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Processo nº 437/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A. veio, perante o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, interpor
recurso contencioso de anulação da decisão de 8 de Maio de 2003 da Direcção da
Caixa Geral de Aposentações, pela qual lhe foi reconhecido o direito à
aposentação e fixado o valor da pensão definitiva, decisão que lhe foi
notificada por ofício da Escola EBI/S de Nordeste, Açores, datado de 22 de Maio
de 2003.
Por sentença de 24 de Maio de 2006 do 1.º Juízo Liquidatário do Tribunal
Administrativo e Fiscal de Lisboa 1, foi concedido provimento ao recurso, em
consequência se anulando a referida decisão de 8 de Maio de 2003 da Direcção da
Caixa Geral de Aposentações, por a mesma “padecer de vício de violação de lei,
por violação dos princípios do Estado de Direito e da igualdade, por erro
nos pressupostos de facto e de direito e por preterição do princípio de
audiência prévia.”
Desta sentença recorreu a Direcção da Caixa Geral de Aposentações para a Secção
de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, tendo, por
acórdão de 14 de Fevereiro de 2007, o 2.º Juízo deste Tribunal negado provimento
ao recurso e confirmado a sentença recorrida. Na fundamentação desenvolvida
ponderou-se, para o que ora releva:
(…)
O artigo 118° n° 1 do E.C.D. prescreve o seguinte:
“O limite de idade para o exercício de funções por parte dos educadores de
infância e dos professores do lº ciclo do ensino básico é fixado em 65 anos a
partir do dia 1 de Janeiro de 1992.”
A sentença recorrida entendeu que “não sendo aplicável à recorrente o regime
especial e mais favorável contido no art. 120° n° 1 do ECEIPEBS, porque se
verifica que esta não prestou pelo menos 30 anos de serviço em regime de
monodocência, também não se lhe deverá aplicar, sem mais, o art. 118° n° 1 do
ECEIPEBS, sob pena de violação dos princípios da justiça e da igualdade.
E que a recorrente, antes de ser professora do 1° ciclo do ensino básico
desempenhou funções no 2° ciclo durante cerca de 10 anos. Precisamente porque
exerceu as suas funções também no 2° ciclo, ficou vedado à recorrente o uso do
regime mais favorável do artigo 120° nº 1 do ECEIPEBS (sublinhado nosso).
Ou seja, conclui a douta decisão recorrida, “porque esta professora não prestou
a totalidade do seu serviço no 1° ciclo do ensino básico, não se pode aposentar
voluntariamente, apenas com 30 anos de serviço e pensão por inteiro, nos termos
do artigo 120° n° 1 do ECEIPEBS, como as demais colegas que exerceram 30 anos de
funções docentes, mas todo aquele tempo no 1° ciclo.”
“Para ter direito à pensão de aposentação completa é legalmente necessário,
portanto, que esta professora preste 36 anos de serviço, como os demais docentes
dos restantes níveis de ensino (cfr. arts. n° 1 e 53° do E.A.).”
Com base neste raciocínio, a Mma. Juiz “a quo” considerou violado o princípio da
igualdade, notando que a recorrente (...) “precisamente porque nos últimos 20
anos da sua carreira foi professora no 1° ciclo, é agora obrigada a aposentar‑se
aos 65 anos” (sublinhado nosso) (...) o que sob o ponto de vista da segurança
jurídica, da proporcionalidade, da razoabilidade e da justiça não encontra
fundamento racional suficiente.
Ou seja, “se a recorrente não pode ser considerada professora do 1° ciclo para
efeitos de atribuição do regime especial previsto no artigo 120° n° 1 do
ECEIPEBS, porque também desenvolveu durante cerca de 10 anos funções docentes no
2° ciclo, também não o deverá ser para efeitos de aplicação do limite de idade
previsto no artigo 118° n° 1 do mesmo Estatuto.”
“Enquanto docente – dos 1° e 2° ciclos – à recorrente deverão ser aplicadas as
normas constantes dos artigos 37° n° 2, alínea b), 119° do E.A. e artigo 1° do
Dec. Lei n° 127/87, de 17 de Março, e consequentemente deverá a mesma estar
sujeita ao regime geral de idade de 70 anos”.
É esta a fundamentação essencial da decisão recorrida, que nos parece
inatacável.
Tanto do ponto de vista da lógica jurídica como da justiça, a recorrida não pode
ser considerada docente do 1º ciclo para os efeitos do artigo 118 n° 1 e já não
para os efeitos do artigo 120º do aludido Estatuto, sendo por isso
manifestamente inconstitucional a interpretação efectuada pela entidade
recorrida.
Como justamente refere a recorrida nas suas alegações, aos docentes que tenham
exercido docência em ambos os regimes ao longo da sua vida profissional, já não
é possível aplicar cegamente um dos regimes, e apenas um deles, sem ponderação
da situação concreta do docente (cfr. sobre esta questão, Isabel Pires
Rodrigues, Júlia Araújo e Luís Silveira Botelho, “Estatuto da Carreira dos
Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário
Anotado”, Plátano Editora, 2003, p. 184).
Em suma, os docentes que exerceram docências em ambos os ciclos, não podem por
esse facto ficar apenas com o pior de cada regime. Como também não poderiam
ficar apenas com o melhor de cada um (cfr. alegações da recorrida, a fls. 119).
No caso concreto, a aplicação da lei, tal como efectuada pela entidade
demandada, originou que a ora recorrida fosse obrigada a aposentar-se com apenas
30 anos e 7 meses de serviço, tempo inferior aos 36 anos de serviço necessários
para a mesma se poder aposentar com uma pensão por inteiro. Como sugestivamente
alega a recorrida, a mesma “foi obrigada a trabalhar mais 13 horas/semana, mais
82 horas/mês e mais 676 horas/ano que um docente do 2° ciclo! Mas não tem
direito a aposentar-se aos 70 anos de idade, como os docentes do 2° ciclo!!!”
São estas repercussões concretas que tornam evidente a inconstitucionalidade da
interpretação da lei, tal como efectuada pelo recorrente.
Quanto ao segundo vício invocado, resulta da factualidade assente que, em
30.04.2003, por despacho da Directora Regional da Secretaria Regional da
Educação e Cultura, foi concedido à recorrente um 5° mês de bonificação relativa
ao ano de 1999/2000, que não foi tido em conta para efeitos de cálculo da pensão
de aposentação.
É um facto que a entidade recorrida reconhece, mas ao qual não atribui
relevância anulatória do acto impugnado, mas tão somente admite a sua revisão, a
efectuar nos termos do artigo 101° do E.A.
Todavia, verificando a decisão recorrida o erro nos pressupostos de facto por
não ter sido considerada a 5ª bonificação, outra solução não poderia adoptar que
não fosse considerar procedente o vício alegado, sem poder esperar que a
Administração corrigisse o erro cometido.
Finalmente, procede também o vício de falta de audiência prévia (art. 100º e
seguintes do CPA), que apenas pode ser dispensada nos casos excepcionais
previstos no artigo 103° do CPA, e cuja preterição determina, a nosso ver, a
anulabilidade do acto impugnado.
A recorrente C.G.A. alega, todavia, que tal vício inexiste, por estarmos perante
um acto favorável à recorrida.
Mas o acto não é favorável à recorrida, não só porque não foi esta quem tomou a
iniciativa de requerer a sua aposentação, mas também e sobretudo porque tal
aposentação lhe foi imposta em termos parcialmente desfavoráveis, por decisão
unilateral da Administração.
Improcedem, assim na íntegra as conclusões das alegações da agravante.
2. A Caixa Geral de Aposentações, não se conformando com o teor deste acórdão,
recorreu do mesmo para este Tribunal, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º
1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal
Constitucional), dizendo que “(a)s normas cuja fiscalização concreta se pretende
são as constantes do artigo 118.º, n.º 1, do Estatuto da Carreira dos Educadores
de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 139-A/90, de 28 de Abril, na interpretação que delas foi feita
no douto Acórdão desse Tribunal que recusou a sua aplicação com fundamento em
inconstitucionalidade material, «por violação dos princípios do Estado de
Direito e da igualdade» (sic).”
Admitido o recurso, foi determinada a produção de alegações, que a recorrente
concluiu da seguinte forma:
1ª A recorrente/interessada exercia, à data da aposentação, as funções de
professora do 1.º ciclo do ensino básico, tendo atingido em 27 de Março de 2003,
65 anos de idade.
2ª O artigo 118.º, n.° 1, do ECD, sob a epígrafe Limite de idade, determinava
que «O limite de idade para o exercício de funções por parte dos educadores de
infância e dos professores do 1.º ciclo do ensino básico é fixado em 65 anos a
partir do dia 1 de Janeiro de 1992».
3ª Razão pela qual a interessada foi aposentada por referência ao dia em que
completou 65 anos de idade, sendo essa a solução clara e expressamente era
imposta pelos artigos 118.°, n.° 1, do ECD, e 37.°, n.° 2, alínea b), e n.° 3, e
43.°, n.° 1, alínea c), do Estatuto da Aposentação, à qual a CGA se encontra
vinculada pelo princípio da legalidade a que está sujeita, nos termos da
primeira parte do n.° 2 do artigo 266.° da CRP e do artigo 30 do CPA.
4ª Salvo o devido respeito, não se podem confundir duas situações absolutamente
distintas e diferenciadas que merecem tratamento jurídico diverso,
designadamente, a situação de aposentação voluntária antecipada, previsto no
artigo 120.° do ECD, com a aposentação obrigatória por limite de idade, previsto
no artigo 118.°, n.° 1 do mesmo diploma.
5ª A justificação para afastar, por violação do princípio da igualdade, a norma
do artigo 118.°, n.° 1, do ECD, foi a de que tendo a recorrida – professora do
1.º ciclo do ensino básico – exercido funções, durante cerca de 10 anos, no 2.°
ciclo do ensino básico não lhe seria aplicável o limite de idade estabelecido
naquela norma porque tal a impediria de aceder a uma pensão de aposentação por
inteiro, à semelhança do que poderia suceder aos docentes do 2.° ciclo do ensino
básico que têm o limite de idade fixado nos 70 anos.
6ª Porém, ainda que se aplicasse ao caso concreto do limite de idade em vigor
para a generalidade dos funcionários públicos que é igual ao dos docentes do 2.°
ciclo do ensino básico, nem assim a recorrente poderia obter uma pensão de
aposentação completa, já que, em 2008, quando atingisse os 70 anos de idade,
apenas contaria com 35 anos e alguns meses de serviço, quando se exigirá,
naquele ano, para efeitos de carreira completa, nos termos do artigo 37.°, n.°
1, do EA, 37 anos e 6 meses de tempo de serviço, isto para já não falar do
cálculo da pensão de aposentação que, hoje, é bastante diferente, como se sabe,
do utilizado no cálculo da pensão efectuado em 2003.
7ª Outrossim, não se percebe qual o critério objectivo com base no qual foi
avaliado o pressuposto de facto segundo o qual a recorrente foi alegadamente
tratada de modo desigual, e de que modo a aplicação do artigo 118.°, n.° 1, do
ECD, à interessada e a todo o universo dos professores do 1.º ciclo do ensino
básico afectava a segurança jurídica.
8ª Ou de que modo o artigo 118.°, n.° 1 do ECD, ao determinar um limite de idade
inferior para os professores do 1.º ciclo do ensino básico em virtude do
desgaste físico e psicológico provocado pelo exercício daquelas funções, viola o
princípio da proporcionalidade e, consequentemente, da igualdade.
9ª Ou ainda que as razões de ordem prática imporiam, neste caso, o limite de
idade legalmente estabelecido para os professores do 2.° ciclo do ensino básico
(igual ao dos restantes funcionários públicos).
10ª O artigo 118.°, n.° 1, do ECD, em vigor à época, não ofendeu o princípio da
igualdade ou qualquer outro princípio do Estado de Direito, razão pela qual não
deverá ser julgado inconstitucional.
A recorrida A. contra-alegou, concluindo:
(i) O presente recurso foi interposto pela Caixa Geral de Aposentações
(CGA) e tem por objecto o douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
(TCA Sul), de 14.02.2007, que veio confirmar a sentença da 6.ª Unidade Orgânica
(ex-4ª Secção), do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, de 24.05.2006;
(ii) O referido acórdão do TCA Sul julgou procedente o recurso contencioso
de anulação, tendo anulado o despacho da Direcção CGA de 08.05.2003, que tinha
determinado a aposentação da recorrida, bem como fixado a correspondente pensão
definitiva;
(iii) Este Acórdão do TCA Sul anulou o referido despacho da Direcção da CGA
por entender que o mesmo padecia dos vícios de violação de lei (por ofensa dos
princípios do Estado de Direito e da igualdade e por erro nos pressupostos) e de
forma (por preterição de audiência prévia);
(iv) O Recorrente entendeu interpor o presente recurso na medida em que
considerou, ainda que não se perceba bem como, que as normas contidas no artigo
118.º do ECD viram a sua aplicação ao caso concreto recusadas pelo TCA Sul, por
razões de inconstitucionalidade;
(v) Termos em que justifica, igualmente, a admissibilidade do presente
recurso, que se funda na alínea a) do n.° 1 do artigo 70.° da LOFPTC, que
estabelece que cabe recurso para este Venerando Tribunal Constitucional das
decisões que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em
inconstitucionalidade;
(vi) Acontece que, da análise do Acórdão recorrido, resulta claro que o mesmo
não recusou a aplicação das referidas normas ou de quaisquer outras, por razões
de inconstitucionalidade, antes aplicou todas as normas relevantes para o caso
sub judice;
(vii) Na verdade, o acórdão recorrido limitou-se a apreciar o acto
administrativo em causa nesses autos, ainda que tenha para o efeito lançado mão
ao princípio da igualdade, mas como forma de controlo da actividade da
administração;
(viii) Aliás o douto Acórdão anulou ainda o acto do recorrente por outros
vícios de ilegalidade também detectados, pelo que mesmo sem este fundamento, o
acto da Recorrente continuava a ser ilegal e anulável;
(ix) Aliás, se o TCA Sul tivesse, de facto, recusado a aplicação das normas
constantes do artigo 118.° do ECD ou de quaisquer outras que constem de
convenção internacional, acto legislativo ou de decreto regulamentar, então o
recurso para este Venerando Tribunal Constitucional seria obrigatório para o
Ministério Público, nos termos e para os efeitos do artigo 72.°, n.° 3 da LOFPTC
(que, de resto, “repete” o já afirmado no artigo 280.°, n.° 3 da CRP);
(x) Ainda que se considere que este Venerando Tribunal Constitucional não
está adstrito à forma como o requerente consubstancia a sua legitimidade em
recorrer, o certo é que pela análise das alíneas b) a i) do artigo 70.° da
LOFPTC, em confronto com a decisão recorrida, fica evidente que a situação sub
judice (também) não se enquadra em nenhuma delas;
(xi) A aceitação da interposição do presente recurso pelo TCA Sul não vincula
este Venerando Tribunal Constitucional, pelo que este pode considerá-lo
inadmissível neste momento, que é aliás o momento próprio para as partes
impugnarem a referida aceitação, nos termos e para os efeitos do n.º 3 do mesmo
artigo 76.° da LOFPTC.
(xii) Deste modo, o presente recurso é inadmissível por falta de pressuposto
legal, devendo por isso ser objecto de uma “decisão sumária” de rejeição,
proferida nos termos e para os efeitos do artigo 78.°-A da LOFPTC.
(xiii) Sempre sendo inútil, por o acto em causa ter também sido anulado por
várias outras causas de ilegalidade;
(xiv) Ainda que assim não fosse, isto é que o TCA Sul tenha de facto recusado
a aplicação das normas constantes do n.° 1 do artigo 118.° do ECD como o
recorrente alega, o que por mais absurdo que pareça, mas pelo cumprimento do
mais escrupuloso dever de patrocínio, se admite sem conceder, então “esse juízo”
de inconstitucionalidade – seja ele qual for e onde estiver – deve ser
ratificado por este Venerando Tribunal Constitucional.
(xv) Mais concretamente, o artigo l18.°, n.° 1 do ECD quando interpretado no
sentido de que se aplica a qualquer professor, independentemente do seu percurso
docente, apenas porque no exacto momento em que completa 65 anos exerce as
funções de “educador de infância” ou de “professor do 1.º ciclo do Ensino
Básico” é inconstitucional, por violação do artigo 13.º da CRP que consagra o
princípio da igualdade.
(xvi) Isto porque nos termos do referido artigo 13.° da CRP a lei deve tratar
de forma igual o que é igual mas de forma desigual o que não é igual, só lhe
sendo legítimo não agir em conformidade dentro deste parâmetro quando exista uma
“razão material suficiente” que justifique a diferenciação, positiva ou
negativa, de tratamento de duas situações distintas;
(xvii) O ECD tem um equilíbrio nos diversos regimes aplicáveis aos professores
do 1° e do 2° ciclo, equilíbrio esse que foi violado pelo Recorrente ao aplicar
à Recorrida apenas parte de um regime, aliás, apenas a parte desfavorável de um
dos regimes;
(xviii) Apenas é concebível – e foi-o pelo legislador – aplicar aos professores
do 1.º ciclo uma aposentação antecipada obrigatória, como forma de os
beneficiar, por ao longo da sua carreira não terem tido direito a redução de
carga horária, como acontece com os professores do 2° ciclo;
(xix) A Recorrida que não teve direito a qualquer redução da sua carga
horária, não pode assim ver-lhe aplicado um regime de aposentação antecipada
obrigatória que para si em nada a favorece, antes bem a prejudica, impedindo-a
de obter uma reforma por inteiro, contra o fim da própria lei ao criar esse
regime e contra a única razão materialmente diferenciadora legitimadora da
desigualdade de regimes;
(xx) Ora, o artigo 118.º, n.° 1 do ECD, com esta interpretação feita pelo
Recorrente, no sentido referido, é ilegal e inconstitucional, por violação do
artigo 13.º da CRP que consagra o princípio da igualdade e a sua aplicação deve
ser recusada pelos tribunais comuns por força do artigo 204.° da CRP.
Em 26 de Junho de 2008, a ora relatora proferiu o seguinte despacho:
A recorrida A. suscita, nas suas contra‑alegações (fls. 229 e segs. dos autos) a
questão prévia da inadmissibilidade do recurso interposto pela Caixa Geral de
Aposentações.
Sustenta a recorrida que não ocorreu, in casu, qualquer recusa de aplicação de
norma com fundamento na sua inconstitucionalidade como o exigem os artigos 280º
da Constituição e 70º da Lei do Tribunal Constitucional; e que apenas houve –
por parte da decisão recorrida – a utilização do princípio da igualdade como
forma de controlo da actividade de administração.
Tendo em conta que não são entre nós admitidos os recursos de amparo – nem de
decisões administrativas nem de sentenças judiciais – notifique‑se a recorrente
Caixa Geral de Aposentações para que, querendo, se pronuncie sobre a questão.
A Caixa Geral de Aposentações veio, nomeadamente, dizer que “(n)as decisões
recorridas desaplicou-se, no caso concreto, o n.° 1 do artigo 118.° do Estatuto
da Carreira Docente – norma que objectivamente estabelece um limite de idade
inferior relativamente ao exercício de funções do 1.º ciclo do ensino básico –,
que havia servido de fundamento ao acto impugnado, em virtude de as instâncias
recorridas terem entendido que a sua aplicação à interessada consubstanciava uma
violação do princípio da igualdade e do Estado de Direito Democrático,
princípios constitucionalmente consagrados”, propugnando, a final, que “deve ser
julgada improcedente a excepção deduzida, com as legais consequências.”
Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que admitiu
o recurso, nos termos do n.º 3 do artigo 76.º da Lei do Tribunal Constitucional,
nem sendo exacto que, após a apresentação de alegações, fique precludida a
possibilidade de não se conhecer do objecto do recurso, cumpre apreciar e
decidir se o recurso é admissível.
II
Fundamentos
3. O recurso vem interposto, como se relatou, ao abrigo do disposto na alínea
a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, a qual estabelece
que cabe recurso para este Tribunal das decisões que recusem a aplicação de
qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade.
No caso, vem invocada a recusa de aplicação da norma do artigo 118.º, n.º 1, do
Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos
Básico e Secundário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 139-A/90, de 28 de Abril, com
fundamento em inconstitucionalidade material, por violação dos princípios do
Estado de Direito e da igualdade.
Em face da decisão recorrida, cuja fundamentação de direito se transcreveu
supra, levanta-se, com total pertinência, a dúvida quanto ao preenchimento dos
pressupostos deste tipo de recurso de constitucionalidade, dúvida esta
subjacente à questão prévia suscitada pela recorrida nas suas contra-alegações.
Prima facie, importa salientar que se não verifica na decisão recorrida qualquer
declaração formal, expressa, de recusa de aplicação da norma do artigo 118.º,
n.º 1, do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos
Ensinos Básico e Secundário, com fundamento em inconstitucionalidade material,
por violação dos princípios do Estado de Direito e da igualdade.
Tal não significa que, substancialmente, essa recusa não tenha ocorrido; mas, a
ocorrer, ela não pode deixar de ser implícita.
Há, no entanto, que reconhecer que no acórdão recorrido não transparece qualquer
confronto entre a norma em questão e uma regra ou princípio constitucional,
designadamente de desconformidade da primeira em face dos segundos.
Na verdade, o tribunal a quo apenas considerou, no trecho (neste ponto) mais
significativo da decisão recorrida, pois que revela o seu verdadeiro sentido,
que
Tanto do ponto de vista da lógica jurídica como da justiça, a recorrida não pode
ser considerada docente do 1º ciclo para os efeitos do artigo 118 n° 1 e já não
para os efeitos do artigo 120º do aludido Estatuto, sendo por isso
manifestamente inconstitucional a interpretação efectuada pela entidade
recorrida.
Como justamente refere a recorrida nas suas alegações, aos docentes que tenham
exercido docência em ambos os regimes ao longo da sua vida profissional, já não
é possível aplicar cegamente um dos regimes, e apenas um deles, sem ponderação
da situação concreta do docente (cfr. sobre esta questão, Isabel Pires
Rodrigues, Júlia Araújo e Luís Silveira Botelho, “Estatuto da Carreira dos
Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário
Anotado”, Plátano Editora, 2003, p. 184).
Em suma, os docentes que exerceram docências em ambos os ciclos, não podem por
esse facto ficar apenas com o pior de cada regime. Como também não poderiam
ficar apenas com o melhor de cada um (cfr. alegações da recorrida, a fls. 119).
No caso concreto, a aplicação da lei, tal como efectuada pela entidade
demandada, originou que a ora recorrida fosse obrigada a aposentar-se com apenas
30 anos e 7 meses de serviço, tempo inferior aos 36 anos de serviço necessários
para a mesma se poder aposentar com uma pensão por inteiro. Como sugestivamente
alega a recorrida, a mesma “foi obrigada a trabalhar mais 13 horas/semana, mais
82 horas/mês e mais 676 horas/ano que um docente do 2° ciclo! Mas não tem
direito a aposentar-se aos 70 anos de idade, como os docentes do 2° ciclo!!!”
São estas repercussões concretas que tornam evidente a inconstitucionalidade da
interpretação da lei, tal como efectuada pelo recorrente.
Do trecho que se acaba de transcrever ressalta que a decisão recorrida imputa a
inconstitucionalidade directamente à decisão administrativa. Referenciando essa
decisão, em si mesma, como violadora da Constituição, a decisão recorrida não
parece situar a questão de constitucionalidade no plano normativo, como se
impunha, antes de mais, para estar assegurada a idoneidade do objecto do
recurso, porquanto não cabe ao Tribunal Constitucional, dada a sua competência
de fiscalização da constitucionalidade de normas jurídicas – censurar a decisão
recorrida quando esta considera que a decisão administrativa é violadora da Lei
Fundamental.
De qualquer modo, quando o Tribunal Central Administrativo Sul afirma que, no
caso concreto, não podem ocorrer as repercussões concretas originadas pela
interpretação e aplicação da lei, tal como efectuada pela entidade
administrativa, sob pena de inconstitucionalidade, tal afirmação não tem
subjacente qualquer juízo de inconstitucionalidade em relação à norma do artigo
118.º, n.º 1, do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos
Professores dos Ensinos Básico e Secundário, surgindo apenas na sequência lógica
da resposta a dar à questão colocada de saber se “a interpretação efectuada no
tocante ao limite de idade estabelecido para os professores do 1.º ciclo é
inconstitucional, por ofensa aos art.ºs 13.º e 266.º, n.º 2 da Constituição da
República” (fl. 161 v. da decisão recorrida) e, como se disse, no contexto do
controlo jurisdicional, ao abrigo da garantia de recurso contencioso, da
legalidade da actuação administrativa.
Isso mesmo resulta, também, impressivamente, do teor da sentença da 1.ª
Instância, que se transcreve no trecho relevante:
A distinção estabelecida pelo acto recorrido entre a Recorrente e aos demais
docentes, quer do 1°, quer do 2° ciclo – derivada da não aplicação a esta
professora do artigo 120°, 1, do ECEIPEBS, por se considerar que a mesma não
preenchia os requisitos do preceito porque não fora sempre, durante 30 anos,
docente do 1° ciclo, mas já a encarar nesta condição (de docente do 1° ciclo)
para efeitos de aplicação do limite de idade previsto no artigo 118°, n.° 1 do
ECEIPEBS, assim excluindo a possibilidade de vir a ter uma pensão por inteiro,
trabalhando até aos 70 anos, como os demais docentes do 2° ciclo – não encontra
fundamento material suficiente, sob o ponto de vista da segurança jurídica, da
proporcionalidade, da praticabilidade, razoabilidade e da justiça.
É, pois, um entendimento violador dos princípios do Estado de Direito e da
igualdade, porquanto demasiado opressivo e implicar uma degradação da pensão de
aposentação não suficientemente justificada face à diferenciação da sua carreira
relativamente aos demais docentes, cuja regra geral é a da aposentação aos 70
anos.
Ora, como este Tribunal tem reconhecido (v., entre outros, Acórdão n.º 25/2001,
disponível em www.tribunalconstitucional.pt), a recusa de aplicação de uma norma
pode ser implícita, mas é necessário que se possa extrair do texto da decisão
recorrida que essa recusa teve por fundamento um juízo de inconstitucionalidade.
Não resultando “na lógica interna da decisão recorrida e no contexto que a
suscita” (como se adiantou no Acórdão nº 584/96, publicado nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, vol. 33, págs. 881 e segs.), qualquer juízo de
inconstitucionalidade idóneo para o efeito de fazer funcionar o sistema de
fiscalização de constitucionalidade, falha a previsão da alínea a) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que não pode conhecer-se do
objecto do presente recurso.
Sendo assim, não se justifica apurar se - porque este tipo de recurso de
constitucionalidade é um recurso instrumental - a decisão recorrida não seria
sempre a mesma, tendo em conta a lógica fundamentadora do julgado, questão esta
suscitada pela recorrida nas suas contra-alegações.
III
Decisão
Pelo exposto, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do recurso e em
condenar a recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 12 UC’s.
Lisboa, 22 de Outubro de 2008
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Vítor Gomes (vencido, conforme declaração anexa)
Ana Maria Guerra Martins (vencida, no essencial, pelas razões
apontadas na Declaração de voto do Exmo. Senhor
Conselheiro Vítor Gomes)
Gil Galvão
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido, quanto ao não conhecimento do objecto do recurso.
Entendo que, pelo menos implicitamente, o acórdão recorrido recusou
aplicação à norma do n.º 1 do artigo 118.º do Estatuto da Carreira dos
Educadores de Infância e dos Professores do Ensino Básico e Secundário com
fundamento em inconstitucionalidade, não se limitando a interpretar o preceito
ou a imputar a inconstitucionalidade ao acto administrativo impugnado.
Este preceito estabelece que os educadores de infância e os professores do
ensino básico atingem o limite de idade aos 65 anos. É à produção deste efeito
que o acórdão recorrido directamente obsta, por entender que a sujeição a
aposentação obrigatória de docentes na situação da recorrente (ter exercido
funções também noutro nível de ensino a não atingir a pensão por inteiro) a
aposentação obrigatória viola o princípio da igualdade, quando confrontada essa
situação com a dos docentes do ensino secundário em situação idêntica que, só
atingindo o limite de idade aos 70 anos, podem continuar a contar tempo de
serviço em ordem a melhorar a pensão de aposentação.
A circunstância de o acórdão recorrido fazer referência à
interpretação da lei tal como efectuada pela autoridade recorrida, no contexto
processual em que surge, não descaracteriza a questão como questão de
constitucionalidade normativa. Estamos perante uma decisão judicial que é
proferida num processo de impugnação de uma decisão administrativa. Existe
necessariamente uma primeira aplicação da lei por parte da Administração que o
faz em função do modo como interpreta as normas que entende relevantes para
decidir na situação concreta. Afirmar que “é evidente a inconstitucionalidade da
interpretação da lei tal como foi efectuada pelo recorrente [ a autoridade
administrativa] é o mesmo, na lógica interna do acórdão recorrido e no contexto
que a questão se suscita em que o tribunal examina um aspecto estritamente
vinculado do acto sem margem de apreciação administrativa, que negar a validade
constitucional da norma com esse sentido.
É certo que no juízo de inconstitucionalidade constante do acórdão
recorrido, relevaram elementos da situação concreta. Mas isso significa, apenas,
que esse juízo não vem referido à norma do n.º 1 do artigo 118.º do Estatuto in
totum, mas a uma específica dimensão considerada relevante para a decisão, desta
autonomizável e a que se deve restringir o objecto do recurso.
Vítor Gomes