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Processo n.º 520/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
Por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14
de Abril de 2008, foi concedido parcial provimento ao recurso interposto pelos
arguidos A. e B. contra o despacho do Tribunal Judicial de Guimarães, de 14 de
Janeiro de 2008, que, nos termos do artigo 89.º, n.º 6, do Código de Processo
Penal (CPP), na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, prorrogara
a manutenção do segredo de justiça até ao dia 4 de Outubro de 2008, por ser esse
“o prazo objectivamente indispensável à conclusão da investigação”. Nesse
acórdão, o Tribunal da Relação de Guimarães entendeu que quando o n.º 6 do
artigo 89.º do CPP (“Findos os prazos previstos no artigo 276.º [os prazos de
duração máxima do inquérito], o arguido, o assistente e o ofendido podem
consultar todos os elementos do processo que se encontre em segredo de justiça,
salvo se o juiz de instrução determinar, a requerimento do Ministério Público,
que o acesso aos autos seja adiado por um período máximo de três meses, o qual
pode ser prorrogado, por uma só vez, quando estiver em causa a criminalidade a
que se referem as alíneas i) a m) do artigo 1.º [terrorismo, criminalidade
violenta, criminalidade especialmente violenta e criminalidade altamente
organizada], e por um prazo objectivamente indispensável à conclusão da
investigação”) permite nova prorrogação do prazo, por uma só vez, esta
prorrogação, tal como a primeira, também tem a duração máxima de três meses.
Embora esta disposição, introduzida pela Lei n.º 48/2007, só se dirija ao
futuro, não colocando em causa os actos praticados em sede da lei antiga
(designadamente, o despacho de 10 de Outubro de 2007, que adiara o acesso pelo
período de três meses, que terminou em 10 de Janeiro de 2008), conclui a
Relação que a nova prorrogação do prazo tinha a duração máxima de três meses e
terminara já em 10 de Abril de 2008.
Em 23 de Abril de 2008, o arguido A. e outros vieram
requerer a consulta de todos os elementos do processo.
Por despacho de 2 de Maio de 2008, a magistrada do
Ministério Público titular do inquérito facultou a consulta do processo através
de acesso a cópia certificada do mesmo, da qual foram retirados “todos os
elementos relativos a informações bancárias e fiscais e bem assim despachos cuja
execução esteja em curso”.
Os referidos arguidos, em 12 de Maio de 2008, vieram
requerer o acesso a todos os elementos do processo.
Sobre esse requerimento recaiu o seguinte despacho, de
21 de Maio de 2008, da magistrada do Ministério Público titular do inquérito:
“Requerimento de fls. 10 113, do mandatário dos arguidos A. e B.:
Para complemento da certidão já existente, para consulta nos termos
do n.ºs 3 e 6 do artigo 89.º do CPP, extraia cópia certificada de todos os
elementos do processo a partir de fls. 10 014 até ao presente despacho, com
excepção dos documentos bancários de fls. 10 042 a 10 094 (os quais respeitam a
pessoa diferente daqueles arguidos), por, nesta parte, nos opormos, nos termos
do despacho que segue.
*
O mandatário dos arguidos A. e B. veio requerer a consulta de todos
os elementos do processo, sem qualquer limitação, designadamente quanto às
informações bancárias e fiscais recusadas pelo Ministério Público, por entender
que a lei é clara no sentido de que «... o arguido ... podem consultar todos os
elementos de processo que se encontre em segredo de justiça ...».
Está assim em causa a interpretação do n.º 6 do artigo 89.º do CPP,
ao estabelecer que «Findos os prazos previstos no artigo 276.º, o arguido, o
assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se
encontre em segredo de justiça ...».
Ora, não obstante o referido teor do artigo 89.º, n.º 6, do CPP, na
parte em que refere que o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar
todos os elementos do processo, este preceito não pode deixar de ser conjugado
com preceitos especiais que, relativamente a específicos elementos dos autos,
impedem que sejam consultados, designadamente antes do encerramento do
inquérito.
Encontram‑se nesta situação os elementos que caem na previsão do n.º
7 do artigo 86.º, que dispõe que «A publicidade não abrange os dados relativos à
reserva da vida privada que não constituam meios de prova» e acrescenta que «a
autoridade judiciária especifica, por despacho, oficiosamente ou a requerimento,
os elementos relativamente aos quais se mantém o segredo de justiça, ordenando,
se for caso disso, a sua destruição ou que sejam entregues à pessoa a quem
disserem respeito ...».
É ainda o caso dos suportes técnicos das conversações e comunicações
telefónicas interceptadas, cujo acesso, como estabelece o n.º 8 do artigo 188.º
do CPP, só poderá ter lugar a partir do encerramento do inquérito.
No que aos documentos bancários respeita, estão abrangidos por
segredo profissional, conforme dispõe o artigo 78.º do Regime Geral das
Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGISF), aprovado pelo
Decreto‑Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, na redacção do Decreto‑Lei n.º
1/2008, de 3 de Janeiro, designadamente quanto aos «nomes dos clientes, as
contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias», sendo a
violação do segredo punível nos termos do Código Penal (artigo 84.º do RGISF).
O mesmo se diga quanto aos elementos sujeitos a sigilo fiscal,
conforme o disposto no artigo 64.º, n.ºs 1 e 3, da Lei Geral Tributária (LGT).
É certo que, nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 5/2002 de 11 de
Janeiro, o segredo bancário e fiscal cede se houver razões para crer que «as
respectivas informações têm interesse para a descoberta da verdade», mediante
despacho da autoridade judiciária, o que efectivamente aconteceu nos autos
relativamente aos documentos em causa, acima referidos.
No entanto, dispõe o artigo 3.º da mesma lei, no seu n.º 4, que,
após o fornecimento dos elementos pelas instituições bancárias, «os documentos
que não interessem ao processo são devolvidos à entidade que os forneceu ou
destruídos, quando não se trate de originais, lavrando‑se o respectivo auto»,
em homenagem ao princípio da necessidade e da proporcionalidade no que respeita
à utilização processual de dados sujeitos a sigilo bancário.
Ora, o relevo de tais documentos para o processo e a respectiva
decisão sobre a sua utilização corno prova ou, pelo contrário, a sua devolução
ou destruição, só poderá ter lugar após a realização da respectiva análise
pericial, pelo que a revelação de tais documentos, nesta fase, poderá implicar a
violação daqueles preceitos – artigos 78.º e 84.º do RGISF.
Aliás, uma interpretação normativa do n.º 6 do artigo 89.º do CPP no
sentido de ser permitida e não poder ser recusada ao arguido, antes do
encerramento do inquérito a que foi aplicado o segredo de justiça, a consulta
irrestrita de todos os elementos do processo, neles incluindo dados relativos à
reserva da vida privada de outras pessoas, abrangendo elementos bancários e
fiscais sujeitos a segredo profissional nos termos do RGISF e da LGT, juntos aos
autos na sequência de quebra do segredo nos termos do artigo 2.º da Lei n.º
5/2002, de 11 de Janeiro, mas sem que tenha sido concluída a sua análise em
termos de poder ser apreciado o seu relevo e utilização como prova ou, pelo
contrário, a sua destruição ou devolução nos termos do n.º 7 do artigo 86.º do
CPP e do n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, e sem que se
demonstre a sua imprescindibilidade para a defesa do arguido, é violadora dos
princípios ínsitos nos artigos 20.º, n.º 3, 26.º, n.ºs 1 e 2, e 202.º da
Constituição da República Portuguesa.
Em suma, não estando ainda definido o relevo dos elementos supra
referidos para a prova, ou a sua imprescindibilidade para a defesa do arguido,
que aliás não é invocada pelo requerente, entende‑se que o disposto no n.º 6 do
artigo 89.º do CPP (que se reporta por identidade de razões ao arguido,
assistente e ofendido), não é fundamento suficiente para ser permitido o acesso
àqueles elementos bancários e fiscais, neste momento, pelo que deve ser
indeferido, nesta parte, o requerido.
Considerando o disposto no artigo 89.º, n.º 2, do CPP e face à
oposição à consulta, deduzida pelo Ministério Público no que respeita aos
elementos bancários e fiscais, apresente os autos à Senhora Juiz do Tribunal de
Guimarães para decisão.”
Conclusos os autos à Juíza do Tribunal Judicial de
Guimarães, esta proferiu, em 26 de Maio de 2008, o seguinte despacho:
“A fls. 10 113, o Ex.mo Senhor Mandatário dos arguidos A. e B. veio
requerer a consulta da totalidade dos autos.
A fls. 10 115, o Ministério Público veio manifestar a sua
discordância relativamente ao peticionado, apresentando as razões de facto e de
direito que nos escusamos a reproduzir.
Nos termos do artigo 89.º, n.º 2, do CPP, cumpre decidir.
Estabelece o disposto no artigo 86.º, n.º 6, alínea c), do CPP que a
publicidade do processo implica a consulta do autos e obtenção de cópias de
quaisquer partes do processo, com as limitações estabelecidas nos n.ºs 7 e 8 do
mesmo normativo.
Assim, inexistindo qualquer limitação legalmente estabelecida ao
peticionado pelos arguidos, nomeadamente a certos elementos do processo,
determina‑se, como já determinou o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães,
que todos os intervenientes processuais tenham acesso à totalidade dos autos,
caso assim o pretendam.”
Notificada deste despacho, a magistrada do Ministério
Público, uma vez que o mesmo omitia qualquer menção ao n.º 6 do artigo 89.º do
CPP, veio requerer a sua aclaração, consignando:
“É assim a interpretação do artigo 89.º, n.º 6, do CPP que está em
causa, no sentido de saber se a consulta do processo em segredo de justiça aí
prevista (para o arguido, o assistente e ofendido, mas não para outros
intervenientes processuais) é irrestrita, sobrepondo‑se designadamente às
limitações que possam decorrer da necessidade de preservação da reserva da vida
privada que mesmo no caso de processo público a lei contempla no artigo 86.º,
n.º 7, do CPP e de qualquer forma a Constituição da República protege.
Aliás, mesmo que se estivesse perante um processo público, a que
fosse aplicável o disposto no n.º 6, alínea c), do artigo 86.º do CPP (referido
no despacho de fls. 10 155), na sequência do disposto no artigo 89.º, n.º 6, do
CPP, uma interpretação normativa deste artigo 86.º, n.º 6, alínea c), do CPP, no
sentido de ser permitida a todos os intervenientes processuais e não poder ser
recusada, antes do encerramento do inquérito, a consulta irrestrita de todos os
elementos do processo, neles incluindo dados relativos à reserva da vida
privada de outras pessoas, abrangendo elementos bancários e fiscais sujeitos a
segredo profissional nos termos do RGISF e da LGT, juntos aos autos na sequência
de quebra do segredo nos termos do artigo 2.º do Lei n.º 5/2002, de 11 de
Janeiro, mas sem que tenho sido concluída a sua análise em termos de poder ser
apreciado o seu relevo e utilização como prova ou, pelo contrário, a sua
destruição ou devolução nos termos do n.º 7 do artigo 86.º do CPP e do n.º 4 do
artigo 3.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, é violadora dos princípios
ínsitos nos artigos 20.º, n.º 3, 26.º, n.ºs 1 e 2, e 202.º da Constituição da
República Portuguesa.
Perante o exposto e a invocado omissão, requer‑se a aclaração do
despacho de fls. 10 155, no sentido de esclarecer qual a interpretação dada ao
referido preceito do artigo 89.º, n.º 6, do CPP, ao abrigo do qual foi requerida
o consulta dos elementos por parte dos arguidos.”
Este pedido foi indeferido por despacho judicial de 3 de
Junho de 2008, do seguinte teor:
“A fls. 10 187 foi requerido pelo Ministério Público a aclaração do
despacho por nós proferido a fls. 10 155, nos termos do qual e na esteira do
douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, entendemos e declaramos que
os presentes autos se encontram públicos, pelo que todos os intervenientes
processuais poderão ter acesso à totalidade dos mesmos, sem quaisquer
restrições.
Alega em suma que os elementos bancários e fiscais devem permanecer
em segredo de justiça e, por isso, não podem ser consultados, por motivos que
assentam no segredo bancário e fiscal estabelecido em legislação especial.
Entendemos, salvo o devido respeito, que o despacho proferido é
suficientemente claro e, como tal, nada existe a aclarar, já que o pretendido
pela requerente mais não é do que nova decisão sobre a matéria que foi já
decidida.
Acrescenta‑se apenas, por um lado, que o segredo de justiça, tal
como regulado nos artigos 86.º e seguintes do CPP, se apresenta em duas
vertentes, o interno e o externo.
No caso vertente, pese embora o segredo externo se mantenha, face ao
preceituado no artigo 88.º do CPP, deixou de existir o segredo interno, atento o
que foi decidido pelo Tribunal da Relação.
O que implica, como se decidiu no despacho ora questionado, o acesso
a todos os elementos de prova constantes do processo por todos os sujeitos
processuais, isto, sem embargo do dever de segredo de justiça a que os mesmos
ficam também sujeitos.
Por outro lado, importa vincar que, a partir do momento em que os
elementos bancários e fiscais são juntos ao processo, a questão do sigilo
bancário e fiscal, tal como se perfila na legislação apontada, não se coloca, já
que o acesso a tais elementos e sua junção aos autos resulta precisamente da
circunstância de os mesmos não estarem abrangidos por tais sigilos, ou então,
os mesmos terem sido quebrados, tendo em conta o preceituado no artigo 135.º e
seguintes do CPP.
É certo que o acesso por parte dos intervenientes processuais à
totalidade dos autos poderá contender com o sucesso da investigação e criar
alguns constrangimentos como os referidos.
Todavia, os operadores judiciários têm que se conformar com estas
«vicissitudes» ou, caso entendam, interpor o competente recurso para as
instâncias adequadas.”
Veio então a referida magistrada do Ministério Público
interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1
do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e
alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra
o despacho de 26 de Maio de 2008, complementado pelo despacho de 3 de Junho de
2008, pretendendo ver apreciada “a inconstitucionalidade do conjunto normativo
formado pelos artigos 86.º, n.ºs 6 e 7, e 89.º, n.º 6, do Código de Processo
Penal, interpretado no sentido de ser permitida e não poder ser recusada, a
todos os intervenientes processuais, designadamente ao arguido, antes do
encerramento do inquérito a que foi aplicado o segredo de justiça, a consulta
irrestrita de todos os elementos do processo, neles incluindo dados relativos à
reserva da vida privada de outras pessoas, abrangendo elementos bancários e
fiscais sujeitos a segredo profissional nos termos do Regime Geral dos
Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras e da Lei Geral Tributária,
juntos aos autos na sequência de quebra do segredo nos termos do artigo 2.º da
Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, mas sem que tenha sido concluída a sua
análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e utilização como meio de
prova ou, pelo contrário, a sua destruição ou devolução nos termos do n.º 7 do
artigo 86.º do CPP e do n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro,
por violação dos princípios ínsitos nos artigos 2.º, 20.º, n.º 3, 26.º, n.ºs 1 e
2, e 202.º da Constituição da República Portuguesa”.
O representante do Ministério Público no Tribunal
Constitucional apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes
conclusões:
“1. O conjunto normativo formado pelos artigos 86.º, n.ºs 6 e 7, e 89.º, n.º 6,
do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de ser permitido e
não poder ser recusado, ao arguido, antes do encerramento do inquérito a que
foi aplicado o segredo de justiça, a consulta irrestrita de todos os elementos
do processo, neles incluindo dados relativos à reserva da vida privada de
outras pessoas, abrangendo elementos bancários e fiscais sujeitos a segredo
profissional, sem que tenha sido concluída a sua análise em termos de poder ser
apreciado o seu relevo e utilização como prova, ou, pelo contrário, a sua
destruição ou devolução, nos termos do n.º 7 do artigo 86.º do Código de
Processo Penal, e sem que se demonstre a sua imprescindibilidade para a defesa
do arguido, é inconstitucional porque violadora dos artigos 2.º, 20.º, n.º 3,
26.º, n.ºs 1 e 2, 32.º, n.º 2, e 202.º da Constituição.
2. Essa inconstitucionalidade sai reforçada se atendermos às
particularidades do caso em que as normas foram aplicadas, já que, tendo
ocorrido a prorrogação do prazo para acesso aos autos por um determinado prazo,
ele é abruptamente encurtado na sequência de decisão da Relação que concedeu
provimento a recurso interposto por alguns arguidos daquela decisão de
prorrogação.
3. Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Os recorridos não apresentaram contra‑alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. A regulação do segredo de justiça em processo penal
– quer na vertente interna, respeitando aos participantes processuais
directamente envolvidos na concreta relação processual, quer na vertente
externa, reportado à generalidade das pessoas, estranhas a essa relação
processual – convoca, com particular acuidade, “a tarefa de concordância
prática das finalidades, irremediavelmente conflituantes, apontadas ao processo
penal: a realização da justiça e a descoberta da verdade material, a protecção
perante o Estado dos direitos fundamentais das pessoas e o restabelecimento, tão
rápido quanto possível, da paz jurídica posta em causa pelo crime e a
consequente reafirmação da validade da norma violada” (Maria João Antunes, “O
segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de
coacção”, em Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, 2003,
pp. 1237‑1268).
Num processo penal constitucionalmente conformado, como
o português, “numa estrutura acusatória integrada pelo princípio da
investigação”, a necessidade de harmonização das apontadas finalidades
justifica soluções diferenciadas consoante as fases por que se desenrola o
processo, tendo em conta o diferente peso relativo que lhes deve ser atribuído
em cada uma delas, compreendendo‑se uma evolução em que o predomínio do
princípio do segredo sobre o princípio da publicidade, típico da fase
preliminar da investigação, vá gradualmente evoluindo para o predomínio do
princípio da publicidade, típico da fase da audiência de julgamento, “sem perder
de vista que em cada um destes momentos processuais vale sempre, mas com
intensidade diferente, o princípio da presunção de inocência até ao trânsito em
julgado da sentença de condenação”. “Assim – refere a mesma autora (estudo
citado, p. 1244), tendo por referência a redacção do Código de Processo Penal de
1987 emergente da revisão de 1998 –, o princípio da publicidade tem a sua
expansão máxima, é dizer as limitações mínimas, na fase de julgamento (artigos
206.º da Constituição da República Portuguesa – CRP – e 86.º, n.º 1, do CPP),
podendo concluir‑se pela derrogação deste princípio, embora com limites, na fase
de inquérito (artigos 20.º, n.º 3, da CRP, e 86.º, n.ºs 1 e 4, e 89.º, n.º 2, do
CPP)”, “[d]ependendo a maior ou menor publicidade da fase de instrução da
circunstância de ter sido (ou não) requerida apenas pelo arguido e de este não
declarar (ou declarar) que se opõe à publicidade (artigo 86.º, n.º 1, parte
final, do CPP)”.
Porém, nem num extremo nem no outro do iter processual,
o princípio dominante, seja ele o do segredo ou o da publicidade, tinha valor
absoluto. Se, tendo em conta as finalidades do julgamento, se justificava a
consagração do princípio da publicidade nessa fase, até porque nela o princípio
da presunção de inocência coexiste com uma acusação e um despacho de pronúncia,
no entanto, mesmo aí, tal princípio “sofre as limitações que sejam necessárias
para salvaguardar certos direitos das pessoas e para garantir a realização da
justiça e a descoberta da verdade material, por via do normal funcionamento dos
tribunais”: assim, por exemplo, a publicidade dos actos processuais que
integravam a fase do julgamento não abrangia os dados relativos à vida privada
que não constituíssem meios de prova (artigo 86.º, n.º 3); o juiz podia
restringir a livre assistência do público aos actos processuais ou determinar
que o acto, ou parte dele, decorresse com exclusão da publicidade, sempre que
tal fosse necessário para evitar a produção de grave dano à dignidade das
pessoas, à moral pública ou ao normal decurso do acto (artigo 87.º, n.ºs 1 e 2),
sendo a exclusão da publicidade a regra nos processos por crime sexual que
tivessem por ofendido um menor de 16 anos (artigo 87.º, n.º 3).
Quanto à fase da instrução, a opção originária do CPP de
1987 de a subordinar, em regra, ao princípio do segredo (o processo só era
público a partir da decisão instrutória ou até ao momento em que a instrução já
não podia ser requerida – n.º 1 do artigo 86.º, na versão inicial), foi
atenuada, na revisão de 1998, com a permissão da publicidade do processo se a
instrução tivesse sido requerida apenas pelo arguido e este, no requerimento,
não declarasse que se opunha à publicidade. Tratando‑se de fase de controlo
judicial da decisão final tomada no inquérito, em que, por isso, a manutenção do
segredo já não era exigida por preocupações de eficácia da investigação,
entendeu‑se que, se a instrução tivesse sido requerida pelo assistente (ou pelo
assistente e pelo arguido), o que pressupunha que já fora proferida uma decisão
de não acusação (pelo menos parcial) do Ministério Público, a preservação do
princípio da presunção de inocência do arguido legitimava a continuação do
segredo; diversamente, se a instrução fosse requerida apenas pelo arguido, o que
pressupunha a dedução de uma acusação, compreender‑se‑ia que lhe fosse facultada
a opção entre a publicidade (se entendesse que ela propiciaria mais eficácia à
sua defesa, que compensasse a perda de privacidade) e a continuação do segredo
(se o juízo de ponderação levasse a resultado oposto).
Quanto à fase do inquérito, sempre foi entendimento que
nela se impunha a derrogação do princípio da publicidade, “importando salientar
que esta derrogação está até constitucionalmente legitimada, a partir das
alterações introduzidas pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, uma
vez que o artigo 20.º, n.º 3, da CRP passou a prever que «a lei define e
assegura a adequada protecção do segredo de justiça»”, como salienta Maria João
Antunes (estudo citado, p. 1244), que acrescenta:
“Justifica‑se aquela derrogação tendo em conta que o inquérito
compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um
crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e
recolher as provas, em ordem à decisão sobre a submissão (ou não) da causa a
julgamento, sendo praticados os actos e assegurados os meios de prova
necessários à realização destas finalidades (artigos 262.º, n.º 1, e 267.º do
CPP); que esta é uma fase cuja abertura depende da mera aquisição da notícia do
crime (artigos 241.º e 262.º, n.º 2, do CPP); e tendo, ainda, em conta que é só
no momento do encerramento do inquérito que é feita uma avaliação no sentido de
saber se foram recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de
quem foi o seu agente, se foi recolhida prova bastante de se não ter verificado
crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente
inadmissível o procedimento ou se não foi possível obter indícios suficientes da
verificação do crime ou de quem foram os seus agentes (artigos 276.º, 277.º e
283.º do CPP). Numa palavra, esta é uma fase em que para a realização da justiça
e a descoberta da verdade material importa assegurar uma investigação da notícia
do crime que não corra o risco de ser perturbada, ou mesmo irremediavelmente
prejudicada, por factores exteriores à administração da justiça penal, ao mesmo
tempo que importa tutelar de forma efectiva a presunção de inocência do arguido,
o que é também uma forma de lhe garantir o direito ao bom nome e reputação
(artigos 26.º, n.º 1, da CRP e 180.º do Código Penal), numa fase processual onde
vale, por excelência, o mandamento constitucional de que todo o arguido se
presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (artigo
32.º, n.º 2, da CRP). No inquérito, o princípio da publicidade é derrogado por
ser outra a forma como se procede à concordância prática das finalidades
processuais conflituantes e por ser também outra a forma como se concretiza a
ponderação dos direitos conflituantes que engrossam o catálogo dos direitos dos
cidadãos que cabe ao processo penal salvaguardar. Uma outra forma que é ditada,
num caso, pelo êxito da investigação da notícia do crime, especialmente no que
diz respeito à aquisição e à conservação da prova e, noutro, por o princípio da
presunção de inocência do arguido valer em termos absolutos.”
Também Frederico de Lacerda da Costa Pinto (“Segredo de
justiça e acesso ao processo”, em Jornadas de Direito Processual Penal e
Direitos Fundamentais, Coimbra, 2004, pp. 67‑98), após demonstrar que a natureza
tendencialmente secreta da fase do inquérito e a natureza tendencialmente
pública da fase do julgamento se compreende em função dos propósitos e das
finalidades de cada uma dessas fases, salienta que “a vigência do segredo de
justiça nas fases preliminares do processo penal é plurisignificativa no plano
axiológico: trata‑se, por um lado, de um mecanismo destinado a garantir a
efectividade social do princípio da presunção de inocência do arguido, durante
fases processuais que ainda estão cronologicamente distantes do julgamento,
julgamento esse que pode, inclusivamente, nem vir a ter lugar por força dum
arquivamento do processo (artigo 277.º) ou duma não pronúncia (artigo 308.º, n.º
1, in fine); noutro plano, é uma forma de garantir condições de eficiência da
investigação e de preservação de possíveis meios de prova, quer a prova obtida
quer a eventual prova a obter; finalmente, como variante específica deste último
aspecto, o segredo de justiça pode assumir igualmente uma função de garantia
para pessoas que intervêm no processo – em particular as vítimas e as
testemunhas – que, de outra forma, poderiam ficar numa fase preliminar do
processo expostas a retaliações e vinganças de arguidos ou pessoas que lhes
sejam próximas”.
O carácter predominantemente secreto da fase do
inquérito não obstava, porém, como os citados autores sublinham e a
jurisprudência deste Tribunal proclamou, ao acesso do arguido aos elementos de
prova sempre que tal acesso se mostrasse necessário para a eficácia da defesa
dos seus direitos nessa fase, designadamente para contraditar – e, sendo caso,
impugnar – a necessidade da aplicação de medidas de coacção, nomeadamente a
sujeição a prisão preventiva. No Acórdão n.º 416/2003, retomando doutrina já
expressa no Acórdão n.º 121/97, teve‑se por constitucionalmente intolerável que
se considerasse sempre e em quaisquer circunstâncias interdito o acesso aos
elementos probatórios que foram determinantes para a imputação dos factos, para
a ordem de detenção e para a proposta de aplicação da medida de coacção de
prisão preventiva, com alegação de potencial prejuízo para a investigação,
protegida pelo segredo de justiça, sem que se procedesse, em concreto, a uma
análise do conteúdo desses elementos de prova e à ponderação, também em
concreto, entre, por um lado, o prejuízo que a sua revelação pudesse causar à
investigação e, por outro lado, o prejuízo que a sua ocultação pudesse causar à
defesa do arguido.
2.2. Foi neste quadro legal, jurisprudencial e doutrinal
(cf., ainda, Maria da Assunção A. Esteves, “A jurisprudência do Tribunal
Constitucional relativa ao segredo de justiça”, em O Processo Penal em Revisão,
Lisboa, 1998, pp. 123‑131; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “O segredo de
justiça em processo penal”, em Estudos Comemorativos do 150.º Aniversário do
Tribunal da Boa‑Hora, Lisboa, 1995, pp. 223‑234; Paulo Dá Mesquita, “O segredo
do inquérito penal – Uma leitura jurídico‑constitucional”, Direito e Justiça,
ano XIV, tomo 2, 2000, pp. 47‑134; Germano Marques da Silva, “O segredo de
justiça – Perspectiva político‑jurídica da sua relevância no combate à
criminalidade, na garantia dos direitos dos cidadãos e no prestígio das
instituições judiciárias”, e Henrique Pavão, “O regime do segredo de justiça no
inquérito na sua vertente interna”, ambos em Conselho Superior da Magistratura,
Balanço da Reforma da Acção Executiva – Segredo de Justiça e Dever de Reserva,
Coimbra, 2005, pp. 75‑113 e 115‑128, respectivamente) que, no âmbito de uma
anunciada revisão do sistema processual penal, em que um dos aspectos a
reformular seria o relativo ao regime do segredo de justiça, se iniciaram os
trabalhos que haveriam de culminar na revisão do CPP operada pela Lei n.º
48/2007, de 29 de Agosto (cf. Agostinho Torres, “Segredo de justiça, sigilo
profissional e protecção das fontes de informação – Alguns aspectos de uma
perspectiva jurisdicional”, Polícia e Justiça – Revista do Instituto Superior de
Polícia Judiciária e Ciências Criminais, III Série, n.º 5, Janeiro‑Junho 2005,
pp. 215‑242; Jorge Ribeiro de Faria, “Publicidade e justiça criminal”, Revista
da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, ano IV, 2007, pp. 125‑153;
Mário Ferreira Monte, “O segredo de justiça: algumas questões postas a propósito
da anunciada alteração do seu regime”, e André Lamas Leite, “Segredo de justiça
interno, inquérito, arguido e seus direitos de defesa”, ambos publicados em
MaiaJurídica, ano IV, n.º 1, Janeiro‑Junho 2006, respectivamente a pp. 17‑34 e
35‑52, e o último publicado também em Revista Portuguesa de Ciência Criminal,
ano 16, n.º 4, Outubro‑Dezembro 2006, pp. 539‑573; Maria Clara Oliveira,
“Segredo de justiça – o mal amado!”, e Manuel Simas Santos, “O segredo de
justiça”, ambos publicados em MaiaJurídica, ano IV, n.º 2, Julho‑Dezembro 2006,
respectivamente a pp. 77‑94 e 145‑154).
As referências iniciais ao âmbito da revisão do regime
de segredo de justiça e mesmo o Anteprojecto apresentado pela Unidade de Missão
para a Reforma Penal e a Proposta de Lei n.º 109/X estavam bem longe do alcance
que a reforma, neste ponto, acabou por assumir. Rui Pereira (“A crise do
processo penal”, Revista do Ministério Público, ano 25.º, n.º 97, Janeiro‑Março
2004, pp. 17‑30, em especial pp. 25‑26, e “A reforma do processo penal”, em II
Congresso de Processo Penal, Coimbra, 2006, pp. 225‑238, em especial pp.
232‑233) justificava a necessidade de revisão do segredo de justiça “de modo a
que se obtenha uma concordância prática entre a necessidade de preservar a
investigação e as garantias de defesa”, já que, face aos juízos de
inconstitucionalidade da completa denegação ao arguido do acesso aos autos,
inviabilizando a impugnação da prisão preventiva, era “desejável que o
legislador formule, no mínimo, um critério do qual se infira em que medida deve
ser concedido, caso a caso, o acesso aos autos em homenagem às garantias de
defesa”, acrescentando: “Sem pôr em causa a investigação, deve‑se restringir o
âmbito do segredo de justiça, tendo em conta que em determinados processos (por
exemplo, relativos a abuso de liberdade de imprensa) ou certos actos processuais
(acórdãos proferidos por tribunais superiores quanto a matéria de direito) ele
não se justifica”, “[e] tão‑pouco se justifica que o segredo se estenda para
além da acusação – na instrução, o processo deve tornar‑se público”.
Eram basicamente estes os propósitos enunciados, a este
respeito, na “Exposição de motivos” do referido Anteprojecto de Código de
Processo Penal apresentado, em Julho de 2006, pela Unidade de Missão para a
Reforma Penal, que estabelecia a regra de que “o processo está sujeito a segredo
de justiça até ao termo do prazo para requerer a abertura da instrução, excepto
se o Ministério Público determinar a sua publicidade” (n.º 2 do artigo 86.º), o
que poderia fazer, “em qualquer momento do inquérito, com a concordância do
arguido, quando entender que a cessação do segredo não prejudica a investigação
e os direitos dos participantes processuais ou das vítimas” (n.º 3 do artigo
86.º), continuando o processo “sujeito ao segredo de justiça até ao trânsito em
julgado da decisão instrutória, se o arguido declarar que se opõe à publicidade”
(n.º 4 do artigo 86.º). No que concerne ao “segredo interno”, o n.º 1 do artigo
89.º previa que “durante o inquérito, o arguido, o assistente, o ofendido, o
lesado e o responsável civil podem consultar, mediante requerimento, o processo
ou elementos dele constantes, bem como obter os correspondentes extractos,
cópias ou certidões, salvo quando o Ministério Público a isso se opuser, por
considerar, fundamentadamente, que pode prejudicar a investigação ou os
direitos dos participantes processuais ou das vítimas”.
A Proposta de Lei n.º 109/X (Diário da Assembleia da
República (DAR), II Série‑A, n.º 31, de 23 de Dezembro de 2006, pp. 6‑178)
mantinha o teor dos n.ºs 2, 3 e 4 (este agora sob o n.º 5) do artigo 86.º e do
n.º 1 do artigo 89.º do Anteprojecto, mas passava a prever no novo n.º 4 do
artigo 86.º que “no caso de o arguido requerer a publicidade mas o Ministério
Público não a determinar, os autos são remetidos ao juiz, que decide, por
despacho irrecorrível, depois de ouvir o ofendido, se o processo continua
sujeito a segredo de justiça ou se torna público”, e, no n.º 2 do artigo 89.º,
que “se o Ministério Público se opuser à consulta ou à obtenção dos elementos
previstos no número anterior, o requerimento é presente ao juiz, que decide por
despacho irrecorrível”.
As restantes iniciativas legislativas apresentadas no
âmbito da revisão do processo penal propunham soluções diversificadas, mas
nenhuma preconizava o estabelecimento, como regra, da publicidade do processo na
fase do inquérito. O Projecto de Lei n.º 237/X, do PSD (DAR, II Série‑A, n.º
100, de 6 de Abril de 2006, p. 13), previa que o processo, no caso de crimes
puníveis com pena de prisão superior a oito anos, era público apenas a partir do
encerramento do inquérito, excepto se fosse requerida a abertura de instrução e
o arguido declarasse que se opunha à publicidade (n.º 2 do artigo 86.º), regime
que seria extensível aos processos por crimes puníveis com pena de prisão
superior a três anos se o juiz, mediante requerimento da vítima, do arguido ou
do Ministério Público, assim o entendesse em despacho fundamentado (n.º 5 do
artigo 86.º); quanto ao segredo interno, o n.º 2 do artigo 89.º previa que, se
o Ministério Público ainda não houvesse deduzido acusação ou proferido despacho
de arquivamento do inquérito, o arguido, o assistente e as partes civis só
podiam ter acesso a auto que se encontrasse em segredo de justiça na parte
respeitante a declarações prestadas e a requerimentos e memoriais por eles
apresentados, bem como a diligências de prova a que pudessem assistir ou a
questões incidentais em que devessem intervir, podendo, nos termos do
subsequente n.º 3, o juiz, com a concordância do Ministério Público, do arguido
e do assistente, permitir que o arguido e o assistente tivessem acesso a todo o
auto. O Projecto de Lei n.º 368/X, do CDS‑PP (DAR, II Série‑A, n.º 52, de 9 de
Março de 2007, p. 17), mantinha a regra de que o processo só era público a
partir da decisão instrutória (ou do momento em que a instrução já não pudesse
ser requerida) ou, se a instrução fosse requerida apenas pelo arguido, se este,
no respectivo requerimento, não declarasse opor‑se à publicidade (artigo 86.º,
n.º 1), reproduzindo, nos n.ºs 2 e 3 do artigo 89.º, o teor dos correspondentes
preceitos do Projecto de Lei n.º 237/X. O Projecto de Lei n.º 369/X, do BE
(mesmo DAR, p. 34), fazia depender a publicidade do processo da natureza dos
crimes em causa: tratando‑se de crimes de natureza particular, o processo era
sempre público (artigo 86.º, n.º 1); tratando‑se de crimes de natureza
semi‑pública, o processo era público a partir do momento em que fosse deduzida a
acusação, podendo, no entanto, no decurso do inquérito, o juiz de instrução,
através de despacho fundamentado, ordenar o levantamento do segredo de
justiça, quando a publicidade do inquérito não interferisse com a investigação
em curso e desde que fossem assegurados todos os direitos do arguido e das
vítimas (artigo 86.º, n.º 2); tratando‑se de crimes públicos, o processo era
público apenas a partir do momento em que fosse deduzida a acusação. Por último,
o Projecto de Lei n.º 370/X, do PCP (mesmo DAR, p. 43) não propunha alterações
para o n.º 1 do artigo 86.º então vigente, mas nos n.ºs 2 e 4 do artigo 89.º
acolhia preceitos similares aos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 89.º do Projecto de Lei
n.º 237/X.
Foi só no decurso na discussão e votação, na
especialidade, dessas iniciativas legislativas, a cargo de um grupo de trabalho
constituído no seio da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos,
Liberdades e Garantias, e especificamente na reunião final da Comissão,
realizada em 18 de Julho de 2007, que foram apresentadas as propostas de
alteração aos artigos 86.º e 89.º do CPP que acabariam por ser aprovadas, e que
representaram uma alteração radical – para a qual o relatório da referida
Comissão (DAR, II Série‑A, n.º 117, de 23 de Julho de 2007, p. 18) não fornece
qualquer indicação que permita compreender a sua justificação (Tendo sido
requerida a avocação pelo Plenário da votação, na especialidade, do artigo 86.º,
cf. a parte correspondente do debate, a pp. 51 a 54, e da votação, a p. 56, do
DAR, I Série, n.º 108, de 20 de Julho de 2007).
Como salienta Pedro Maria Godinho Vaz Patto (“O regime
do segredo de justiça no Código de Processo Penal revisto”, Revista do CEJ, n.º
9, 2008, pp. 43‑67, no prelo), a versão que veio a ser aprovada diferencia‑se
das constantes dos referidos Anteprojecto e Proposta de Lei:
“A regra passa a ser a publicidade do processo mesmo na fase de
inquérito. A regra do carácter secreto do inquérito, consignada no artigo 86.º,
n.º 2, da Proposta de Lei e do Anteprojecto desapareceu. Esse carácter secreto
passa a ser a excepção. O Ministério Público pode afastar essa regra, mas, para
tal, carece da concordância do juiz de instrução. Estatui o n.º 3 do artigo
86.º: «Sempre que o Ministério Público entender que os interesses da
investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode
determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de
justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no
prazo máximo de setenta e duas horas». Neste caso, o Ministério Público poderá
determinar, posteriormente e em qualquer momento do inquérito, o levantamento
do segredo de justiça, oficiosamente ou mediante requerimento do arguido, do
assistente ou do ofendido (n.º 4 do mesmo artigo). Esse levantamento também pode
ser decidido pelo juiz de instrução, mediante despacho irrecorrível, no caso de
o arguido, o assistente ou o ofendido o requererem mesmo contra a posição do
Ministério Público (n.º 5 do mesmo artigo). Assim, por um lado, passa a ser
possível, ao contrário do que decorreria do regime do Anteprojecto e da
Proposta de Lei, determinar a publicidade do processo na fase de inquérito
mesmo contra a vontade do arguido: se o Ministério Público não requerer a
sujeição do mesmo a segredo de justiça (não é essa a regra e pode entender que
os direitos dos sujeitos processuais não justificam o afastamento dessa regra) e
se o juiz não deferir o requerimento do arguido nesse sentido. Por outro lado,
também pode suceder (o que não sucederia no regime decorrente do Anteprojecto e
da Proposta de Lei) que o processo se mantenha público e não fique sujeito ao
regime de segredo de justiça contra a posição assumida pelo Ministério Público
e mesmo que não haja requerimento do arguido (ou também do assistente ou do
ofendido) nesse sentido. Tal sucederá se o juiz de instrução não validar a
decisão do Ministério Público de afastar a regra da publicidade, nos termos do
n.º 3 do referido artigo 86.º”
Tão drástica subversão da regra “natural” [na Exposição
de motivos da Proposta de Lei n.º 157/ VII, que esteve na base da revisão do
CPP de 1998, proclamou‑se: “o inquérito, em cujo âmbito se desenvolve a
investigação é, por natureza, inquisitório e secreto”] do carácter secreto do
inquérito, adoptada, sem explicitação das respectivas motivações, na última
reunião da Comissão que procedeu à votação na especialidade dos projectos
legislativos relativos à revisão do Código de Processo Penal, face a uma
proposta de alteração apresentada, pela primeira vez, nessa ocasião, não pode
ter deixado de causar as maiores perplexidades aos intérpretes e aplicadores do
direito (para além do citado artigo de Pedro Vaz Patto, cf. Paulo Pinto de
Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa, 2007, em especial
pp. 241‑246 e 253‑262; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II
vol., 4.ª edição, Lisboa, 2008, pp. 21‑42; Frederico de Lacerda da Costa Pinto,
“Publicidade e segredo na última revisão do Código de Processo Penal”, em
Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova
de Lisboa, vol. II, Lisboa, 2008, pp. 627‑664, a publicar também no referido n.º
9 da Revista do CEJ, no prelo; João G. A. Simas Santos, “Processo penal –
Segredo de justiça – Decisão do Ministério Público e validação pelo juiz de
instrução”, Revista do Ministério Público, ano 29, n.º 113, Janeiro‑Março 2008,
pp. 131‑144; Antonieta Borges, “Publicidade do processo penal e segredo de
justiça – Inquérito – Aplicação do n.º 6 do artigo 89.º do Código de Processo
Penal”, Revista do Ministério Público, ano 29, n.º 114, Abril‑Junho 2008, pp.
151‑177; acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 27 de Fevereiro de 2008,
P. 0747210, de 23 de Abril de 2008, P. 0841343, de 7 de Maio de 2008, P.
0811925, de 28 de Maio de 2008, P. 0842007, de 4 de Junho de 2008, P. 0813660,
de 11 de Junho de 2008, P. 0842068, e de 25 de Junho de 2008, P. 0812926, em
www.dgsi.pt/jtrp, e do Tribunal da Relação de Évora, de 27 de Dezembro de 2007,
P. 3209/07‑1, em www.dgsi.pt/jtre; e Centro de Estudos Sociais da Faculdade de
Economia da Universidade de Coimbra / Observatório Permanente da Justiça
Portuguesa, Monitorização da Reforma Penal – Primeiro Relatório Semestral, 30 de
Maio de 2008, pp. 39‑47).
2.3. A directa constitucionalização do dever de
protecção do segredo de justiça ocorreu na revisão constitucional de 1997, com
o aditamento ao artigo 20.º de um n.º 3, do seguinte teor: “A lei define e
assegura a adequada protecção do segredo de justiça” (sem prejuízo de, desde a
revisão de 1989, o n.º 1 do artigo 35.º prever como limite ao direito dos
cidadãos de tomar conhecimento dos dados constantes de ficheiros ou registos
informáticos a seu respeito o disposto na lei sobre segredo de Estado e segredo
de justiça, e o n.º 2 do artigo 268.º prever como limite ao direito de acesso
dos cidadãos aos arquivos e registos administrativos o disposto na lei em
matéria relativa à investigação criminal).
Esta inovação teve origem no Projecto de revisão
constitucional n.º 5/VII, apresentado pelo PSD (DAR, II Série‑A, Suplemento ao
n.º 27, de 7 de Março de 1996, pp. 484‑(44) a 484‑(60)), que preconizava a
inserção de um n.º 2 no artigo 20.º da CRP, do seguinte teor: “Todos têm
direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, à protecção do
segredo de justiça, ao patrocínio judiciário e a fazer‑se acompanhar de
advogado perante qualquer autoridade”. Como resulta claramente do debate
parlamentar, a autonomização da protecção do segredo de justiça no actual n.º
3, ficando no n.º 2 a consagração dos restantes direitos previstos naquele
projecto (direitos à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e
ao acompanhamento por advogado), visou primacialmente não reduzir a protecção do
segredo de justiça a uma perspectiva de defesa dos direitos dos cidadãos,
realçando‑se que tal protecção se justifica também por necessidade de assegurar
a eficiência da investigação criminal e do exercício da acção penal, no âmbito
da função fundamental do Estado de garantir os direitos e liberdades
fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático
(artigo 9.º, alínea b), da CRP). Visou‑se, assim, afastar uma concepção do
segredo de justiça que o visse apenas como “direito individual”, fazendo realçar
que o segredo “é relevante também para o Ministério Público e para a máquina
judicial” (Deputado José Magalhães, DAR, II Série‑RC, n.º 75, de 16 de Abril de
1997, p. 2176), que “o segredo de justiça é um valor estimável quer no âmbito da
protecção dos direitos pessoais quer no âmbito da protecção do próprio processo
de investigação e da actividade do Ministério Público” (Deputado Luís Sá, DAR
citado, p. 2176). Para além de não qualificar, “de forma monodimensional, o
segredo de justiça como um direito de parte”, mantendo‑se a sua
“pluridimensionalidade (…) e, portanto, o seu carácter expansivo em várias
dimensões”, a nova norma constitucional não pode ser lida como uma mera remissão
para a total liberdade de conformação da protecção do segredo de justiça pelo
legislador ordinário, antes a exigência da adequação dessa protecção encerra uma
impostergável injunção no sentido de que a intervenção legislativa satisfaça
as “quatro dimensões” da “adequação”: “uma protecção que tenha um nível de
protecção suficiente, apropriado, pertinente e, finalmente, eficaz” (Deputado
José Magalhães, DAR citado, p. 2177). No sentido de a consagração constitucional
da protecção adequada do segredo de justiça dever contemplar também a vertente
da protecção da investigação criminal, cf. ainda as intervenções dos Deputados
Odete Santos, Guilherme Silva e Luís Sá, no mesmo DAR, pp. 2179, 2180 e 2182.
A inserção da imposição de protecção do segredo de
justiça no artigo 20.º (e não, por exemplo, no artigo 32.º) justifica‑se por não
ser apenas no âmbito do processo penal que ele vigora, valendo também noutros
processos que reclamem a tutela da reserva da intimidade da vida privada e
familiar (v. g., em acções de investigação de paternidade), como referem Jorge
Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005,
pp. 204‑205), o que, de qualquer forma, não pode fazer esquecer a peculiar
relevância que ele assume em processo criminal, tendo em vista “a protecção da
eficácia da investigação e da honra do arguido” (autores e local citados).
Trata‑se “de uma nova garantia institucional e não de um novo direito
fundamental, sem prejuízo da sua dupla justificação, subjectiva e objectiva”
(Marcelo Rebelo de Sousa e José de Melo Alexandrino, Constituição da República
Portuguesa Comentada, Lisboa, 2000, p. 102). “Ao constitucionalizar o segredo
de justiça, a Constituição ergue‑o à categoria de bem constitucional, o qual
poderá justificar o balanceamento com outros bens ou direitos ou, até, a
restrição dos mesmos (investigações jornalísticas de crimes, publicidade do
processo, direito ao conhecimento do processo por parte de interessados), mas
não deve servir para contradizer o exercício dos direitos de defesa (cf. Acórdão
do Tribunal Constitucional n.º 121/97)” (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, vol. I, Coimbra, 2007,
p. 414).
Como sublinha Nuno Piçarra (O Inquérito Parlamentar e
os seus Modelos Constitucionais, Coimbra, 2004, p. 689), a elevação do segredo
de justiça “à categoria de bem constitucionalmente protegido acarreta, por um
lado, uma limitação da margem de livre conformação do legislador ordinário, que
deixa de poder suprimir tal segredo e fica vinculado a dar‑lhe um mínimo de
efectividade/operatividade. Por outro lado, os potenciais conflitos do segredo
de justiça com outros bens constitucionais dever‑se‑ão resolver, não
sacrificando o primeiro aos últimos, mas obtendo a máxima harmonização prática
possível entre eles”.
Apesar de caber ao legislador concretizar o âmbito e os
limites do segredo de justiça, resulta, porém, do n.º 3 do artigo 20.º da CRP,
que o há‑de fazer “através de uma ponderação (…) dos vários direitos e
interesses dignos de tutela e, potencialmente, conflituantes”, ponderação essa
“sujeita ao controlo da constitucionalidade” (Jorge Miranda e Rui Medeiros, obra
e tomo citados, p. 205).
2.4. É justamente o controlo da constitucionalidade, sob
o ponto de vista da adequação da ponderação subjacente, do critério normativo
seguido pela decisão ora recorrida que este Tribunal é chamado a efectuar.
No presente caso, como das precedentes considerações
resulta, não está em causa a apreciação de juízos de inconstitucionalidade com
alcance mais vasto, que a doutrina tem dirigido ao novo regime da publicidade do
inquérito.
Tal como resulta dos termos em que a questão de
constitucionalidade foi colocada perante o tribunal recorrido e por ele
decidida e veio a ser definida no requerimento de interposição de recurso, está
em causa a apreciação da conformidade constitucional de um critério normativo,
que radica no artigo 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, e de acordo com o
qual “deve ser permitida e não poder ser recusada, a todos os intervenientes
processuais, designadamente ao arguido, antes do encerramento do inquérito a
que foi aplicado o segredo de justiça, a consulta irrestrita de todos os
elementos do processo, neles incluindo dados relativos à reserva da vida privada
de outras pessoas, abrangendo elementos bancários e fiscais sujeitos a segredo
profissional nos termos do Regime Geral dos Instituições de Crédito e
Sociedades Financeiras e da Lei Geral Tributária, juntos aos autos na sequência
de quebra do segredo nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de
Janeiro, mas sem que tenha sido concluída a sua análise em termos de poder ser
apreciado o seu relevo e utilização como meio de prova ou, pelo contrário, a
sua destruição ou devolução nos termos do n.º 7 do artigo 86.º do CPP e do n.º 4
do artigo 3.º da Lei n.º 5/2002”.
Procedendo à análise específica da norma do n.º 6 do
artigo 89.º do CPP, Frederico de Lacerda da Costa Pinto (“Publicidade e segredo
na última revisão do Código de Processo Penal”, citado, n.ºs 5 a 7 da parte IV),
começa por recordar que “a solução do artigo 89.º, n.º 6, foi construída [no
Anteprojecto e na Proposta de Lei] num contexto em que o Ministério Público
decidia unilateralmente e sem controlo judicial do acesso ao processo, que
ficaria em segredo de justiça enquanto o titular do inquérito não encerrasse
esta fase processual. Portanto, o regime foi pensado para evitar um
prolongamento excessivo do segredo de justiça dependente em todos os aspectos de
uma única entidade – o que significava para o arguido a manutenção desse
estatuto e para o assistente a ignorância do que estaria a ser feito, por força
do regime de acesso aos autos”. “Ora – prossegue –, o regime mudou radicalmente
com as alterações do Parlamento, pelo que a sua função estabilizadora dos
diversos interesses em potencial conflito se encontra agora perdida e em risco
de ser adulterada. No contexto da nova regulação do segredo de justiça e do
acesso aos autos, matéria sujeita a um intenso controlo judicial, o regime do
artigo 89.º, n.º 6, do CPP é razoavelmente desnecessário e gera mais problemas
do que aqueles que resolve, podendo facilmente ser convertido num instrumento
de boicote à investigação criminal. Por isso acho razoável insistir nas
alterações legislativas referidas [criação no artigo 276.º de um regime de
suspensão de contagem do prazo do inquérito quando estivessem em causa
diligências a executar por terceiros, que não o Ministério Público ou os órgãos
de polícia criminal, ou declaração da inaplicabilidade do regime à
criminalidade organizada, em especial aos crimes económico‑financeiros, à
corrupção e à criminalidade transnacional], ou mesmo ponderar a simples
eliminação do preceito por desnecessidade da solução que consagra, porque os
objectivos que visa são, no fundo, conseguidos pelos regimes de levantamento do
segredo e de acesso aos autos, com controlo judicial: artigos 86.º, n.º 5, e
89.º, n.ºs 1 e 2, do CPP”.
Encarando a situação criada com a formulação actual do regime
do segredo de justiça no inquérito, e especificamente da norma do n.º 6 do
artigo 89.º, o autor citado ensaia um esforço de interpretação conforme à
Constituição, sendo certo que, no seu entender, se tal for julgado inviável, se
impõe um juízo de inconstitucionalidade. Aduz, nesse sentido, o seguinte:
“6. Resta saber se tal é possível por via do sistema hermenêutico, ou
seja, ponderando e articulando as situações carentes de uma solução específica
com elementos diversos do sistema legal, minimizar os inconvenientes do artigo
89.º, n.º 6, do CPP. Estou em crer que a gravidade do problema e a necessidade
de tutelar a investigação criminal, como condição essencial do sistema
constitucional de administração da justiça, exigem uma solução praeter legem.
Ou uma intervenção legislativa específica que acautele devidamente os
interesses em causa, nos termos ou com os contornos atrás referidos, ou,
enquanto tal não existir, uma solução hermenêutica que permita atingir tal
resultado.
Os pontos de apoio para o efeito podem residir no regime de
fundamentação e revelação de elementos na aplicação de medidas de coacção e no
regime geral de quebra do segredo de justiça durante o inquérito. O dever de
enunciar os indícios probatórios no despacho judicial de aplicação de medidas
de coacção, dando‑os a conhecer ao arguido, tem limites, pois só tem de ser
cumprido (artigo 194.º, n.º 4, alínea b), n.º 5 e n.º 6) se não puser
gravemente em causa a investigação, se a sua revelação não impossibilitar a
descoberta da verdade ou se a sua revelação não criar perigo para a vida,
integridade física ou psíquica ou para a liberdade dos participantes
processuais ou vítimas do crime. Nestes casos, limita‑se o dever de fundamentar
probatoriamente o despacho judicial (artigo 194.º, n.º 4, alínea b), segunda
parte). Estando perante um limite ao dever de revelar elementos do processo
através da fundamentação do despacho e não perante uma excepção à
possibilidade de aplicar a medida de coacção, isso significa que o acto pode
continuar a ser praticado sem ter, em tais casos, de se revelar os elementos.
Esses elementos podem ser usados para decidir a aplicação da medida de coacção
mas não são comunicados ao arguido, não podem ser consultados, tais omissões
são legítimas e, por isso, não geram nulidade do despacho. Ora, se tal limite
existe mesmo quando está em causa a prática de um acto profundamente limitador
da liberdade do arguido, deveria valer igualmente quando existe a necessidade
de tutelar tais interesses sem que esteja em causa a aplicação de uma medida de
coacção. As próprias quebras de segredo interno durante a investigação não a
podem pôr em causa, como resulta expressamente do n.º 9 do artigo 86.º do CPP,
o que confirma o elevado interesse público em não pôr em causa a investigação
criminal.
Em conclusão, numa leitura articulada materialmente com o interesse
público inerente à investigação criminal, o artigo 89.º, n.º 6, do CPP não pode
permitir o acesso automático aos autos sempre que tal possa pôr gravemente em
causa a investigação, se a sua revelação impossibilitar a descoberta da verdade
ou se a sua revelação criar perigo para a vida, integridade física ou psíquica
ou para a liberdade dos participantes processuais ou vítimas do crime.
Só cumpridas estas exigências se pode afirmar que se respeita o
disposto no artigo 20.º, n.º 3, da Constituição, de acordo com o qual «a lei
define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça». O segredo de
justiça não é um valor em si, tem antes uma vocação funcional: serve para
proteger a investigação e alguns interesses pessoais dignos de tutela nestas
fases preliminares (v. g. interesses dos arguidos, suspeitos, testemunhas,
vítimas). Uma norma processual que assegure os interesses dos arguidos no
acesso ao processo, mas desproteja a investigação, ao ponto de a poder pôr em
causa, é uma norma contrária às exigências do artigo 20.º, n.º 3, da CRP. […]
Por isso, entendo que os aplicadores do Direito nesta matéria podem e
devem fazer uma interpretação do artigo 89.º, n.º 6, do CPP conforme a
Constituição (ao artigo 20.º, n.º 3, da Constituição), com vista a salvaguardar
as condições da investigação criminal e interesses particulares relevantes,
nos termos citados. O que pode realizar‑se com a aplicação analógica do limite
do artigo 194.º, n.º 4, alínea b), por maioria de razão, e do artigo 86.º, n.º
9, ambos do CPP, aos casos de quebra do segredo interno por decurso do prazo,
vedando‑se, por via judicial, o acesso dos particulares a elementos quando o seu
conhecimento possa pôr gravemente em causa a investigação, impossibilitar a
descoberta da verdade ou colocar em perigo as pessoas referidas no artigo
194.º, n.º 4, alínea b), do CPP. Solução que tem ainda o seu apoio no já citado
artigo 86.º, n.º 9, do CPP.
Se assim não se entender, deve concluir‑se, para todos os efeitos
legais, que o artigo 89.º, n.º 6, do CPP é inconstitucional porque, ao criar um
regime de quebra automática do segredo interno num contexto em que o acesso ao
processo deixou de estar nas mãos do MP e passou a ser controlado pelo JIC
(artigo 89.º, n.ºs 1 e 2), põe em causa de forma grave e desnecessária a
investigação criminal, pelo que não garante uma adequada protecção ao segredo
de justiça, como exige o artigo 20.º, n.º 3, da Lei Fundamental.”
No presente caso, a decisão recorrida não adoptou a
“interpretação conforme à Constituição” preconizada no estudo acabado de citar,
antes adoptou como critério normativo – que este Tribunal tem de considerar como
um dado da questão de constitucionalidade – o de que, findos os prazos previstos
no artigo 276.º e os das prorrogações previstas no n.º 6 do artigo 89.º, o
arguido tem acesso irrestrito a todos os elementos constantes do inquérito,
independentemente da sua natureza.
Do que se trata é, pois, de apreciar se o apontado
critério normativo satisfaz o requisito da adequação, constitucionalmente
exigida pelo n.º 3 do artigo 20.º da CRP, da protecção do segredo de justiça,
tendo presente que, no presente caso, tal como a questão de constitucionalidade
foi definida, dos valores constitucionais de que este instituto é instrumento,
apenas está em causa a protecção de direitos de outras pessoas, diferentes do
requerente do acesso aos autos.
A resposta – adiante‑se desde já – é negativa.
Não se nega que subjacente ao regime do n.º 6 do artigo
89.º do CPP está a preocupação compreensível de proteger os arguidos (e outros
intervenientes processuais) de demoras excessivas na conclusão dos inquéritos,
mas também não se pode ignorar que, muitas vezes, especialmente na criminalidade
económica, a rápida conclusão do inquérito não depende exclusivamente da
diligência do seu titular, o Ministério Público, por tal implicar a actividade
de terceiras entidades (relatórios periciais, cartas rogatórias para outros
países, etc.).
Acresce que, no presente caso, não está em causa o
acesso do arguido a elementos constantes do processo que sejam necessários para
a adequada defesa dos seus direitos, designadamente para contrariar ou impugnar
a aplicação de medidas de coacção, hipótese em que a jurisprudência deste
Tribunal tem considerado não ser oponível o segredo de justiça, mesmo durante o
decurso normal do prazo do inquérito (o que obteve consagração nos n.ºs 1 e 2 do
artigo 89.º e no n.º 4, alínea d), do artigo 141.º do CPP). Aliás, como se
documenta na alegação do Ministério Público, os arguidos têm proficuamente
exercitado o seu direito de impugnação de decisões que consideraram ter afectado
os seus direitos, como a decisão que indeferiu arguição de nulidade do mandado
de detenção, das decisões que decretaram e mantiveram a prisão preventiva e da
decisão que indeferiu arguição de nulidade de determinadas apreensões. O que
agora está em causa é a possibilidade de conhecimento do que consta da
globalidade do inquérito, pelo que o mero diferimento desse acesso para momento
subsequente ao encerramento do inquérito se reveste de menor gravidade do que
eventual recusa de acesso especificamente direccionado e justificado pela
necessidade de defesa eficiente contra actos concretos que afectem a posição
processual do arguido.
O critério normativo adoptado na decisão recorrida
mostra‑se, assim, constitucionalmente inadequado na perspectiva da protecção de
outros valores constitucionais cobertos por outras formas de segredo e,
designadamente, da protecção da privacidade de terceiros, já que o sacrifício
(definitivo) deste valor não é necessário nem proporcionado para a tutela de
interesses do requerente de acesso, que podem ser alcançados, em termos
substantivos, em momento ulterior.
O Ministério Público limitou a recusa de acesso a
documentos constantes do inquérito contendo “dados relativos à reserva da vida
privada de outras pessoas, abrangendo elementos bancários e fiscais sujeitos a
segredo profissional”, salientando não ter sido ainda concluída a sua análise em
termos de poder ser apreciado o seu relevo e utilização como prova ou, pelo
contrário, a sua destruição ou devolução, nos termos do n.º 7 do artigo 86.º do
CPP.
A decisão recorrida adoptou um critério que não protege
adequadamente os interesses de terceiros, consentindo a lesão da sua privacidade
decorrente da irrestrita concessão de acesso a todos os elementos do inquérito
aos arguidos que o requereram, justamente por ter partido de uma interpretação
segundo a qual, verificada a situação prevista no n.º 6 do artigo 89.º do CPP, o
acesso franco do arguido ao inquérito é irrecusável, sejam quais forem os riscos
de lesão de outros valores que daí resultem. Ora, importa não esquecer que,
sendo certo que a inclusão no inquérito de elementos cobertos por esses tipos de
segredo já pressupôs um juízo de admissibilidade da sua quebra em homenagem aos
interesses da investigação, não menos certo é que estão em jogo outros valores
constitucionalmente protegidos, ligados à reserva das pessoas em causa a que
esses segredos respeitam (sobre a relevância do segredo bancário para a defesa
da intimidade da vida privada, cf., por último, o Acórdão n.º 442/2007), que
nada justificará sejam sujeitos a devassa por parte dos restantes intervenientes
processuais sem que previamente seja emitido o juízo de relevância para a prova
previsto no n.º 7 do artigo 86.º do CPP.
Ora, é este critério normativo que, pelas razões
expostas, se considera não respeitar a adequação na protecção do segredo de
justiça que o artigo 20.º, n.º 3, da CRP impõe ao legislador.
3. Decisão
Em face do exposto, decide‑se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º,
n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do artigo 89.º,
n.º 6, do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29
de Agosto, segundo a qual é permitida e não pode ser recusada ao arguido, antes
do encerramento do inquérito a que foi aplicado o segredo de justiça, a
consulta irrestrita de todos os elementos do processo, neles incluindo dados
relativos à reserva da vida privada de outras pessoas, abrangendo elementos
bancários e fiscais sujeitos a segredo profissional, sem que tenha sido
concluída a sua análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e
utilização como prova, ou, pelo contrário, a sua destruição ou devolução, nos
termos do n.º 7 do artigo 86.º do Código de Processo Penal; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando a
reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de
inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Agosto de 2008.
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Benjamim Silva Rodrigues (Vencido de acordo com a
declaração de voto que anexarei)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 – Votei vencido, por não poder acompanhar a tese da
maioria que subscreveu o acórdão.
2 – O acórdão chegou à solução de inconstitucionalidade
do art.º 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.º
48/2007, por, em termos resumidos, entender que o preceito “não assegura a
adequada protecção do segredo de justiça”, violando, por este modo, o disposto
na segunda parte do n.º 3 do art.º 20.º da CRP.
Para assim concluir, o acórdão entendeu que, se era de
aceitar a quebra do segredo relativamente a documentos do processo constantes do
inquérito contendo “dados relativos à reserva da vida privada de outras pessoas,
abrangendo elementos bancários e fiscais sujeitos a segredo profissional”, “em
homenagem aos interesses da investigação”, “já nada justificará que esses
elementos sejam sujeitos a devassa por parte dos restantes intervenientes
processuais sem que previamente seja emitido o juízo de relevância para a prova
previsto no n.º 7 do art.º 86.º do CPP”.
3 – O acórdão censurou, deste jeito, o juízo de
proporcionalidade levado a cabo pelo legislador subjacente à opção
normativo-constitutiva constante do preceito, com base num seu diferente juízo
de proporcionalidade.
Ao dispor no n.º 3 do art.º 20.º que “a lei define e
assegura a adequada protecção do segredo de justiça”, a Constituição remeteu
para o legislador ordinário não só a definição dos diversos conteúdos do
segredo de justiça, como a previsão dos termos em que a protecção desses
conteúdos deve ser assegurada, apenas exigindo, quanto a tais termos, que eles
sejam adequados.
O diploma fundamental deixa, pois, para o legislador
ordinário a tarefa de construir o regime do segredo de justiça, tarefa esta de
que se desembaraçou nos art.ºs 86.º a 89.º do CPP, impondo-lhe apenas que, na
regulação das situações de confronto entre os diversos bens a tutelar
(liberdade, honra e bom nome do arguido, presunção de inocência do arguido,
garantia dos direitos de defesa do arguido, princípio do inquisitório ou da
investigação criminal, respeito pelos direitos de terceiro, verdade material,
celeridade processual), seja seguido o princípio da proporcionalidade.
A obediência a tal princípio seria, de resto, postulada
directamente pela própria natureza do segredo, enquanto garantia fundamental
institucional, funcionalizada para a salvaguarda de interesses prosseguidos
pelo “estatuto” da investigação criminal e reclamados pelo “estatuto” do
arguido.
No Acórdão n.º 634/93, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, o Tribunal Constitucional caracterizou o
princípio da proporcionalidade nos seguintes termos:
«[...] o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios:
princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e
garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins
visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente
protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser
exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros
meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa
medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas
excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).»
E, debruçando-se sobre o sentido do princípio da
adequação, afirmou-se no Acórdão n.º 159/07, disponível no mesmo site:
«O princípio da adequação ou idoneidade exige, pois, que as medidas
restritivas “sejam aptas a realizar o fim visado com a restrição ou contribuam
para o alcançar” (Jorge Reis Novais, As restrições aos direitos fundamentais não
expressamente previstas na Constituição, Coimbra Editora, 2003, p. 731). De
acordo com este controlo de aptidão, devem apenas considerar-se inidóneas as
medidas restritivas cujos efeitos sejam “indiferentes, inócuos ou até
negativos, tomando como referência a aproximação do fim prosseguido com a
restrição” (obra citada, p. 738)».
Por seu lado, escreveu-se no Acórdão n.º 187/01,
disponível em www.tribunalconstitucional.pt:
«[…] não pode deixar de reconhecer-se ao legislador – diversamente da
administração – […] uma “prerrogativa de avaliação”, como que um “crédito de
confiança”, na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empíricas
entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela
resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução
dos objectivos visados com a medida […]. Tal prerrogativa da competência do
legislador na definição dos objectivos e nessa avaliação […] afigura-se
importante sobretudo em casos duvidosos, ou em que a relação medida-objectivo é
social ou economicamente complexa, e a objectividade dos juízos que se podem
fazer (ou suas hipotéticas alternativas) difícil de estabelecer.
[…] em casos destes, em princípio, o Tribunal não deve substituir
uma sua avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e
os efeitos das medidas, à que é efectuada pelo legislador, e que as
controvérsias geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro
manifesto de apreciação – como é, designadamente (mas não só), o caso de as
medidas não serem sequer compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser
resolvidas contra a posição do legislador.
[…] a própria averiguação jurisdicional da existência de uma
inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade por uma
determinada norma, depende justamente de se poder detectar um erro manifesto de
apreciação da relação entre a medida e seus efeitos, pois aquém desse erro deve
deixar-se na competência do legislador a avaliação de tal relação, social e
economicamente complexa.»
Ora, foi uma atitude exactamente inversa a esta boa
doutrina, constantemente renovada pela jurisprudência do Tribunal
Constitucional, que a tese da maioria seguiu.
E fê-lo, a nosso ver, esquecendo ou esvaziando de
sentido diversos pressupostos legislativos em torno dos quais a solução
constitucionalmente agora censurada foi construída pelo legislador ordinário.
Antes de mais, importa dizer que se aceita que a opção
legislativa concretizada na norma possa não corresponder à melhor solução de
regulação dos bens que aqui se defrontam, especialmente quando esteja em causa a
investigação de determinados tipos de criminalidade, como sejam a económica ou a
fiscal, ou em que haja a necessidade de colaboração de entidades estrangeiras.
Mas esse é um problema que deve apoquentar apenas o
legislador ordinário e motivá-lo a alterar a lei, que não o juiz constitucional,
sendo que muita da doutrina citada no acórdão se situa nesse plano.
Por outro lado, admite-se, ainda, que o art.º 89.º, n.º
6, do CPP possa eventualmente ser entendido em termos mais restritos do que
aqueles que o acórdão recorrido sufragou, recorrendo-se, por exemplo, a uma
interpretação conjugada com o disposto no n.º 7 do art.º 86.º do CPP (que não
deixa de constituir também leit motiv da maioria), que possibilite a recusa de
acesso a determinados documentos com base em razões concretamente explicitadas
no despacho judicial, para salvaguarda de valores que se insiram no núcleo
essencial dos direitos fundamentais, sem que essa solução seja
constitucionalmente insolvente.
Mas também não é esse o problema que aqui está colocado.
Não cabe ao Tribunal Constitucional dizer qual é o melhor direito, mas apenas
se o direito dito como foi dito é não direito válido.
Ora, a tese da maioria esquece ou irreleva totalmente a
circunstância de a quebra do segredo prevista no art.º 89.º, n.º 6, do CPP, que
foi aplicada ao caso, dizer respeito apenas ao arguido, que não também a outros
intervenientes processuais, sendo certo que não pode aferir-se pelo mesmo
diapasão o interesse dos diversos intervenientes processuais na quebra do
segredo na fase do inquérito, já que os interesses do assistente e do ofendido
são, pelo menos no seu essencial, prosseguidos pelo Ministério Público. Estes
não estão, seguramente, do mesmo lado da relação jurídico-processual-penal em
que se situa o arguido.
A possibilidade do arguido “poder consultar todos os
elementos do processo que se encontre em segredo de justiça” abre-lhe, desde
logo, nesse momento, a possibilidade de poder contradizer ou esclarecer dados
dele constantes e assim contribuir para o mais rápido esclarecimento da situação
penal.
Ora, a celeridade da justiça é um bem constitucional que
deve ser eficazmente prosseguido.
Por outro lado, o princípio do contraditório, conquanto
emerja com diferentes intensidades nas diversas fases do processo conformadas
pelo mesmo legislador ordinário, não demanda que não possa ser exercido nas
situações em que o processo se tornou totalmente conhecido pelo arguido, nas
condições do art.º 89.º, n.º 6, do CPP, bem diferentes das recortadas nas
alíneas anteriores do mesmo artigo.
Não é indiferente e irrelevante a possibilidade de o
arguido contradizer e esclarecer hoje ou amanhã os dados mantidos secretos,
como é a tese da maioria. Contra isso vai o princípio da celeridade processual e
da justiça e os pressupostos que o justificam.
É ao legislador que cabe, em primeira linha, nos termos
do n.º 3 do art. 20.º da Constituição, fazer a ponderação dos bens que estão em
tensão no segredo de justiça direccionado para o arguido, maxime, o grau de
protecção que, no momento a que se refere o art.º 89.º, n.º 6, do CPP, deve ser
conferido ao interesse público da investigação criminal e a todas as garantias
de defesa do arguido (art.º 32.º, n.º 1, da CRP).
Mas a tese da maioria esqueceu, ainda, que a quebra do
segredo de justiça, em relação ao arguido, que é a dimensão que está em causa,
apenas ocorre depois de esgotados os prazos de duração máxima do inquérito
previstos no art.º 276.º do CPP, bem como a circunstância de o segredo poder
ser “adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser prorrogado por
uma só vez” (art.º 89.º, n.º 6, do CPP).
Ora, ao eleger os prazos de duração máxima do inquérito,
com os quais conectou a existência do segredo de justiça, bem como ao prever a
possibilidade de extensão temporal desse segredo por tal período suplementar, o
legislador ordinário efectuou, dentro da sua discricionariedade constitutiva,
uma ponderação em abstracto dos bens ou valores conflituantes referidos no
acórdão, que importa ser respeitada, por não se afigurar ser desadequada à
harmonização prática, na medida do possível, daqueles valores, nesse momento do
processo tido por ele como suficiente para a investigação em segredo.
Com a solução ditada pelo acórdão, a maioria estendeu o
segredo de justiça por tempo indeterminado.
Enquanto não for concluída a análise dos elementos
“bancários e fiscais”, “em termos de poder ser apreciado o seu relevo e
utilização como prova, ou, pelo contrário, a sua destruição ou devolução, nos
termos do art.º 86.º, n.º 7, do CPP”, o segredo relativo a esses elementos e
documentos mantém-se: no mínimo até à dedução da acusação e, no limite, até à
extinção por prescrição do procedimento criminal.
Ora, nada na Constituição impõe que o segredo tenha de
perdurar por todo o tempo que pode ter na prática a fase do inquérito, até
porque a definição do “tempo legal” foi deixada ao legislador ordinário.
Situando-se, de resto, a falta de conclusão da análise
dos elementos em causa na sede do titular da investigação criminal, não deixa de
ser absurdo que seja ele quem “tira proveito” da ineficiência ou ineficácia a
que o sistema porventura conduza.
Mas há mais.
A tese da maioria esquece que os elementos bancários e
fiscais que importa considerar, ainda que ligados à esfera privada de terceiros,
são apenas aqueles que possam constituir meios de prova (n.º 7 do art.º 86.º do
CPP).
Assim sendo, impõe-se que o titular da investigação
criminal nem sequer incorpore no processo, e os destrua ou devolva à pessoa a
que digam respeito, os elementos que não tenham aptidão para servir de meios de
prova.
Mesmo relativamente àqueles meios, a possível lesão da
intimidade da vida privada decorre, essencialmente, não directa e imediatamente,
da actividade processual do arguido (a sua consulta nos autos) mas da actividade
anterior de investigação.
Não se vê que interesses constitucionalmente protegidos,
realizada que foi determinada acção de investigação a coberto da prossecução
dos interesses da justiça criminal, imponham que continue a ser
constitucionalmente subtraída ao arguido, ainda no momento assinalado pelo art.º
89.º, n.º 6, do CPP, a possibilidade de logo os conhecer, dado que tal não deixa
de corresponder a uma simples antecipação, em caso de dedução de acusação.
Deste modo, a lesão justificativa da leitura feita pela
maioria limitar-se-ia, apenas, ao risco de serem conhecidos, além desses,
também os outros documentos que a acusação não revelará.
Mas estando esgotado o prazo de duração máxima do
inquérito e das prorrogações do segredo de justiça, ponderadas pelo legislador
como suficientes para realizar a investigação em segredo, afigura-se ser bem
mais relevante salvaguardar a opção do legislador que passou por atender
prevalentemente aos interesses do arguido e à possibilidade de logo exercer
todos os meios de defesa previstos na lei.
De resto, a possibilidade de consulta do arguido dos
elementos do processo não tolhe a investigação criminal de poder prosseguir.
O que acontece é, apenas, que essa investigação, quando
relativa aos elementos constantes do processo, passa a ser uma investigação
aberta logo à possibilidade de contraditório.
Por outro lado, não poderá esquecer-se que os direitos
cobertos pela reserva da vida privada, que estão em causa (elementos bancários e
fiscais), nem sequer integram o conteúdo essencial de qualquer direito
fundamental, demandando uma tutela constitucional mais enfraquecida, entendendo
o legislador ser ela merecedora de menor protecção que o acesso do arguido a
esses elementos, em nome de um direito constitucional de defesa.
Mas a tese da maioria irrelevou ainda um factor
verdadeiramente decisivo.
Referimo-nos ao facto de a consulta do processo, ao
abrigo do disposto no art.º 89.º, n.º 6, do CPP, não exonerar o arguido do dever
de manter o segredo de justiça relativamente aos elementos a que acedeu. O
arguido fica na mesma posição do titular do Ministério Público que prossegue a
investigação.
Ora, conquanto se possa convocar o facto de o titular do
Ministério Público estar inserido em uma organização institucional e sujeito a
uma hierarquia e disso poder funcionar como elemento dissuasor da quebra do
segredo, não vemos que tal constitua, então, razão suficiente para continuar a
fundamentar uma diferenciação no acesso ao conhecimento dos meios de prova
quando estes tenham implicado a quebra do segredo tutelador de direitos
abrangidos pela reserva da vida privada, dado o facto de, também, o arguido
estar abrangido pelo tipo legal de crime recortado no art.º 371.º do Código
Penal (violação de segredo de justiça).
A tese que fez vencimento consubstancia uma substituição
da ponderação levada a cabo pelo legislador ordinário, fora do âmbito essencial
do regime do segredo, porquanto relativa ao tempo da sua duração no que vai
para além dos prazos de duração máxima do inquérito e de um certo alongamento
desse prazo em algumas circunstâncias.
Nestes termos, a pretexto de garantir um conteúdo mínimo
ao segredo de justiça, a maioria acabou por conceder uma protecção máxima (de
tipo absoluto) ao princípio da investigação criminal, durante a fase do
inquérito, com detrimento da eficácia e eficiência da garantia constitucional de
que o processo criminal assegura (no tempo adequado) todas as garantias de
defesa ao arguido (art.º 32.º, n.º 1, da CRP), sendo que a solução agora
censurada encontra a sua razão de ser na opção do legislador ordinário pela
eficácia desta última garantia, decorridas que se mostram a duração máxima
legal do inquérito, definida na lei e dentro dos termos que lhe são
constitucionalmente permitidos, e ainda a prorrogação de tempo de segredo
prevista no preceito.
Benjamim Silva Rodrigues