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Processo n.º 771/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A., L.da, notificada do despacho do Conselheiro
Relator do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 8 de Setembro de 2008, que –
com fundamento em não ter sido levantada pela recorrente a inconstitucionalidade
da norma do artigo 941.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) no decurso do
processo – não admitiu recurso por ela interposto para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), apresentou reclamação do mesmo
despacho, nos termos do n.º 4 do artigo 76.º da LTC, com os seguintes
fundamentos:
“1. A decisão de rejeição do recurso assenta na consideração de a
recorrente não ter suscitado a questão da inconstitucionalidade do n.º 1 do
artigo 941.º do Código de Processo Civil, no decurso do processo.
2. Falece, porém, razão à decisão assim tomada.
3. Ora, aquando da notificação do acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, a ora reclamante, na parte que ora revela, foi confrontada, pela
primeira vez, com a interpretação que o referido acórdão fez do n.º 1 do artigo
941.º do CPC, que entendeu que a forma de materializar e de tornar efectiva a
prestação de facto negativo, nos autos de execução que deram origem ao recurso,
passaria pela imposição de selos nas portas de acesso à fracção autónoma,
designada pela letra «F» do prédio n.º .., sito na Rua …, em Lisboa, onde se
encontra a clínica médico‑dentária a desinstalar.
4. Com efeito, não se conformando com tal entendimento, a reclamante
requereu a aclaração do sentido da fundamentação do referido acórdão,
invocando, para todos os efeitos legais, que tal decisão seria contrária à lei,
por violar direitos fundamentais da executada, designadamente, o direito de
propriedade da ora reclamante (artigo 62.º da CRP), uma vez que impediria até o
acesso à fracção de que a ora reclamante é proprietária, em virtude de não ser
legalmente permitido remover os referidos selos.
5. Acresce que, não obstante a referida invocação constituir a
invocação de inconstitucionalidade necessária para se interpor recurso para o
Tribunal Constitucional – uma vez que nada impede que a mesma seja feita num
requerimento de aclaração de um acórdão –, sempre se dirá que a interpretação
dada à norma pelo douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça foi de todo
imprevisível para a ora reclamante, tendo em conta que no decurso do processo
não foi decidido, por nenhuma das instâncias, que a forma de materializar e
tornar efectiva a prestação de facto negativo nos autos de execução passaria
pela imposição de selos nas portas de acesso à fracção autónoma.
6. Assim, tendo o douto acórdão interpretado de modo tão particular
e restritivo a norma constante no n.º 1 do artigo 941.º do CPC, não era
exigível à reclamante prever que essa interpretação viria a ser possível e acima
de tudo que viesse a ser afirmada, pela primeira vez, durante todo o processo,
no mencionado acórdão.
7. Também não será demais referir, até para melhor se entender o
fundamento da presente reclamação, que os autos de execução que deram origem
ao presente recurso têm como título executivo um outro acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça, datado de 1 de Outubro de 2002, com trânsito em julgado em
5 de Junho de 2003.
8. No douto acórdão foi a ora reclamante condenada no seguinte
pedido formulado pelos exequentes: «requer‑se respeitosamente a V. Ex.a se digne
considerar procedente por provada a presente acção, condenando a ré a não
instalar na fracção autónoma designada pela letra ‘F’ do prédio n.º 19, sito na
Rua Alves Redol, em Lisboa, um consultório ou clínica ou congénere do exercício
da actividade médico‑dentária, e, na hipótese de a ré não se abster de
concretizar o acima, deve consequentemente ser condenada em indemnização a fixar
em execução de sentença, por todos os danos causados (...)».
9. No requerimento executivo, para execução da sentença, os
exequentes peticionaram que fossem tomadas medidas judiciais (executórias)
tendentes ao «(…) encerramento definitivo do estabelecimento comercial cuja
actividade se desenvolve na fracção autónoma da executada, supra identificada,
nomeadamente, com a imposição de selos nas portas de acesso à referida fracção
autónoma nas portas de acesso da executada, por forma a impedir a manutenção da
violação do direito dos exequentes – título constitutivo da propriedade
horizontal».
10. Entendeu o M.mo Juiz de Execução na douta sentença que conheceu
da oposição à execução apresentada pela ora reclamante e no que concerne ao
pedido de «imposição de selos nas portas de acesso à referida fracção autónoma
da executada», que: «Situação diferente é a de se averiguar nos autos executivos
se a imposição de selos é o meio idóneo e correcto de repor a situação se não
tivesse havido violação por parte da executada da prestação negativa a que foi
condenada, uma vez que, como a actividade exercida pela executada na mencionada
fracção pressupõe a necessária licença, havendo fungibilidade da prestação
negativa a que foi condenada a executada conforme supra mencionado, poderá o
tribunal repor a situação e encerrar o estabelecimento determinando junto da
entidade competente pela revogação da licença concedida à executada» (sublinhado
e negrito nosso).
11. Assumiu a reclamante, como assumiria qualquer executado nas
mesmas circunstâncias, que caso o recurso interposto da douta sentença do M.mo
Juiz de Execução não fosse procedente, que a materialização e efectivação da
prestação negativa nunca passaria pela «imposição de selos nas portas de acesso
à referida fracção autónoma da executada».
12. Foi por isso com surpresa que a ora recorrente verificou que no
douto acórdão de 13 de Maio de 2008 os Venerandos Juízes Conselheiros
escreveram: «O pedido formulado pelos exequentes acima referido está conforme o
estipulado no artigo 941.º, n.º 1, salientando‑se que a solicitação concernente
na imposição de selos nas portas de acesso à fracção autónoma em causa deve ser
entendida como forma de materialização e tornar efectiva a prestação de facto
negativa em causa (...)» (sublinhado nosso).
13. Perante tal interpretação sufragada no douto acórdão, salvo o
devido respeito, anómala e violadora da Constituição, a reclamante, como já se
referiu inicialmente, invocou a contradição entre os fundamentos e a douta
decisão propalada, não tendo deixado de suscitar a questão da
constitucionalidade.
14. Estamos in casu perante a inconstitucionalidade de uma norma
aplicada por decisão judicial, sendo que a interpretação sufragada nessa
decisão constitui novidade, por a mesma já ter sido previamente afastada pelo
M.mo Juiz de Execução e não ter sido, nessa parte, posta em causa a decisão que
considerou que a imposição de selos na fracção não era o meio idóneo para
materializar e tornar efectiva a prestação de facto negativa nos autos.
15. Com efeito, a reclamante só foi confrontada com a
inconstitucionalidade que pretende ver declarada aquando da notificação do
douto acórdão recorrido, proferido a 13 de Maio de 2008, tendo logo suscitado a
questão da inconstitucionalidade do referido acórdão, no requerimento de
aclaração de fls. …, no qual suscitou ainda a contradição entre os fundamentos
expendidos e a douta decisão propalada.
16. Assim sendo, e perante o caso concreto, não seria adequado
exigir à reclamante um qualquer juízo de prognose relativo a essa interpretação,
em termos de se antecipar ao proferimento da decisão, suscitando antecipadamente
a questão da inconstitucionalidade.
17. À reclamante não pode, pois, ser imputada a omissão da questão
da inconstitucionalidade de qualquer norma previamente ao acórdão recorrido, na
medida em que, no primeiro momento em que foi confrontada com a
inconstitucionalidade que pretende ver declarada, ou seja, aquando da
notificação do douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido a 16 de
Maio de 2008, suscitou, de imediato, a questão da constitucionalidade da
referida interpretação.
18. Acresce que a jurisprudência defendida em vários acórdãos pelo
Tribunal Constitucional vai no sentido de, em situações como a sub judice, ser
atendida a reclamação e consequentemente aceite o recurso.
Nestes termos, deve ser atendida a presente reclamação e, em
consequência, ser admitido o recurso.”
O representante do Ministério Público neste Tribunal
emitiu parecer no sentido de que “a presente reclamação é manifestamente
desprovida de fundamento”, porquanto “a ora reclamante não suscitou, durante o
processo, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de
servir de base ao recurso que interpôs para este Tribunal Constitucional –
sendo evidente que teve plena oportunidade para o fazer, atento o objecto de
litígio e as decisões das instâncias sobre o recurso – não tendo qualquer
eficácia, conforme entendimento reiterado, a colocação de questão de
constitucionalidade no âmbito da reclamação de pretensas – e, aliás,
insubsistentes – «nulidades» do acórdão sobre o mérito da causa”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. No sistema português de fiscalização de
constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional
cinge‑se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões
de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas (ou a
interpretações normativas, hipótese em que o recorrente deve indicar, com
clareza e precisão, qual o sentido da interpretação que reputa
inconstitucional), e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas
directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre
os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa
daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na
primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério
normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter
de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações,
enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios
normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente
caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos
de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada “durante o
processo”, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu
a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2
do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua
ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente. Aquele primeiro requisito (suscitação da questão de
inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a
decisão impugnada) só se considera dispensável nas situações especiais em que,
por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota
com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo
excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade
processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a
decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que
suscitasse então a questão de constitucionalidade.
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal
Constitucional que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a
questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal
recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se
esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido
uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua
nulidade ou o pedido da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem
já meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual
aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa
de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve
“lapso manifesto” do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na
qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes
do processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da
proferida. E também, por maioria de razão, não constitui meio adequado de
suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no
requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas
respectivas alegações.
Acresce que, quando o recorrente questiona a
conformidade constitucional de uma interpretação normativa, deve identificar
essa interpretação com o mínimo de precisão, não sendo idóneo, para esse efeito,
o uso de fórmulas como “na interpretação dada pela decisão recorrida” ou
similares. Com efeito, constitui orientação pacífica deste Tribunal a de que
(utilizando a formulação do Acórdão n.º 367/94) “ao suscitar‑se a questão de
inconstitucionalidade, pode questionar‑se todo um preceito legal, apenas parte
dele ou tão‑só uma interpretação que do mesmo se faça. (...) [E]sse sentido
(essa dimensão normativa) do preceito há‑de ser enunciado de forma que, no caso
de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua
decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os
operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido
com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a
Constituição.”
3. No presente caso, de acordo com o requerimento de
interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a recorrente pretendia
que este Tribunal apreciasse a inconstitucionalidade da “norma constante do n.º
1 do artigo 941.º do CPC, conforme a douta interpretação que dela se fez no
douto acórdão recorrido, ao entender que a forma de materializar e tornar
efectiva a prestação de facto negativa nos autos de execução que deram origem ao
presente recurso passa pela «imposição de selos nas portas de acesso à fracção
autónoma» designada pela letra «F» do prédio n.º 19, sito na Rua Alves Redol, em
Lisboa, onde se encontra instalada a clínica médico‑dentária a desinstalar”. A
questão de constitucionalidade assim delineada carece manifestamente de natureza
normativa, por destituída de carácter de generalidade e abstracção, surgindo
como indissociavelmente ligada às particularidades específicas do caso
concreto, pelo que, logo por esta razão, o recurso interposto seria
inadmissível.
Acresce que – como correctamente decidiu o despacho ora
reclamado – a recorrente não suscitou, de forma processualmente adequada, antes
de proferida a decisão recorrida, qualquer questão de inconstitucionalidade
normativa reportada ao artigo 941.º, n.º 1, do CPC.
A recorrente reconhece não ter suscitado a questão de
inconstitucionalidade antes de proferido o acórdão do STJ, de 13 de Maio de
2008, que concedeu provimento ao recurso dos exequentes, mas aduz que o fez no
requerimento em que pediu a aclaração e arguiu nulidade desse acórdão e que a
interpretação e aplicação nele feitas da norma do artigo 941.º, n.º 1, do CPC,
foi inesperada.
Ora, não se pode, desde logo, considerar inesperado um
entendimento – o de que a forma de materializar e tornar efectiva a prestação de
facto negativa em causa era através da imposição de selos nas portas de acesso
à fracção autónoma – que corresponde a uma pretensão desde o início da execução
formulada pelos exequentes (como a própria reclamante reconhece no n.º 9 da
presente reclamação).
E, por outro lado, apesar de o requerimento de aclaração
e de arguição de nulidade do acórdão recorrido não ser – como atrás se
evidenciou – nem momento oportuno nem modo adequado de suscitar questões de
inconstitucionalidade de normas aplicadas no acórdão reclamado, o certo é que
nem sequer nesse requerimento a ora reclamante logrou enunciar correctamente uma
questão de inconstitucionalidade normativa, pois o que aí aduziu foi que “tal
decisão [que determinou a imposição de selos] é contrária à lei, por violar
direitos fundamentais da executada” (n.º 13), e que, impedindo a imposição de
selos o acesso à sobredita fracção (n.º 13.1) e não tendo o direito de
propriedade da reclamante sido impedido no acórdão dado à execução (n.º 13.2),
“tal decisão import[a] a violação do direito de propriedade da recorrida,
direito que está constitucionalmente garantido” (n.º 13.3). Isto é: mesmo fora
de tempo e por modo processual inidóneo, a violação da Constituição é
directamente imputada a decisão judicial, e não a qualquer norma ou
interpretação normativa minimamente identificada, como seria necessário para
abrir via de recurso para o Tribunal Constitucional.
4. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente
reclamação.
Custas pela reclamante, fixando‑se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 28 de Outubro de 2008.
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos