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Processo n.º 538/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da
LTC:
“1. A., B. e C., recorreram para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea
b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do
seguinte despacho do Conselheiro Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça:
“1. As arguidas A., B. e C. interpuseram recurso para este Supremo Tribunal de
Justiça do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que manteve a
decisão da 1ª instância que as condenara como co-autoras, em concurso efectivo,
pela prática de um crime de burla qualificada e um de falsificação de documento,
na pena única de 3 anos de prisão para cada uma delas, reduzindo, todavia, o
período de suspensão da execução da pena para igual período, condicionada ao
dever de pagamento, através de depósito nos autos e por conta da indemnização
cível arbitrada, da quantia de € 20 000,00 por cada umas delas, em quatro
prestações de € 5 000,00.
O Ex.mo Desembargador Relator proferiu despacho referindo que no caso dos autos,
o recurso não é admissível nos termos do art. 400º, n.º 1, alínea f), do CPP,
quer na redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007 quer na anterior.
Desse despacho reclamam as recorrentes, sustentando, além do mais, que à
situação em apreço deve ser aplicado o art. 400º, n.º 1, alínea f), do CPP, na
redacção anterior à Lei n.º 48/07, por força do art. 50, n.º 2, alínea a), do
CPP, e 18.º da CRP, este último por confronto com o art. 399.º do CPP, em
conformidade com o art. 32.º, n.º 1, da CRP.
Foi mantido o despacho reclamado.
Notificadas desse despacho vieram as arguidas apresentar novo requerimento a
fls. 24 dirigido ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
II. Cumpre apreciar e decidir.
Em processo penal, para que seja admissível recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça é necessário que se verifique alguma das situações previstas no art.
432.º do CPP.
Assim, impõe-se desde logo fazer apelo à alínea b) do n.º 1 do referido art.
432.º, onde se determina que se recorre para o STJ “de decisões que não sejam
irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do art. 400.º” E
deste preceito destaca-se a alínea f) do seu n.º 1, na redacção introduzida pela
Lei n.º 48/2007, de 29/08, que estabelece serem irrecorríveis os “acórdãos
condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de a
instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.
Deste modo, nos termos da mencionada alínea f), o acórdão questionado é
insusceptível de recurso, tendo em conta a pena aplicada a cada uma das
arguidas, em ambas as instâncias.
E, diversamente do sustentado pelas ora reclamantes, ao abrigo da anterior
redacção da alínea f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP também o recurso não era
admissível, por estarmos perante um acórdão condenatório proferido pelo Tribunal
da Relação de Lisboa em processo em que a pena abstractamente aplicável a cada
um dos crimes, em concurso, é inferior a 8 anos.
Assim sendo, não é o recurso admissível para este Supremo Tribunal.
Por último, não nos cabe conhecer do requerimento apresentado a fls. 24 por o
art. 405.º do CPP, apenas impor o conhecimento da reclamação formulada contra o
despacho de não admissão do recurso.
III. Pelo exposto, indefere-se a presente reclamação.”
2. As recorrentes pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie:
“… o resultado concreto e actual da sucessão de leis em torno da alínea f) do nº
1 do art. 400º do Código de Processo Penal, no segmento interpretativo segundo o
qual a um processo criminal relativo a factos datados de 1996 e 1997 e no qual
não houve identidade rigorosa entre as decisões tomadas na primeira e na segunda
instâncias judiciais seria aplicável uma versão impeditiva do exercício do
direito de recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça por força da
desconsideração da mais recente alteração ao preceito legal em causa na
interpretação actualista e conforme à Constituição a respeito do confronto entre
penalidades em abstracto («molduras penais», medidas legais de pena ou penas
aplicáveis) e penalidades em concreto (ou penas aplicadas ou medidas judiciais
de pena).”
3. Ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, cabe recurso para o
Tribunal Constitucional das decisões dos demais tribunais que apliquem norma
cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada perante o tribunal que proferiu a
decisão recorrida, de modo processualmente adequado, em termos de este estar
obrigado a dela conhecer (artigo 70.º n.º 1, alínea b) e artigo 72.º, n.º 2, da
LTC).
Importa notar, em primeiro lugar, que a competência cognitiva do Tribunal em
recurso de fiscalização concreta é restrita à constitucionalidade (ou
ilegalidade) de normas e não de actos de outra natureza, não lhe cabendo,
designadamente, apreciar a conformidade à Constituição da decisão judicial em si
mesma considerada. Assim, para abrir a via do recurso ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a questão de constitucionalidade tem de ser
colocada por referência a uma norma concretamente identificada que venha a
constituir a ratio decidendi da decisão recorrida. Isto é, salvo casos
excepcionais ou anómalos que não vem ao caso enunciar, o interessado tem de
chamar o órgão judiciário perante o qual a pretensão é deduzida a deixar de
aplicar, usando o poder funcional a que se refere o artigo 204.º da
Constituição, uma determinada norma ou um sentido normativo precisamente
definido.
E, em segundo lugar, importa lembrar que incumbe ao recorrente, além do mais,
indicar a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie e
a peça processual em que suscitou a questão de constitucionalidade (artigo
75.º-A da LTC). Não pode o Tribunal substituir-se ao recorrente naquela
identificação.
4. Ora, desde logo, é muito duvidoso que a proposição que as recorrentes
apresentam para verificação de conformidade à Constituição constitua uma norma
para efeitos do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade. Vai,
todavia e neste momento, prescindir-se de discutir este aspecto porquanto é
seguro que outros motivos impedem o prosseguimento do recurso.
4.1. Com efeito, as recorrentes não suscitaram qualquer questão de
constitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, isto é, na reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de
Justiça, deduzida ao abrigo do artigo 405.º do Código de Processo Penal, do
despacho que não admitiu o recurso do acórdão da Relação para aquele Supremo
Tribunal.
No requerimento de reclamação limitam-se a afirmar que:
“(…) a alínea f) do nº 1 do art. 400º do Código de Processo Penal tem de ser
aplicada:
1) em versão anterior à determinada pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, por
força do art. 5.º nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal, necessariamente
interpretado à luz do art. 32.º, nº 1, in fine, da Constituição;
2) e restritivamente, por força da incidência directa dos três números do art.
18º também da Constituição, por confronto com o principio geral da
recorribilidade, ex vi cio art. 399° do Código de Processo Penal (e também este,
evidentemente, à luz do art. 32°, no 1, in fine, da Constituição);
Por isso se disse logo n° «I» da motivação do recurso que terá de se aplicar a
alínea b) do nº 1 do art. 432º do Código de Processo Penal à luz do nº 1 do art.
32º da Constituição.”
Ora, são as próprias recorrentes que reconhecem que esta afirmação não traduz a
suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa. Respondendo ao
despacho de sustentação proferido pelo relator do processo no Tribunal da
Relação, dizem as agora recorrentes (aí reclamantes):
“(…)
4. E quanto à questão da inconstitucionalidade da norma mencionada: esta questão
de inconstitucionalidade agora e assim suscitada nos autos pelo Exmo. Sr.
Desembargador Relator não havia sido alegada pelas Recorrentes. O que estas
expressamente pediram, e reforçadamente pedem, é que o artigo 400º do Código de
Processo Penal seja aqui interpretado actualisticamente e em conformidade com a
Constituição: (i) que se atenda ao carácter necessariamente restritivo da lista
de que a alínea f) em referência faz parte (ii) que se atenda a que o confronto
imediatamente decorrente da redacção de 2007 esclarece ou ajuda a esclarecer os
limites da matéria cm causa (pena concreta agora mas pena abstracta
anteriormente): (iii) e, enfim, em razão da data dos factos, que não deixe de se
ponderar inclusivamente a redacção anterior a 1999.”
4.2. Por outro lado, a decisão recorrida não fez aplicação da suposta norma
indicada pelos recorrentes.
Para indeferir a reclamação e confirmar a não admissão do recurso interposto
para o Supremo Tribunal de Justiça, o despacho de 23 de Maio de 2008 (fls. 124),
que é o objecto do presente recurso, procedeu do seguinte modo:
Num primeiro momento, verificou que o acórdão recorrido (i) confirmou a sentença
de 1.ª instância (ii) e aplicou pena de prisão não superior a 8 anos. Concluiu
daqui, por aplicação da norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de
Processo Penal, na redacção emergente da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que o
recurso não era admissível, tendo em consideração a pena aplicável em ambas as
instâncias.
Depois, fazendo aplicação do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º do
Código de Processo Penal, testou o resultado da aplicação do anterior regime de
recursos em processo penal. E, por aplicação da norma da alínea f) do n.º 1 do
artigo 400.º, na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, igualmente concluiu pela
inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, considerando
que se trata de um acórdão condenatório, proferido pela relação em recurso, em
que a pena abstractamente aplicável a cada um dos crimes em concurso é inferior
a oito anos.
São estas as normas que funcionaram como ratio decidendi da decisão recorrida,
num iter cognitivo claro e rigorosamente definido, em ordem a determinar a lei
processual mais favorável ao exercício do direito de defesa por parte do
arguido. A qualquer delas poderia dirigir-se o recurso de constitucionalidade.
Não à suposta norma que os recorrentes identificam e que não corresponde ao
critério normativo de decisão adoptado pelo despacho recorrido.
5. Decisão
Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se:
a) Não conhecer do objecto do recurso;
b) Condenar as recorrentes nas custas, fixando a taxa de justiça em 7
(sete) unidades de conta (individualmente).”
2. Os recorrentes reclamam desta decisão com os seguintes fundamentos:
“[…]
11. O que se vem pedir, ao abrigo do artigo 77º da Lei do Tribunal
Constitucional, é que tanto o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator como os
restantes Exmos. Senhores Juízes Conselheiros que integram a Secção tenham a
coragem de modificar essa opinião, permitindo o exercício do direito ao recurso.
12. Porque é justamente deste que se trata: o que está cm causa nestes concretos
autos é uma questão grave de delimitação da extensão de um direito fundamental
preciso – como é o direito ao recurso jurisdicional interno em processo
criminal.
13. Uma questão grave por ser precisa e por dizer respeito directamente à
aplicação de um preceito normativo constitucional respeitante aos direitos,
liberdades e garantias, nos termos e para os efeitos do art. 18° da Lei
Fundamental.
14, Ora, por um lado, a Decisão Sumária pronuncia-se pela inadmissibilidade do
recurso por causa do que as Recorrentes não teriam feito no Supremo Tribunal de
Justiça: na reclamação que oportunamente apresentaram junto do Exmo. Senhor
Presidente desse alto tribunal, as Recorrentes não teriam suscitado uma questão
de inconstitucionalidade normativa.
15.Mas as Recorrentes vêm sucessiva e coerentemente pedindo aos Tribunais de
Recurso (e justamente nas peças processuais logo identificadas nos termos e para
os efeitos do cumprimento do disposto da última parte do n.º 2 do art. 75º-A da
Lei do Tribunal Constitucional) que uma determinada alínea [a alínea f) do nº 1
do art. 400º] do Código de Processo Penal seja interpretada conformemente à
Constituição à luz e num sentido determinados pela incidência de preceitos e
princípios constitucionais que têm tido o cuidado de precisar (in casu. o art.
32º, nº 1, in fine, e o art. 18º, ambos da Lei Fundamental), dizendo, também
expressamente, que não o fazer corresponde à violação concreta destes preceitos
e princípios.
16. Decidir sumariamente pela inadmissibilidade do recurso – id est, sem
admissão sequer de que as Recorrentes explicitem melhor a sua posição através
das pertinentes alegações, em directa aplicação do art. 79º da Lei do Tribunal
Constitucional – equivaleria a urna dupla negação do direito ao recurso em face
de um ordenamento jurídico no qual, como no nosso, se projectam garantias
internacionalmente reconhecidas de promoção do acerto material das decisões
judiciárias.
17. E, por outro lado, a Decisão Sumária (agora, sob «4.2.») pronuncia-se pela
inadmissibilidade do recurso por causa do que o Supremo Tribunal de Justiça
teria decidido na espécie.
18. E esta decisão não teria a ver com a questão de constitucionalidade
suscitada.
19. Para tanto, refere-se a Decisão Sumária ao que teriam sido os primeiros
passos da decisão material em causa, sendo o primeiro deles a «verificação» de
que o «acórdão recorrido (...) confirmou a sentença de 1ª instância».
20. Atenção, no entanto: se as coisas tivessem sido apenas assim, isso mesmo
corresponderia a um erro judiciário, por isso que, como as Recorrentes também
têm tido o cuidado de precisar (e v. g., por último, no requerimento de recurso
apresentado em Junho no Supremo Tribunal de Justiça, sob nº «II, linhas 4 e 5),
nem esse que seria o primeiro requisito da denegação de recurso criminal se
encontra verificado no presente caso concreto: neste, hic et nunc, há
divergência material e formal entre as decisões das instâncias, não se podendo
jurisdicionalmente dizer que a segunda é uma confirmação da primeira.
21. Mas mais: a inconstitucionalidade cuja definição está em causa nos presentes
autos de recurso é uma inconstitucionalidade concreta e, como tal, concretamente
balizada: dizer, como na Decisão Sumária que importa superar (agora, nos últimos
§§ da respectiva página 5 e nas primeiras linhas da respectiva página 6) que a
ratio decidendi da decisão recorrida é uma determinada interpretação de normas
do Código de Processo Penal anteriores e posteriores à sua revisão em 2007 não
pode equivaler à falta de referência à necessidade da respectiva interpretação e
aplicação em conformidade com a Constituição.
22. Porque é justamente a necessidade dessa conformação que se ergueu a tema do
presente recurso: não está em causa uma qualquer interpretação mais ou menos
abstracta de normas do Código de Processo Penal, mas sim a respectiva
interpretação concreta (e, por isso, necessariamente actualista) à luz da
excepcionalidade (constitucionalmente fundada) dos casos de irrecorribilidade
criminal numa espécie em que (de novo, concretamente) não há duplo conforme
formal nem aplicação da lei mais favorável.”
3. O representante do Ministério Público reponde que “a reclamação apresentada
não logra pôr em causa o essencial da fundamentação da decisão sumária
proferida, pelo que deverá esta ser mantida e aquela indeferida.”
4. A reclamação é improcedente.
O recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC tem de versar,
como qualquer outro recurso de constitucionalidade no nosso sistema jurídico,
sobre a conformidade à Constituição de uma norma que tenha sido aplicada pela
decisão recorrida e que o recorrente identifique. O recurso de fiscalização
concreta de constitucionalidade, tal como a Constituição [artigo 280.º, n.º 1,
alínea b) da CRP] e a lei [artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da LTC] o configuram,
não visa, directa e imediatamente, a tutela de direitos fundamentais
alegadamente violados pelas concretas decisões judiciais, mas a verificação da
desconformidade com a Constituição da norma que essas decisões aplicam. E só
pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão de
constitucionalidade dessa norma, de modo processualmente adequado, perante o
tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a
dela conhecer ( n.º 2 do artigo 72.º da LTC).
Ora, como na decisão reclamada se refere e aqui se reitera, os recorrentes não
suscitaram na reclamação perante o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, de
modo processualmente adequado, qualquer questão de constitucionalidade
normativa. Sustentar que a determinado preceito seja atribuído um certo
sentido, em face da evolução legislativa, ainda que invocando para isso
princípios constitucionais, não cumpre essa exigência.
5. Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação e condenam-se os recorrentes nas custas,
fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 7 de Outubro de 2008
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão