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Processo n.º 610/08
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. e B., Lda. vêm reclamar da decisão judicial que indeferiu o seu
requerimento de recurso para este Tribunal ao abrigo do disposto no artigo 76.º,
n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional.
Conclui a sua reclamação nos seguintes termos:
“1° As normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada pelo recorrente (n°s 2 e
3 do artigo 103° do RGIT) foram, pela primeira vez, aplicadas no processo, na
douta decisão instrutória.
2° Logo que proferida a douta decisão instrutória foi suscitada a sua
correcção/aclaração, tendo em conta a interpretação feita de tais normas, uma
vez que a douta acusação não havia subsumido a conduta dos arguidos àquela
qualificação jurídica.
3° A douta decisão instrutória e nela a interpretação daquelas normas foi,
assim, uma decisão inesperada, pelo que antes não tiveram os reclamantes a
‘oportunidade processual’ de suscitar a inconstitucionalidade da interpretação.
4° Já que a interpretação – que fere a Constituição, no entender dos reclamantes
– só foi pela primeira vez expressa nos autos na douta decisão instrutória.
5° A qual é irrecorrível.
6° Razão pela qual apenas no requerimento em que pediram a correcção daquela
douta decisão foi invocada a inconstitucionalidade que pretendem ver apreciada,
requerimento que foi o primeiro e único momento em que, processualmente, após a
interpretação posta em crise, pôde ser invocada a inconstitucionalidade da
interpretação.
7° Deve, pelo exposto, ser a presente reclamação deferida, determinando-se o
recebimento do recurso oportunamente interposto.”
O despacho reclamado tem o seguinte teor:
“No art. 70.°, n.° 1, al. b) da Lei Orgânica sobre Organização e Funcionamento
dos Tribunais Judiciais (Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro), dispõe-se que cabe
recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais:
b) que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o
processo.
E se bem nos parece, resulta claramente da análise deste preceito que a questão
da inconstitucionalidade tem, necessariamente, de ter sido suscitada antes da
prolação da decisão de que se pretende recorrer para o TC, de modo a esta se
pudesse ter pronunciado quanto a ela.
O tempo verbal utilizado pelo legislador inculca manifestamente esta conclusão,
pois fala-se em decisões que apliquem norma que cuja inconstitucionalidade haja
sido suscitada (sublinhado nosso) durante o processo, pressupondo-se assim que
quando a decisão de que se pretende recorrer é proferida, já a questão da
eventual inconstitucionalidade da norma aplicada tem de mostrar suscitada no
processo.
No caso dos autos, porém, o que se verifica é que a questão da
inconstitucionalidade apenas foi suscitada depois de ter sido proferida a
decisão instrutória de que agora se pretende interpor recurso, pelo que nos
parece líquido que tal recurso não pode ser admitido com base no aludido
preceito.
E não se diga, contra isto, que a subsunção da conduta dos arguidos requerentes
no art. 103 n.° 2 e 3 do RGIT constituiu surpresa, pois se é um facto que tais
normativos não foram inscritos no despacho de acusação proferido pelo Ministério
Público, não nos podemos esquecer que o crime que aí lhes é imputado, e pelo
qual, aliás, foram agora pronunciados, é o crime de fraude fiscal qualificada
previsto no 104.°, n.° 2 do mesmo diploma legal, crime esse cuja definição
típica, como não podia deixar de ser, arranca do tipo fundamental do crime de
fraude fiscal simples, previsto nos n.° 1, 2 e 3 do art. 103.º RGIT.”
O requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade dispõe, no que
ora importa, o seguinte:
“l.º O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n° 1 do artigo 70° da Lei
28/86 de 15. 11 na redacção dada pela Lei 85/89 de 07.09 e pela Lei 13-A/98 de
26.02.
2.º O recurso é admissível porque a douta decisão da 1.ª instância não é
passível de recurso ordinário (artigo 310.º do Código de Processo Penal) e a
questão da inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo no pedido de
correcção da douta decisão instrutória da 1.ª instância.
3° E surgiu apenas pela interpretação imprevista dos n°s 2 e 3 do artigo 103° do
RGIT sendo certo que até aí nunca a conduta dos arguidos havia sido subsumida a
tal norma, pelo que antes não tinham tido os arguidos a “oportunidade
processual” de suscitar a questão.
4° Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade do artigo 103° n.ºs 2 e 3
do RGIT, na interpretação que lhe foi dada na douta decisão recorrida, ao
considerar que a vantagem patrimonial referida nessa norma só pode ser entendida
como beneficio patrimonial global retirado pelo agente de todas as plúrimas
realizações do ilícito típico.
5° Tal norma, interpretada nos termos sobreditos, viola os princípios da
igualdade e da aplicação da lei mais favorável, ínsitos nos artigos 13° e 29° n°
4 da Constituição da República Portuguesa.”
2. Notificado para alegar, veio o Exmo. Representante do Ministério Público
junto deste Tribunal manifestar-se no sentido da manifesta improcedência da
reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. A reclamação deduzida carece manifestamente de fundamento.
O conhecimento de recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea
b), da Lei do Tribunal Constitucional, como sucede nos autos, depende da prévia
verificação de vários requisitos, independentemente de se colocar a questão da
interposição directa do recurso para este Tribunal, desde logo a suscitação,
pelos reclamantes, de inconstitucionalidade de uma norma durante o processo,
constituindo essa norma fundamento (ratio decidendi) da decisão recorrida, bem
como o prévio esgotamento dos recursos ordinários.
Não obstante a suposta normatividade com que agora, em sede de reclamação,
formulam o objecto do recurso, o certo é que, durante o processo, os Reclamantes
jamais lograram suscitar uma questão de constitucionalidade normativa de forma a
adequadamente convocar a pronúncia do Tribunal Constitucional em autos de
fiscalização concreta.
A suscitação de questão de constitucionalidade dita normativa, apta a
adequadamente convocar a pronúncia do Tribunal Constitucional implica que “a
parte identifique expressamente [ess]a intepretação ou dimensão normativa, em
termos de o Tribunal, no caso de a vir a julgar inconstitucional, a poder
enunciar na decisão, de modo a que os respectivos destinatários e os operadores
do direito em geral fiquem a saber que essa norma não pode ser aplicada com tal
sentido.” (Lopes do Rego, O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta
da constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal
Constitucional, in Jurisprudência Constitucional, n.º 3, Julho-Setembro de 2004,
p. 8).
Ora, no pedido de correcção da decisão instrutória, os reclamantes não
enunciaram, de forma minimamente adequada, a questão de constitucionalidade,
limitando-se a referir uma pretensa violação do princípio da igualdade (artigo
13.º) e do artigo 29.º, n.º 4 da Constituição da República.
4. Nos termos do disposto nos artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição e
70.º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, a questão de
constitucionalidade deve ser suscitada durante o processo.
Esta expressão tem sido objecto de jurisprudência pacífica e reiterada deste
Tribunal, entendendo-se a suscitação em sentido funcional, de modo a que o
tribunal recorrido ainda possa conhecer da mesma antes de esgotado o respectivo
poder jurisdicional (confiram-se, a título de exemplo, os Acórdãos n.ºs 62/85,
90/85, 90/85 e 450/87, publicados, respectivamente, no Diário da República, II
Série, de 31 de Maio de 1985 e 11 de Julho de 1985, e nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 10.º volume, pp. 573 e seguintes).
É certo que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem aceite e reconhecido
situações-limite em que não é exigível o cumprimento deste ónus por parte do
recorrente.
Tal sucede quando, por exemplo, o interessado não teve qualquer oportunidade
processual para intervir, formulando nos termos tidos por convenientes, a
impugnação jurídico-constitucional atinente a determinada norma, respectivo
segmento, conjunto de normas ou dimensão normativa.
A ausência de oportunidade processual foi já aferida quando, entre outras
situações, o Tribunal considerou não ser exigível, ao recorrente, a antecipação
da aplicação ao caso concreto de determinada norma ou interpretação normativa (é
o caso, por exemplo, dos Acórdãos n.ºs 61/92 e 272/92, publicados,
respectivamente, no Diário da República, II Série, de 18 de Agosto e 23 de
Novembro de 1992).
Para que tal excepção proceda, no entanto, é imperioso que se esteja perante uma
factualidade de tal modo anómala ou excepcional que a situação de aplicação ou
interpretação normativa seja realmente imprevista ou inesperada em termos tais
que a antecipação da mesma e, consequentemente, a suscitação da questão de
constitucionalidade em momento anterior ao do esgotamento do poder jurisdicional
do tribunal recorrido, não seja exigível ao interessado.
Como se afirmou no Acórdão n.º 479/89, publicado no Diário da República, II
Série, de 24 de Abril de 1992, “ (…) desde logo terá de ponderar-se que não pode
deixar de recair sobre as partes em juízo o ónus de considerarem as várias
possibilidades interpretativas das normas de que se pretendem socorrer, e de
adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais (por outras
palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada).
E isso – acrescentar-se-á também logo mostra como a simples «surpresa» com a
interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos,
certamente, em princípio) a configurar uma dessas situações excepcionais
(voltando agora à nossa questão) em que seria justificado dispensar os
interessados da exigência de invocação «prévia» da inconstitucionalidade perante
o tribunal a quo.” (sublinhado nosso)
5. A decisão do Tribunal Judicial de Aveiro não pode ser considerada uma
“decisão surpresa”, não possuindo carácter insólito ou imprevisível para efeitos
de dispensa do cumprimento adequado de suscitação da questão de
constitucionalidade durante o processo, até porque se considerou que, no tipo
legal de fraude fiscal continuado, a vantagem patrimonial corresponde ao
benefício patrimonial global retirado pelo agente das diversas realizações do
acto ilícito, sendo, aliás, claro na acusação deduzida, esta interpretação.
Assim sendo, e como disse o Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto deste
Tribunal Constitucional: “(…) Cabia, deste modo, aos ora reclamantes o ónus de
terem suscitado, antes da prolação da decisão instrutória, a questão de
inconstitucionalidade que só intempestivamente colocaram.”
III – Decisão
6. Sem necessidade de maiores considerações, acordam em indeferir a presente
reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido de não
tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 31 de Julho de 2008
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos