislativa da RAM a oportunidade de uma segunda
pronúncia, a qual se tornaria necessária pelo facto de a proposta de lei inicial
ter sofrido substanciais alterações aquando da fase de discussão e aprovação na
Assembleia da República. Verificada esta circunstância, haveria um dever
adicional de audição que não teria sido respeitado. É, pois, sobre esta
particular questão que este Tribunal se deverá pronunciar.
Os preceitos, constitucional e estatutário, mencionam de forma genérica este
dever de audição, não se referindo, nomeadamente, a um segundo dever de audição
ou de audição adicional em virtude de se verificarem alterações substanciais
entre a versão inicial e a versão final do texto legislativo proposto. Assim,
torna-se necessário averiguar qual o objecto e a extensão do dever de audição,
para que se possa avaliar, perante um caso concreto, se foi ou não preservado o
sentido útil da imposição constitucional. Antes disso, porém, deve notar-se que
nem todo o comportamento omissivo neste domínio acarretará, per se, uma
inconstitucionalidade. Para que isso se verifique, é necessário que o exercício
do direito de audição constitucionalmente consagrado resulte comprometido,
esvaziado de sentido.
O requerente não goza de legitimidade processual para formular um pedido de
fiscalização da ilegalidade fundada na divergência entre as normas que
constituem objecto do presente pedido e as normas constantes da Lei n.º 40/96,
pelo que este Tribunal não pode dela conhecer. Acresce que, ainda que a lei
infra-constitucional possa dispor de modo diferente – ou, neste caso, mais amplo
–, a interpretação dos enunciados constitucional e estatutário não podem – nem
devem – submeter-se ao crivo do legislador ordinário. Ou seja, a boa exegese do
sentido normativo adoptado pelo legislador constitucional não pode ceder, sequer
por maior facilidade argumentativa, à constatação de que o legislador ordinário
já regulou tal matéria.
Importa assim extrair um sentido normativo autónomo, de matriz exclusivamente
constitucional.
O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de clarificar esta questão,
nomeadamente no seu Acórdão n.º 105/2002, em termos que seriam retomados pelo
Acórdão n.º 551/2007. Neste último, pode ler-se que:
“A Constituição nada dispõe acerca do procedimento de audição das
regiões autónomas. Essa matéria encontra-se regulada em legislação ordinária,
designadamente na Lei n.º 40/96, de 31 de Agosto, nos artigos 89.º a 92.º do
Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira e nos artigos
78.º a 80.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.
Também o artigo 152.º do Regimento da Assembleia da República (aprovado pela
Resolução da Assembleia da República n.º 4/93, de 2 de Março, e alterado pelas
Resoluções da Assembleia da República n.º 15/96, de 2 de Maio, n.º 3/99, de 20
de Janeiro, n.º 75/99, de 25 de Novembro, e n.º 2/2003, de 17 de Janeiro) e o
artigo 23.º do Regimento do Conselho de Ministros do XVII Governo Constitucional
(aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 82/2005, de 15 de Abril, e
alterado pelas Resoluções do Conselho de Ministros n.º 186/2005, de 6 de
Dezembro, e n.º 64/2006, de 18 de Maio) tratam do procedimento de audição das
regiões autónomas.
Do desrespeito dessas regras não se extrai automaticamente uma
conclusão de inconstitucionalidade (cf., neste sentido, os Acórdãos n.º 670/99
e, sobretudo, n.º 529/2001). Como se disse neste último acórdão, “decisivo para
tal efeito, em último termo, é saber se, em cada caso, se observou, ou não, um
procedimento capaz de corresponder ao sentido da exigência do artigo 229.º, n.º
2, da Constituição”.
Assim, na medida em que o incumprimento daquelas regras comprometa o
exercício do direito constitucional de audição, coloca-se um problema de
constitucionalidade. É exactamente isso que sucede no presente processo, visto
que o requerente sustenta ter sido violado o direito de audição das regiões
autónomas, por não ter sido cumprido o procedimento fixado no artigo 7.º da Lei
n.º 40/96. Esta norma dispõe o seguinte:
Sempre que a audição tenha incidido sobre proposta concreta à qual venham a ser
introduzidas alterações que a torne substancialmente diferente ou inovatória
devem ser remetidas aos órgãos de governo próprio cópia das mesmas e a
respectiva justificação.
O Tribunal tem entendido (cf., designadamente, os Acórdãos n.º 264/86,
n.º 125/87 e n.º 105/2002, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8.º Vol., pp.
169 e sgg., 9.º Vol., pp. 287 e sgg., 52.º Vol., pp. 135 e sgg.,
respectivamente) que os órgãos de governo próprio das regiões autónomas não têm
que ser novamente ouvidos quando a alteração da proposta de lei consubstancia
uma mera variação (sem dilatação) do âmbito temático e problemático das matérias
reguladas na iniciativa legislativa originária.
Ora, se (a contrario) os órgãos de governo regionais devem ser
novamente ouvidos quando ocorre uma ampliação do elenco de matérias reguladas na
proposta de lei originária, o mesmo deverá suceder quando há uma ampliação do
âmbito de aplicação do regime fixado, que seja relevante para as regiões
autónomas.
É o caso, por exemplo, da introdução de disposições especiais para
as regiões autónomas – como diz Jorge Miranda (obra citada, p. 791), «parece
indiscutível que, se um projecto ou proposta de lei não contiver nenhuma
disposição especial para uma região autónoma e ela surgir através de um texto de
substituição ou de uma proposta de alteração, a Assembleia Legislativa Regional
terá de ser consultada”. É também o caso da ampliação do conjunto de normas
aplicável às regiões autónomas, que ocorre no processo sub iudice»”.
No caso em apreço, os órgãos de governo regional apenas foram ouvidos uma vez.
Quanto às alegadas alterações substanciais, que o recorrente não especifica, não
podem considerar-se verificadas em relação aos preceitos da Lei das Finanças
Locais agora em análise.
Conforme bem notado pelo órgão autor da norma, o enunciado normativo constante
do artigo 59º da Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro, é exactamente igual ao
constante do artigo 59º da Proposta de Lei n.º 93/X, de 16 de Novembro. Por sua
vez, a alínea c) do n.º 1 do artigo 19º da Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro,
limita-se a corresponder à concentração numa só das alíneas c) e d) do artigo
19º da referida proposta de lei, com implicações no próprio n.º 1 do artigo 20º
daquele diploma legal, não tendo os restantes números desse preceito sofrido
qualquer alteração. Em sede de discussão em Assembleia da República, foi
decidido um ajuste percentual relativo ao montante da participação variável do
IRS – dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva circunscrição –
de que os municípios passam a dispor, tendo-se colocado termo à participação
fixa. Efectivamente, enquanto que na Proposta n.º 92/X a fórmula apresentada
previa uma parcela fixa de 2% e uma parcela variável que podia chegar aos 3%, na
versão final do que se fala é de uma participação variável até 5%. Daqui
decorre, aliás, que a nova redacção daquelas normas se afigura mais favorável
aos interesses das regiões autónomas – interesse nestes autos representado pelo
recorrente – na medida em que a versão final e em vigor da Lei n.º 2/2007
eliminou a parcela fixa da participação no IRS, significando isso que – em
abstracto – uma percentagem que seria obrigatoriamente de 2%, pode fixar-se em
valor inferior àquele.
Assim sendo, e à luz da anterior jurisprudência deste Tribunal, que aqui se
reitera, não há razão para afirmar que houve violação do artigo 229.º, n.º 2, da
CRP, que consagra o direito constitucional de audição das regiões autónomas, uma
vez que a leitura da versão final da Lei das Finanças Locais permite concluir
que não se regista qualquer alteração substancial nos preceitos em análise.
7. Da alegada inconstitucionalidade por violação do dever de solidariedade do
Estado para com as Regiões Autónomas
O Tribunal Constitucional pronunciou-se muito recentemente, no
Acórdão n.º 581/2007, sobre a melhor interpretação – e, portanto, sobre o exacto
alcance – deste dever de solidariedade do Estado para com as regiões autónomas,
interpretação essa que aqui se retoma sem reservas.
Em todo o caso, resta afirmar que com este novo modo de cálculo vai manter-se
inalterado o fluxo de transferências do Estado central para as entidades
sedeadas nas regiões autónomas; pelo que se pode concluir que com a medida
legislativa em apreciação não resulta beliscado o dever de solidariedade do
Estado para com as Regiões dos Açores e da Madeira, nem sequer na sua versão
mais redutora – não acolhida por este Tribunal –, que o concebe como um dever do
Estado exclusivamente direccionado, num só sentido, para as regiões autónomas.
Deste modo, entende o Tribunal Constitucional que não devem ser declaradas
inconstitucionais, com este particular fundamento, as normas contidas nos
artigos 19.º, n.º 1, al. c), 20.º e 59.º da Lei nº 2/2007.
8. Da alegada inconstitucionalidade por violação dos direitos autonómicos na
participação das receitas dos impostos estaduais gerados e cobrados nas Regiões
Autónomas
8.1. Cumpre agora apreciar o terceiro fundamento invocado pela
Assembleia Legislativa da RAM. Para isso, torna-se imprescindível tomar em
consideração uma série de aspectos que se articulam entre si. Antes de se focar
cada um deles, é bom que se diga que a opção constitucional pela
descentralização financeira das Regiões Autónomas e das autarquias conduziu a
uma estrutura plural das finanças públicas. Com isto se quer alertar para o
facto de que as alterações introduzidas num dos níveis territoriais das finanças
públicas podem causar interferências num outro nível. No fundo, é disto que se
trata no caso agora em análise: houve uma alteração na nova Lei das Finanças
Locais que, alegadamente, colidiu com a autonomia financeira das Regiões
Autónomas.
Antes de mais, é importante analisar o modelo de financiamento das autarquias
locais, mais concretamente, aquilo que a nova Lei das Finanças Locais (Lei n.º
2/2007) trouxe em termos de novidade quanto ao modelo de transferências do
Estado para os municípios.
O artigo 6.º da CRP, ao mesmo tempo que afirma que o Estado
português é um Estado unitário, reconhece a autonomia política das Regiões
Autónomas e a autonomia administrativo-financeira das autarquias locais. No
respeitante a estas últimas, o artigo 238.º, em nome dessa autonomia
administrativo-financeira, assegura-lhes um património e finanças próprios. As
autarquias devem dispor de receitas suficientes para poderem levar a bom termo
as suas atribuições (princípio constitucional da autonomia financeira
autárquica), podendo elas resultar de receitas próprias ou de transferências com
origem no Orçamento do Estado. No que toca às transferências – o único aspecto
relevante para o caso em apreço –, o Estado central todos os anos, através do
Orçamento do Estado, transfere para as autarquias um montante calculado com base
na Lei das Finanças Locais e previsto no Orçamento do Estado.
A nova Lei das Finanças Locais veio alterar, em parte, as regras de
financiamento dos municípios, invocando uma maior autonomia, mas também, e
porventura, fundamentalmente, correspondendo a uma maior responsabilização
(accountability) financeira dos municípios. Mais concretamente, veio modificar o
mecanismo de cálculo das transferências do Estado para os municípios.
De acordo com a anterior Lei das Finanças Locais, o respectivo artigo 10.º, n.º
1, estabelecia o seguinte:
“1. Os municípios têm direito a uma participação em impostos do Estado
equivalente a 30,5% da média aritmética simples da receita proveniente do IRS,
do IRC e do IVA.”
Deve dizer-se que, em virtude da reserva regional de receitas cobradas e geradas
no respectivo território, consagrada no artigo 227.º, n.º 1, al. j) CRP, não
estavam envolvidas neste cálculo as receitas de IRS cobradas nas Regiões
Autónomas.
Com a nova Lei das Finanças Locais, o cálculo passou a ser feito do seguinte
modo (artigo 19.º, n.º 1):
“1. A repartição dos recursos públicos entre o Estado e os municípios, tendo em
vista atingir os objectivos de equilíbrio financeiro horizontal e vertical, é
obtida através das seguintes formas de participação:
a) Uma subvenção geral determinada a partir do Fundo de Equilíbrio Financeiro
(FEF) cujo valor é igual a 25,3% da média aritmética simples da receita
proveniente dos impostos sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), sobre
o rendimento das pessoas colectivas (IRC) e sobre o valor acrescentado (IVA);
b) Uma subvenção específica determinada a partir do Fundo Social Municipal (FSM)
cujo valor corresponde às despesas relativas às atribuições e competências
transferidas da administração central para os municípios;
c) Uma participação variável de 5% no IRS, determinada nos termos do artigo
20.º, dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva circunscrição
territorial, calculada sobre a respectiva colecta líquida das deduções previstas
no n.º 1 do artigo 78.º do Código do IRS.”
Como se vê, com esta nova fórmula de cálculo das transferências do Estado para
as autarquias, os municípios passaram a ter o direito a uma participação na
cobrança do IRS, um imposto nacional. Parte das receitas de IRS de que os
municípios beneficiam vão podê-la cobrar directamente no respectivo território,
enquanto antes do actual regime jurídico-financeiro beneficiavam apenas a título
indirecto. Para além disso, os municípios passaram a ter a faculdade de
prescindir de parte das transferências de verbas do Estado, alcançando esse
objectivo através da desoneração dos contribuintes residentes nos seus
territórios, por via de deduções à colecta (e não de abatimentos ao rendimento
colectável).
8.2. O artigo 227.º, n.º 1, al. j), da CRP determina que as regiões possuem,
entre outros poderes, o de “dispor, nos termos dos estatutos e da lei das
finanças das regiões autónomas, das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas,
bem como de uma participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de
acordo com um princípio que assegure a efectiva solidariedade nacional, e de
outras receitas que lhe sejam atribuídas e afectá-las às suas despesas”.
Em face do preceituado, impõe-se, em primeiro lugar, indagar sobre qual o exacto
alcance da reserva regional das receitas geradas e cobradas nas Regiões
Autónomas no âmbito da sua autonomia financeira. Em segundo lugar, se essa
reserva regional resulta afectada pela aplicação dos artigos 19.º, n.º 1, al.
c), 20.º e 59.º da Lei nº 2/2007.
Começando pela primeira questão, há que reter que, apesar do carácter genérico
do texto do artigo 227.º, n.º 1, al. j), da CRP, a norma nela contida tem
obrigatoriamente que ser lida à luz da autonomia das Regiões Autónomas,
nomeadamente da sua autonomia financeira, constitucionalmente consagrada. Assim
sendo, a melhor leitura a fazer da reserva regional das receitas tributárias das
Regiões Autónomas, é a de que elas se destinam a financiar, na íntegra, o
orçamento regional. Atente-se nas palavras de Lobo Xavier a propósito da reserva
regional tributária: “O artigo 229.º, n.º 1, al. a), “outorga às regiões uma
autêntica autonomia financeira, permitindo-lhes afectar as receitas próprias às
suas despesas – no fundo, trata-se da liberdade de conformação de um orçamento
próprio –, ao mesmo tempo que esclarece serem receitas próprias regionais as
receitas cobradas no respectivo território. Esta afectação das receitas do
Estado dá a medida de uma opção expressa do legislador constituinte sobre o que
entende ser o mínimo de contribuição da República para a «correcção das
desigualdades derivadas da insularidade»: é que, se os impostos cobrados nas
regiões se destinam obrigatoriamente ao financiamento dos orçamentos regionais,
isso significa, nomeadamente, que os residentes nas ilhas não contribuem para as
despesas gerais do Estado português” (ob. cit., p. 174).
Embora não esteja em apreciação, nesta sede, a eventual violação da mais recente
Lei das Finanças Regionais, não poderá deixar de se mencionar o facto de neste
diploma, mais concretamente no seu artigo 51.º, n.º 1, al. b), se dispor que “as
competências administrativas regionais, em matéria fiscal, a exercer pelos
governos e administrações regionais respectivas, compreendem: (…) b) O direito à
entrega, pelo Estado, das receitas fiscais que devam pertencer-lhes de harmonia
com o disposto nos artigos 14.º e seguintes” – assim se reforçando o
entendimento de que as receitas tributárias em causa são receitas do orçamento
regional.
8.3. Assim delimitado o exacto alcance da reserva regional das receitas geradas
e cobradas nas Regiões Autónomas, acolhendo-se a interpretação segundo a qual as
receitas aí geradas e cobradas são, na sua íntegra, receitas dos orçamentos
regionais, nem por isso se pode concluir que os artigos 19.º, n.º 1, al. c),
20.º e 59.º da actual Lei das Finanças Locais, que consagram a nova fórmula de
cálculo das transferências do Estado para os municípios (que, como se viu, prevê
uma participação variável dos mesmos no IRS, ou seja, que permite uma
‘municipalização’ de uma pequena parcela das transferências estaduais relativas
ao IRS, podendo os municípios abdicar de uma parte dessa transferência ou tão só
modular ou diferenciar localmente o IRS, as respectivas prestações), vieram
chocar com a ‘localização’ dos impostos nas Regiões Autónomas. Isto porque
aqueles preceitos, per se, são inoperantes em relação às Regiões Autónomas. Com
efeito, a aplicação do regime neles contido efectuar-se-á, nos termos do n.º 3
do artigo 63.º daquele diploma legal, através de um decreto legislativo
regional. Esta última disposição introduziu um mecanismo que não permite acolher
o raciocínio do Requerente quanto à inconstitucionalidade dos preceitos que
constituem o objecto do seu pedido de fiscalização. Pela simples razão de que o
mesmo apenas questiona a aplicação do regime neles previsto (e não o regime em
si) às Regiões Autónomas, e esta não decorre dos artigos 19.º, n.º 1, al. c),
20.º e 59.º da Lei n.º 2/2007, mas de um decreto legislativo regional que venha
a ser criado pelas competentes assembleias legislativas regionais com vista a
torná-lo operativo nas respectivas regiões. Isto decorre de forma clara do n.º 3
do artigo 63.º, o qual abre uma excepção, quanto a este específico aspecto, à
aplicabilidade directa do diploma das finanças locais às Regiões Autónomas
prevista no nº 1 da mesma disposição.
Assim sendo, não é possível sustentar a violação, pelos artigos 19.º, n.º 1,
20.º e 59.º da Lei nº 2/2007, de uma norma constitucional, mais concretamente do
artigo 227.º, n.º 1, al. j), pois os orçamentos das Regiões Autónomas apenas
verão escapar receitas que lhes estavam originariamente – de acordo com o texto
constitucional – destinadas, se essa for a vontade expressa dos competentes
órgãos regionais, plasmada num decreto legislativo regional. Como bem refere o
recente Acórdão n.º 551/2007, que, por sua vez, cita o Acórdão n.º 403/89, no
qual se afirma o seguinte: “(…) o exercício pelos órgãos regionais da faculdade
de impugnação da constitucionalidade de normas dimanadas de órgãos de soberania
pressupõe uma legitimidade qualificada pela violação de direitos das regiões. É
precisamente a circunstância de ser accionado, por esta via, um poder de
garantia dos poderes das regiões, que fornece o critério de determinação do
âmbito do pedido. Só têm (devem) ser consideradas as normas que (…) violem
direitos constitucionalmente conferidos às regiões e na medida em que essas
normas se destinem a nelas ser aplicadas (…)”.
Não decorrendo uma tal violação, nos termos referidos, dos artigos cuja
constitucionalidade vem impugnada, há assim que negar procedência ao pedido do
Requerente.
8.4. Aqui chegados, importa notar que não faz sentido tratar autonomamente a
alegada ilegalidade por violação do artigo 112º do EPA-RAM.
Com efeito, do confronto entre o artigo 227.º, n.º 1, al. j), da CRP e o artigo
112º do EPA-RAM não resulta qualquer discrepância significativa de sentido
normativo, sendo que a norma constitucional já assegura expressamente que as
Regiões Autónomas gozam do direito de dispor das receitas fiscais cobradas nos
respectivos territórios arquipelágicos, pelo que se decide não conhecer do
pedido de ilegalidade que se funda na violação do artigo 112º, nº 1, do EPA-RAM.
III – DECISÃO
9. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) não conhecer, por falta de legitimidade do requerente, do pedido de
declaração de ilegalidade fundado na violação do artigo 16.º da Lei das Finanças
das Regiões Autónomas;
b) não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos
19º, nº 1, al. c), 20º e 59º da Lei nº 2/2007, na sua aplicação aos Municípios
da Região Autónoma da Madeira;
c) não conhecer do pedido de declaração de ilegalidade fundado na violação
do artigo 112.º, n.º 1, do EPA-RAM.
Lisboa, 14 de Outubro de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Joaquim de Sousa Ribeiro
Benjamim Rodrigues
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Maria João Antunes
Gil Galvão
João Cura Mariano
Vítor Gomes
José Borges Soeiro
Carlos Pamplona de Oliveira – com declaração
Mário José de Araújo Torres ( Vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Voto no sentido da não inconstitucionalidade das normas em apreço por razões não
coincidentes com os fundamentos do presente acórdão.
Com efeito, prevendo-se no n.º 3 do artigo 63º da Lei das Finanças Locais (Lei
n.º 2/2007 de 15 de Janeiro) que 'a aplicação às Regiões Autónomas do disposto
na alínea c) do n.º 1 do artigo 19º e no artigo 20º [...] efectua-se mediante
decreto legislativo regional', parece-me claro que estes últimos preceitos e,
por inevitável arrastamento, o também questionado artigo 59º da mesma LFL, só
poderão vigorar na Região por força de acto legislativo regional e nunca por
vocação própria, como faz supor o pedido formulado.
Afastado o pressuposto essencial em que se apoia tal pedido, e sendo então
manifesta a sua improcedência – assim interpretadas as normas não têm sequer
virtualidade para interferir com os direitos regionais invocados –,
tornar-se-iam desnecessárias as observações recolhidas no acórdão sobre o dever
de solidariedade do Estado para com as Regiões e sobre a participação regional
nas receitas tributárias geradas na Região, ponderações que, de resto, não
acompanho inteiramente.
Carlos Pamplona de Oliveira
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por considerar que as normas dos artigos
19.º, n.º 1, alínea c), 20.º e 59.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro (Lei das
Finanças Locais), violam o disposto no artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da
Constituição da República Portuguesa (CRP) e no artigo 112.º, n.º 1, alínea a),
lido à luz do artigo 107.º, n.º 3, do Estatuto Político‑Administrativo da Região
Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto (EPARAM), e
que à verificação dessa violação não obsta o disposto no n.º 3 do artigo 63.º da
Lei n.º 2/2007.
O precedente Acórdão reconhece expressamente que das
citadas disposições constitucional e estatutárias resulta que constituem
receitas próprias da Região Autónoma da Madeira (RAM), especificamente afectas,
na íntegra, ao financiamento do orçamento regional, as provenientes do imposto
sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) cobrado na Região, cabendo
exclusivamente à RAM o poder de disposição dessas receitas fiscais.
E também reconhece que, enquanto na anterior Lei das
Finanças Locais (Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto), no cálculo da participação dos
municípios nas receitas de impostos do Estado, prevista no seu artigo 10.º, n.º
1, não estavam envolvidas as receitas de IRS cobradas nas Regiões Autónomas, a
situação alterou‑se com a nova Lei das Finanças Locais, que, por força das
normas questionadas no presente processo, não contempla similar restrição. Isto
é: à partida, da aplicação das novas regras resulta que por uma lei comum da
Assembleia da República foi retirada às Regiões Autónomas e atribuída aos
municípios que as integram (mas que com elas se não confundem) uma parcela de
uma receita que, nos termos constitucionais e estatutários, constituía receita
própria das Regiões, se destinava, na íntegra, a financiar os respectivos
orçamentos regionais e sobre a qual apenas os órgãos regionais podiam dispor.
A decisão do Tribunal de não declaração da
inconstitucionalidade decorrente da exposta violação de direitos constitucionais
das Regiões Autónomas assenta exclusivamente no entendimento de que os
preceitos questionados “são inoperantes em relação às Regiões Autónomas”,
porquanto “a aplicação do regime neles contido efectuar‑se‑á, nos termos do n.º
3 do artigo 63.º daquele diploma legal, através de um decreto legislativo
regional” e, assim, “os orçamentos das Regiões Autónomas apenas verão escapar
receitas que lhes estavam originariamente – de acordo com o texto constitucional
– destinadas, se essa for a vontade expressa dos competentes órgãos regionais,
plasmada num decreto legislativo regional”.
Porém, não atribuo à norma do n.º 3 do artigo 63.º da
Lei n.º 2/2007 o sentido que o precedente Acórdão lhe confere. É para mim claro
que as normas questionadas encerram em si, de forma definitiva, a opção
legislativa de, na nova fórmula de cálculo das receitas do IRS a atribuir aos
municípios, se englobarem as receitas desse imposto cobradas nas Regiões
Autónomas. A decisão legislativa está tomada, proclamando‑se no n.º 1 do citado
artigo 63.º que “a presente lei é directamente aplicável aos municípios e
freguesias das Regiões Autónomas”. O subsequente n.º 3 [que não constava da
Proposta de Lei n.º 92/X, cujo artigo 63.º dispunha: “1 – A presente lei é
directamente aplicável aos municípios e freguesias das regiões autónomas, com as
adaptações previstas nos números seguintes. 2 – A transferência de competências
para os municípios das regiões autónomas, bem como o seu financiamento,
designadamente mediante o ajustamento do montante e critérios de repartição do
FSM, efectuam‑se nos termos a prever em decreto legislativo das assembleias
legislativas regionais respectivas. 3 – Tendo em conta as especificidades das
regiões autónomas, as assembleias legislativas regionais podem definir as formas
de cooperação técnica e financeira entre as regiões e os seus municípios.”]
desse preceito não confere às Regiões Autónomas liberdade para decidir da
aplicação, ou não, do novo regime: ele determina que “a aplicação [que se dá
por adquirida] às Regiões Autónomas do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo
19.º e no artigo 20.º da presente lei efectua‑se mediante decreto legislativo
regional”. Mais: não é conferido, pelo n.º 3 do artigo 63.º citado, qualquer
liberdade de modelação da aplicação do regime consagrado nos artigos 19.º, n.º
1, alínea c), e 20.º. Trata‑se de uma injunção de legislar e de legislar num
sentido pré‑determinado, imposta aos legisladores regionais, por eventualmente
se ter entendido que seria demasiado flagrante e ostensiva a violação da
autonomia financeira regional, constitucionalmente consagrada, se o legislador
comum nacional operasse directamente uma retirada de receitas que, nos termos
constitucionais e estatutários, são próprias das Regiões Autónomas, e a
atribuísse aos municípios. Mas, a meu ver, não é por esse artifício que se salva
a inconstitucionalidade da solução: tanto viola a autonomia financeira
constitucionalmente assegurada às Regiões Autónomas uma lei comum da Assembleia
da República que lhes retira uma receita própria, como uma lei comum da
Assembleia da República que dirige às Regiões Autónomas uma injunção de legislar
que tem necessariamente o mesmo efeito de privação de receitas próprias (sendo,
aliás, configurável a possibilidade de, perante o incumprimento ou a
injustificada demora no cumprimento deste dever de legislar por parte dos
parlamentos regionais – admitindo que tal dever fosse constitucionalmente
conforme –, os municípios que vêem o seu direito de participação nas receitas do
IRS, consagrado na nova Lei das Finanças Locais, negado por omissão legislativa
regional, accionarem a responsabilidade dos órgãos legislativos regionais pelo
prejuízo patrimonial causado).
Mário José de Araújo Torres