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Processo n.º 984/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão sumária:
1. A., Lda. notificada do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 2 de
Maio de 2007, que não lhe admitiu o recurso que interpôs para o Pleno da Secção
de Contencioso Tributário deste Supremo, do acórdão do Tribunal Central
Administrativo, de 13 de Julho de 2004 – que negou provimento ao recurso por si
interposto da sentença proferida pelo então Tribunal Tributário de 1ª Instância
de Lisboa –, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do referido acórdão
do Tribunal Central Administrativo, ao abrigo da alínea b) do n.º1 do artigo 70
da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, (cf. requerimento de fls. 1781 a 1799),
pretendendo ver apreciada as seguintes questões:
a) Da inconstitucionalidade da «aplicação da Circular n.º 19/89, de 18 de
Dezembro, da Direcção‑Geral dos Impostos, que cria uma norma de incidência
fiscal distinta daquela que está prevista na alínea f), in fine, do n.º 3 do
artigo 3.º do Código do IVA, violando, assim, o princípio da legalidade em
matéria de incidência fiscal, previsto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea i), e
103.º, n.º 2, da CRP», invocando que «[a] inconstitucionalidade foi sobejamente
suscitada durante o processo, [n]omeadamente, em sede de petição inicial do
processo de impugnação judicial», nas «contra-alegações de recurso para o TCA» e
em sede de «reclamação para a conferência do TCA, a qual tinha por objecto o
acórdão recorrido», e
b) Da inconstitucionalidade material do conteúdo da referida Circular, «por
violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da CRP», questão
que teria sido «sobejamente suscitada durante o processo, como se recolhe,
nomeadamente, das contra-alegações de recurso para o TCA apresentadas pela ora
recorrente».
2. O recurso foi admitido pelo Desembargador Relator do Tribunal Central
Administrativo Sul (cf. fls. 1957), decisão que não vincula o Tribunal
Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LTC), entendendo-se, no caso ser de
proferir decisão sumária, ao abrigo do n.º1 do art. 78º-A da Lei nº 28/82, de 15
de Novembro, por não se verificarem os pressupostos de admissibilidade do
recurso.
3. Com efeito, no sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a
competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputadas a normas jurídicas (ou a interpretações normativas,
hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o
sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de
inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si
mesmas consideradas.
E, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende
ainda da verificação cumulativa dos pressupostos de (i) a questão de
inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida,
em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC),
e (ii) de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi,
das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Atendo o disposto no n.º 2 do artigo 72.º da LTC, não são de considerar, para se
dar como verificado o cumprimento daquele primeiro pressuposto, nem suscitações
de questões de constitucionalidade perante instâncias distintas do tribunal que
proferiu a decisão recorrida, nem questões suscitadas depois de proferida a
decisão final (com a qual se esgotou o poder jurisdicional do tribunal
recorrido), designadamente através de pedidos de aclaração ou de arguições de
nulidade dessa decisão. Só se considera não ser exigível o ónus de suscitação da
questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de
proferida a decisão impugnada, nas situações de todo excepcionais ou anómalas,
em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a
questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou em
que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a
questão de constitucionalidade.
Por estas razões, não são atendíveis, para este efeito, nem a petição inicial da
impugnação judicial, apresentada no Tribunal Tributário de 1.ª Instância de
Lisboa, nem a invocada «reclamação para a conferência do TCA, a qual tinha por
objecto o acórdão recorrido», em que se invocava a nulidade deste aresto,
indeferida pelo acórdão de 15 de Fevereiro de 2005, que consistia na arguição de
nulidades da decisão recorrida (cf. fls. 1465 a 1470).
4. Resta, assim, a contra‑alegação relativa ao recurso interposto pela Fazenda
Pública, endereçada ao Tribunal Central Administrativo.
Mas, nesta peça (fls. 996 a 1037), não foi suscitada qualquer questão de
inconstitucionalidade tendo por objecto as normas da referida Circular, à qual
são apenas endereçadas acusações explicitamente qualificadas pela recorrente
como constituindo ilegalidades (cf. conclusões G e H), por «falta de
habilitação legal para interpretar extensivamente normas de incidência
tributária», e por «por violar o princípio da igualdade ao pretender tratar da
mesma forma situações objectivamente desiguais, tais como os usos comerciais»
(cf. conclusões O e P)
Acresce que, as interpretações normativas acolhidas no acórdão recorrido, com
referência às questões colocadas pela recorrente neste recurso, nada têm de
insólito ou de imprevisto, pois correspondem, na sua essência, às teses
defendidas na alegação da então recorrente Fazenda Pública, pelo que a
recorrente teve oportunidade processual para, nas contra-alegações por si
apresentadas no recurso para o Tribunal Central Administrativo, suscitar
adequadamente as questões de inconstitucionalidade que agora pretende ver
apreciadas.
Deste modo, concluindo-se que a recorrente não suscitou, em termos
processualmente adequados, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida,
qualquer questão de constitucionalidade normativa, em termos de colocar esse
tribunal na obrigação de dela conhecer, não pode tomar-se conhecimento do
objecto do recurso.
5. Nestes termos, ao abrigo do disposto no n.º1 do art. 78º-A da Lei nº 28/82,
de 15 de Novembro, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 unidades
de conta.
2. O recorrente reclama desta decisão, ao abrigo do n.º 3 do artigo
78.º-A da LTC, sustentando que deve conhecer-se do objecto do recurso porque:
«1.º
A Recorrente interpôs recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade do
Douto Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul em 13 de Julho
de 2004
2.º
Considera a Recorrente, em resumo, no recurso de fiscalização concreta
interposto, que se verificam diversas questões que reclamam a fiscalização por
parte deste Venerando Tribunal Constitucional:
a) A inconstitucionalidade das normas contidas na Circular n.º 19/89, de 18 de
Dezembro da Direcção-Geral dos Impostos, que, criando uma norma de incidência
fiscal, violam o Princípio da Legalidade em matéria de incidência fiscal,
previsto nos artºs 165.º, n.º 1, alínea i), e 103.º, n.º 2 da CRP, e que o Douto
Acórdão recorrido vem aplicar, remetendo para “a lei do POC” a respectiva
autorização legal e, em consequência, adoptando, também aqui, uma interpretação
do Plano Oficial de Contabilidade (aprovado por Decreto-Lei; não autorizado por
Lei da Assembleia da República) violadora do referido princípio constitucional
da legalidade em matéria tributária e, também, do art.º 112.º, n.º 6 da CRP que
refere que “Nenhuma lei pode (...) conferir a actos de outra natureza o poder
de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar
qualquer dos seus preceitos.”; e,
b) A inconstitucionalidade das normas contidas na Circular n.º 19/89, de 18 de
Dezembro da Direcção-Geral dos Impostos, que estabelecendo um critério único
para diversos sectores de actividade, numa tentativa de “interpretar” o conceito
legal de usos comerciais, violar o Princípio da Igualdade.
3.º
Ora, a Douta Decisão Sumária, de que se reclama, vem concluir que “não pode
tomar-se conhecimento do objecto do recurso”, por considerar que “a recorrente
não suscitou, em termos processualmente adequados, perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, qualquer questão de constitucionalidade normativa,
em termos de colocar esse tribunal na obrigação de dela conhecer”
4.º
Isto porque, por um lado, “não são atendíveis [para efeito de suscitação de
questões de inconstitucionalidade] nem a petição inicial da impugnação judicial
(...), nem a invocada «reclamação para a conferência do TCA, a qual tinha por
objecto o acórdão recorrido»”,
5.º
E, por outro lado, que na contra-alegação de recurso “não foi suscitada qualquer
questão de inconstitucionalidade tendo por objecto as normas da referida
circular”.
6.º
Ora, salvo o devido respeito, que e muito, a Recorrente não pode conformar-se
com estas conclusões.
7.º
Efectivamente, a Recorrente suscitou, também, nas suas contra-alegações de
recurso as questões cuja inconstitucionalidade se pretende submeter à apreciação
deste Venerando Tribunal Constitucional. Vejamos as passagens concretas dessas
contra-alegações:
83.º
De acordo com o princípio da legalidade tributária, a incidência, bem como as
taxas de imposto, carecem da forma de Lei ou de Decreto-Lei autorizado.
133.º
Esquecendo-se que o princípio da igualdade consiste, precisamente em tratar
igual o que é igual e diferenciadamente o que é desigual.
146.º
Não o fazendo, é a Administração Fiscal viola o princípio da igualdade por não
tratar de forma desigual situações que não são, de facto, iguais.
8.º
Ora, salvo o devido respeito, a Recorrente expressamente considerou que o
princípio da legalidade tributária e o princípio da igualdade seriam violados
pela circular em questão.
9.º
Isto é, suscitou, em tempo e de modo adequado, a violação dos referidos
princípios constitucionais.
10.º
De resto, ao afirmar que “De acordo com o principio da legalidade tributária, a
incidência, bem como as taxas de imposto, carecem da forma de Lei ou de
Decreto-Lei autorizado”‘ não esta mais do que a parafrasear o disposto no art.º
103.º, n ° 2 da CRP: “Os impostos são criados por lei que determina a
incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.”
11.º
E, ao afirmar que “o principio da igualdade consiste, precisamente em tratar
igual o que é igual e diferenciadamente o que é desigual.” também não está mais
do que a enunciar o brocado jurídico que caracteriza este mesmo princípio
constitucional.
12.º
De resto, pelo facto de a Recorrente ter suscitado as questões da
inconstitucionalidade das normas da referida circular, por violação do princípio
da legalidade em matéria tributária e do princípio da igualdade, o Acórdão
recorrido pronunciou-se sobre estas questões.
13.º
Pelo que, não é verdade que a Recorrente não tenha suscitado as questões de
inconstitucionalidade perante o Tribunal recorrido “em termos de colocar esse
tribunal na obrigação de dela[s] conhecer.”
14.º
Na verdade, o Acórdão recorrido aborda a questão do principio da legalidade em
matéria tributária e da sua (não) violação pelas normas da circular em crise,
nos seguintes termos: “é certo que a orientação administrativa que imponha certa
interpretação da lei não vincula o tribunal, nem tal interpretação pode derrogar
o princípio da legalidade tributária.”
15.º
“É certo que, face à lei os procedimentos definidos pela A T (nomeadamente
através de Circulares) não podem derrogar o princípio da legalidade tributária.”
16.º
Ou seja, o Acórdão recorrido pronuncia-se expressa mente sobre o princípio
constitucional da legalidade tributária, porque, de resto, a Recorrente os
invocou na apreciação que fazia da aplicação da circular em questão.
17.º
E, por outro lado, o Acórdão recorrido considera que “Daí que não possa,
contrariamente ao alegado pela recorrida nas suas contra-alegações, aceitar-se a
alegação de que a circular em causa viola o princípio da igualdade.”
18.º
É o próprio Acórdão recorrido que reconhece que a Recorrente alegou a violação
do princípio da igualdade nas suas contra-alegações de recurso.
19.º
“Conclui-se, pois, que, em face da, a nosso ver, demonstrada não arbitrariedade
do critério consagrado no Ofício circular em causa (Isto ó em face da sua
demonstrada justificação razoável), o mesmo não viola o principio de igualdade
previsto no art. 13º da CRP, nomeadamente nos termos configurados pela
recorrente.”
20.º
Isto é, o Acórdão recorrido, depois de alegado pela Recorrente, considera que
inexiste violação do princípio da igualdade “previsto no art 13º da CRP,
nomeadamente nos termos configurados pela recorrente.”
21.º
Assim, não poderão restar dúvidas que (i) a Recorrente suscitou, em tempo, as
questões de inconstitucionalidade normativa cuja apreciação requer a este
Venerando Tribunal, tal como reconhecido pelo Acórdão recorrido,
22.º
E (ii) de tal modo o suscitou, em termos processualmente adequados, perante o
tribunal que proferiu a decisão recorrida, (…) em termos de colocar esse
tribunal na obrigação de dela conhece,” que o Acórdão recorrido se pronuncia
expressamente sobre estas questões e referindo que as aprecia em termos
contraditórios aos alegados pela Recorrente.
23.º
A conclusão só pode, assim, ser uma este Venerando Tribunal deve conhecer as
questões suscitadas, porquanto se verificam todos os pressupostos processuais.
24.º
O que a Recorrente admite e que não suscitou a questão da violação do principio
constitucional da legalidade tributária na perspectiva que o Douto Acórdão
recorrido também o faz.
25.º
Isto é, ao interpretar que o Plano Oficial de Contabilidade (aprovado por
Decreto-Lei não autorizado por Lei da Assembleia da República) pode conter noras
de incidência fiscal ou autorizar uma circular a fazê-lo.
26.º
O que, de resto, se explica de forma que a Recorrente considera singela:
27.º
O Douto Acórdão recorrido, ao considerar que, de acordo com “a lei do POC’, as
ofertas “serão tidas como custo fiscal desde que devidamente documentadas e não
excedam os limites considerados razoáveis pela DGCI.”, interpreta este diploma
de forma também ela inconstitucional, i.e, admitindo que um decreto-lei não
precedido de autorização legislativa pode determinar normas de incidência fiscal
(violando, assim, o disposto nos art.ºs 165.º, n.º 1, alínea i), e 103.º, n.º 2
da CRP),
28.º
Mas também, reconhecendo a possibilidade de este diploma remeter para uma
circular essa delimitação de incidência fiscal, viola o disposto no art.º 112.º,
n.º 6 da CRP.
29.º
E esta é, de resto, a base fundamental para toda a decisão do Acórdão recorrido
cujas inconstitucionalidades a Recorrente reconhece que não suscitou, excepto em
sede de pedido de aclaração e de reclamação para a conferência;
30.º
Mas, a razão para não o ter feito nas suas contra-alegações de recurso é
manifesta:
31.º
A Douta Sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Primeira Instância de
Lisboa julgou procedente a impugnação judicial apresentada pela ora Recorrente,
aderindo, assim, às questões suscitadas e nunca abordando a tese sustentada no
Acórdão recorrido,
32.º
Também a Fazenda Publica, no procedimento administrativo, na sua contestação ou
nas suas alegações de recurso, não sustenta, de forma alguma, a tese original de
que, de acordo com “a lei do PQC’, as ofertas “serão tidas como custo fiscal
desde que devidamente documentadas e não excedam os limites considerados
razoáveis pela DGCI.”
33º
Assim, o primeiro momento em que a ora Recorrente se confrontou com tal doutrina
foi com a prolação do Acórdão recorrido.
34.º
Com efeito, nem mesmo a Fazenda Pública, em fase alguma do processo, defendeu
tão absurda tese.
35.º
O que, de resto se explica, uma vez que o Plano Oficial de Contabilidade não tem
ínsita a norma que o Acórdão recorrido aí pretendeu encontrar, nem o poderia
fazer, sob pena das inconstitucionalidades arguidas.
36.º
Como, de resto, o Supremo Tribunal Administrativo já teve oportunidade de se
pronunciar por inúmeras vezes, “a «lei do POC» [...] nada adianta relativamente
ao regime a que estão sujeitas as ofertas de pequeno valor, no concernente ao
IVA (cfr. Acórdãos proferidos pela 2.ª Secção Tributária do Supremo Tribunal
Administrativo no âmbito dos processos números 53/07, em 26 de Abril de 2007,
106/07, em 2 de Maio de 2007, e 1167/06, em 16 de Maio de 2007).
37.º
E, em momento algum, a Recorrente, a Fazenda Pública ou o Tribunal Tributário de
Primeira Instância alguma vez fizeram qualquer referência à “lei do POC”.
38.º
Assim verifica-se, quanto a esta questão, uma situação clara de dispensa do ónus
de suscitar esta inconstitucionalidade em momento anterior à prolação do
Acórdão.
39.º
O que, parece óbvio, já que a Recorrente não poderia antecipar ou imaginar
aquela que foi uma verdadeira “decisão surpresa”,
40.º
E que se funda na esteira da Jurisprudência deste Venerando Tribunal.
41.°
Isto é, a Recorrente “não teve oportunidade processual de suscitar a
inconstitucionalidade deste normativo, antes da prolação do aresto recorrido”
(Cfr Acórdão n.º 153/99, proferido em 9 de Março de 1999 por este Venerando
Tribunal Constitucional, no âmbito do processo n.º 1/99).
42.º
Por este facto, “o Tribunal Constitucional também tem reconhecido poderem
ocorrer situações em que não é exigível o cumprimento desse ónus, como sucederá
quando o recorrente, ou não dispôs de oportunidade para invocar a
inconstitucionalidade, ou foi – objectivamente – surpreendido com a aplicação de
uma norma, ou de uma sua interpretação, com a qual não podia razoavelmente
contar.” (Cfr. Acórdão n.º 113/2003, proferido em 21 de Fevereiro de 2003 por
este Venerando Tribunal Constitucional, no âmbito do processo n.º 34/2003).
43.º
E, mais recentemente, este Venerando Tribunal Constitucional explicita que “A
abertura excepcional do recurso de constitucionalidade, apesar de o interessado
não ter colocado a questão anteriormente a aplicação da norma pelo tribunal a
quo, fundada no carácter inesperado ou insólito da aplicação da norma ao caso ou
da sua aplicação com determinado sentido, só se justifica naquelas situações –
que, face à estrutura contraditória do processo, serão sempre hipóteses
excepcionais ou anómalas – em que o recorrente não tenha disposto de
oportunidade processual, agindo com normal diligência e previsão, de confrontar
esse tribunal com a inconstitucionalidade dessa norma ou sentido normativo. Não
é a simples improbabilidade de adopção de determinado entendimento pelo tribunal
da causa, considerando o seu carácter erróneo ou injusto, mas o seu carácter
imprevisível que releva para o efeito. Ora, reagindo o recorrente perante o
tribunal superior contra determinada interpretação de um dado preceito legal
adoptada pela instância que proferiu a decisão que impugna, por mais convencido
que esteja do acerto da sua pretensão, tem de prever que uma das possibilidades
de solução do litigio consista na confirmação desse entendimento que tem por
errado ou injusto. “(Cfr. Acórdão n.º 549/2006, proferido em 9 de Outubro de
2006 por este Venerando Tribunal Constitucional, no âmbito do processo n.º
686/06).
44.º
Ora que realidade poderá constituir maior surpresa do que a invenção de uma
norma inexistente, como sobejamente reconhecido pelo Venerando Supremo Tribunal
Administrativo,
45.º
Sustentando uma tese em termos que nem a Fazenda Pública o havia feito!
46.º
Razão pela qual, considera a Recorrente que, em resumo, suscitou, em tempo, as:
questões de inconstitucionalidade normativa que poderia ter suscitado, não tendo
suscitado aquelas que vieram a constituir uma verdadeira “decisão surpresa” com
o Acórdão recorrido.
47.º
Termos em que deverão considerar-se verificados os pressupostos legais de
admissão do presente recurso.
48.º
Pelo que a presente reclamação deverá ser deferida e, em consequência, deverá
conhecer-se do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade
interposto e,
49.º
A final, concluir-se “que a referida Circular n.º 19/89, no ponto em apreço, é
material e organicamente inconstitucional, pois contém uma regra de incidência
objectiva de IVA que não foi criada por diploma emanado da Assembleia da
República, em matéria que se insere na reserva relativa de competência
legislativa da desta (art. 103.n.º 2, e 165º, n.° 1, alínea i) da CRP, na
redacção vidente, a que correspondem os arts. 106.º, n.º 2, e 168.º. n.º 1,
alínea i), respectivamente, nas redacções de 1982 e1989.” (cfr. Acórdãos
proferidos pela 2.ª Secção Tributária do Supremo Tribunal Administrativo no
âmbito dos processos números 1180/06, em 21 de Março de 2007, 7/07, em 26 de
Abril de 2007, e 203/08 e 204/08, ambos em 14 de Julho de 2008).
50.º
Porquanto, que situação poderá merecer maior tutela deste Venerando Tribunal
Constitucional do que a flagrante violação da Nossa Constituição, violação
reconhecida ad nauseam pelo Venerando Supremo Tribunal Administrativo, e que até
o próprio Autor material do Acórdão Recorrido – Juiz Desembargador Gomes Correia
– já veio reconhecer (com a sua declaração de voto) como incorrecta (cfr.
Acórdão proferido pelo 2.º Juízo, 2.ª Secção do Tribunal Central Administrativo
Sul em 1 de Abril de 2008, no âmbito do processo n.º 1613/07).»
A recorrida Fazenda Nacional respondeu pugnando pela improcedência
da reclamação.
Cumpre decidir.
3. Os argumentos apontados pela reclamante não são, porém, susceptíveis de
abalar os fundamentos da decisão sumária, como melhor se explicitará.
De acordo com o requerimento de interposição de recurso, conforme se mencionou
na decisão sumária, a reclamante pretendia a apreciação das seguintes questões:
a) Da inconstitucionalidade da «aplicação da Circular n.º 19/89, de 18 de
Dezembro, da Direcção‑Geral dos Impostos, que cria uma norma de incidência
fiscal distinta daquela que está prevista na alínea f), in fine, do n.º 3 do
artigo 3.º do Código do IVA, violando, assim, o princípio da legalidade em
matéria de incidência fiscal, previsto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea i), e
103.º, n.º 2, da CRP», invocando que «[a] inconstitucionalidade foi sobejamente
suscitada durante o processo, [n]omeadamente, em sede de petição inicial do
processo de impugnação judicial», nas «contra-alegações de recurso para o TCA» e
em sede de «reclamação para a conferência do TCA, a qual tinha por objecto o
acórdão recorrido», e
b) Da inconstitucionalidade material do conteúdo da referida Circular, «por
violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da CRP», questão
que teria sido «sobejamente suscitada durante o processo, como se recolhe,
nomeadamente, das contra-alegações de recurso para o TCA apresentadas pela ora
recorrente».
Entendeu-se na decisão ora reclamada não poder conhecer-se do
objecto do recurso, quanto às duas questões colocadas, porque a recorrente não
suscitou, em termos processualmente adequados, perante o tribunal que proferiu a
decisão recorrida, qualquer questão de constitucionalidade normativa, em termos
de colocar esse tribunal na obrigação de dela conhecer.
Para assim se concluir considerou-se que:
(i) Na contra‑alegação relativa ao recurso
interposto pela Fazenda Pública, endereçada ao Tribunal Central Administrativo
(fls. 996 a 1037), não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade
tendo por objecto as normas da referida Circular, à qual são apenas
endereçadas acusações explicitamente qualificadas pela recorrente como
constituindo ilegalidades (cf. conclusões G e H), por «falta de habilitação
legal para interpretar extensivamente normas de incidência tributária», e por
«por violar o princípio da igualdade ao pretender tratar da mesma forma
situações objectivamente desiguais, tais como os usos comerciais» (cf.
conclusões O e P); e
(ii) Que as interpretações normativas acolhidas no
acórdão recorrido, com referência às questões colocadas pela recorrente neste
recurso, nada têm de insólito ou de imprevisto, pois correspondem, na sua
essência, às teses defendidas na alegação da então recorrente Fazenda Pública,
pelo que a recorrente teve oportunidade processual para, nas contra-alegações
por si apresentadas no recurso para o Tribunal Central Administrativo, suscitar
adequadamente as questões de inconstitucionalidade que agora pretende ver
apreciadas.
A reclamante, discordando da decisão tomada, afirma que suscitou nas
contra-alegações de recurso as questões de constitucionalidade que pretende
submeter à apreciação deste Tribunal, indicando que o fez nas seguintes
passagens daquela peça processual:
- No artigo 83.º: “De acordo com o princípio da legalidade tributária, a
incidência, bem como as taxas de imposto, carecem da forma de Lei ou de
Decreto‑lei autorizado”;
- No artigo 133.º: “Esquecendo‑se que o princípio da igualdade consiste,
precisamente, em tratar igual o que é igual e diferenciadamente o que é
desigual”; e
- No artigo 146.º: “Não o fazendo, a Administração Fiscal viola o
princípio da igualdade por não tratar de forma desigual situações que não são,
de facto, iguais”.
Ora, é manifesto que estas afirmações genéricas e a imputação à Administração
Fiscal da violação do princípio da igualdade não constituem forma adequada de
suscitação das duas questões de inconstitucionalidade que, no requerimento de
interposição de recurso, são reportadas à Circular n.º 19/89, de 18 de Dezembro,
da Direcção‑Geral dos Impostos.
Alega ainda a reclamante que o acórdão recorrido se pronunciou sobre o princípio
da legalidade tributária e se o fez foi porque a recorrente o invocou na
apreciação que fazia da aplicação da circular em questão, e que o mesmo aresto
considera que a recorrente alegou a violação do princípio da igualdade nas suas
contra‑alegações de recurso.
Porém, como constitui entendimento reiterado deste Tribunal, a invocação da
violação de princípios constitucionais que não seja, como é o caso, directamente
imputada a normas jurídicas, ou à interpretação que delas haja sido feita pela
decisão recorrida, não constitui forma adequada de suscitação da questão de
constitucionalidade. E o facto de o Tribunal recorrido ter apreciado a violação
dos princípios constitucionais invocados não tem por virtualidade abrir à parte,
que não tenha suscitado uma questão de constitucionalidade normativa, a via do
recurso de constitucionalidade.
Por fim, alega a reclamante ter sido surpreendida pela interpretação feita no
acórdão recorrido da “lei do POC”, o que, no seu entendimento, justificaria o
facto de não ter suscitado nas suas contra-alegações a questão de
constitucionalidade.
Sucede, porém, que no requerimento de interposição de recurso a reclamante não
elegeu como questão de constitucionalidade a interpretação dada às normas do
POC, pelo que tais normas não integram o objecto do recurso. Deste só fazem
parte as duas questões identificadas na decisão ora reclamada.
É certo que, no requerimento de interposição de recurso, a recorrente invoca a
aplicação da “lei do POC”, afirmando que «[…] a remissão para a “lei do POC”
feita pelo Douto Acórdão, mesmo que existisse, como erroneamente se refere, não
resolveria a questão» e que, «[a] haver uma disposição do Plano Oficial de
Contabilidade que dispusesse que as ofertas “serão tidas como custo final desde
que devidamente documentadas e não excedam os limites considerados razoáveis
pela DGCI”, teria como resultado a impossibilidade da sua aplicação por
inconstitucionalidade formal» (cf. artigos 15.º e 16.º). Mas, além de não
identificar a norma do POC a que se refere, para a qual terá remetido o acórdão
recorrido, coloca em causa a sua própria existência, não apresentando nesta peça
processual uma concreta questão de constitucionalidade normativa.
Deste modo, reitera‑se o entendimento de que a reclamante não
suscitou adequadamente, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, as
questões de inconstitucionalidade que pretendia ver apreciadas, o que torna o
recurso inadmissível e determina o não conhecimento do seu objecto.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar a reclamante nas
custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 7 de Outubro de 2008
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão