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Processo 61/08
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público,
o primeiro vem interpor recurso para este Tribunal do acórdão do Tribunal da
Relação de Lisboa, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional, invocando a inconstitucionalidade de diversas
interpretações normativas, a saber:
i) A resultante do n.º 1 do artigo 187º do CPP [na
redacção anterior à Lei n.º 48/2007], quando interpretada no sentido de que
“fossem ordenadas escutas telefónicas através de despachos que não obedecem aos
requisitos de fundamentação e consequentemente também não justificada a
indispensabilidade e proporcionalidade daquele meio a autorizar” (fls. 416);
ii) A resultante dos n.ºs 1 e 3 do artigo 188º do CPP
[na redacção anterior à Lei n.º 48/2007], quando interpretada no sentido de
“permitir [que] o Jic tenha conhecimento das interpretações passados mais de 4
meses sobre o início das mesmas, (fls. 1417), a fim de poder este decidir sobre
a junção daquelas aos autos e ordenar a sua transcrição” (fls. 417);
iii) A resultante dos n.ºs 1 e 3 do artigo 188º do CPP [na
redacção anterior à Lei n.º 48/2007], quando interpretada no sentido de “também
ordenar novos períodos de escuta e respectiva continuação, sem que o juiz
primeiro tome conhecimento das gravações anteriores para decidir da continuação
ou não de novos períodos” (fls. 417);
iv) A resultante dos n.ºs 3 e 4 do artigo 188º do CPP,
este último conjugado com as normas contidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 101º do
CPP [na redacção anterior à Lei n.º 48/2007], quando interpretada no sentido de
“não impor que a selecção do material recolhido na intercepção e gravação das
comunicações telefónicas, com ordem de transcrição dos elementos considerados
relevantes seja efectuada e determinada imediatamente após a correspondente
audição, mas possa sê-lo posteriormente, (a ordem de transcrição),
designadamente passados 40 ou mais dias, após, tal audição ter tido lugar” (fls.
418);
v) A resultante dos n.ºs 3 e 4 do artigo 188º do CPP,
este último conjugado com as normas contidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 101º do
CPP [na redacção anterior à Lei n.º 48/2007], quando interpretada no sentido de
“toda a iniciativa e verificação do interesse da matéria interceptada ficou a
cargo exclusivo dos elementos da Polícia Judiciária, a qual não foi de imediato
apresentada ao M. Juiz, estando no desconhecimento deste por vezes mais de 30
dias, nem a sua transcrição no mais curto espaço de tempo, foi feita” (fls.
418);
vi) A resultante dos n.ºs 3 e 4 do artigo 188º do CPP,
este último conjugado com as normas contidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 101º do
CPP [na redacção anterior à Lei n.º 48/2007], quando interpretada no sentido de
“autorizar novos períodos de escuta sem que a autorização de prorrogação seja
precedida de conhecimento judicial do resultado das escutas anteriores,
entende-se que as escutas realizadas aos postos móveis são nulas e
consequentemente nulo o valor das provas obtidas mediante o recurso às mesmas,
por violação dos preceitos constitucionais” (fls. 418);
vii) A resultante dos n.ºs 1 e 2 do artigo 13º do CPP [na
redacção anterior à Lei n.º 48/2007], conjugado com o artigo 51º do Decreto-Lei
n.º 15/93, quando interpretadas no sentido de “que o tribunal de Júri é
competente para julgar criminalidade altamente organizada tal como é definida no
artº 1º-2 do C.P.P.” (fls. 418 e 419).
2. A Relatora ordenou a notificação dos recorrentes para produzirem alegações
junto deste Tribunal, nos termos do artigo 79º, nºs 1 e 2, da LTC, relativamente
à questão de inconstitucionalidade da interpretação normativa dada aos n.ºs 1 e
2 do artigo 13º do CPP [na redacção anterior à Lei n.º 48/2007], conjugado com o
artigo 51º do Decreto-Lei n.º 15/93, tendo ainda convidado o recorrente para:
“2. Se pronunciar, no prazo de 10 (dez) dias, quanto à possibilidade de não
conhecimento parcial do objecto do recurso, no que diz respeito às
interpretações normativas do artigo 187º, n.º 1 (conjugado com o 97º, n.º 4) e
do artigo 188º, n.ºs 1 a 4, todos do CPP, pois afigura-se existirem razões para
tal, visto que as interpretações normativas reputadas de inconstitucionais pelo
recorrente aparentam não ter sido efectivamente aplicadas pela decisão
recorrida, conforme imposto pelo artigo 79º-C da LTC.” (fls. 427)
3. Notificado deste despacho, o recorrente limitou-se a dar entrada nos autos às
alegações de recurso, optando por não se pronunciar sobre a possibilidade de não
conhecimento parcial do objecto de recurso. Das alegações constam as seguintes
conclusões:
«1ª O art° 207° nº 1 da CRP exclui a intervenção do Tribunal de Juri no
julgamento de crimes de terrorismo e criminalidade violenta ou altamente
organizada.
2ª De acordo com as regras de competência material e funcional previstas
no art° 11° e ss do CPP, conjugadas com a previsão do art° 51° do D.L. 15/93,
equiparam-se aos casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente
organizada, as condutas que integram os crimes previstos nos art°s 21 a 24 e 28
do D.L.15/93.
3ª Caso existisse qualquer dúvida quanto à Lei Constitucional afastar
através do seu art° 207° a competência material e funcional do Tribunal de Juri,
no que tange aos crimes previstos nos arts. 21°, 24° e 28° do D.L. 15/93, a
actual redacção do art° 1° do C.P.P., lei adjectiva, veio definir na sua al. m)
criminalidade altamente organizada”, como as condutas que integrarem crimes de
associação criminosa, - . tráfico de estupefacientes ou substâncias
psicotrópicas...
4ª Caso o art° 51º do D. L. 15/93 não concretizasse que as condutas
enquadradas nas previsões dos arts. 21° e 28° do aludido diploma não integrassem
a definição de criminalidade altamente organizada sempre teríamos actualmente a
nova redacção dada ao art° 1° do C.P.P. na sua ai. m) ao definir aquele tipo de
criminalidade.
5ª Pelo que quer o Tribunal da 1ª Instância, quer o Tribunal da Relação
ao entenderem que é competente para julgar os crimes pelo que o arguido vem
pronunciado, o Tribunal de Júri, fizeram errada interpretação e aplicação das
normas contidas no art° 13° nº 2, conjugado com as normas contidas no art° 51°
do D.L. 15/93 e art° 1° n°2 e actual alínea m) do art° l°do C.P.P.
6ª Em suma é inconstitucional por violação do preceituado nos art°s 204°
e 207 da C.R.P. a interpretação dada ao n° 2 do art° 13° do C.P., conjugado com
as normas constantes do art° 51° do D.L. 15/93, ao permitir que os crimes
previstos no art° 21°, 24° e 28° do D.L. 15/93 e a que faz alusão o art° 51° do
D.L. 15/93, possam ser julgados pelo Tribunal de Juri.»
4. Por sua vez, o Ministério Público apresentou as seguintes conclusões nas
contra-alegações:
«1. Pela Lei Constitucional nº 1/97, o legislador constituinte alterou as
competências do Tribunal de Júri, excluindo — dessas competências — os casos
(crimes) de terrorismo e os de criminalidade altamente organizada, pela (nova)
redacção ao (actual) artigo 207°, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
2. Os crimes previstos nos artigos 22° a 28° do Decreto-Lei n° 15/93 são
equiparados, por força deste mesmo diploma (ex vi artigo 51°), aos crimes de
terrorismo ou de criminalidade altamente organizada, para os “efeitos do Código
de Processo Penal”, efeitos estes que incluem “a fase de julgamento”.
3. Assim, a interpretação da norma do artigo 13° do Código de Processo
Penal, no sentido de que o Tribunal de Júri é competente para julgar os crimes
supra referidos viola o disposto no artigo 207°, nº 1 da Constituição da
República Portuguesa, e é por isso, inconstitucional.»
Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A) Não conhecimento parcial do objecto do recurso
5. Antes de avançar, deve afirmar-se que é impossível conhecer do objecto do
recurso, no que diz respeito às questões relacionadas com a interpretação de
normas processuais penais relativas ao regime de escutas telefónicas (a saber:
artigos 187º, n.º 1, conjugado com o 97º, n.º 4, e do artigo 188º, n.ºs 1 a 4,
todos do CPP), na medida em que as diversas interpretações normativas invocadas
pelo recorrente não foram alvo de aplicação efectiva por parte da decisão
recorrida. Note-se, aliás, que, notificado para se pronunciar sobre a
eventualidade de não conhecimento do objecto do recurso quanto a esta parte, o
recorrente nem sequer esboçou uma demonstração de que aquelas interpretações
normativas tivessem sido efectivamente aplicadas pela decisão recorrida,
optando, antes, por apresentar alegações quanto à alegada inconstitucionalidade
da interpretação normativa dos n.ºs 1 e 2 do artigo 13º do CPP [na redacção
anterior à Lei n.º 48/2007], conjugado com o artigo 51º do Decreto-Lei n.º
15/93, quando interpretadas no sentido de “que o tribunal de Júri é competente
para julgar criminalidade altamente organizada tal como é definida no artº 1º-2
do C.P.P.” (fls. 418 e 419).
Assim, resta aferir da alegada inconstitucionalidade da norma extraída dos nºs 1
e 2 do artigo 13º do CPP [na redacção anterior à Lei n.º 48/2007], conjugado com
o artigo 51º do Decreto-Lei n.º 15/93, quando interpretada no sentido de que o
tribunal de Júri é competente para julgar o crime de tráfico de estupefacientes
enquanto criminalidade altamente organizada, tal como é definida no artº 1º-2 do
C.P.P. (fls. 418 e 419).
B) A questão de constitucionalidade do n.ºs 1 e 2 do artigo 13º do CPP [na
redacção anterior à Lei n.º 48/2007], conjugado com o artigo 51º do Decreto-Lei
n.º 15/93
6. Através da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, o legislador
constituinte aditou ao actual artigo 207º da Lei Fundamental a referência aos
crimes “de criminalidade altamente organizada”, vedando expressamente a
constituição de tribunais de júri quanto a tais crimes.
Conforme notado por Alexandre Sousa Pinheiro e Mário João Fernandes (in
“Comentário à IV Revisão Constitucional”, Lisboa, 1999, p. 465):
“À excepção do crime de terrorismo foi aditada a da «criminalidade altamente
organizada». A CRP não fornece elementos quanto a uma definição constitucional
deste tipo de criminalidade, porém, pensamos que o critério da sua determinação
deve atender ao tipo de crime, e não ao grau de organização dos criminosos. Um
caso típico que pode ser encontrado na lei é o das associações no âmbito do
tráfico de estupefacientes (artº 28º do decreto-lei nº 15/83, de 22 de
Janeiro).”
Com efeito, através desta relevante alteração, o legislador
constituinte pretendeu garantir que a especial garantia de imparcialidade do
tribunal penal que julga crimes de terrorismo fosse estendida a crimes não
expressamente tipificados pelo actual artigo 207º da Constituição como de
“criminalidade altamente organizada”. Com esta limitação, visa-se garantir a
imparcialidade e independência dos jurados não magistrados, evitando que aqueles
possam vir a ser pressionados pelos titulares dos interesses que sustentam
aquele tipo de criminalidade altamente organizada, designadamente, mediante
ameaças à sua vida e integridade física. No mesmo sentido se pronunciaram, mais
recentemente, Jorge Miranda e Rui Medeiros (in “Constituição Portuguesa
Anotada”, Coimbra, 2007, pp. 94 e 95):
“A Constituição determina casos em que a constituição ou mera previsão legal do
tribunal de júri está excluída. São os casos de terrorismo ou de criminalidade
«altamente organizada». A razão de ser desta exclusão, constitucionalmente
imposta, deriva de uma presunção inilidível – à luz da Constituição – de que os
juízos leigos não têm, nestes casos, a capacidade para administrar a Justiça,
face ao grau de ameaça ou de intimidação que o julgamento de tais casos poderia
comportar. Sendo estas razões fundadas, os conceitos restritivos, a que a norma
apela, suscitam algumas dificuldades, nomeadamente, no caso de «criminalidade
altamente organizada». Com efeito, esta exclusão pressupõe que se determine
exactamente o que seja «criminalidade altamente organizada», tal qual estava
subjacente à «mente» do legislador constituinte (ou seja, de acordo com o
conceito do Código de Processo Penal, entretanto «redefinido» pela Lei n.º
48/2007, de 29 de Agosto, que revê o CPP.”
Estando, pois, assente que o artigo 207º da Constituição impede a
previsão legal e a constituição efectiva de tribunais de júri para efeitos de
julgamento de crimes “altamente organizados”, importa, porém, determinar quais
os crimes que, à luz da Constituição, se revestem dessa mesma qualidade.
7. Bem entendido, a mera circunstância de a recente Lei n.º 48/2007,
de 29 de Agosto, ter procedido a uma definição legal de “criminalidade altamente
organizada”, através do aditamento da alínea m) do artigo 1º do CPP, não se
afigura apta a evidenciar o critério preconizado pelo legislador constitucional.
Ainda que a referida alínea m) do artigo 1º do CPP qualifique os crimes de
“tráfico de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas” como tal, essa
opção legislativa ordinária não é bastante para concluir pela inclusão daqueles
crimes no conceito jus-constitucional de “criminalidade altamente organizada”.
Fazer o contrário seria interpretar a Lei Fundamental à luz da lei ordinária, ao
invés daquilo que impõe a Ideia de Garantia da Constituição, enquanto parâmetro
de validade das demais normas.
Vejamos, então, enquanto mero instrumento auxiliar interpretativo,
os trabalhos preparatórios das sucessivas revisões constitucionais que
delimitaram o conceito de “criminalidade altamente organizada”.
No âmbito da Comissão Eventual de Revisão Constitucional [CERC] de
1997, foi proposta a revisão do actual artigo 207º da Constituição, mediante
proposta de Deputados do Partido Social Democrata [PSD], que foi alvo de adesão
por parte dos Deputados do Partido Socialista, no sentido de estender a
proibição constitucional de formação de tribunal de júri – que até então se
dirigia exclusivamente aos casos de “terrorismo” – aos casos de “criminalidade
altamente organizada” (cfr. in «Diário da Assembleia da República – IV Revisão
Constitucional», 7ª legislatura, 2ª sessão legislativa, n.º 102, 26 de Julho de
1997, p. 3851). Durante os referidos trabalhos de discussão na especialidade,
foi suscitada a dúvida acerca do conceito relativamente indeterminado de
“criminalidade altamente organizada”, tendo os proponentes daquela alteração
invocado os seguintes argumentos:
“O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Luís Marques Guedes, no uso do meu direito de
pedir esclarecimentos, gostava de perguntar qual é o significado da expressão
'pelo menos quando a acusação ou a defesa o requeiram', ou seja, o que é que
acontece quando não o requererem? Fica para a lei? Nesse caso, talvez se devesse
explicitar.
Por outro lado, suponho que o conceito de criminalidade altamente organizada
está fixado internacionalmente; mas também gostava de saber onde está a
fronteira entre o altamente e o mediamente organizado. Para responder, tem a
palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, é com muito gosto que
tentarei responder a algumas das dúvidas que V. Ex.ª agora formulou.
O conceito de criminalidade altamente organizada está hoje, passe o pleonasmo,
conceptualizado no artigo 1.º do Código de Processo Penal português. Portanto,
existe já uma densificação exacta deste conceito: ele não foi inventado mas,
sim, transposto de outro lugar da ordem jurídica portuguesa, em sede de lei
ordinária.” (cfr. in «Diário da Assembleia da República – IV Revisão
Constitucional», 7ª legislatura, 2ª sessão legislativa, n.º 102, 26 de Julho de
1997, p. 3851);
“O Sr. José Magalhães (PS): (…) Quanto ao conceito relativamente indeterminado
utilizado na primeira parte da norma, o de 'criminalidade altamente organizada',
ele resultou de uma reflexão que tem vindo à ser feita no âmbito da Assembleia
da República, tanto em sede de legislação ordinária como de instrumentos de
direito internacional, tendente a isolar um conceito que recorte certos tipos de
criminalidade de especial gravidade, em que os elementos de organização e, logo,
de eficácia e perigosidade são elementos relevantes. O Código de Processo Penal,
no seu artigo 1.º. n.º 2, recortou esse conceito como integrando aqueles crimes
que dolosamente se dirigem contra a vida, a integridade física ou a liberdade
das pessoas e sejam puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5
anos. Mas, obviamente, não estamos a constitucionalizar este segmento normativo
do Código de Processo Penal, não estamos a importar para a Constituição este
exacto recorte normativo. O legislador ordinário é livre de desenhar noutros
termos o que seja a criminalidade altamente organizada e pode fazê-lo, com uma
limitação: é que o que prima aqui são precisamente os elementos da organização e
da especial gravidade das infracções que essa organização visa perpetrar.” (cfr.
in «Diário da Assembleia da República – IV Revisão Constitucional», 7ª
legislatura, 2ª sessão legislativa, n.º 102, 26 de Julho de 1997, p. 3852).
Daqui decorre que o conceito de “criminalidade altamente
organizada”, aditado ao então artigo 210º da Constituição (actual artigo 207º),
assentou no conceito jus-penal decorrente do Direito Internacional e do conceito
(então) fixado pela lei processual penal, ainda que não haja uma identidade
absoluta entre este último e o conceito constitucional. Este conceito
constitucional de “criminalidade altamente organizada” pressupõe: i) um elevado
grau de organização do processo criminoso; ii) uma especial lesividade e
perigosidade das condutas criminosas.
Ora, sucede que a redacção do (então) nº 2 do artigo 1º do CPP
dispunha que, “para efeitos do disposto no presente Código, apenas podem
considerar-se como casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente
organizada as condutas que: a) Integrarem os crimes previstos nos artigos 299º,
300º e 301º do Código Penal; ou b) Dolosamente se dirigirem contra a vida, a
integridade física ou a liberdade das pessoas e forem puníveis com pena de
prisão de máximo igual ou superior a cinco anos”. Significaria isto que, à data
do aditamento do conceito de “criminalidade altamente organizada” ao actual
artigo 207º da Constituição, o legislador constituinte aparentou não querer
abranger – pelo menos de modo expresso – os crimes de tráfico de
estupefacientes, atenta a dificuldade em qualificá-los como crimes cujo bem
jurídico especialmente tutelado é a vida, a integridade física ou a liberdade
das pessoas.
Sucede, porém, que – ainda que não expressamente referido no decurso
dos trabalhos parlamentares de revisão constitucional –, àquela data, já
vigorava o n.º 1 do artigo 53º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 2 de Janeiro, que
dispunha o seguinte:
“1 – Para efeitos do disposto no Código de Processo Penal, e em conformidade com
o n.º 2 do artigo 1º do mesmo Código, consideram-se equiparadas a casos de
terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada as condutas que
integrem os crimes previstos no artigos 22.º a 25º e 28º desta lei.”
Significa isto que, quando os membros da CERC de 1997 pretenderam
remeter o conceito de “criminalidade altamente organizada” para aquele adoptado
pela lei processual penal não podiam ter deixado de ter em conta a circunstância
de o regime processual penal não decorrer exclusivamente das normas incluídas no
CPP, mas igualmente daquelas normas processuais penais incluídas em diplomas
avulsos, designadamente, o n.º 1 do artigo 53º do Decreto-Lei n.º 15/93. Ou
seja, quando pretenderam retirar o conceito de “criminalidade altamente
organizada” daquele adoptado pela lei processual penal, não podem ter deixado de
nele incluir os crimes de tráfico de estupefacientes, visto que estes já naquele
eram incluídos deste a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 15/93.
E, ainda que assim não fosse, o elemento meramente histórico (v.g., a referência
exclusiva ao então n.º 2 do artigo 1º do CPP, em sede de trabalhos
preparatórios) não pode afigurar-se como determinante da vontade do legislador
constituinte, na medida em que tal implicaria uma cristalização no tempo dos
conceitos jurídicos plasmados na Lei Fundamental. Cristalização essa que
impediria uma interpretação actualista da Constituição que garantisse a sua
permanente vivificação e adaptação ao devir social e político.
Ciente dessa mesma evolução permanente, o legislador constituinte –
ainda que sem alterar expressamente o artigo 207º da Constituição – veio a
renovar a sua intenção legislativa quanto ao conceito de “criminalidade
altamente organizada”, por altura das reuniões da CERC que deram lugar à
aprovação da Lei Constitucional n.º 1/2001. Dessa feita, a revisão
constitucional de 2001 introduziu uma profunda alteração ao n.º 3 do artigo 34º
da Constituição, autorizando a entrada durante a noite no domicilio de qualquer
pessoa, ainda que sem o seu consentimento, “em casos de criminalidade
especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o
tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes”.
Então, a alteração do n.º 3 do artigo 34º da Constituição decorreu
de um projecto inicial de revisão apresentado por Deputados do Centro
Democrático Social – Partido Popular [CDS-PP], que visava – originariamente –
permitir apenas a entrada no domicílio, de noite e sem consentimento, mas com
autorização judicial, precisamente em casos de tráfico de estupefacientes.
Aliás, a expressa referência aos crimes de tráfico de estupefacientes resultou,
segundo os próprios proponentes, das dúvidas quanto à inserção daquele tipo de
crimes no conceito de “criminalidade altamente organizada” (cfr. in «Diário da
Assembleia da República – V Revisão Constitucional», 8ª legislatura, 3ª sessão
legislativa, n.º 3, 30 de Maio de 2001, p. 45).
Sucede que, durante os trabalhos de discussão na especialidade, foi obtido um
acordo entre os grupos parlamentares do PSD, PS e CDS-PP, na sequência de
propostas das diversas personalidades que participaram nas audições públicas, no
sentido de ampliar a aplicação daquele n.º 3 do artigo 34º da Constituição a
todos os crimes especialmente violentos ou altamente organizados, seguindo-se um
elenco de tipos de crime que – segundo a Constituição – podem ser qualificados
como tal:
“O Senhor Jorge Lacão (PS): (…) Como sabem, a proposta inicial apresentada pelo
CDS-PP fazia uma delimitação material extremamente restritiva, no sentido em que
a admitia tão-só para o tráfico de droga. Do conjunto de impressões aqui
trocadas em Comissão, e também nas audições que tiveram lugar, de alguma maneira
foi-se criando entre nós um consenso no sentido de alargar o seu âmbito de
aplicação. O problema põe-se agora em termos de tecnicidade
jurídico-constitucional: ou alargar o âmbito de aplicação segundo uma cláusula
aberta, de tal maneira que o legislador ordinário possa conformá-la como
entender, segundo o seu critério, ou, em todo o caso, tentar uma delimitação
material um pouco mais trabalhada em sede constitucional. É neste sentido que
mais nos inclinamos. Portanto, sem embargo de estarmos disponíveis para
considerar uma formulação definitiva, entendemos que devem ser aqui ressalvados,
pela natureza dos crimes em causa e como critério material, aqueles casos que
envolvam criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo
como tipos materiais, necessariamente, o terrorismo, o tráfico de pessoas, de
armas e de estupefacientes.” (cfr. in «Diário da Assembleia da República – V
Revisão Constitucional», 8ª legislatura, 3ª sessão legislativa, n.º 3, 30 de
Maio de 2001, p. 45).
Ainda que aquele elenco de crimes não exclua a possibilidade de qualificação de
outros crimes como “criminalidade altamente organizada”, afigura-se
incontroverso que, pelo menos desde a revisão constitucional de 2001, o conceito
jus-constitucional de “criminalidade altamente organizada” abrange,
necessariamente, os crimes de tráfico de estupefacientes.
Diga-se, aliás, que o facto de essa qualificação ter sido operada para os
efeitos previstos no n.º 3 do artigo 34º da Constituição não pode deixar de
produzir as necessárias consequências interpretativas quanto aos demais
preceitos constitucionais que acolhem a noção jus-penal de “criminalidade
altamente organizada”, sob pena de completo desrespeito pela necessidade de
interpretação sistemática das normas e princípios constitucionais. Apresenta-se,
assim, incontroverso que o legislador constituinte acolheu uma actualização do
conceito de “criminalidade altamente organizada”, de modo a que este passasse a
abranger não só os crimes tipificados na redacção do n.º 2 do artigo 1º do CPP,
tal como vigente no momento da aprovação da Lei Constitucional n.º 1/1997, mas
igualmente crimes que, entretanto, passaram a justificar uma especial
intervenção punitiva do Estado, atenta a sua particular lesividade e capacidade
de organização dos respectivos agentes.
Retirando as necessárias consequências para o caso em apreço nos
presentes autos, resta reforçar que a circunstância de o artigo 13º do CPP não
excluir expressamente a possibilidade de formação de tribunais de júri para
efeitos de julgamento de crimes de tráfico de estupefacientes não permite uma
interpretação normativa que autorize tal formação. Por força do artigo 207º da
Constituição, que prevalece necessariamente sobre as normas ordinárias,
incluindo as processuais penais, enquanto parâmetro decisivo de validade, não é
permitido nem ao legislador autorizar a formação de tribunal de júri, nem ao
julgador dar execução àquela formação, sempre que estejam em causa “crimes
altamente organizados”, entre os quais se inserem os crimes de tráfico de
estupefacientes.
Em suma, o artigo 207º da Constituição impede a formação de
tribunais de júri para julgamento dos crimes de tráfico de estupefacientes
previstos nos artigos 22º a 25º e 28º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de
Janeiro, na medida em que aqueles se inserem no conceito jurídico-constitucional
de “criminalidade altamente organizada”.
III. DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, decide-se:
i) Não conhecer do objecto do presente recurso, relativamente
às interpretações normativas extraídas dos artigos 187º, n.º 1, conjugado com o
97º, n.º 4, e do artigo 188º, nºs 1 a 4, todos do Código de Processo Penal [na
redacção anterior à Lei n.º 48/2007], tal como configuradas pelo recorrente no
requerimento de interposição de recurso;
ii) Conceder provimento ao recurso, quanto ao mais, julgando
inconstitucional a norma extraída dos nºs 1 e 2 do artigo 13º do Código de
Processo Penal [na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto],
conjugado com o artigo 51º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 2 de Janeiro, quando
interpretada no sentido de que o tribunal de Júri é competente para julgar o
crime de tráfico de estupefacientes enquanto criminalidade altamente organizada,
tal como é definida no artº 1º-2 do C.P.P. [na redacção anterior à Lei n.º
48/2007, de 29 de Agosto].
Sem custas, por não serem devidas.
Lisboa, 24 de Setembro de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Gil Galvão