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Processo n.º 585/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O relator proferiu a seguinte decisão sumária:
“1. A. foi condenado, no Tribunal Judicial de Tavira (Proc. n.º 4/06.0PBTVR),
pela prática de vários crimes de furto, na pena única de 7 anos e 6 meses de
prisão e no pagamento de €7.000 a título de indemnização a uma das ofendidas.
O arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão
de 10 de Julho de 2007, lhe negou provimento.
Nesse acórdão, procedendo à delimitação do âmbito do recurso, afirmou-se e
decidiu-se o seguinte:
“Conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário das Secções do STJ de
19 de Outubro de 1995, publicado in D.R. Série 1-A de 28 de Dezembro de 1995, o
âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da
respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como
sejam as de nulidade da sentença e as previstas no art.º 410.º, n.º 2, do Código
de Processo Penal – v. ainda, entre outros, o acórdão do STJ de 3.2.99, em BMJ
n.º 484, pág. 271; o acórdão do STJ de 25.6.98, em BMJ n.º 478, pág. 242; o
acórdão do STJ de 13.5.98, em BMJ n.º 477, pág. 263; Simas Santos/Leal
Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, pág. 48; Germano Marques da Silva,
em “Curso de Processo Penal”, III, pág. 320 e 321.
As conclusões devem representar um resumo das razões do pedido, não devendo ir
além de uma síntese do respectivo corpo, e em que se concretize o onde e o
porquê se decidiu mal e o como se deve decidir. Na verdade, com excepção feita
ao recurso de revisão, todos os recursos vêm concebidos na lei como remédios
jurídicos que não podem ser utilizados com o único objectivo de obter uma
justiça melhor, só relevando a eventual injustiça, produto de vício de
julgamento, quando seja resultado de violação de direito material, tendo de ser
indicados expressamente no recurso os erros in judicando ou in procedendo em que
se traduzem os vícios de julgamento indicados, dentro de um critério orientador
do regime de recursos a que já se chamou de lealdade processual (cf. Simas
Santos e Leal Henriques, in ob. cit., pág. 108).
Tendo sido documentadas, através de gravação, as declarações prestadas oralmente
na audiência de julgamento, poderia, em abstracto, este tribunal conhecer de
facto e de direito art.ºs 363.º e 428.º do Código de Processo Penal.
E das conclusões apresentadas pelo ora recorrente resulta que o mesmo questiona
a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo, no que tange aos
factos integradores dos crimes de furto perpetrados na residência de B., na
medida em que considera incorrectamente julgados tais factos, para daí concluir
que deve ser absolvido nesta parte.
Porém, pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto teria de o fazer
dando cumprimento ao disposto no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo
Penal, ou seja, especificando os pontos de facto (um por um) que considera
incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa da recorrida,
por referência aos respectivos suportes técnicos de gravação, havendo lugar a
transcrição.
Não o tendo feito, ou tendo-o feito de uma forma genérica, sem dar cumprimento
ao ónus de impugnação especificada, imposto pelo art.º 412.º n.º 3 do Código de
Processo Penal, está este Tribunal de Relação impossibilitado de proceder à
modificação da decisão proferida em sede de matéria de facto pelo Tribunal a quo
(art.º 431.º do Código de Processo Penal) – ainda aqui também, inevitavelmente,
sem prejuízo da apreciação da existência dos vícios a que se alude naquele art.º
410.º.
Assim, objecto do recurso constitui a apreciação das seguintes questões:
- Invoca o recorrente que o acórdão enferma dos vícios previstos no art.º 410.º,
n.º 2, do Código de Processo Penal.
- Que o acórdão enferma das nulidades previstas no art.º 379º, n.º 1, al.s c) e
a). No primeiro caso, por não se pronunciar sobre o teor de uma informação
enviada pela Polícia Judiciária, segundo a qual as impressões digitais
recolhidas no local do furto não correspondem com as do recorrente; e no segundo
por o tribunal, na fixação do montante indemnizatório, ter valorado a declaração
junta a fls. 462, quando não o podia fazer.
- Questiona o recorrente a pena que lhe foi aplicada.
- Sustenta o recorrente haver violação do princípio da igualdade previsto no
art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), quando se compara a
pena aplicada ao recorrente e a pena aplicada ao co- arguido C..
- Entende o recorrente que a indemnização em que foi condenado é excessiva e que
o seu montante não se encontra devidamente fundamentado.”
2. O arguido interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo da alínea b) o n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
mediante requerimento do seguinte teor:
“A decisão final ainda não transitada em julgado baseou-se numa aplicação da lei
e dos princípios constitucionais com a qual o recorrente não concorda por
considerar, salvo melhor entendimento, desconforme com a legislação vigente.
A saber:
1. Na segunda instância, o Tribunal da Relação de Évora recusou-se a apreciar a
matéria de facto por considerar que o recorrente não cumpriu o disposto no
artigo 412º nºs. 3 e 4 do CPR Contudo, o recorrente deu cumprimento a essa
disposição legal e entende, salvo o devido respeito por opinião melhor
fundamentada, que o Tribunal da Relação de Évora não aplicou a referida
disposição legal de acordo com o real sentido da mesma. O recorrente impugnou
especificadamente e transcreveu de forma fiel todos os depoimentos que foram
essenciais na decisão da primeira instância e todos aqueles a que fez referência
como sendo primordiais para fundamentar o seu entendimento, fazendo-o de forma
integral.
2. Usando a mesma metologia outros recorrentes em outros processos viram as
decisões da primeira instância alteradas pelo Tribunal da Relação de Évora.
Desde então, a redacção do artigo 412º nºs. 3 e 4 do CPP não foi objecto de
alteração, pelo que o critério para avaliar se houve ou não cumprimento dessa
disposição legal tem que ser o mesmo que era antes. Tal desigualdade viola o
disposto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
3. A recusa de apreciar a matéria de facto por parte da segunda instância limita
os direitos de defesa do recorrente e não cumpre o disposto no artigo 428º nº 1
do CPP, prosseguindo também uma prática inconstitucional que viola os direitos
de defesa, designadamente o previsto no artigo 32º nº 1, pelo que deverá ser o
Tribunal Constitucional a apreciar a constitucionalidade e a legalidade do
entendimento seguido na segunda instância.
4. Salvo o devido respeito por opinião diversa, esse entendimento reitera a
aplicação em sentido contrário à lei que se verifica desde o acórdão proferido
na primeira instância, do disposto nos artigos 70º e 40º nº 1 do Código Penal.
Se tivesse sido feita na segunda instância uma correcta aplicação e
interpretação do disposto no artigo 412º nºs. 3 e 4 do CPP, e se tivesse sido
apreciada a matéria de facto, haveria a possibilidade de se verificar
eventualmente que a prática de dois crimes não se provou e só no conjunto desses
dois foi aplicada em cumulo uma pena entre os cinco e os sete anos, pelo que a
pena final aplicada é excessiva e não conforme aos princípios legais acima
referidos que têm por base a reintegração dos cidadãos inserindo-os na sociedade
e fazendo-os beneficiar dos direitos fundamentais constitucionalmente
consagrados, tanto mais que foi levado ao conhecimento do Tribunal que o
recorrente encetou uma vida laboral estável, responsável e com apoio da entidade
empregadora (Junta de Freguesia de Santiago, cujo presidente depôs sobre a
conduta profissional do recorrente).
5. Houve uma violação do princípio da Igualdade previsto no artigo 13º e do
disposto no artigo 20º nº 4, parte final da CRP no decidido na primeira
instância, o que se verifica pela comparação da pena aplicada ao recorrente e da
pena aplicada ao co-arguido C.. Pese embora o passado criminal do recorrente
seja mais extenso, ambos foram julgados por crimes que decorreram da situação de
toxicodependência. Ao co‑arguido foi dada uma oportunidade de demonstrar boa
conduta em liberdade, tendo‑lhe sido revogada a medida de prisão preventiva, O
recorrente ficou sujeito a prisão preventiva durante o julgamento e foi
condenado em sete anos e meio de prisão, sendo que os factos positivos que
apresentou foram ignorados pelo Tribunal, o que, salvo o devido respeito, é
desproporcional e desigual.”
3. É manifesto, face ao requerimento de interposição, que o recurso não tem
objecto idóneo e, desde logo por isso, não pode prosseguir.
Com efeito, no sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade
instituído pelo nosso sistema jurídico, ao Tribunal Constitucional apenas
compete apreciar a conformidade à Constituição das normas aplicadas (ou a que
tenha sido recusada aplicação com fundamento em inconstitucionalidade) pela
decisão recorrida (Cfr. artigo 280.º, n.º 1, alínea b) da Constituição e alínea
b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC). Não lhe compete apreciar a aplicação do
direito ordinário pelo tribunal da causa nem a violação de normas ou princípios
constitucionais directamente imputada às decisão judiciais, em si mesmas
consideradas.
O recurso pode versar sobre a norma como interpretada, mas é pacífico que nunca
assume “a configuração de um (inexistente) recurso de amparo, destinado a
propiciar uma global apreciação do mérito da causa por este Tribunal, na
perspectiva de uma pretensa violação de direitos fundamentais,
constitucionalmente tutelados, pelas decisões jurisdicionais proferidas acerca
da composição do litígio” (acórdão n.º 356/2008).
Ora, o recorrente queixa-se da violação do princípio da igualdade, da violação
do direito de defesa e da preterição do processo equitativo. Mas é inequívoco
que não imputa essa violação de normas ou princípios constitucionais a
quaisquer normas jurídicas que o acórdão recorrido tenha aplicado. Segundo o
recorrente, foi o acórdão recorrido que, além de errar na interpretação e
aplicação do direito ordinário, decidiu de modo tal que violou o princípio da
igualdade e da tutela judicial efectiva, dando-lhe um tratamento mais gravoso do
que o conferido a outros arguidos em igualdade de circunstâncias, seja quanto às
exigências processuais, seja na individualização da pena.
A violação de direitos e garantias fundamentais assim concebida seria obra do
julgador e não do legislador, pelo que não pode constituir objecto do recurso
para o Tribunal Constitucional.
Tanto basta para que não possa conhecer-se do objecto do recurso, sem
necessidade de examinar a verificação de outros pressupostos.
4. Decisão
Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se não tomar
conhecimento do objecto do recurso e condenar o recorrente nas custas, fixando a
taxa de justiça em 7 (sete) unidades de conta.”
2. O recorrente reclama desta decisão, ao abrigo do n.º 3 do artigo
78.º-A da LTC, sustentando que deve conhecer-se do objecto do recurso porque:
“(…)
Contudo, o recorrente insistia no seu requerimento de interposição de recurso na
questão do Tribunal da Relação de Évora ter fundamentado a sua recusa de
apreciar a matéria de facto no artigo 412º nºs. 3 e 4 CPP. Ou seja, se uma
decisão apoiada neste artigo leva à não apreciação da matéria de facto quando o
recorrente transcreve e localiza os depoimentos e indica os pontos que considera
incorrectamente julgados, então é o próprio artigo 412º n°s. 3 e 4 CPP que não
está conforme aos direitos de defesa do arguido, nomeadamente o disposto no
artigo 32º nº 1 da CRP.
Na verdade, uma norma que indica que se o recorrente não indicar os exactos
pontos de início e fim da gravação de um depoimento de acordo com o que se
encontra na acta vai contra os direitos de defesa do arguido. A relevância das
voltas da cassete ou dos minutos do cd indicados na acta não é tão relevante,
desde que o arguido fundamente bem as suas motivações e indique os pontos da
gravação de forma que sejam facilmente identificados. E não esqueçamos que em
algumas situações a acta pode não conter tais indicações. Pode também acontecer
que o recorrente disponha de um aparelho de leitura da gravação que indique as
voltas com pequenas divergências em relação à aparelhagem do Tribunal.”
O Ministério Público respondeu que a reclamação é improcedente, em
nada abalando a argumentação do recorrente os fundamentos da decisão reclamada
quanto à inverificação dos pressupostos do recurso de constitucionalidade.
3. A reclamação é manifestamente infundada.
Não se nega que o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade tem
por objecto a norma com o sentido que com que a decisão recorrida a tenha
efectivamente aplicado e não aquele que, do correspondente texto legal, poderia
extrair um intérprete ideal. Aliás, a decisão reclamada afirma-o expressamente.
Mas tem sempre que ser posta em causa a constitucionalidade de um critério
normativo de decisão susceptível de generalização (que o recorrente tem o ónus
de enunciar de modo claro e preciso) e não a decisão na singularidade do caso
concreto, ainda que por confronto com normas ou princípios constitucionais.
Ora, a simples leitura do requerimento de interposição de recurso (transcrito
no n.º 2 da decisão sumária; cfr. n.ºs 2 e 3 do requerimento) torna
imediatamente evidente que o recorrente não colocou ao Tribunal uma questão de
constitucionalidade quanto às exigências estabelecidas pelos n.ºs 3 e 4 do
artigo 412.º do Código de Processo Penal para quem impugne a matéria de facto,
mas o tratamento diferenciado que, na aplicação das mesmas regras, o tribunal a
quo terá dado a outros interessados que lhes deram cumprimento em termos
similares à “metodologia” usada pelo recorrente. É, portanto, a decisão
judicial, e não qualquer norma, o que questiona.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o reclamante nas
custas, com 20 UCs de taxa de justiça.
Lx, 1/8/2008
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão