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Processo n.º 664/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A. apresentou reclamação para a conferência, ao
abrigo do n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), contra a decisão sumária do relator, de 22 de Setembro de 2008, que
decidiu, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 desse preceito, não conhecer
do objecto do recurso.
1.1. A referida decisão sumária tem a seguinte
fundamentação:
“1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da [LTC], contra o acórdão da Secção de
Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 25 de Junho
de 2008, que negou provimento ao recurso da sentença do Tribunal Administrativo
e Fiscal (TAF) de Braga, de 29 de Fevereiro de 2008, que julgou improcedente
reclamação, deduzida ao abrigo do artigo 276.º do Código de Procedimento e de
Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 433/99, de 26 de
Outubro, contra o despacho do Chefe do Serviço de Finanças de Guimarães 2, de 27
de Dezembro de 2007, que indeferira requerimento da ora recorrente que,
invocando a prescrição da dívida exequenda, solicitara o levantamento da penhora
e a restituição do indevidamente pago.
De acordo com o requerimento de interposição de recurso, a
recorrente pretende ver apreciada a constitucionalidade da norma «do artigo
15.º, n.º 5, do Decreto‑Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto (Lei Mateus), conjugado
com as normas dos artigos 3.º, n.º 2, e 5.º, n.ºs 3 e 4, do mesmo diploma
legal, interpretado no sentido de que o prazo de prescrição das dívidas
tributárias se suspende durante o período de pagamento em prestações, devendo
entender‑se este período de pagamento como aquele que foi concedido ao
contribuinte para pagar e não aquele durante o qual efectivamente pagou».
O recurso foi admitido pelo Conselheiro Relator do STA, decisão que,
como é sabido, não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da
LTC) e, de facto, entende‑se que o recurso em causa é inadmissível, o que
possibilita a prolação de decisão sumária de não conhecimento, ao abrigo do
disposto no n.º 1 do artigo 78.º‑A da LTC.
2. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a
competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas,
hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o
sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de
inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si
mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a
inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é
imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é
discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual
depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e,
por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda
hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por
relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua
admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão
de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo
72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio
decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente.
3. No presente caso, nas alegações do recurso para o STA, a
recorrente não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa,
antes se limitou a imputar directamente à decisão judicial então impugnada (a
sentença do TAF de Braga) errada interpretação de normas de direito ordinário
e, reflexamente, violação, por essa mesma decisão judicial, de princípios e
normas constitucionais, o que não integra objecto idóneo de recurso de
constitucionalidade.
Na verdade, o aduzido pela recorrente naquela peça processual foi
traduzido nas seguintes conclusões:
«1.ª – O objecto do recurso prende‑se com a interpretação e
aplicação do artigo 5.º, n.º 5, do Decreto‑Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto.
2.ª – A norma sub judice deve ser interpretada conjuntamente com as
normas dos artigos 3.º, n.º 2, e 5.º, n.ºs 3 e 4, do mesmo diploma legal, donde
se há‑de extrair, por aplicação do elemento sistemático da interpretação, o
regime de pagamento em prestações previsto nesse Decreto‑Lei.
3.ª – Tal regime obedece aos seguintes critérios:
– Uma vez autorizado um plano prestacional, o pagamento de cada
prestação será efectuado até ao final do mês seguinte a que diga respeito
(artigo 5.º, n.º 2);
– Enquanto decorrer o pagamento pontual das prestações, o prazo de
prescrição fica suspenso (artigo 5.º, n.º 5);
– Em caso de incumprimento pontual da dívida, esta torna‑se
exigível de imediato (artigo 3.º, n.º 2, alínea a));
– Só assim não será se o contribuinte requerer a relevação do
atraso, nos primeiros 5 dias úteis do mês seguinte, caso não lhe seja imputável
o motivo do atraso (artigo 5.º, n.º 4);
– Caso contrário será proferido de imediato o despacho de exclusão,
prosseguindo o processo para cobrança da dívida.
4.ª – O Despacho n.º 18/97‑XIII do SEAF, de 14 de Março de 2007,
citado no mui douto acórdão do STA, de 16 de Janeiro de 2008, e que a douta
sentença recorrida acolheu, veio estabelecer um regime de relevação da falta de
pagamento mais favorável aos contribuintes não cumpridores, escalonando os
aderentes em vários patamares, consoante o número de prestações em falta, só
determinando a exclusão do plano prestacional aos aderentes em situação de
incumprimento prolongado, ou seja, com mais de seis meses de atraso.
5.ª – Contrariamente ao que o mui douto acórdão do STA ut supra
refere, este despacho do SEAF não faz uma correcta aplicação da lei, desde logo,
porque viola frontalmente o prazo de 5 dias úteis constante do artigo 5.º, n.º
4, do Decreto‑Lei n.º 124/96, que assim é alargado para seis meses ou mais.
6.ª – Ou seja, se o despacho de exclusão não for proferido após os
primeiros 5 dias úteis do mês seguinte ao incumprimento, por via das
instruções administrativas do SEAF, isso não pode impedir a cessação do efeito
suspensivo da prescrição previsto no artigo 5.º, n.º 5, acima mencionado.
7.ª – Ao contrariar este modo de ver, a douta sentença recorrida
alarga o prazo de prescrição aplicável à recorrente, de 10 para 17 anos, de
forma injusta, inadequada e até absurda.
8.ª – Sendo dever do intérprete, imposto pelo artigo 9.º, n.º 4, do
Código Civil, considerar que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e
soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, a interpretação da lei
efectuada pela douta sentença recorrida não pode colher, uma vez que se revela
injusta, inadequada e absurda, não sendo lícito concluir que o legislador pode
ter querido tal injustiça, inadequação nem tal absurdo.
9.ª – Segundo a matéria de facto dada como provada pela douta
sentença recorrida:
– A recorrente foi autorizada por despacho de 1 de Abril de 1997 a
pagar em 150 prestações mensais a sua dívida de IRS;
– Efectuou o pagamento das prestações relativas aos primeiros 7
meses (Abril a Outubro de 1997);
– A recorrente não requereu a relevação da falta de pagamento
relativa ao mês de Novembro de 1997, que poderia ter efectuado nos primeiros 5
dias úteis de Dezembro de 1997;
– Não obstante, só foi excluída do plano prestacional por despacho
de 21 de Janeiro de 2004;
– Ou seja, a exclusão que, legalmente, deveria ter ocorrido em
Dezembro de 1997, só ocorreu 6 anos mais tarde.
10.ª – A douta sentença recorrida considerou suspenso o prazo de
prescrição durante estes 6 anos de evidente e censurável inércia da
Administração Tributária.
11.ª – Ao fazê‑lo, violou os princípios da segurança jurídica, da
certeza do direito e da protecção da confiança dos cidadãos, como corolários do
princípio fundamental do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da CRP.
12.ª – Na verdade, o instituto da prescrição aparece consagrado na
lei, desde tempos imemoriais, como uma sanção para a inércia do credor.
13.ª – Acresce que a prescrição serve para conferir ao devedor a
certeza de que a sua situação de devedor não permanecerá indeterminadamente
indefinida no tempo.
14.ª – Ora, ao não valorizar desfavoravelmente a inércia da
Administração Tributária na cobrança da dívida, que dispunha de todos os meios
processuais e legais para o fazer, a douta sentença recorrida premeia
injustificadamente o credor relapso, ao considerar suspenso o prazo da
prescrição enquanto a Administração Tributária gozava o conforto da sua
inércia, traindo desse modo a confiança da recorrente que, legitimamente,
esperava que o credor Estado acabaria por ser sancionado precisamente pela sua
inércia.
15.ª – Para além de que a douta sentença recorrida, ao alargar o
prazo de prescrição de forma arbitrária como o fez, introduziu um grau de
incerteza muito grande no instituto da prescrição, sem que para tal se vislumbre
uma razão aceitável e justificada.
16.ª – A douta sentença recorrida também viola o artigo 20.º, n.º 4,
da CRP, na justa medida em que, ao alargar de forma injustificada o prazo de
prescrição aplicável, põe em causa o princípio do due process of law, que prevê
a existência de um processo justo e equitativo, como garantia de acesso aos
tribunais.»
O acórdão ora recorrido desatendeu a tese da recorrente quanto à
prescrição da dívida exequenda com base nas seguintes considerações:
«6 – Contendendo com a invocada prescrição da obrigação tributária
relativa ao IRS de 1993, configura‑se no presente recurso como questão nuclear
a conhecer o saber‑se qual a consequência na suspensão do respectivo prazo de
prescrição prevista no n.º 5 do artigo 5.º do Decreto‑Lei n.º 124/96, de 10 de
Agosto (Lei Mateus), do não pagamento das prestações autorizadas ao abrigo do
regime consagrado nesse diploma.
Com arrimo em recente decisão deste Supremo Tribunal (acórdão de 16
de Janeiro de 2008, no recurso n.º 416/07), a sentença sob recurso perfilhou o
entendimento de acordo com o qual só o despacho de exclusão do executado do
regime de pagamento em prestações determina a cessação do prazo de suspensão do
prazo de prescrição da obrigação tributária exequenda e daí tenha julgado não
prescrito o questionado IRS de 1993.
Ao invés, na sua alegação de recurso, a recorrente vem defender, em
suma, que a suspensão do prazo prescricional só opera durante o tempo em que
decorra o pagamento das prestações autorizado, logo cessando uma vez verificado
o respectivo incumprimento e daí que se o despacho de exclusão não for proferido
nos primeiros 5 dias do mês seguinte ao incumprimento verificado, isso não pode
impedir a cessação do efeito suspensivo da prescrição previsto no n.º 5 do
artigo 5.º do Decreto‑Lei n.º 124/96.
A questão delineada tem obtido resposta uniforme neste Supremo
Tribunal no sentido da decisão recorrida, podendo ver‑se, para além do aresto
já acima citado, os acórdãos de 7 de Fevereiro de 2007 e 9 de Abril de 2008, nos
recursos n.ºs 1130/06 e 646/07, respectivamente.
Desde já se diga que não se descortinam razões ponderosas para
divergir de tal jurisprudência, cuja douta fundamentação seguiremos de perto.
Vejamos.
De harmonia com o disposto no n.º 5 do artigo 5.º do Decreto‑Lei n.º
124/96, o prazo de prescrição das dívidas tributárias suspende‑se durante o
período de pagamento em prestações, devendo entender‑se este período de
pagamento como aquele que foi concedido ao contribuinte para pagar e não aquele
durante o qual efectivamente pagou.
De facto, a não exclusão automática do regime excepcional
autorizado perante o incumprimento do plano de pagamento decorre desde logo da
previsão constante do n.º 4 do artigo 5.º do Decreto‑Lei n.º 124/96, que
estabelece a possibilidade da relevação do atraso, desde que por motivo não
imputável ao devedor.
No mesmo sentido vai o Despacho n.º 18/97‑XII do SEAF, de 14 de
Março de 2007, que aprovou as grandes orientações para o acompanhamento do
plano de regularização de dívidas fiscais, de acordo com o qual, relativamente
aos aderentes em situação de incumprimento prolongado (contribuintes com mais de
seis meses de atraso), a Administração Tributária não exclui automaticamente
do regime os contribuintes logo que deixem de pagar as primeiras prestações,
antes procura que eles mantenham essa adesão, aceitando que eles adiram a
planos de regularização autónomos das quantias em dívida ou ofereçam bens em
pagamento.
Como se afirma no já aludido acórdão de 16 de Janeiro de 2008, rec.
n.º 416/07: ‘Ou seja, só depois de notificados para regularizarem a sua situação
faltosa e no caso de não o fazerem os contribuintes são então excluídos do
regime de adesão e passam a ser tratados como não aderentes, com a consequente
perda dos benefícios que até aí mantinham, o que significa que só pelo despacho
de exclusão os contribuintes perdem efectivamente os benefícios de terem
aderido ao plano de regularização das dívidas fiscais ao abrigo do Decreto‑Lei
n.º 124/96, um dos quais é necessariamente a suspensão dos processos de
execução, deixando de se justificar a partir daí, por isso, a suspensão do
prazo de prescrição que até aí se impunha’.
Contra este entendimento se insurge a recorrente, a qual para tanto
alega que o mesmo viola os princípios da segurança jurídica, da certeza do
direito, da protecção da confiança dos cidadãos e a um processo justo e
equitativo, dessa forma se premiando a inércia da Administração que só muitos
anos mais tarde venha a proferir o referido despacho de exclusão.
Não cremos que assista razão à recorrente.
Na realidade, foi a recorrente quem lançou mão de um regime
excepcional de pagamento em prestações que determinava a suspensão do prazo de
prescrição e impedia a Administração Fiscal de prosseguir com a cobrança
coerciva das dívidas fiscais em causa.
Como tal, só a ela se devem imputar as consequências da adopção
desse regime excepcional, sejam elas favoráveis ou não aos seus interesses
imediatos (ubi commoda, ibi incommoda), muito embora o agravamento destas
últimas possa decorrer de uma tardia valoração por parte da Administração de uma
situação de incumprimento.
A este propósito se acompanha o Ex.mo Procurador‑Geral Adjunto no
seu douto parecer, ao afirmar que ‘A interpretação sustentada representa o
justo equilíbrio entre o interesse do credor (o qual logra a suspensão do prazo
de prescrição da obrigação tributária exequenda) e o interesse do devedor (o
qual está protegido contra qualquer acto ofensivo da sua posse ou propriedade,
em consequência da suspensão dos processos de execução fiscal pendentes)’.
Importa, pois, concluir que o entendimento que se acolhe não afronta
os princípios constitucionais que a recorrente invoca.»
Como inequivocamente resulta da transcrição feita das conclusões da
alegação da recorrente, não surge aí adequadamente suscitada qualquer questão
de inconstitucionalidade normativa, através da imputação a uma norma de direito
ordinário da violação de normas ou princípios constitucionais. O que a
recorrente questionou foi a correcção, ao nível da interpretação do direito
ordinário, do entendimento, adoptado na sentença do TAF de Braga então
impugnada, de que a suspensão da prescrição da obrigação tributária mantém‑se
enquanto estiver a decorrer o regime excepcional de pagamento em prestações
instituído pelo Decreto‑Lei n.º 124/96, só cessando (voltando a correr o prazo
prescricional) com o despacho de exclusão do contribuinte em causa desse regime
excepcional (entendimento este que, aliás, tem sido uniformemente seguido pelo
STA: cf., além do acórdão ora recorrido, os acórdãos de 7 de Fevereiro de 2007,
proc. n.º 1130/06, de 28 de Março de 2007, proc. n.º 587/05, de 16 de Janeiro de
2008, proc. n.º 416/07, de 9 de Abril de 2008, proc. n.º 646/07, de 25 de Junho
de 2008, proc. n.º 446/08, e de 14 de Julho de 2008, procs. n.ºs 431/08 e
510/08, todos com texto integral disponível em www.dgsi.pt/jsta).
Na aludida peça processual, a recorrente imputa directamente à
sentença judicial impugnada, por via da errada interpretação que teria feito
do direito ordinário aplicável e que a tornaria «injusta, inadequada e até
absurda» (conclusões 7.ª e 8.ª), a violação dos «princípios da segurança
jurídica, da certeza do direito e da protecção da confiança dos cidadãos, como
corolários do princípio fundamental do Estado de Direito consagrado no artigo
2.º da CRP» (conclusão 11.ª), introduzindo (a sentença) «um grau de incerteza
muito grande no instituto da prescrição» (conclusão 15.ª), com o que (a
sentença) violaria «o artigo 20.º, n.º 4, da CRP, na justa medida em que, ao
alargar de forma injustificada o prazo de prescrição aplicável, põe em causa o
princípio do due process of law, que prevê a existência de um processo justo e
equitativo, como garantia de acesso aos tribunais» (conclusão 16.ª).
Sendo a violação da Constituição directamente imputada à sentença
judicial então impugnada, em si mesma considerada, e não a uma norma jurídica,
não foi adequadamente suscitada pela recorrente, perante o tribunal recorrido,
uma questão de inconstitucionalidade normativa, o que torna inadmissível o
presente recurso e determina o não conhecimento do seu objecto.”
1.2. A reclamação da recorrente assenta nos seguintes
fundamentos:
“1.º – O objecto da presente reclamação prende‑se com o entendimento
firmado na douta decisão do Ex. Sr. Conselheiro Relator, proferida ao abrigo do
disposto no artigo 78.º‑A, n.º 1, da LTC, de que a questão da
inconstitucionalidade não foi suscitada durante o processo de modo
processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida,
em termos de este estar obrigado a dela conhecer (sublinhado nosso).
2.º – A reclamante tem entendimento completamente oposto, pois não
tem dúvidas de que a questão da inconstitucionalidade objecto do presente
recurso foi colocada perante o STA de modo processualmente adequado, tanto mais
que aquele venerando tribunal conheceu da dita questão de modo concludente,
recusando explicitamente a tese da inconstitucionalidade sustentada pela ora
reclamante, então recorrente.
3.º – Salvo o devido respeito, o errado entendimento firmado na
douta decisão ora reclamada, deve‑se a uma deficiente análise das alegações de
recurso apresentadas perante o STA, onde é colocada a questão da
inconstitucionalidade do artigo 5.º, n.º 5, do Decreto‑Lei n.º 124/96, de 10 de
Agosto, na interpretação que lhe foi dada na sentença recorrida – a sentença do
TAF de Braga.
4.º – A análise da referida peça processual tem de passar por uma
correcta exegese do texto na mesma plasmada. Senão, vejamos:
5.º – Na página 4 das citadas alegações, a então recorrente
refere‑se assim à interpretação que a sentença do TAF de Braga, aí recorrida,
fez da norma contida no artigo 5.º, n.º 5, do Decreto‑Lei n.º 124/96: «Uma tal
interpretação viola os princípios da segurança jurídica, da certeza do direito
e da protecção da confiança dos cidadãos, como corolários do princípio
fundamental do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da CRP.»
6.º – Começando, desse modo, por suscitar a inconstitucionalidade de
uma norma em resultado da interpretação que dela é feita pela sentença
recorrida.
7.º – Como não podia deixar de ser, já que o objecto do recurso era,
precisamente, a douta sentença recorrida.
8.º – De seguida, a recorrente explicita porque razão considera
inconstitucional aquela norma, quando interpretado daquele modo.
9.º – Essa argumentação foi, a final, sintetizada nas conclusões
11.ª a 16.ª da referida peça processual. Pois bem,
10.º – como resulta da exegese do texto contido nas citadas
alegações, visto como um todo, já que determinada conclusão pode não sintetizar
com perfeição certa e determinada alegação, a recorrente começa por questionar a
própria sentença recorrida, como não podia deixar de ser, já que o recurso
incidia sobre a mesma, atacando a interpretação que do artigo 5.º, n.º 5, do
Decreto‑Lei n.º 124/96 era efectuada, para, de seguida, partir para o juízo de
inconstitucionalidade daquela norma quando interpretada daquele modo.
11.º – Não é, de todo, correcto dizer-se, como o faz a douta decisão
reclamada, a pág. 9, que «o que a recorrente questionou foi a correcção, ao
nível da interpretação do direito ordinário, do entendimento adoptado na
sentença do TAF de Braga».
12.º – Também o foi, como se alcança das conclusões 1.ª a 10.ª.
Mas não só, como se vê das conclusões 11.ª a 16.ª. Na verdade,
13.º – a recorrente não estava limitada nas suas alegações, podendo
suscitar qualquer ilegalidade da sentença recorrida, quer à luz do direito
ordinário, quer à luz do direito constitucional. Pelo que,
14.º – na primeira parte das suas alegações, suscitou a ilegalidade
da interpretação do artigo 5.º, n.º 5, do Decreto‑Lei n.º 124/96 à luz do
direito ordinário, passando, numa segunda parte, a questionar a interpretação da
mesma norma, mas à luz dos princípios constitucionais, especificando
concretamente a violação do artigo 2.º da CRP.
15.º – O STA compreendeu perfeitamente o alcance das alegações da
recorrente, começando por se pronunciar em primeiro lugar pela alegada
ilegalidade da interpretação do artigo 5.º, n.º 5, do Decreto‑Lei n.º 124/96, à
luz do direito ordinário, terminando por se pronunciar pela alegada
inconstitucionalidade da mesma norma, à luz do direito constitucional, negando
explicitamente essa inconstitucionalidade.
16.º – Pela forma como a recorrente arrumou as suas alegações e os
respectivos argumentos a favor da tese da ilegalidade e da
inconstitucionalidade, ficou patente qual era o seu entendimento sobre as
respectivas questões.
17.º – Não se diga, pois, que a recorrente não indicou com clareza
qual o sentido da interpretação que reputava inconstitucional. Por outro lado,
18.º – é por demais evidente que a conclusão final da douta decisão
ora reclamada não faz, salvo o devido respeito, uma correcta análise das
alegações da recorrente perante o STA, quando afirma ter a recorrente imputado
directamente à sentença judicial impugnada, por via da interpretação que teria
feito do direito ordinário aplicável, a violação dos princípios constitucionais
(sublinhado nosso).
19.º – O que a recorrente fez foi imputar directamente à sentença
então sob escrutínio uma interpretação que violava princípios constitucionais
que protegiam valores que, por coincidência, também eram tutelados pelo direito
ordinário.
20.º – A ligação entre o direito ordinário e o direito
constitucional que as alegações aparentam, a existir, será apenas instrumental
para a argumentação da recorrente. Nada mais!
21.º – A reclamante suscitou perante o STA uma questão de
inconstitucionalidade de modo suficientemente adequado do ponto de vista
processual, tanto mais que aquele venerando tribunal não teve qualquer
dificuldade em se pronunciar sobre a mesma. Nesse sentido,
22.º – a reclamante espera que a justiça não seja postergada pelo
léxico.
23.º – Afinal, já os antigos romanos diziam que justitia est
constans et perpetua voluntas jus suum cuiquere tribuendi (a justiça é a
constante e perpétua vontade de dar a cada um o que lhe é devido).
24.º – Que não seja por meras questões linguísticas que o Tribunal
se vai escusar de conhecer do recurso ora deduzido, passando para segundo plano
a justiça, fim último que deve prosseguir qualquer tribunal.
25.º – Sob pena de se repetirem os mesmos erros que os antigos
romanos cometeram e deram origem ao brocardo summum jus, summa injuria (muito
direito, muita injustiça, ou seja, o direito estrito levado ao extremo pode
conduzir a injustiças). Na verdade,
26.º – A manter‑se o entendimento firmado na douta decisão reclamada
será a reclamante obrigada a pagar uma dívida prescrita.
Nestes termos e concluindo,
Deverá, em conferência, admitir‑se o recurso sub judicio,
considerando‑se ter sido suscitada, de modo processualmente adequado, a
controvertida questão da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 5.º,
n.º 5, do Decreto‑Lei n.º 124/96, na interpretação que lhe foi dada pela
sentença proferida pelo TAF de Braga e mantida pelo douto acórdão recorrido,
ordenando‑se o prosseguimento dos autos.”
1.3. A recorrida Fazenda Pública apresentou resposta,
propugnando o indeferimento da reclamação.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. O objecto da reclamação de decisão sumária de não
conhecimento do recurso cinge‑se à apreciação da correcção das razões pelas
quais na decisão reclamada se entendeu não se verificarem os pressupostos do
conhecimento do recurso de constitucionalidade. No presente caso, essas razões
consistiram na constatação de que, perante o tribunal recorrido, a recorrente
não havia suscitado adequadamente qualquer questão de inconstitucionalidade
normativa, como é exigido pelo n.º 2 do artigo 72.º da LTC, antes imputou
directamente à decisão judicial então impugnada, por via da errada
interpretação que teria feito do direito ordinário aplicável, a violação de
princípios constitucionais.
Saliente‑se, desde já, que o artigo 72.º da LTC, donde
consta, no seu n.º 2, a referida exigência, é preceito que respeita à
legitimidade para recorrer, pelo que o seu incumprimento determina o não
conhecimento do objecto do recurso mesmo que a decisão recorrida tenha, quer
oficiosamente, quer por suscitação da questão por outro interveniente
processual, apreciado a questão de constitucionalidade identificada no
requerimento de interposição de recurso.
Por outro lado, a exigência de que a questão de
inconstitucionalidade suscitada perante o tribunal recorrido tenha natureza
normativa e não se limite a arguir a violação da Constituição directamente por
parte de decisões judiciais, em si mesmas consideradas, não se prende a
preciosismos linguísticos ou lexicais, antes é o corolário necessário da
configuração do sistema português de fiscalização da constitucionalidade posta a
cargo do Tribunal Constitucional, que, por opção constitucional, tem por função
emitir a última palavra sobre a conformidade de normas de direito ordinário com
a Constituição, não sendo lícito transformar o Tribunal Constitucional numa nova
instância da ordem judiciária que visasse controlar a correcção das decisões
das demais instâncias, na sua tarefa de subsunção do caso concreto ao direito
ordinário, tal como este foi interpretado e aplicado nessas decisões.
No presente caso, o entendimento, sustentado na sentença
do TAF de Braga e confirmado pelo acórdão do STA, foi o de que “só o despacho de
exclusão do executado do regime de pagamento em prestações determina a cessação
do prazo de suspensão do prazo de prescrição da obrigação tributária exequenda”
– afastando a tese, defendida pela recorrente, de que bastava um incumprimento
do plano de pagamento para se operar automaticamente a exclusão do regime
excepcional, com o imediato recomeço da contagem do prazo prescricional –, com
base em dois argumentos: (i) a previsão constante do n.º 4 do artigo 5.º do
Decreto‑Lei n.º 124/96, que estabelece a possibilidade da relevação do atraso,
desde que por motivo não imputável ao devedor; e (ii) o Despacho n.º 18/97‑XII
do SEAF, que aprovou as grandes orientações para o acompanhamento do plano de
regularização de dívidas fiscais, de acordo com o qual, relativamente aos
aderentes em situação de incumprimento prolongado, a Administração Tributária
não exclui automaticamente do regime os contribuintes logo que deixem de pagar
as primeiras prestações, antes procura que eles mantenham essa adesão,
aceitando que eles adiram a planos de regularização autónomos das quantias em
dívida ou ofereçam bens em pagamento.
Ora, como se evidenciou na decisão sumária ora
reclamada, foi directamente à decisão judicial então impugnada, na sua tarefa de
determinar se, no caso concreto, tinha, ou não, ocorrido prescrição da dívida
tributária, que a recorrente imputou a violação de princípios e normas
constitucionais. Recordem‑se as conclusões relevantes da sua alegação:
“6.ª – Ou seja, se o despacho de exclusão não for proferido após os
primeiros 5 dias úteis do mês seguinte ao incumprimento, por via das
instruções administrativas do SEAF, isso não pode impedir a cessação do efeito
suspensivo da prescrição previsto no artigo 5.º, n.º 5, acima mencionado.
7.ª – Ao contrariar este modo de ver, a douta sentença recorrida
alarga o prazo de prescrição aplicável à recorrente, de 10 para 17 anos, de
forma injusta, inadequada e até absurda.
8.ª – Sendo dever do intérprete, imposto pelo artigo 9.º, n.º 4, do
Código Civil, considerar que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e
soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, a interpretação da lei
efectuada pela douta sentença recorrida não pode colher, uma vez que se revela
injusta, inadequada e absurda, não sendo lícito concluir que o legislador pode
ter querido tal injustiça, inadequação nem tal absurdo.
(…)
10.ª – A douta sentença recorrida considerou suspenso o prazo de
prescrição durante estes 6 anos de evidente e censurável inércia da
Administração Tributária.
11.ª – Ao fazê‑lo, violou os princípios da segurança jurídica, da
certeza do direito e da protecção da confiança dos cidadãos, como corolários do
princípio fundamental do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da CRP.
(…)
14.ª – Ora, ao não valorizar desfavoravelmente a inércia da
Administração Tributária na cobrança da dívida, que dispunha de todos os meios
processuais e legais para o fazer, a douta sentença recorrida premeia
injustificadamente o credor relapso, ao considerar suspenso o prazo da
prescrição enquanto a Administração Tributária gozava o conforto da sua
inércia, traindo desse modo a confiança da recorrente que, legitimamente,
esperava que o credor Estado acabaria por ser sancionado precisamente pela sua
inércia.
15.ª – Para além de que a douta sentença recorrida, ao alargar o
prazo de prescrição de forma arbitrária como o fez, introduziu um grau de
incerteza muito grande no instituto da prescrição, sem que para tal se vislumbre
uma razão aceitável e justificada.
16.ª – A douta sentença recorrida também viola o artigo 20.º, n.º 4,
da CRP, na justa medida em que, ao alargar de forma injustificada o prazo de
prescrição aplicável, põe em causa o princípio do due process of law, que prevê
a existência de um processo justo e equitativo, como garantia de acesso aos
tribunais.” (sublinhados acrescentados).
Não tendo a recorrente suscitado, perante o tribunal
recorrido, em termos adequados, uma questão de inconstitucionalidade normativa,
o presente recurso era inadmissível, o que determinava o não conhecimento do
seu objecto, como bem decidiu a decisão sumária ora reclamada.
4. Termos em que acordam em indeferir a presente
reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pela recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 15 de Outubro de 2008.
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos