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Processo n.º 317/08
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No âmbito do processo especial de insolvência de pessoa singular, que correu os
seus termos sob o n.º 1347/07.0 TBGMR no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da
Comarca de Guimarães, foi declarada a insolvência de A..
A requerida A. pediu, ao abrigo do disposto nos artigos 235.º e seguintes do
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, que lhe fosse concedida a exoneração do
passivo restante e tal pretensão veio a ser liminarmente indeferida por
despacho proferido em primeira instância.
Esta decisão viria a ser confirmada pelo acórdão proferido em 7 de Fevereiro de
2008 pelo Tribunal da Relação de Guimarães, o qual, na parte que ora interessa,
fundamentou e decidiu sobre o mérito do recurso de agravo, entretanto
interposto pela requerida A., nos seguintes termos:
“(...) Da inconstitucionalidade orgânica:
Considera a recorrente que a imposição dos requisitos impostos pelo art. 238º do
CIRE é organicamente inconstitucional na medida em que viola a lei de
autorização legislativa.
Apoia-se concretamente no art. 8, nº 1 da Lei nº 39/2003 de 22 de Agosto (lei de
autorização legislativa) que imporá apenas como único requisito para a concessão
de exoneração do passivo restante o “pedido expresso” do insolvente.
Cremos, no entanto, que a recorrente não tem razão.
É certo que o art. 165, nº 1, al. a) do CRP dispõe que é da exclusiva
competência da Assembleia da República legislar sobre o “estado e capacidade das
pessoas”.
E que o nº 2 dispõe que “as leis de autorização legislativa devem definir o
objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização (...)”.
Porém, a lei de autorização legislativa apenas vincula o legislador autorizado
relativamente aos aspectos substantivos que fazem parte da reserva (cfr. acórdão
do TC n.º 77/88, de 12/04/88, o acórdão do TC nº 564/2007 de 13.11.2007, ambos
in www.tribunalconstitucional.pt e decisão sumária nº 615/2007, interposto no
processo 5269/06.4TBGMR do 5º Juízo Cível do T.J. de Guimarães).
Ora, revertendo ao caso sub judice, verifica-se que o regime da exoneração do
passivo restante não respeita à matéria da al. a) do nº 1 do art. 165 do CRP que
se reporta ao estado e capacidade civil das pessoas.
Não faz, por conseguinte, parte da reserva da Assembleia da República
relativamente a esta matéria.
Improcede, assim, a questão da inconstitucionalidade orgânica.
Da inconstitucionalidade material:
O Juiz a quo indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo com
fundamento no disposto no art. 238, nº 1, al. d) do C.I.R.E.
Nos termos do preceito em causa “o pedido de exoneração é liminarmente
indeferido se: d) o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à
insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa
apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência,
com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo
ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da
sua situação económica.”
Entendeu o Mmº Juiz que, não estando obrigados a apresentarem-se à insolvência
(art. 18, nº 2 do C.I.R.E.), a devedora se absteve dessa apresentação nos seis
meses posteriores à verificação da situação de insolvência, com prejuízo para os
credores.
Entende a recorrente que a interpretação que o Sr. Juiz extrai da 2ª parte da
al. d) do nº 1 do art. 238 do CIRE, no sentido de considerar que o contínuo
vencimento de juros moratórios das obrigações vencidas e incumpridas causa o
aumento do passivo do insolvente, o que consubstancia um prejuízo para os
credores, é inconstitucional na medida em que esvazia a norma de sentido já que,
a assim ser, o atraso na apresentação à insolvência sempre implicaria um
contínuo vencimento de juros e sempre se mostraria verificado o requisito
negativo da al. d) do n.º 1 do art. 238º do CIRE, com o consequente
indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo.
Entende, assim, que a interpretação extraída pelo Tribunal obsta ao exercício de
um direito conferido por lei e, nessa medida, é inconstitucional.
Porém, o aumento do passivo pode causar prejuízo para os credores.
Na verdade, as obrigações dos insolventes vencem juros (cuja contagem, aliás,
não cessa com a declaração de insolvência).
E os juros implicam o aumento do passivo.
A abstenção na apresentação à insolvência nos seis meses subsequentes à
verificação da situação de insolvência implica, portanto, o aumento do passivo.
Mas implica também, e ao mesmo tempo, o atraso na liquidação do património.
Assim, e como é apodíctico, quanto mais tarde os credores receberem o produto da
liquidação do património (pressupondo que este exista e se mantenha inalterado)
menos recebem.
Não se acompanha, portanto, o raciocínio do Juiz a quo quando apenas faz
relacionar a existência de prejuízo com o aumento do passivo.
Fica, assim, prejudicada, nesta medida, a arguição da inconstitucionalidade.
Quanto ao mais, entende-se que o art. 238, nº 1, al. d) do CIRE, na
interpretação que aqui se acolhe, não fere os princípios da legalidade, da
igualdade ou da garantia da efectivação dos direitos fundamentais.
Mas a recorrente considera, ainda, materialmente inconstitucional, por violação
dos referidos princípios constitucionais, a interpretação feita pelo tribunal do
disposto na 2ª parte da al. d) do n.º 1 do art. 238º do CIRE no sentido de que
aos devedores é exigível que não ignorem a inexistência de qualquer perspectiva
séria de melhorar de tal forma a sua situação económica que lhe permita
amortizar, ainda que lenta e fraccionadamente, a dívida do requerente da
insolvência e as outras demais reclamadas.
Atenta a filosofia do CIRE, parece que o sentido do art. 238, nº 1, al. d) do
CIRE terá sido o de não conceder ao requerente o beneficio da exoneração se ele
se tiver abstido da apresentação à insolvência nos seis meses seguintes à
verificação dessa situação, sabendo (ou não podendo ignorar sem culpa grave) que
não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica,
que lhe permitisse, de alguma forma, fazer reverter a situação de insolvência,
solvendo as suas dívidas.
Sucede, no entanto, que, nos termos do art. 9, nº 2 do Código Civil “não pode,
porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na
letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente
expresso”.
Pelo que, se o pensamento legislativo foi o que se referiu, então o legislador
não o terá exprimido de forma clara na letra da lei.
Não se acompanha, assim, a interpretação do juiz a quo, não se vendo, no
entanto, como ela podia por em causa os princípios da legalidade, da igualdade
ou da garantia da efectivação dos direitos fundamentais.
De todo o modo, fica prejudicada a arguição da inconstitucionalidade material.
Da não verificação dos requisitos previstos na al. d) do nº 1 do art. 238:
1º: Da não apresentação da requerida nos seis meses seguintes à verificação da
situação de insolvência:
A recorrente alega que não se apurou com certeza se o crédito do requerente,
cerca de 93.000 €, podia, ou não, ser pago pela recorrente.
Trata-se, no entanto, de conclusão que não sintetiza qualquer alegação.
De qualquer maneira, sempre se dirá que, face à matéria apurada nos autos
(dívida confessada e execução) e referenciada na sentença não pode deixar de
concluir-se (presumir-se), como se faz na sentença, que o património da devedora
era insuficiente para pagar o crédito do requerente.
Argumenta a recorrente que apenas teve conhecimento da sua dívida com a citação
para estes autos.
Escora-se, para tanto, na matéria alegada no seu requerimento de exoneração, a
qual não se mostra, como se viu provada.
Nem carece de prova.
É que contra a requerida foi instaurada execução pela dívida do requerente da
insolvência.
Assim, podia o Sr. Juiz presumir, como presumiu, que a insolvente constatou o
seu estado de insolvência em 26.1.2006, com base na execução que contra ela foi
instaurada.
Alega a recorrente que o seu tio se comprometeu a regularizar a dívida ou
prometeu resolvê-la.
Porém, nunca tal circunstância a podia exonerar da sua responsabilidade perante
o credor (cfr., v.g., art. 595 do CC).
E se antes a recorrente podia desconhecer a dívida, depois da execução
apercebeu-se necessariamente da sua existência (e da falta de regularização dela
pelo tio até à data) e da sua impossibilidade de a satisfazer.
Pelo menos a partir dessa data tomou consciência de que era responsável por uma
dívida e que não tinha meios para a pagar, mesmo que pudesse continuar a
alimentar expectativas que o seu tio regularizasse a dívida.
Como assim, não podia o Sr. Juiz deixar de concluir que a devedora não se
apresentou (à insolvência) nos seis meses subsequentes à verificação da situação
de insolência em 26.1.2006.
2º: Prejuízo para os credores:
Terá no entanto da abstenção da apresentação da devedora à insolvência resultado
prejuízo para os credores?
Como vimos, o Sr. Juiz entendeu que sim.
Considera a recorrente que não, uma vez que nunca teve património e, como não o
teve nem tem da sua não apresentação à insolvência não resultou prejuízo para os
credores.
É certo que não foram apreendidos bens à insolvente.
Pelo que, aparentemente, do atraso na apresentação não terá resultado prejuízo
acrescido para os credores, que não teriam, assim, quaisquer hipóteses de
receberem os seus créditos.
Sucede, no entanto, que a insolvente passou a receber, pelo menos, a partir de
Novembro de 2006 e até Junho de 2007, uma média de € 1500 mensais pelos serviços
que prestou como formadora, como alega no art. 55 do seu requerimento e comprova
pelos documentos de fls. 81 a 99.
Ora, se assim foi, como se admite que foi, ao não apresentar-se a insolvência,
como estava obrigada, causou prejuízo aos credores, que assim se viram privados
de poder receber parte desses rendimentos, a integrar na massa insolvente (art.
14º do CIRE)
Improcede, também, a questão da alegada inexistência de prejuízo para os
credores.
3º: “e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer
perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”:
Arredou-se acima a necessidade da devedora perspectivar uma melhoria da situação
económica “que lhe permitisse amortizar, ainda que lenta e fraccionadamente, a
dívida do Requerente da insolvência e as outras demais reclamadas.”
Cremos, no entanto, que a lei não se reporta a uma melhoria da situação
económica transitória, precária ou efémera.
Para tal aponta desde logo a letra da lei, que exige uma perspectiva” séria”,
induzindo a ideia de uma melhoria consistente e regular.
Por outro lado, o espírito da lei, de que acima se falou, aponta para que a
melhoria que se perspectiva tenha um carácter de estabilidade e de alguma
permanência. E assim se uma interpretação declarativa não for suficiente, sempre
se justificará uma interpretação extensiva em tal sentido.
O que importa averiguar é, portanto, se de Julho de 2006 em diante a devedora
sabia (ou não podia ignorar) que não existia perspectiva séria de melhoria da
sua situação económica.
E, implicitamente, averiguar se não existiram perspectivas sérias de melhoria da
situação económica de devedora.
No seu requerimento de exoneração, de 4 de Julho de 2007, a devedora alegou que
conseguiu melhorar a sua situação económica, já que no início do ano de 2006,
encontrando-se em situação de desemprego, decidiu frequentar o Curso de Formação
pedagógica de Formadores, obtendo, dessa forma, qualificação para leccionar
cursos de formação; que se encontrava a dar formação no curso de logística e
armazenagem na Escola Profissional … (…), sita na freguesia de Pedome, do
concelho de Vila Nova de Famalicão, e na Associação para o Desenvolvimento das
Comunidades Locais (ADCL), auferindo, em média, pela prestação desses serviços
1.500 € por mês.
Porém, o administrador da insolvência referiu, no seu relatório de Setembro de
2007, que a insolvente se encontrava desempregada, que não se encontrava a
realizar acções de formação, que as formações tinham carácter esporádico e muito
irregular, pelo que não era expectável que a devedora viesse a ter uma
remuneração certa e regular; que as formações tinham sido poucas, sendo de
prever que aumentassem com a implementação do Próximo Quadro Comunitário de
Apoio, no decorrer de 2008 mas que era muito difícil à insolvente a obtenção de
emprego que lhe permita gerar rendimentos suficientes para a sustentabilidade da
família e pagar os créditos.
Ouvida na assembleia, a ilustre mandatária da devedora referiu concordar na
íntegra com o relatório, relatório que, na parte que se salientou, o Sr. Juiz
integrou no seu despacho.
E que a recorrente continua a não pôr em causa no seu recurso.
Serve isto apenas para reforçar o carácter necessariamente esporádico e
irregular (facto aliás notório) das acções de formação, que não podiam nem podem
proporcionar à recorrente uma melhoria consistente e estável da sua situação
económica, o que ela não podia desconhecer, sem culpa grave.
Nessa medida, não tinha o Sr. Juiz de ouvir a prova oferecida, uma vez que
dispunha de elementos suficientes para o indeferimento liminar, com base no
disposto na alínea d) do art. 238 do CIRE.
Não havendo, ainda em concreto, qualquer violação do direito de defesa da
recorrente ou do princípio do inquisitório consagrado no art. 11 do CIRE.
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao agravo e
confirmar o despacho recorrido(...)”.
A requerida A. interpôs então recurso desta decisão para o Tribunal
Constitucional, alegadamente ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do
art. 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), nos termos que se passam a transcrever:
“(...) O presente recurso é motivado pela inconstitucionalidade da aplicação, ao
caso dos autos, da norma ínsita no art. 238º do CIRE numa dupla vertente:
a) Inconstitucionalidade orgânica
O CIRE foi aprovado na sequência do uso da autorização legislativa concedida
pela Lei n.º 39/2003, de 29 de Agosto.
Nos termos do disposto no artº 165º nº 1 al. a) e b) da Constituição é da
exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre o estado e a
capacidade das pessoas e direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, podendo
o Governo legislar em tal matéria desde que agindo a coberto de lei de
autorização legislativa que deve definir o objecto, o sentido, a extensão e a
duração da autorização (cfr. o nº 2 do mesmo artigo e 198º al. b) da
Constituição), sob pena de ser inconstitucional.
Na Lei de Autorização Legislativa, mormente no seu artigo 8º, que a este aspecto
diz respeito, não consta qualquer referência que permita sustentar a actuação do
Governo ao afastar a aplicação do regime de exoneração do passivo restante
quando se verifiquem algumas das condições previstas no art. 238º do Decreto-Lei
n.º 53/2004 de 18 de Março (CIRE).
Muito embora o Governo tenha feito constar do art. 238º do CIRE os requisitos
concretos e determinados de que depende a concessão da exoneração do passivo
restante, a Lei de Autorização não autorizou o Governos a definir tais
requisitos.
Interpretando-se o disposto no art. 238º do CIRE no sentido de afastar
totalmente o deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo quando se
verificar algumas das situações previstas nessa disposição, está-se a ir para
além da autorização legislativa concedida e, nessa medida, tal interpretação é
organicamente inconstitucional por violação da norma do artº 165º nº 1 al. a) e
b) e nº 2 da Constituição.
b) Inconstitucionalidade material
A aplicação do art. 238º do CIRE no sentido de:
– considerar que o contínuo vencimento de juros moratórios das obrigações
vencidas e incumpridas causa o aumento do passivo do insolvente, o que
consubstancia um prejuízo para os credores, e
– que à devedora era exigível não ignorar a inexistência de qualquer perspectiva
séria de melhorar de tal forma a sua situação económica que lhe permita
amortizar, ainda que lenta e fraccionadamente, a dívida do Requerente da
insolvência e as outras demais reclamadas,
Não se funda na lei e, nessa medida, é inconstitucional por violação do
princípio da legalidade, da igualdade e da garantia de efectivação dos direitos
fundamentais, designadamente da igualdade perante a lei e do acesso ao direito e
aos Tribunais (cfr. art. 2º, art. 3º, art. 13º e art. 20º n.º 1, 4 e 5 da
Constituição da República Portuguesa).
Por outro lado, a aplicação da norma do art. 238º do CIRE no sobredito sentido
obsta ao exercício de um direito conferido por lei e, nessa medida, por violação
do disposto no n.º 1 do art. 20º da CRP é inconstitucional (...)”.
A recorrente apresentou alegações, tendo concluído nos seguintes termos:
“Questão prévia
1ª - A interpretação atribuída à norma ínsita na al. d) do n.º 1 do art. 238º do
CIRE constitui efectivamente a “ratio decidendi”, porquanto as decisões
recorridas fizeram dela efectiva aplicação.
2ª - A norma prevista na al. d) do n.º 1 do art. 238º do CIRE serviu de
fundamento final da decisão, tendo as interpretações feitas de dois dos três
requisitos aí previstos servido de fundamento à decisão de indeferimento liminar
do pedido de exoneração do passivo.
3ª - No que ao segundo requisito diz respeito (i.é., o devedor que não se tenha
apresentado à insolvência no prazo de seis meses a contar da verificação da
situação da insolvência tenha prejudicado os seus credores), o Tribunal de 1ª
Instância entendeu que: “No caso vertente, a não apresentação da Devedora à
insolvência causou o aumento do seu passivo, designadamente através do contínuo
vencimento de juros moratórios das obrigações vencidas e incumpridas (...) com
evidente prejuízo para os credores, dada a ausência de um património capaz de
responder pela totalidade dos montantes em dívida. (...).”, entendimento ao
qual o Tribunal da Relação aderiu.
4ª - No que diz respeito à interpretação atribuída ao terceiro dos requisitos
previstos na al. d) do n.º 1 do art. 238º do CIRE (conhecimento, por parte da
insolvente, da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua
situação económica), o Tribunal de 1ª Instância considerou que: “Desta forma,
cremos, sem prejuízo de diferente entendimento, que, ao não se apresentar à
insolvência depois de 26 de Janeiro de 2006, num momento em que se encontrava
desempregada, a Requerida não podia ignorar a inexistência de qualquer
perspectiva séria de melhorar de tal forma a sua situação económica que lhe
permitisse amortizar, ainda que lenta e fraccionadamente, a dívida do Requerente
da insolvência e as outras demais reclamadas.(...)”, sendo que no mesmo sentido
o Tribunal da Relação, entendeu que: “Atenta a filosofia do CIRE, parece que o
sentido do art. 238º, n.º 1, al. d) do CIRE terá sido o de não conceder ao
requerente o benefício da exoneração se ele se tiver abstido da apresentação à
insolvência nos seis meses seguintes à verificação dessa situação, sabendo (ou
não podendo ignorar sem culpa grave) que não existia qualquer perspectiva séria
de melhoria da sua situação económica, que lhe permitisse, de alguma forma,
fazer reverter a situação de insolvência, solvendo as suas dívidas. (...) -
negritas e sublinhado nosso.
5ª - Quer o Tribunal de 1ª Instância, quer o Tribunal da Relação interpretaram o
referido requisito no sentido de que o mesmo exige à insolvente a obrigação de
não ignorar a inexistência de qualquer perspectiva séria de melhorar, de tal
forma, a sua situação económica que lhe permita solver as suas dívidas.
6ª - A verdade é que a sobredita interpretação da lei foi fundamental e decisiva
para que, quer o Tribunal de 1ª Instância, quer o Tribunal da Relação, tenham
vindo a considerar verificado o sobredito requisito e, a final, a não conceder à
insolvente, aqui recorrente, a exoneração do seu passivo, porquanto ao
tratarem-se de requisitos cumulativos a inverificação de apenas um deles teria
como consequência a procedência do pedido de exoneração do passivo deduzido pela
recorrente.
7ª - Não fosse a interpretação da lei no sobredito sentido - i.é., necessidade
da melhoria da situação económica ser de molde a solver as dívidas da insolvente
- a decisão da contenda seria obrigatoriamente diversa.
Inconstitucionalidade orgânica do art. 238º do CIRE
8ª - O art. 238º do CIRE elenca os fundamentos adjectivos (alínea a)) e
substantivos (alíneas b) a g)) que determinam o indeferimento liminar do pedido
de exoneração do passivo restante.
9ª - Constam desses requisitos, para além do pressuposto processual do
cumprimento do prazo do pedido, comportamentos do devedor que justificam a não
concessão da exoneração do passivo e que consubstanciam verdadeiros pressupostos
substantivos.
10ª - A imposição destes requisitos concretos e determinados é organicamente
inconstitucional, na medida em que violam a lei de autorização legislativa,
porquanto desrespeitam e excedem o seu objecto, devendo, em consequência, o
tribunal desaplicar essa norma, nos termos do disposto no artº 204º da
Constituição.
11ª - Na Lei de Autorização Legislativa, mormente no seu artigo 8º, não consta
qualquer referência que permita sustentar a actuação do Governo ao afastar a
aplicação do regime de exoneração do passivo restante quando se verifiquem
algumas das condições previstas no art. 238º do Decreto-Lei n.º 53/2004 de 18 de
Março.
12ª - Em momento algum, nessa Lei de Autorização, se refere que fica o Governo
autorizado a definir os requisitos substantivos exigidos ao devedor e da
conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar que justifique a aplicação
da exoneração do passivo restante.
13ª - Ainda que se entenda que a Lei de Autorização Legislativa não inibe o
Governo de enunciar conteúdos concretizadores e integrativos da regulação já
configurada, nos seus traços fundamentais, sempre se dirá que tal poder
legiferante encontra-se limitado ao regime substantivo fixado na lei de
autorização, devendo este manter-se intocável, sendo que, in casu, o Governo ao
criar exigências de carácter substantivo, como fez na al. d) do n.º 1 do art.
238º do CIRE, não manteve intocado o regime substantivo fixado na lei de
autorização, porquanto não se conteve a adicionar-lhe uma norma de cunho
processual, que em nada contende com aquele regime substantivo.
14ª - Ponderado o texto do art. 8º da Lei de Autorização constata-se que a
Assembleia da República concedeu ao Governo autorização para estabelecer um
regime de exoneração do passivo, tendo expressamente determinado que a
exoneração depende de pedido expresso, não fazendo depender tal pedido quaisquer
condições ou requisitos substantivos exigidos ao insolvente.
15ª - Em contraponto, já quanto aos deveres a que o insolvente fica sujeito
durante o período da cessão, a Assembleia da República expô-los minuciosamente,
prevendo inclusivamente a cessação antecipada do procedimento em caso de
incumprimento.
16ª - Da diferença de tratamento dado pela Assembleia da República quanto ao
pedido de exoneração e quanto aos deveres a que o insolvente fica sujeito
durante o período da cessão, resulta evidente que o objecto, sentido e extensão
da autorização concedida num e noutro caso é bem diferente.
17ª - A Assembleia da República não concedeu ao Governo autorização para
sujeitar tal pedido a determinadas condições e requisitos comportamentais da
insolvente.
18ª - Para além de ter manifestamente excedido a autorização legislativa, o
Governo criou norma flagrantemente inconstitucional.
19ª - Entre os requisitos previstos no art. 238º do CIRE, encontra-se na al. d)
do n.º 1 desse artigo que o insolvente “sabendo, ou não podendo ignorar sem
culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação
económica”.
20ª - O juízo de valor quanto à existência de culpa no desconhecimento de
perspectiva séria de melhoria da situação económica tem de ser aferido
obrigatoriamente mediante produção de prova, porquanto, tratando-se de factos
subjectivos cuja ocorrência a lei não presume, a verificação da culpa depende
obrigatoriamente de prova.
21ª - Contudo, a lei prevê, no n.º 2 do citado artigo 238º do CIRE, apenas
concede aos credores o direito ao exercício do contraditório, após o que o Juiz
profere despacho inicial ou de indeferimento liminar, sem que esteja prevista a
averiguação da existência de culpa no desconhecimento da existência de
perspectiva séria de melhoria da situação económica.
22ª - Tal orientação, nem mesmo genérica, não foi concedida pela lei de
Autorização Legislativa, pelo que a norma autorizada ofende os limites materiais
decorrentes da lei de autorização, tendo criado norma que viola o direito a um
processo equitativo (cfr. n.º 4 do art. 20º da Constituição), isto é, impede que
as partes, para além de terem a possibilidade de apresentar as suas razões de
facto e de direito, possam igualmente oferecer as suas provas e controlar as
provas do adversário.
23ª - Face à constatada violação da CRP, por inconstitucionalidade orgânica de
que padece a norma do art. 238º do DL n.º 53/2004, de 18 de Março, por violação
do artº 165º nº1 al. a) e b) e nº2 da Constituição, bem como por a sua redacção
violar princípios constitucionais como a do acesso ao direito e da
proporcionalidade está o Tribunal impedido de a aplicar na parte em que
condiciona a aplicação do regime da exoneração do passivo restante à não
verificação das condições previstas no art. 238º do CIRE, nos termos do disposto
no artº 204º da Constituição.
Inconstitucionalidade material da interpretação extraída da norma ínsita na 2ª
parte da al.) do n.º 1 do art. 238º do CIRE
24ª - A lei prevê, como causa de indeferimento liminar do pedido de exoneração
do passivo restante, requisitos negativos e cumulativos.
25ª - Os Tribunais recorridos interpretaram a lei no sentido de que:
- a falta de apresentação à insolvência dentro dos seis meses após a verificação
da situação de insolvência causa o aumento do passivo do insolvente, na medida
em que se verifica o contínuo vencimento de juros moratórios das obrigações
vencidas e incumpridas, e que
- a recorrente não podia ignorar a inexistência de qualquer perspectiva séria de
melhorar de tal forma a sua situação económica que lhe permitisse amortizar,
ainda que lenta e fraccionadamente, a dívida do Requerente da insolvência e as
outras demais reclamadas, isto é, solver as dívidas da insolvente.
26ª - Tal interpretação extraída das citadas normas não se funda na lei e, nessa
medida, é inconstitucional por violação do princípio da legalidade, da igualdade
e da garantia de efectivação dos direitos fundamentais.
27ª - A interpretação que se extraia da 2ª parte da al. d) do n.º 1 do art. 238º
do CIRE no sentido de considerar que o contínuo vencimento de juros moratórios
das obrigações vencidas e incumpridas causa o aumento do passivo do insolvente,
o que consubstancia um prejuízo para os credores, é inconstitucional, na medida
em que esvazia a norma prevista no citado artigo de qualquer sentido, já que, a
assim ser, o atraso na apresentação à insolvência sempre implicaria um contínuo
vencimento de juros e sempre se mostraria verificada o requisito negativo da al.
d) do n.º 1 do art. 238º do CIRE e, consequentemente, com o consequente
indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo.
28ª - A interpretação extraída da lei extravasa a sua interpretação literal,
fazendo da mesma uma interpretação que vai para além do seu elemento literal
(art. 9º do Código Civil), interpretação essa que viola o princípio do acesso a
uma justiça equitativa.
29ª - A admitir-se uma interpretação da lei efectuada nos moldes aludidos,
fundada numa interpretação extensiva para além da letra da lei, conduz a
inevitáveis situações de desigualdade, porquanto a mesma sempre dependerá da
interpretação efectuada da lei pelo julgador do caso, violando-se, dessa forma,
o princípio constitucional da igualdade perante a lei e do acesso ao direito e
aos Tribunais.
30ª - Os Tribunais recorridos interpretaram o disposto na 2ª parte da al. d) do
n.º 1 do art. 238º do CIRE no sentido que aos devedores é exigível que não
ignorem a inexistência de qualquer perspectiva séria de melhorar de tal forma a
sua situação económica que lhe permita amortizar, ainda que lenta e
fraccionadamente, a dívida do Requerente da insolvência e as outras demais
reclamadas, ou seja, a solver as dívidas da insolvente.
31ª - A sobredita interpretação é também ela ilegal, na medida em que excede
manifestamente o previsto expressamente na lei, porquanto esta apenas exige que
os devedores não ignorem a inexistência de qualquer perspectiva séria de
melhorar a sua situação económica.
32ª - A interpretação extraída pelos Tribunais recorridos dos requisitos
negativos previstos na 2ª parte da al. d) do n.º 1 do art. 238º do CIRE é
inconstitucional, por violação do princípio da legalidade, da igualdade e da
garantia de efectivação dos direitos fundamentais, designadamente da igualdade
perante a lei e do acesso ao direito e aos Tribunais (cfr. art. 2º, art. 3º,
art. 13º e art. 20º da Constituição da República Portuguesa).a aplicação da
norma do art. 238º do CIRE no sobredito sentido obsta ao exercício de um direito
conferido por lei e, nessa medida, por violação do disposto no n.º 1 do art. 20º
da CRP é inconstitucional (...)”.
Não foram apresentadas contra-alegações
*
Fundamentação
1. Da inadmissibilidade da ampliação do objecto de recurso
Da leitura das conclusões 18.ª a 23.ª das alegações do recurso de
constitucionalidade apresentadas pela Recorrente resulta que esta passou também
a sustentar a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 2, do art. 238.º,
do CIRE, por violação do direito fundamental a um processo equitativo consagrado
no n.º 4, do art. 20.º, da C.R.P..
A norma infraconstitucional em questão respeita ao despacho inicial que indefere
liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelo devedor
e dispõe que “o despacho de indeferimento liminar é proferido após a audição dos
credores e do administrador da insolvência na assembleia de apreciação do
relatório, excepto se este for apresentado fora do prazo ou constar já dos autos
documento autêntico comprovativo de algum dos factos referidos no número
anterior”.
Concretamente, a Recorrente entende que a consideração judicial das
circunstâncias de facto previstas na alínea d), do n.º 1, do art. 238.º do CIRE,
para efeito de indeferimento liminar do pedido de exoneração, pressupõe
necessariamente a respectiva prova, mas que a actividade probatória permitida a
esse respeito pelo n.º 2 do referido normativo é muito limitada, na medida em
que “impede que as partes, para além de terem a possibilidade de apresentar as
suas razões de facto e de direito, possam igualmente oferecer as suas provas e
controlar as provas do adversário”.
Esta questão de constitucionalidade não foi oportunamente identificada no
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, tendo
sido apenas suscitada, pela primeira vez, nas próprias alegações de recurso
posteriormente apresentadas.
Sendo o requerimento de interposição de recurso o acto idóneo para fixar o
objecto deste, não podem as posteriores alegações ser utilizadas para o ampliar,
pelo que não pode ser conhecida esta questão de constitucionalidade, apenas
suscitada em fase de alegações de recurso.
2. Do não conhecimento do recurso, tendo por objecto as alegadas interpretações
da alínea d), do n.º 1, do artigo 238.º, do CIRE
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência
atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já
não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões
judiciais, em si mesmas consideradas.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da alínea b),
do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua
admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de
inconstitucionalidade haver sido suscitada durante o processo, de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (n.º 2, do artigo
72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio
decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente.
Conforme resulta da leitura do requerimento de interposição de recurso, a
Recorrente pretende a intervenção do Tribunal Constitucional, porque entende que
a decisão recorrida seguiu interpretações da norma contida na alínea d), do n.º
1, do artigo 238.º, do CIRE, que enfermam de inconstitucionalidade.
Preceitua o texto do referido preceito que “o pedido de exoneração é
liminarmente indeferido (...) se o devedor tiver incumprido o dever de
apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver
abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de
insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou
não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de
melhoria da sua situação económica”.
No essencial, a Recorrente entende que o tribunal a quo interpretou o segmento
da referida norma na parte respeitante ao pressuposto negativo de abstenção de
apresentação do devedor à insolvência em prejuízo dos credores, bem como na
parte respeitante ao pressuposto igualmente negativo de inexistência de
perspectiva séria de melhoria da situação económica do devedor, em termos tais
que violam a Constituição.
Concretamente, a Recorrente considera que a referida norma foi aplicada pelo
Tribunal da Relação de Guimarães com a interpretação segundo a qual:
- “se considera que o contínuo vencimento de juros moratórios das obrigações
vencidas e incumpridas causa o aumento do passivo do insolvente, o que
consubstancia um prejuízo para os credores”;
- e que “à devedora era exigível não ignorar a inexistência de qualquer
perspectiva séria de melhorar de tal forma a sua situação económica que lhe
permita amortizar, ainda que lenta e fraccionadamente, a dívida do Requerente da
insolvência e as outras demais reclamadas”.
Note-se que estas questões dizem respeito a interpretações da parte final da
alínea d), do n,º 1, do artigo 238.º, do CIRE, segundo a qual o pedido de
exoneração deve ser liminarmente indeferido se o devedor tiver incumprido o
dever de apresentação à insolvência, ou, não estando obrigado a se apresentar,
se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da
situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e
sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer
perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Assim colocadas aquelas questões de constitucionalidade a resolver e uma vez
analisada a fundamentação da decisão do Tribunal da Relação de Guimarães acima
transcrita, não se pode deixar de entender que o recurso interposto nesta parte
tem por objecto interpretações normativas que não foram efectivamente aplicadas
como ratio decidendi na referida decisão recorrida.
Na verdade, e diversamente do decidido na primeira instância, o Tribunal da
Relação de Guimarães, entendeu que o prejuízo dos credores aumenta de forma
relevante para efeito de denegação do benefício da exoneração do passivo
restante sempre que o devedor frustre, em concreto, a liquidação de qualquer
parcela do seu património em favor dos credores, o que sucede se não se
apresentar atempadamente à falência, e não devido apenas ao contínuo vencimento
dos juros moratórios das suas dívidas.
O Tribunal da Relação de Guimarães também não entendeu que era exigível ao
devedor não ignorar a inexistência de qualquer perspectiva séria de melhorar de
tal forma a sua situação económica que lhe permita amortizar, ainda que lenta e
fraccionadamente, a dívida do Requerente da insolvência e as outras demais
reclamadas, como sustenta o recorrente, mas sim que a falta de apresentação à
falência obstava à admissão do pedido de exoneração, se não existissem na altura
perspectivas de melhoria consistente e regular da situação económica do devedor
e este tivesse a obrigação de conhecer tal ausência de perspectivas.
Assim sendo, verifica-se que não constituindo as interpretações do artigo 238.º,
n.º 1, d), do CIRE, arguidas de inconstitucionais, ratio decidendi do acórdão
recorrido, não pode o recurso ser conhecido nesta parte, por ausência deste
pressuposto processual.
2. Da inconstitucionalidade orgânica do artigo 238.º, n.º 1, d), do Código da
Insolvência e da Recuperação de Empresas
A Recorrente entende que as normas contidas nas alíneas a) a g), do n.º 1, do
artigo 238.º, do CIRE, aprovado pelo Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março,
são organicamente inconstitucionais por violação do disposto nas alíneas a) e
b), do n.º 1, do artigo 165.º, da C.R.P., na medida em que não foi respeitada a
autorização legislativa constante da Lei n.º 39/2003, de 22 de Agosto.
O artigo 235.º, do CIRE, veio consagrar a possibilidade de liberação definitiva
do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de
insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições
fixadas no incidente de “exoneração do passivo restante”.
O art. 238.º do mesmo diploma legal veio estabelecer, no seu n.º 1, em
sucessivas alíneas, os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do
pedido de exoneração do passivo restante, apresentando a seguinte redacção:
Artigo 238.º
Indeferimento liminar
1 — O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
a) For apresentado fora de prazo;
b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três
anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas
ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de
crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a
instituições dessa natureza;
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos
anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não
estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis
meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em
qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa
grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação
económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão,
pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com
toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento
da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum
dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10
anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da
insolvência ou posteriormente a esta data;
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação,
apresentação e colaboração que para ele resultam do presente.
No caso concreto, atenta a instrumentalidade do recurso de constitucionalidade,
está apenas em causa a aplicação do requisito negativo constante da alínea d),
do n.º 1, do artigo 238.º, do CIRE.
A Lei n.º 39/2003, de 22 de Agosto, autorizou o Governo a aprovar um novo código
da insolvência e da recuperação de empresas – o que veio a acontecer com a
aprovação do CIRE pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março – nos seguintes
termos:
Artigo 1.º
Objecto
1 — Fica o Governo autorizado a aprovar o Código da Insolvência e Recuperação de
Empresas, revogando o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e
de Falência.
2 — O Código da Insolvência e Recuperação de Empresas regulará um processo de
execução universal que terá como finalidade a liquidação do património de
devedores insolventes e a repartição do produto obtido pelos credores ou a
satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência que,
nomeadamente, se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa
insolvente.
3 — No Código da Insolvência e Recuperação de Empresas fica o Governo autorizado
a legislar sobre as seguintes matérias:
a) As consequências decorrentes do processo especial de insolvência para o
Estado e a capacidade do insolvente ou seus administradores;
b) Os efeitos da declaração de insolvência no prazo de prescrição do
procedimento criminal, assim como a obrigatoriedade de notificação ao tribunal
da insolvência de determinadas decisões tomadas em processo penal;
c) Os tribunais competentes;
d) As competências do juiz no processo especial de insolvência;
e) As competências do Ministério Público no processo especial de insolvência;
f) O regime de recursos das decisões proferidas no processo especial de
insolvência;
g) O regime de exoneração do passivo das pessoas singulares declaradas
insolventes;
h) Os benefícios fiscais no âmbito do processo de insolvência.
(...)
5 — O sentido e a extensão das alterações a introduzir resultam dos artigos
subsequentes.
(...)
Artigo 8.º
Exoneração do passivo de pessoas singulares
1 — Fica o Governo autorizado a estabelecer um regime de exoneração do passivo
das pessoas singulares declaradas insolventes, nos seguintes termos:
a) A exoneração dependerá de pedido expresso do insolvente e implicará a cessão
aos credores, através de um fiduciário, durante os cinco anos subsequentes ao
encerramento do processo de insolvência, do rendimento disponível do insolvente;
b) Durante o período referido na alínea anterior, o insolvente ficará sujeito a
um conjunto de deveres destinados a assegurar a efectiva obtenção de
rendimentos para cessão aos credores, designadamente as obrigações de exercer
uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, de procurar
diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando
desrazoavelmente algum emprego para que seja apto, bem como de informar o
tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de
emprego e ainda sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
c) Caso o devedor incumpra, dolosamente ou com negligência grave, os deveres
estabelecidos para o período de cessão, o juiz poderá declarar a cessação
antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
(...)
Para a decisão do presente recurso revela-se necessário aprofundar a análise
sistemática do instituto jurídico em apreço, pelo que importa precisar o que
está efectivamente em causa no incidente de exoneração do passivo restante.
O incidente de exoneração do passivo restante é uma solução que não tem
correspondência na legislação falimentar anterior e que se inspirou no chamado
modelo de fresh start, nos termos do qual o devedor pessoa singular tem a
possibilidade de se libertar do peso do passivo e recomeçar a sua vida económica
de novo, não obstante ter sido declarado insolvente (vide preâmbulo do DL
53/2004, de 18 de Março).
Efectivamente, não fora a situação de insolvência e o devedor teria de pagar a
totalidade das suas dívidas sem prejuízo da eventual prescrição, a qual pode
atingir o prazo de 20 anos segundo a lei civil portuguesa (vide, ASSUNÇÃO
CRISTAS, em “Exoneração do devedor pelo passivo restante”, in Themis – Revista
da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edição especial, pp. 166-167).
O revogado Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de
Falência (CPEREF), aprovado pelo Decreto-lei n.º 132/98, de 23 de Abril, já
conhecia as soluções da cessação dos efeitos da falência em relação ao falido
(artigo 238.º) e da reabilitação do falido (artigo 239.º), as quais já permitiam
atenuar a severidade dos efeitos da falência em relação ao falido, tendo em
vista a reinserção social deste (vide MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, em “Os efeitos
substantivos da falência”, pág. 163-182, da ed. de 2000, das Publicações
Universidade Católica,).
O CIRE veio introduzir uma nova medida de protecção do devedor que seja uma
pessoa singular, ao permitir que, caso este não satisfaça integralmente os
créditos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu
encerramento, venha a ser exonerado do pagamento desses mesmos créditos, desde
que satisfaça as condições fixadas no incidente destinadas a assegurar a
efectiva obtenção de rendimentos para cessão aos credores.
O procedimento em questão tem dois momentos fundamentais: o despacho inicial e o
despacho de exoneração. A liberação definitiva do devedor quanto ao passivo
restante não é concedida – nem podia ser – logo no início do procedimento,
quando é proferido o despacho inicial a que alude o n.º 1, do art. 239.º, do
CIRE, estando, aliás, ainda longe o encerramento do processo de insolvência.
Apenas se trata aqui de “aferir o preenchimento de requisitos, substantivos, que
se destinam a perceber se o devedor merece que uma nova oportunidade lhe seja
dada. Ainda não é a oportunidade de iniciar a vida de novo, liberado de dívidas,
mas a oportunidade de se submeter a um período probatório que, no final, pode
resultar num desfecho que lhe seja favorável” (vide ASSUNÇÃO CRISTAS, na ob.
cit., pp. 169-170).
No fundo, o despacho inicial em questão só “promete” conceder a exoneração
efectiva do passivo restante, se o devedor ao longo de cinco anos, observar
certo comportamento que lhe é imposto no despacho liminar nos termos legais. A
liberação definitiva do devedor quanto ao passivo restante apenas é concedida
pelo despacho regulado no artigo 244.º, do CIRE, após ter decorrido o período
de cinco anos sobre o encerramento do processo de insolvência e se, entretanto,
não tiver havido fundamento para a cessação antecipada do procedimento de
exoneração, nos termos do artigo 243.º, do CIRE.
Neste contexto, o CIRE veio estabelecer fundamentos que justificam a não
concessão da exoneração do passivo restante, os quais se traduzem em
comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela
contribuíram ou a agravaram (vide LUÍS CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, em
“Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, pág. 188-190, da
ed. de 2005, da Quid Juris ?).
De acordo com o regime consagrado no CIRE, esses fundamentos – que justificam a
não concessão da exoneração do passivo restante – operam ou podem operar em
vários momentos do procedimento de exoneração:
- Para efeito de indeferimento liminar do pedido de exoneração (artigo 238.º,
n.º 1, al. d);
- Para efeito de cessação antecipada do procedimento de exoneração (artigo
243.º, n.º 1, al. b);
- Para efeito de recusa da exoneração (artigo 244.º, n.º 2);
- Para efeito de revogação da exoneração (artigo 246.º, n.º 1).
Interessa aqui apenas aferir da validade da solução legislada pelo Governo em
sede de apreciação inicial do pedido de exoneração.
O CIRE consagrou a possibilidade de indeferimento liminar do pedido de
exoneração do passivo restante, nomeadamente quando “o devedor tiver incumprido
o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar,
se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da
situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e
sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer
perspectiva séria de melhoria da sua situação económica” (alínea d), do n.º 1,
do artigo 238.º, do CIRE).
A recorrente defende que esta norma desrespeita a autorização legislativa
constante da Lei n.º 39/2003, de 22 de Agosto.
Antes de se analisar a pertinência deste argumento cumpre verificar se o Governo
necessitava de autorização da Assembleia da República para emitir esta norma,
isto é se a mesma se insere no espaço de reserva relativa parlamentar.
Na verdade, conforme tem sido entendido pela jurisprudência constitucional, não
é a simples circunstância de um diploma emitido pelo Governo ter sido aprovado
ao abrigo de uma lei de autorização legislativa que demonstra que todo o seu
regime integra a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da
República.
Ora, a matéria respeitante à liberação do devedor quanto ao passivo que não seja
integralmente pago no processo de insolvência não integra as matérias previstas
nas alíneas a) e b), do artigo 165.º, da C.R.P., ou mesmo qualquer outra deste
preceito constitucional. Efectivamente, é seguro que a matéria em questão,
considerando o quadro legal acima descrito, não respeita ao estado e capacidade
das pessoas (alínea a), do artigo 165.º, da C.R.P.), e muito menos se poderá
afirmar que a Constituição reconheça aos devedores o direito fundamental de
liberação quanto ao respectivo passivo quando sejam declarados insolventes
(alínea b) do artigo 165.º, da C.R.P.).
Está-se, afinal, num espaço de competência concorrencial da Assembleia da
República e do Governo, não necessitando este de qualquer autorização
parlamentar para regular tal matéria, ainda que esta tivesse sido concedida e a
legislação aprovada a tivesse invocado (vide GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, em
“Constituição da República Portuguesa Anotada”, pág. 677, da 3.ª ed., da Coimbra
Editora, e os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 65/2000, em “Acórdãos do
Tribunal Constitucional”, 46º vol., pág. 351, e n.º 583/2000, em “Acórdãos do
Tribunal Constitucional”, 48º vol., pág. 633).
Não necessitando o Governo de qualquer autorização da Assembleia Republica para
emitir a norma questionada, é desnecessário verificar se o seu conteúdo
respeitou a lei de autorização legislativa n.º 39/2003, de 22 de Agosto.
Assim sendo, importa concluir que a norma constante da alínea d), do n.º 1, do
artigo 238.º, do CIRE, não enferma de qualquer inconstitucionalidade orgânica,
por violação de lei de valor reforçado, pelo que o recurso deve nesta parte
improceder.
*
Decisão
Nestes termos:
a) não conhecer do recurso na parte respeitante às alegadas interpretações da
norma constante da alínea d), do n.º 1, do artigo 238.º, do Código da
Insolvência e Recuperação de Empresas;
b) não julgar organicamente inconstitucional a alínea d), do n.º 1, do artigo
238.º, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, por desrespeito da
autorização concedida pela Lei n.º 39/2003, de 22 de Agosto, negando-se
provimento ao recurso nesta parte.
*
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, do Decreto-lei n.º 303/98, de 7
de Outubro (artigo 6.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Lisboa, 7 de Outubro de 2008
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos