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Processo n.º 299/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O Município do Porto interpôs recurso excepcional de
revista, para o Supremo Tribunal Administrativo (STA), ao abrigo do artigo 150.º
do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aprovado pela Lei
n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro, contra o acórdão do Tribunal Central
Administrativo Norte, de 1 de Fevereiro de 2007, que negou provimento ao recurso
jurisdicional interposto pelo recorrente da sentença do Tribunal Administrativo
e Fiscal do Porto, de 4 de Janeiro de 2006, que julgara procedente a acção
administrativa especial instaurada por A. e anulara, por padecer do vício de
incompetência, o despacho do Vereador do Pelouro da Juventude, Desporto, Euro
2004, Educação e Recursos Humanos da Câmara Municipal do Porto, de 15 de
Setembro de 2004, proferido no uso de competências delegadas pelo respectivo
Presidente da Câmara, que aplicara ao autor a pena disciplinar de 45 dias de
suspensão, com execução suspensa por dois anos.
As alegações apresentadas pelo recorrente foram
sintetizadas nas seguintes conclusões:
“1. A jurisprudência invocada pelo aresto ora recorrido foi emitida
ao abrigo da legislação anterior.
2. O Estatuto Disciplinar foi elaborado, em matéria de lei das
autarquias, na vigência da Lei n.º 79/77.
3. Esta lei conferia à câmara municipal o poder de «superintender na
gestão e direcção do pessoal ao serviço do município», entendendo‑se caber
nesse os poderes de «nomear, contratar ou assalariar, promover, transferir,
louvar, punir, aposentar e exonerar os funcionários assalariados municipais».
4. O presidente da câmara já gozava de competência disciplinar mesmo
antes de ser órgão autónomo – órgão municipal –, o que resulta do n.º 4 do
artigo 18.º do Estatuto Disciplinar.
5. Hoje, de acordo com o artigo 68.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º
169/99, «compete ao presidente da câmara municipal decidir todos os assuntos
relacionados com a gestão e direcção dos recursos humanos afectos aos serviços
municipais».
6. A competência do presidente da câmara para a gestão e direcção
dos recursos humanos afectos aos serviços municipais é originária e exclusiva.
7. O presidente da câmara é o órgão executivo singular do município.
8. O poder de aplicação de sanções disciplinares é assunto
indissociável da gestão e direcção dos recursos humanos.
9. O Estatuto Disciplinar não contraria, antes complementa, o
disposto no artigo 68.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 169/99.
10. O Estatuto Disciplinar limita‑se a explicitar, mas não a
atribuir competências.
11. Norma de atribuição de competência é o artigo 68.º, n.º 2,
alínea a), da Lei n.º 169/99.
12. A matéria disciplinar não é especial relativamente à autárquica.
13. É antes uma secção do direito autárquico, tal como a matéria
autárquica é uma secção do direito disciplinar.
14. A Revisão de 1997, na nova redacção dada ao n.º 2 do artigo
243.º da CRP, esclareceu que, a haver alguma especificidade, ela seria sempre de
cariz autárquico.
15. O resultado normativo que dê preferência, por especial ainda que
anterior, às normas do Estatuto Disciplinar face a normas autárquicas é
inconstitucional.
16. O artigo 18.º do Estatuto Disciplinar, no entendimento
perfilhado pelo tribunal a quo, é inconstitucional por vulneração do comando da
parte final do artigo 243.º, n.º 2, da CRP.
17. Uma interpretação que defende a extensão do âmbito do Estatuto
Disciplinar à atribuição e repartição de competências entre órgãos autárquicos
está, necessariamente, ferida de inconstitucionalidade.
18. A Lei de Autorização Legislativa ao abrigo da qual foi emitido o
Estatuto Disciplinar (Lei n.º 10/83, de 13 de Agosto) não habilita o Governo a
legislar no âmbito da actual alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP,
respeitante ao Estatuto das Autarquias Locais, que abarca não só a organização
e as atribuições das autarquias, mas também a competência dos seus órgãos e a
estrutura dos seus serviços.
19. A Lei n.º 10/83 somente confere ao Governo a possibilidade de
legislar ao abrigo das actuais alíneas d) e t) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP.
20. A interpretação perfilhada pela sentença recorrida equivale a
aceitar que um decreto‑lei autorizado (no caso, o Estatuto Disciplinar) para uma
dada matéria reservada é apto a definir parte do regime jurídico respeitante a
outra matéria também reservada (no caso, o estatuto das autarquias locais), ao
abrigo do qual não foi emitida qualquer lei de autorização e que a Assembleia da
República entendeu ela própria regular (no caso a Lei n.º 169/99).”
Por acórdão de 13 de Fevereiro de 2008, o STA negou
provimento ao recurso jurisdicional, desenvolvendo, para o efeito, a seguinte
fundamentação:
“III – O DIREITO
A questão suscitada pelo recorrente e cuja relevância justifica o
presente recurso excepcional de revista é a de saber a quem cabe, na vigência
da Lei das Autarquias Locais n.º 169/99, de 18 de Setembro, a competência para
impor a aplicação de sanções disciplinares aos funcionários e agentes afectos
aos serviços municipais – se à câmara municipal, se ao seu presidente.
Resulta da matéria provada que ao autor da presente acção,
funcionário da Câmara Municipal do Porto, com a categoria de técnico superior
consultor jurídico principal, foi aplicada, em 15 de Setembro de 2004, pelo (…)
Vereador do Pelouro da Juventude, Desporto, Euro 2004, Educação e Recursos
Humanos, ao abrigo de delegação de competência do (…) Presidente da Câmara do
Porto, a pena disciplinar de 45 dias de suspensão, com execução suspensa por
dois anos.
Quer a sentença do TAF do Porto, quer o acórdão do TCA Norte que a
manteve, entenderam verificar‑se o invocado vício de incompetência do autor do
acto, por ser a Câmara Municipal do Porto, e não o seu Presidente, o órgão que
tem a seu cargo o exercício do poder disciplinar sobre os funcionários e agentes
municipais, competência que fundamentam no artigo 18.º do Estatuto Disciplinar,
aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, considerando que tal
preceito não foi revogado pela Lei n.º 18/91, de 12 de Junho, na redacção
conferida ao n.º 2 do artigo 53.º do Decreto‑Lei n.º 100/84, de 29 de Março
(LAL), nem pela posterior Lei n.º 169/99, de 16 de Setembro, como defendia o
Município.
O recorrente Município continua a defender que, contrariamente ao
decidido, o despacho impugnado não padece de vício de incompetência, pois o (…)
Vereador, autor do acto impugnado, praticou‑o no uso de competência validamente
delegada pelo Presidente da Câmara, que, enquanto verdadeiro órgão autárquico, é
quem hoje detém, originariamente, a competência para decidir todos os assuntos
relacionados com a gestão e direcção dos recursos humanos afectos aos serviços
municipais, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 68.º da citada Lei n.º
169/99, sendo que o poder de aplicação de sanções disciplinares é assunto
indissociável da gestão e direcção dos recursos humanos.
Defende ainda que o Estatuto Disciplinar não atribui competências,
limitando-se a explicitar as competências atribuídas pela lei própria, que é a
lei reguladora do quadro de competências, no caso a LAL n.º 169/99, e, por isso,
não contraria, antes complementa o disposto no citado artigo 68.º, n.º 2, alínea
a), dessa Lei, mas, a considerar‑se que o contraria, então deve considerar‑se
derrogado por ela.
Cita, em seu apoio, o parecer do Prof. Doutor Mário Aroso de
Almeida, que juntou aos autos com as alegações de recurso para o TCA.
Invoca, ainda, a inconstitucionalidade de eventual interpretação que
defenda que o artigo 18.º do Estatuto Disciplinar, como norma especial, não foi
revogado pela referida Lei n.º 169/99, por vulneração do comando da parte final
do artigo 243.º, n.º 2, da CRP, na redacção da Revisão de 1997 e ainda a
inconstitucionalidade da interpretação que defenda a extensão do âmbito do
Estatuto Disciplinar à atribuição e repartição de competências entre os órgãos
autárquicos, por falta de autorização legislativa para o efeito.
Vejamos:
À data da prática do acto punitivo aqui em causa, estava em vigor o
Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central,
Regional e Local (doravante ED), aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 24/84, de 16 de
Janeiro.
Como expressamente consta do seu artigo 1.º, o ED aplica‑se aos
funcionários e agentes da administração central, regional e local, apenas se
exceptuando do âmbito da sua aplicação os funcionários e agentes que possuam
estatuto especial.
Portanto, não restam dúvidas que o ED se aplica aos funcionários e
agentes das autarquias.
O ED foi emitido ao abrigo da autorização legislativa constante da
Lei n.º 10/83, de 13 de Agosto, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 168.º
da CRP/82, que respeita ao regime geral de punição das infracções disciplinares.
Com efeito, nos termos do artigo 1.º, n.º 1, alínea b), da citada
Lei, o Governo é autorizado a legislar «em matéria de regime disciplinar da
função pública» e, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito: «O regime a instituir
nos termos da alínea b) do n.º 1 visa introduzir alterações ao Decreto‑Lei n.º
191‑D/79, de 25 de Junho, por forma a redefinir factos ilícitos ou a definir
novas formas de ilícito de corrupção passíveis de sanção disciplinar, a
corrigir a dosimetria das penas em vigor e ainda a ultrapassar dificuldades de
execução e a integrar lacunas do Estatuto Disciplinar». (sublinhados nossos).
Deve aqui referir‑se que o anterior Estatuto Disciplinar, aprovado
pelo Decreto‑Lei n.º 191‑B/79, de 25 de Junho, não se aplicava directamente às
autarquias locais em certas matérias, designadamente no que respeita à
competência disciplinar, porque o legislador, face às particularidades que
reveste o seu regime, designadamente à autonomia dos respectivos órgãos – embora
subordinados às leis gerais da República – julgou preferível a adaptação dessas
matérias por via regulamentar (cf. preâmbulo do citado diploma e seus artigos
1.º, n.º 2, e 19.º). Só que esse regulamento não chegou a ver a luz do dia,
embora se previsse, no n.º 1 do citado artigo 19.º do referido ED, um prazo de
180 dias para a sua publicação.
O novo ED, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro,
que veio substituir o anterior (considerado, aliás, pelo legislador … «um
diploma de transição, cuja substituição virá a ser feita, oportunamente, no
âmbito da reforma administrativa em curso e da projectada Lei de Bases da Função
Pública» – cf. preâmbulo do ED/79), pretendeu resolver todas as lacunas e
dúvidas suscitadas na aplicação e execução daquele, designadamente no que
respeita à administração local, e ainda concentrar num único diploma todo o
regime disciplinar dos funcionários e agentes de todos os sectores da
Administração Pública (administração central, regional e local), apenas
excluindo do seu âmbito os casos específicos em que existisse um estatuto
próprio (por exemplo, os casos dos Magistrados Judiciais e do Ministério
Público, da Polícia Judiciária, da PSP e da GNR e dos Militares).
Aliás, essa intenção legislativa foi claramente manifestada no
preâmbulo do ED/84, quando, a certa altura, se refere «Visa ainda a presente
revisão ultrapassar dificuldades de execução (…), bem como integrar lacunas
suscitadas na aplicação do Estatuto Disciplinar. Observa‑se ainda que, com a
presente revisão, o Estatuto Disciplinar é aplicável, em toda a sua extensão, à
administração local. Finalmente, sublinha‑se que a presente revisão não
constitui uma reformulação global do Estatuto, ficando a dever‑se à preocupação
de evitar a dispersão do regime disciplinar por legislação extravagante, a
revogação do Decreto‑Lei n.º 191‑D/79, de 25 de Junho».
Evidentemente que, passando a partir do ED de 1984 a existir um
único regime disciplinar para todos os funcionários e agentes da Administração
Pública, incluindo os da administração local, era nessa lei disciplinar que
devia ser definida, como foi, a competência disciplinar sobre aqueles
funcionários e agentes.
Assim, o referido Estatuto, sendo um conjunto normativo que
estabelece todo o regime da disciplina na função pública, contém, naturalmente
normas sobre a «Competência Disciplinar», que são as que integram o seu
Capítulo III (artigos 16.º a 21.º), a saber::
“Artigo 16.º
(Princípio geral)
A competência disciplinar dos superiores envolve sempre a dos seus
inferiores hierárquicos dentro do serviço.
Artigo 17.º
(Competência disciplinar sobre os funcionários e agentes da administração
central e regional)
1. A pena da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º é da competência de
todos os funcionários e agentes em relação aos que lhes estejam subordinados.
2. A aplicação das penas previstas nas alíneas b) a d) do n.º 1 do
artigo 11.º é da competência dos secretários‑gerais e dos directores‑gerais e
equiparados, nomeadamente dos dirigentes dos institutos públicos.
3. Se os responsáveis pelos serviços directamente dependentes dos
membros do Governo não possuírem a categoria antes referida, a competência para
a aplicação das penas previstas no número anterior poderá ser neles delegada
pelo membro do Governo competente.
4. A aplicação das penas expulsivas referidas nas alíneas e) e f) do
n.º 1 do artigo 11.º e da pena de cessação da comissão de serviço referida no
n.º 2 do mesmo artigo é da competência exclusiva dos membros do Governo e dos
secretários regionais nas regiões autónomas em cada caso competentes.
Artigo 18.º
(Competência disciplinar sobre os funcionários e agentes ao serviço das
autarquias locais e das associações e federações de municípios)
1. A competência disciplinar sobre os funcionários e agentes das
autarquias locais e das associações e federações de municípios pertence aos
respectivos órgãos executivos.
2. (…)
3. Os órgãos executivos das autarquias locais e das associações e
federações de municípios têm competência:
a) Para aplicação aos funcionários e agentes dos respectivos
quadros privativos de todas as penas disciplinares previstas no n.º 1 do artigo
11.º;
b) Para a aplicação aos funcionários do quadro geral administrativo
que se encontrem ao seu serviço das penas disciplinares de repreensão e multa;
c) Para aplicação da pena de cessação da comissão de serviço.
4. Os presidentes dos órgãos executivos têm competência para
repreender qualquer funcionário ou agente ao serviço da autarquia.
Artigo 19.º
(Competência disciplinar sobre o pessoal dos serviços municipalizados)
É da competência dos respectivos conselhos de administração a
aplicação ao pessoal dos serviços municipalizados das penas disciplinares
previstas no n.º 1 do artigo 11.º, bem como da pena de cessação da comissão de
serviço.
Artigo 20.º
(Assembleias distritais)
1. Enquanto subsistirem as assembleias distritais, aplicar‑se‑á ao
respectivo pessoal, transitoriamente, o disposto neste diploma, cabendo ao
governador civil exercer as competências cometidas aos órgãos executivos.
2. Das decisões do governador civil proferidas no exercício da
competência a que se refere o número anterior apenas cabe recurso contencioso.
Artigo 21.º
(Competência disciplinar sobre os funcionários e agentes dos governos civis)
1. Compete aos governadores civis a aplicação aos funcionários e
agentes que prestem serviço nos governos civis das penas até à de suspensão,
inclusive.
2. Compete ao Ministro da Administração Interna a aplicação das
penas previstas nas alíneas d) a f) do n.º 1 do artigo 11.º”
Ora, existindo uma lei disciplinar em matéria de função pública, o
referido ED, e aplicando‑se essa lei, em toda a sua extensão, à administração
local, é nela que se deve procurar, em primeiro lugar, a competência disciplinar
sobre os funcionários e agentes da administração abrangidos por esse diploma.
Como vimos, a competência disciplinar sobre os funcionários e
agentes ao serviço das autarquias estava prevista no transcrito artigo 18.º do
ED, que é claro quanto a essa matéria.
Face ao citado preceito, a competência disciplinar sobre os
funcionários e agentes das autarquias locais está centrada no órgão executivo da
autarquia (n.º 1), cabendo, nesse campo, ao presidente desse órgão executivo
apenas a competência para repreender qualquer funcionário ou agente ao serviço
da autarquia (n.º 4).
Refere o recorrente que, existindo dois órgãos executivos nas
autarquias, um colegial, a Câmara Municipal, outro singular, o Presidente da
Câmara, é a este que se refere o n.º 1 do artigo 18.º
Os órgãos municipais constam da Lei das Autarquias Locais, e o
artigo 2.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, aqui aplicável, define quais
são os órgãos do município, nele não se referindo, como tal, o Presidente da
Câmara.
Com efeito, ali se refere o seguinte:
“Artigo 2.º
(Órgãos)
1. Os órgãos representativos da freguesia são a assembleia de
freguesia e a junta de freguesia.
2. Os órgãos representativos do município são a assembleia
municipal e a câmara municipal.”
Sendo que a assembleia municipal é o órgão deliberativo do município
(artigo 41.º da LAL) e a câmara municipal é o órgão executivo colegial do
município, sendo constituída por um presidente e por vereadores (artigo 56.º,
n.º 1, da LAL). Sendo igualmente estes dois os órgãos municipais reconhecidos
constitucionalmente (cf. artigo 252.º da CRP/82 e o actual artigo 239.º da CRP).
Portanto, face à lei em vigor à data do acto impugnado, o Presidente
da Câmara não era, como ainda não é, um órgão de iure do município, sendo a
Câmara Municipal o único órgão executivo do município referido na lei, tal como
acontecia face às anteriores LAL. O que não quer dizer que o Presidente da
Câmara não exerça, no âmbito das suas competências, próprias e delegadas,
funções executivas de grande relevo. Mas a lei não o reconheceu ainda como órgão
municipal e, não o fazendo a lei, não pode o intérprete atribuir‑lhe tal
qualificação.
Isto sem prejuízo de se reconhecer que as competências atribuídas na
LAL ao Presidente da Câmara, nomeadamente as executivas, têm vindo a aumentar
substancialmente, daí que seja considerado por alguns autores como um verdadeiro
órgão municipal, mas isso, como se referiu, não lhe atribui, só por si, essa
qualificação e, para o que nos interessa, em nada altera a sua competência
disciplinar, que continua a ser apenas a prevista no artigo 18.º, n.º 4, do ED.
*
Pretende, porém, o recorrente que o artigo 18.º do ED se deve
considerar derrogado, senão pela Lei n.º 18/91, que alterou a LAL de 1984,
aprovada pelo Decreto‑Lei n.º 100/84, de 12 de Janeiro, e transferiu para o
Presidente da Câmara o poder de superintendência na gestão e direcção dos
recursos humanos, que dantes era competência da Câmara Municipal, pelo menos,
pela Lei n.º 169/99, que, no artigo 68.º, n.º 2, alínea a), veio atribuir ao
Presidente da Câmara competência para «decidir todos os assuntos relacionados
com a gestão e direcção dos recursos humanos afectos aos serviços municipais».
Daí conclui, em síntese, que o Presidente da Câmara é hoje o
verdadeiro órgão executivo do município, o topo da hierarquia municipal, e,
como tal, detendo os poderes de gestão e direcção dos recursos humanos afectos
aos serviços municipais, terá de deter, necessariamente, também o poder
disciplinar sobre os funcionários e agentes da administração local.
Com todo o respeito, a tese do recorrente não se pode sufragar.
Em primeiro lugar e como é sabido, a competência disciplinar, na
vertente mais importante, que é a competência para aplicar sanções (existe a
outra vertente, que é a da acção disciplinar, para que são competentes todos os
superiores hierárquicos relativamente aos seus subalternos – cf. artigo 39.º do
ED/84), nem sempre está atribuída a um superior hierárquico, numa organização
administrativa hierarquizada.
Com efeito, como resulta da análise do direito comparado e tem sido
referido abundantemente na doutrina administrativa, se é certo que todos os
superiores hierárquicos têm competência para instaurar a acção disciplinar
relativamente aos seus subalternos, nem todos têm competência para a decidir e
pode até essa competência para aplicação de sanções disciplinares ser atribuída
a um órgão externo à hierarquia, normalmente um órgão colegial (v. g., um
conselho disciplinar).
Assim, a competência para aplicar sanções às infracções apuradas em
processo disciplinar pode pertencer ao próprio superior hierárquico que mandou
instaurar o processo, mas pode também pertencer a outro de mais alto grau
hierárquico (em ambos os casos estamos perante a chamada disciplina
hierarquizada), ou mesmo a um órgão externo à hierarquia, cujas decisões sejam
de per si executórias ou vinculem o superior que tenha de executá‑las (é a
chamada disciplina jurisdicionalizada).
Igualmente tal competência pode, por lei, estar concentrada no chefe
da hierarquia, com excepção das chamadas penas morais (repreensão e
advertência) e, por vezes, com possibilidade de delegação de certas penas em
determinados superiores subalternos, ou pode estar desconcentrada pelos vários
graus da hierarquia, de acordo com o grau de gravidade da pena a aplicar [Vide,
a este propósito, o Prof. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo,
9.ª edição, 1972, pp. 799 e 804, e Princípios Fundamentais do Direito
Administrativo, 1996, p. 318 e seg., e também os Profs. Esteves de Oliveira,
Direito Administrativo, p. 395, e Paulo Otero, Conceito e Fundamento da
Hierarquia Administrativa, p. 59].
Ou seja, o superior hierárquico que tem o poder de direcção de um
determinado serviço, emanando ordens sobre matéria de serviço para os
subalternos cumprirem, pode não ter, ou não ter toda, a competência para os
punir em caso de desobediência a essas ordens ou em caso de qualquer outra
infracção disciplinar; basta que tal competência seja atribuída por lei a outro
superior hierárquico de grau mais elevado ou mesmo a um órgão externo à
hierarquia.
O que demonstra, contrariamente ao defendido pelo recorrente, que a
competência disciplinar, na vertente competência para punir, não é
indissociável do poder de direcção, típico da hierarquia, já que, por um lado,
não supõe, necessariamente, uma relação hierárquica entre quem aplica a sanção e
quem é sancionado e, por outro, mesmo nos casos de disciplina hierarquizada, nem
todos os superiores hierárquicos com poder de direcção (o poder de direcção não
existe só no dirigente máximo, pode estender‑se a outros dirigentes de grau
intermédio) têm competência para aplicar sanções disciplinares aos subalternos,
além da mera repreensão.
Se tal implica um enfraquecimento do poder de direcção do superior
hierárquico é questão que não cabe ao tribunal apreciar, sendo certo que não é
difícil descobrir bons argumentos a favor da atribuição da competência para
punir, sobretudo no que respeita às penas mais graves, v. g. as penas
expulsivas, a um único órgão colegial, de preferência externo à hierarquia
(maiores garantias de imparcialidade e de isenção, mais paz nas relações
internas com reflexos no funcionamento dos serviços). Haverá, certamente, também
bons argumentos contra (maior demora no processo de decisão, eventual maior
dificuldade de compreensão da situação ou falta da disponibilidade exigida se
se tratar de órgão ou agente da hierarquia sobrecarregado com outras
competências), mas, como é óbvio, caberá ao legislador, de iure condendo, se
for caso, ponderar todos os prós e os contras em cada situação.
De qualquer modo, sempre se dirá que o superior hierárquico com
poderes de direcção não fica destituído de competência disciplinar pelo facto
de estar atribuída a um seu superior hierárquico ou a um órgão externo à
hierarquia o poder de punir, uma vez que sempre subsiste a sua competência para
aplicar penas morais (repreensão e advertência – cf. artigo 17.º, n.º 1, do
ED/84) e até outras penas quando a lei a prevê, sendo que terá sempre
competência para o exercício, em geral, da acção disciplinar, que a lei
assegura a qualquer superior hierárquico, relativamente aos subalternos (cf.
artigo 39.º do ED/84) e que é pressuposto necessário do exercício da competência
para punir. Assim, se bem que esta última competência seja considerada, por
razões óbvias, a mais importante dentro do poder disciplinar, a verdade é que
ela só pode ser exercida se previamente for instaurada a acção disciplinar pelo
superior hierárquico.
E se pode existir poder de direcção sem competência disciplinar para
aplicar sanções além da repreensão, por maioria de razão pode existir poder de
superintendência sem existir competência disciplinar para punir, pois o poder de
superintendência é menos forte que o poder de direcção, traduzindo‑se apenas
numa faculdade de emitir directivas ou recomendações, no fundo num «poder de
mera orientação» [cf. o Prof. Freitas do Amaral, Curso de Direito
Administrativo, 1986, vol. I, p. 713].
A diferença, do ponto de vista jurídico, entre ordens, por um lado,
e directivas e recomendações, por outro, consiste em que as ordens são
comandos concretos, específicos e determinados, que impõem a necessidade de
adoptar imediata e completamente uma certa conduta, enquanto as directivas são
orientações genéricas, que definem imperativamente os objectivos a cumprir
pelos seus destinatários, mas que lhes deixam liberdade de decisão quanto aos
meios a utilizar e às formas a adoptar para atingir esses objectivos. Por sua
vez, as recomendações são conselhos emitidos sem a força de qualquer sanção para
a hipótese do não cumprimento [cf., por ex., neste sentido, os acórdãos do STA,
de 27 de Março de 2003, rec. 68/03, e de 24 de Março de 2004, rec. 1407/02].
E sendo o poder de superintendência um poder de mera orientação, não
se vislumbra como a atribuição desse poder, ao Presidente da Câmara, sobre a
gestão e direcção dos recursos humanos afectos aos serviços municipais, pela
Lei n.º 18/91, poderia afectar a competência disciplinar definida no artigo 18.º
do ED. Aliás, a jurisprudência deste STA já teve oportunidade de se pronunciar
sobre esta concreta questão, tendo decidido que: «A competência disciplinar da
Câmara Municipal não resultava da atribuição a este órgão daquela competência de
‘superintendência na gestão e direcção do pessoal ao serviço da autarquia’ –
que, aliás, o n.º 1 do artigo 52.º da versão originária do Decreto‑Lei n.º
100/84 considerava ‘tacitamente delegada no presidente da câmara’, sem que daí
derivasse também a delegação da competência disciplinar da câmara municipal –
mas antes e exclusivamente das aludidas regras do artigo 18.º do Estatuto
Disciplinar. O que, de resto, bem se compreende se se considerar a
‘superintendência’ como o ‘poder de orientação’ (assim, Diogo Freitas do Amaral,
Curso de Direito Administrativo, vol. I, 1986, p. 713). Consequentemente, a
transferência desse poder de orientação, em que se traduz a superintendência,
por imposição legal ‘tacitamente delegado’ (no sentido de que esta figura não
representa uma delegação de poderes propriamente dita, mas antes uma forma de
desconcentração originária, na qual o delegante nada delega, porque, sem
necessidade de qualquer delegação, o poder de decidir pertence ope legis ao
impropriamente chamado delegado, cf. autor e obra citados, p. 667), nenhuma
repercussão podia ter e nenhuma repercussão teve na repartição de competência
disciplinar entre aqueles dois órgãos, tal como estava e continua a estar
definida no artigo 18.º do Estatuto Disciplinar, que, neste aspecto, não sofreu
qualquer derrogação.» [cf. acórdão do STA, de 5 de Maio de 1999, rec. 41 514].
Resta‑nos acrescentar que, para a boa compreensão desta matéria,
importa também ter presente que uma coisa é a hierarquia decorrente da
repartição de competências funcionais entre os órgãos ou agentes de uma pessoa
colectiva pública, ou seja, a relação orgânica dos agentes com a Administração,
atingindo‑os não como trabalhadores, mas como titulares de um órgão
administrativo, com vista à realização do mesmo interesse, o interesse público
(hierarquia em sentido restrito), e outra é a hierarquia que respeita à relação
de serviço que os agentes mantêm com a Administração, relação que os obriga a
respeitar, enquanto trabalhadores, as ordens da entidade patronal, sob pena de
responsabilidade disciplinar (hierarquia em sentido amplo) [cf., a este
propósito, o Prof. Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, p. 390].
Ora, as leis orgânicas, que estabelecem as competências dos órgãos
das pessoas colectivas públicas, quer no âmbito da administração central e
regional, quer no âmbito da administração local, entre as quais as LAL, ao
repartirem as competências funcionais entre esses órgãos, situam‑se no plano da
hierarquia em sentido restrito e não no plano da hierarquia em sentido amplo,
tal como atrás definidas, pelo que não têm que contemplar e em regra não
contemplam as competências disciplinares, que são, por isso, tratadas
separadamente, normalmente em legislação específica, tendencialmente abrangente
da maioria dos trabalhadores da Administração Pública, como é o caso do ED/84.
Mas, sendo assim e tendo em conta tudo o anteriormente exposto, não
pode afirmar‑se, como afirma o recorrente, que do poder de superintendência na
gestão e direcção do pessoal dos recursos humanos, atribuído ao Presidente da
Câmara Municipal pela Lei n.º 18/91, de 12 de Janeiro, e mesmo do poder de
decidir todos os assuntos relacionados com a gestão e direcção dos recursos
humanos afectos aos serviços municipais, decorre, inevitavelmente, a sua
competência para aplicar sanções disciplinares aos funcionários e agentes
desses serviços.
Antes há que concluir que, nem a Lei n.º 18/91, nem a Lei n.º
169/99, vieram definir a competência disciplinar na administração local, nem
tinham de o fazer, por não ser o local próprio para o efeito, mas sim o Estatuto
Disciplinar da função pública, que, por isso, nenhuma delas revogou, nem
expressa, nem inequivocamente.
Na verdade, nada se refere nos respectivos preâmbulos, nem resulta
dos trabalhos preparatórios [cf. reuniões plenárias de 7 de Março de 1991 e de 2
de Julho de 1998, Diário da Assembleia da República, n.º 51, de 8 de Março de
1991, e n.º 102, de 3 de Julho de 1999, respectivamente], que aponte no sentido
da revogação do citado artigo 18.º do ED, ou sequer qualquer discussão relativa
à competência disciplinar nas autarquias, o que, conjuntamente com tudo o
anteriormente exposto, demonstra, à evidência, que as alterações introduzidas
por aquelas Leis nas competências do Presidente da Câmara não visaram alterar a
sua competência disciplinar expressamente prevista no artigo 18.º do ED.
E porque as competências definidas na LAL têm um campo de aplicação
distinto da competência disciplinar, não se coloca a hipótese de revogação do
artigo 18.º do ED/84 pelas referidas LAL, pelo que fica prejudicada a
apreciação da alegada inconstitucionalidade de uma eventual interpretação que
concluísse que o ED, como norma especial, prevaleceria sobre a LAL, por
vulneração do artigo 243.º, n.º 2, da actual CRP, interpretação que teria de
ter como pressuposto que a LAL dispôs sobre competência disciplinar do
Presidente da Câmara, o que, pelas razões expendidas, não acontece.
Finalmente, quanto à também alegada inconstitucionalidade do artigo
18.º do ED/84, por falta de autorização legislativa:
Segundo o recorrente, a Lei de Autorização Legislativa n.º 10/83, de
13 de Agosto, ao abrigo da qual foi emanado o ED/84, somente conferiu ao Governo
a possibilidade de legislar ao abrigo das actuais alíneas d) e t) do n.º 1 do
artigo 165.º da CRP, não o habilitando a legislar no âmbito da actual alínea q)
do referido preceito legal, respeitante ao Estatuto das Autarquias Locais, que
abarca não só a organização e as atribuições da autarquia, mas também a
competência dos seus órgãos e a estrutura dos seus serviços, pelo que uma
interpretação do Estatuto Disciplinar que estenda o seu âmbito de aplicação às
competências dos órgãos da autarquia padece de falta de autorização
legislativa.
Não assiste também aqui razão ao recorrente.
Como já se referiu atrás, embora possa existir, e em regra existe,
uma relação íntima entre as competências funcionais dos órgãos e agentes de uma
pessoa colectiva pública e as competências disciplinares eventualmente
atribuídas a esses órgãos ou agentes sobre os respectivos subalternos, já que
ambas assentam, em princípio, na estrutura hierarquizada da Administração,
trata‑se, como ficou já suficientemente evidenciado, de competências que
respeitam a matérias distintas, e que, por isso, são, em regra, objecto de
consagração em diplomas distintos.
Aliás, que são distintas as matérias, revela‑o desde logo o facto
de, sendo ambas competência reservada da Assembleia da República, o regime geral
de punição das infracções disciplinares e respectivo processo estar previsto em
alínea distinta das matérias relativas às competências funcionais dos seus
órgãos, v. g. o estatuto das autarquias locais (cf. alíneas d) e q),
respectivamente, do actual n.º 1 do artigo 165.º da CRP e correspondentes às
alíneas d) e s), respectivamente, do artigo 168.º, n.º 1, da CRP/82).
Ora, a autorização legislativa constante do artigo 1.º, n.º 1,
alínea b), da Lei n.º 10/83, que esteve na base do referido ED, aprovado pelo
Decreto‑Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, foi emitida ao abrigo da referida
alínea d) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP/82, e, portanto, como dela consta,
para o Governo legislar em «matéria do regime disciplinar da função pública»,
função pública onde se incluem também os funcionários e agentes da administração
local, e não em matéria do Estatuto das Autarquias Locais. E foi o que o Governo
fez, aprovando o Estatuto Disciplinar/84. O Governo não extravasou, pois, o
âmbito da autorização legislativa que lhe foi concedida.
Face a tudo o anteriormente exposto, o recurso não merece
provimento.”
O Município do Porto interpôs recurso deste acórdão para
o Tribunal Constitucional, tendo, na resposta ao convite para aperfeiçoamento
do requerimento de interposição do recurso, precisado que este era interposto
apenas com base na alínea b) [abandonando, assim, a invocação também da alínea
f), constante daquele requerimento] do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), e tinha por objecto a apreciação de
“uma inconstitucionalidade orgânica de cariz originário”, por violação do artigo
168.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), na versão da
revisão constitucional de 1982, então vigente (correspondente ao actual artigo
165.º, n.º 2), e de “uma inconstitucional material de natureza superveniente”,
por violação do artigo 243.º, n.º 2, da CRP, na versão da revisão constitucional
de 1997, da norma constante do artigo 18.º, n.ºs 1, 3 e 4, do Estatuto
Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e
Local (EDFAACRL), aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro,
interpretada, como o fez o acórdão recorrido, como norma atributiva e definidora
de competências no seio das autarquias locais.
O recorrente apresentou alegações, no termo das quais
formulou as seguintes conclusões:
“A) O fundamento do presente recurso é a inconstitucionalidade do
artigo 18.°, n.ºs 1 e 4, do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da
Administração Central, Regional e Local, na concreta interpretação efectuada no
acórdão do Supremo Tribunal Administrativo sob recurso, de 13 de Fevereiro de
2008.
B) O recorrente sustenta essa inconstitucionalidade em dois
fundamentos distintos, a saber: uma inconstitucionalidade orgânica e formal de
cariz originário; e outra inconstitucionalidade material de natureza
superveniente.
C) Quanto à primeira, se se considerar que o artigo 18.º do Estatuto
Disciplinar é uma instância definidora da competência no seio das autarquias
locais, como inequivocamente faz o tribunal a quo, então, existe
inconstitucionalidade orgânica e formal por defeito de autorização.
D) Enquanto regra pertencente a um decreto‑lei autorizado, o artigo
18.º viola o objecto da respectiva Lei de Autorização Legislativa (a saber, a
Lei n.º 10/83, de 13 de Agosto), sendo inconstitucional, nos termos do artigo
165.º, n.º 2, da Constituição (artigo 168.°, n.º 2, na versão da Lei
Constitucional n.º 1/82, vigente ao tempo da emissão daquele decreto‑lei e da
norma constante do artigo 18.º).
E) A Lei n.º 10/83 só conferia autorização para se legislar ao
abrigo da alínea d) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição (referente ao
«regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos
ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo») e ao abrigo da
alínea u) do mesmo artigo e número (relativa às «bases do regime e âmbito da
função pública»).
F) Se a Lei n.º 10/83 quisesse permitir, autorizar ou dizer fosse o
que fosse quanto à distribuição de competências dos órgãos e membros de órgãos
de autarquias locais teria de contemplar também a então alínea r) do n.º 1 do
artigo 168.º (concernente ao «estatuto das autarquias locais, incluindo o regime
das finanças locais»), mas não contemplou.
G) Na medida em que se interprete a norma do artigo 18.º do Estatuto
Disciplinar como norma definidora de competência dos órgãos das autarquias
locais, então, nessa precisa interpretação, essa norma está letalmente ferida de
inconstitucionalidade orgânica e formal, por violação dos requisitos de
parametricidade definidos para os decretos‑leis autorizados no artigo 165.°,
n.º 2, da Constituição (à época, artigo 168.º, n.º 2).
H) Quanto à segunda, a interpretação da norma do artigo 18.° do
Estatuto Disciplinar como uma norma definidora de competência realizada pelo
tribunal a quo implica a sua consideração como uma lex specialis relativamente
à legislação organizatória das autarquias, a Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro.
I) Desde a Revisão Constitucional de 1997 que a Constituição
estabelece a prevalência das especificidades autárquicas sobre o estatuto
disciplinar dos funcionários públicos, inicialmente, e até 1997, no então artigo
244.º, n.º 2, da Constituição, equiparando os funcionários públicos autárquicos
aos restantes funcionários, depois de 1997, na nova redacção do n.º 2 do actual
artigo 243.º, pondo em realce «as adaptações necessárias nos termos da lei».
J) A haver alguma prevalência, ela há‑de ser do estatuto das
autarquias sobre o estatuto dos funcionários, o estatuto disciplinar há‑de ter
em conta as particularidades e especificidades das autarquias locais e
nomeadamente, claro está, do seu quadro organizatório.
K) A interpretação efectuada pelo tribunal a quo – e a convocação do
critério da preferência da lei especial que ela necessariamente incorpora e
comporta – viola o conteúdo material da directiva do artigo 243.º, n.º 2, da
Constituição, ex professo pensada para a questão controvertida.
L) O carácter inconstitucional da solução normativa adoptada no
acórdão recorrido fica ainda mais a nu se se explicitarem as premissas
essenciais em que assenta este acórdão.
M) Não pode aceitar‑se a conclusão constante do acórdão recorrido de
que a lei não reconhece o presidente da câmara como órgão municipal.
N) E muito menos pode aceitá‑la, apenas e só porque o n.º 2 do
artigo 2.° da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro – repetindo o disposto no artigo
250.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) – escreve que «os órgãos
representativos do município são a assembleia municipal e a câmara municipal»,
nada dispondo, nesse preceito, quanto ao presidente da câmara.
O) Uma coisa é definir quais são os órgãos representativos do
município; outra, bem diferente, é assumir que só os ditos órgãos
«representativos» é que podem ser juridicamente qualificados como órgãos
executivos do município.
P) Quando a Constituição e a lei identificam ou «isolam» os órgãos
representativos do município, não quiseram nem poderiam, humana ou
razoavelmente, querer fazer um elenco exaustivo de todos os órgãos de urna
autarquia, executivos ou não.
Q) Como, de há muito, defende Diogo Freitas do Amaral – «(n)ão é
pelo facto de a Constituição ou as leis qualificarem o Presidente como órgão, ou
não, que ele efectivamente é ou deixa de ser órgão do município (…)», mas antes
que «(...) ele será órgão ou não conforme os poderes que a lei lhe atribuir no
quadro do estatuto jurídico do município».
R) O artigo 68.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, é ilustrativo
quanto baste da extensão e da natureza dos poderes que a lei, na economia dos
poderes que reconhece aos órgãos autárquicos, actualmente confere ao presidente
da câmara.
S) Reconhecer ao Presidente da Câmara Municipal a detenção das mais
precípuas funções executivas sem lhe reconhecer a evidência da sua natureza de
órgão jurídico‑administrativo só pode relevar de um estrito e radical
formalismo.
T) Nada no sistema jurídico exige ou reclama que um órgão, para o
ser, careça de uma criação legal ad hoc.
U) Não deixa, aliás, de ser estranho ou caricato que, aceitando‑se
um movimento tendencial e historicamente comprovado de transferência de
competências confiadas à Câmara para o Presidente de Câmara, a lei corroborasse
um processo de transferência de competências de um «órgão» para um «não órgão».
V) A especial forma de designação do concreto titular desse
«órgão/não órgão» depõe, do ponto de vista político, constitucional e
administrativo, no sentido de o qualificar como órgão de pleno e constituído
direito.
W) O presidente da câmara municipal não é eleito pelo colégio em que
se integra e a que preside, mas eleito directamente pelo voto popular.
X) Em caso de vitória, ipso jure e sem possibilidade de qualquer
remoção, «É presidente da câmara municipal o primeiro candidato da lista mais
votada (…)» (artigo 57.º, n.º 1, da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro).
Y) A especial forma de designação do presidente da câmara – por
eleição directa, sem possibilidade de remoção – está umbilicalmente ligada à
natureza das competências que lhe estão confiadas e, obviamente, à assunção
jurídica, política e administrativa da sua qualidade de órgão.
Z) Não pode seguir‑se a argumentação segundo a qual «(...) as
competências definidas na LAL têm um campo de aplicação distinto da
competência disciplinar (...)» (cf. página 17 do Acórdão de 13 de Fevereiro de
2008), tratando‑se «(...) de competências, que respeitam a matérias distintas, e
que, por isso, são, em regra, objecto de consagração em diplomas distintos» (cf.
página 18 do Acórdão de 13 de Fevereiro de 2008).
AA) Não é exacto afirmar a separação de matérias (a que corresponde
a separação de diplomas) nos moldes referidos pelo acórdão recorrido, donde
resultaria que a «(...) gestão e direcção dos recursos humanos afectos aos
serviços municipais (...)» (cf. alínea a) do n.º 2 do artigo 68.° da Lei n.º
169/99, de 18 de Setembro), nada teria que ver com a competência disciplinar
sobre os funcionários e agentes das autarquias locais (cf. artigo 8.° do
Decreto‑Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro).
BB) Não corresponde à verdade que a Lei n.º 169/99, de 18 de
Setembro, reportando‑se ao um campo de aplicação próprio e estanque, não se
dirija – em nenhuma medida – às questões disciplinares.
CC) A competência disciplinar constitui uma modalidade da gestão dos
recursos humanos.
DD) Isso mesmo resulta inequívoco e patente do teor da Lei n.º
169/99, de 18 de Setembro, em especial do n.º 2 do artigo 70.°, que respeita à
possibilidade de delegação (e subdelegação) de competências de gestão e
direcção dos recursos humanos no pessoal dirigente, onde o legislador refere a
prática de «(...) todos os actos relativos à aposentação de funcionários, com
excepção da aposentação compulsiva (...)» (alínea j)).
EE) De acordo com a alínea e) do n.º 1 do artigo 11.° do Decreto‑Lei
n.º 24/84, de 16 de Janeiro, a aposentação compulsiva consubstancia uma das seis
penas disciplinares previstas pelo Estatuto Disciplinar.
FF) Há uma norma da Lei n.º 169/99 que, a propósito da competência
de direcção e gestão de recursos humanos, regula a «delegabilidade» de uma
sanção disciplinar!
GG) Os fundamentos da tese do recorrente demonstram a absoluta
constitucionalidade da solução normativa por si propugnada.
HH) O Estatuto Disciplinar foi elaborado, em matéria de lei das
autarquias, na vigência da Lei n.º 79/77.
II) Esta lei conferia à câmara municipal o poder de «superintender
na gestão e direcção do pessoal ao serviço do município», entendendo‑se caber
nesse os poderes de «nomear, contratar ou assalariar, promover, transferir,
louvar, punir, aposentar e exonerar os funcionários e assalariados municipais».
JJ) O presidente da câmara já gozava de competência disciplinar
mesmo antes de ser órgão autónomo – órgão municipal –, o que resulta do n.º 4 do
artigo 18.º do Estatuto Disciplinar.
KK) Hoje, de acordo com o artigo 68.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º
169/99, «compete ao presidente da câmara municipal decidir todos os assuntos
relacionados com a gestão e direcção dos recursos humanos afectos aos serviços
municipais».
LL) A competência do presidente da câmara para a gestão e direcção
dos recursos humanos afectos aos serviços municipais é originária e exclusiva.
MM) O presidente da câmara é o órgão executivo singular do
município.
NN) O poder de aplicação de sanções disciplinares é assunto
indissociável da gestão e direcção dos recursos humanos.
OO) O Estatuto Disciplinar não contraria, antes complementa, o
disposto no artigo 68.°, n.° 2, alínea a), da Lei n.º 169/99.
PP) O Estatuto Disciplinar limita‑se a explicitar, mas não a
atribuir competências.
QQ) Norma de atribuição de competência é o artigo 68.º, n.º 2,
alínea a), da Lei n.º 169/99.
RR) A matéria disciplinar não é especial relativamente à autárquica.
SS) É, antes, uma secção do direito autárquico, tal como a matéria
autárquica é uma secção do direito disciplinar.
TT) A interpretação da norma do artigo 18.° do Estatuto Disciplinar
efectuado pelo aqui recorrente é absolutamente conforme à Constituição, já o
mesmo não se passa com a solução normativa derivada da interpretação efectuada
no acórdão recorrido.
UU) Tal solução normativa, na medida em que encara o artigo 18.º do
Estatuto Disciplinar enquanto norma atributiva‑constitutiva de competência dos
órgãos autárquicos, é inconstitucional orgânica e formalmente, por falta de
autorização para legislar em matéria de estatuto das autarquias locais,
designadamente, de repartição da respectiva competência interna.
VV) E é materialmente inconstitucional por – ao considerar a norma
resultante do artigo 18.º como uma norma definidora de competência e convocar o
critério da preferência da lei especial relativamente à lei geral da repartição
de órgãos autárquicos – violar o cânon constante do n.º 2 do artigo 243.º da
Constituição, que estabelece a prevalência das especificidades autárquicas sobre
o estatuto disciplinar dos funcionários públicos.
Termos em que requer que sejam consideradas inconstitucionais as
normas constantes do artigo 18.º, n.ºs 1 e 4, do Estatuto Disciplinar dos
Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, na concreta
interpretação efectuada no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo sob
recurso, de 13 de Fevereiro de 2008 e, assim, desaplicadas do caso dos autos.”
O recorrido contra‑alegou, sustentando a improcedência
do recurso.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Como é sabido, não compete ao Tribunal
Constitucional, no âmbito dos recursos de constitucionalidade para ele
interpostos, tomar posição sobre a correcção da interpretação do direito
ordinário efectuada pelas instâncias, designadamente na decisão recorrida, mas
tão‑só apreciar se essa interpretação – assumida como um dado da questão de
constitucionalidade – viola, ou não, normas ou princípios constitucionais.
Surge, assim, como deslocado, todo o esforço, em que o
recorrente consumiu a maior parte da sua argumentação, no sentido de sustentar a
tese de que o artigo 18.º do EDFAACRL se deveria considerar revogado pelo artigo
68.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro.
2.2. O recorrente sustenta que o artigo 18.º, n.ºs 1, 3
e 4, do EDFAACRL, interpretado – como o foi no acórdão recorrido – no sentido
de, relativamente aos funcionários municipais, ser a câmara municipal que detém
competência para aplicar sanções disciplinares, com excepção da pena de
repreensão, que pode ser aplicada pelo presidente desse órgão executivo, padece
de “inconstitucionalidade orgânica e formal de cariz originário”, por a Lei n.º
10/83, de 13 de Agosto – que concedeu a autorização legislativa ao abrigo da
qual o Decreto‑Lei n.º 24/84, que aprovou o EDFAACRL, foi emitido – apenas
invocar as alíneas d) e u) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP, na versão de 1982,
então vigente, que inseriam na reserva relativa de competência legislativa da
Assembleia da República as matérias do “regime geral de punição das infracções
disciplinares” e das “bases do regime e âmbito da função pública”, mas já não a
alínea r) do mesmo preceito, concernente ao “estatuto das autarquias locais,
incluindo o regime das finanças locais”, matéria a que respeitariam as citadas
regras do artigo 18.º do EDFAACRL, se interpretadas – como o foram – como normas
definidoras de competência dos órgãos das autarquias locais.
A Lei n.º 10/83, invocando os artigos 164.º, alínea e),
168.º, n.ºs 1, alíneas d) e u), e 2, e 169.º, n.º 2, da CRP, na versão de 1982,
então vigente, autorizou o Governo a legislar “em matéria de regime disciplinar
da função pública” (artigo 1.º, n.º 1, alínea b)), precisando o n.º 3 deste
artigo 1.º que “o regime a instituir nos termos da alínea b) do n.º 1 visa
introduzir alterações ao Decreto‑Lei n.º 191‑D/79, de 25 de Junho, por forma a
redefinir os factos ilícitos ou a definir novas formas de ilícito de corrupção
passíveis de sanção disciplinar, a corrigir a dosimetria das penas em vigor e
ainda a ultrapassar dificuldades de execução e a integrar lacunas do Estatuto
Disciplinar”.
Esta autorização abarcava, inequivocamente, a edição de
norma como a do questionado artigo 18.º do EDFAACRL.
Recorde‑se que o Decreto‑Lei n.º 191‑D/79, cuja
alteração foi autorizada, aprovara o anterior Estatuto Disciplinar dos
Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, o qual, no
artigo 19.º, declarava que o disposto no capítulo em que se inseria (dedicado à
competência disciplinar) seria “aplicável na Administração Autárquica nos termos
previstos em diploma regulamentar a publicar no prazo de cento e oitenta dias”
(n.º 1) e que “até à entrada em vigor do diploma previsto no número anterior,
continuará a aplicar‑se o artigo 572.º do Código Administrativo, para o efeito
do que se consideram incluídas na previsão do seu n.º 1 todas as penas
constantes do n.º 1 do artigo 11.º deste Estatuto e na do seu n.º 2 as de
repreensão e multa”. Ora, conjugando esta disposição com a do artigo 572.º do
Código Administrativo [que atribuía aos corpos administrativos competência, no
n.º 1, para a aplicação, aos funcionários dos seus quadros privativos, das penas
dos n.ºs 1 a 7 do artigo 564.º (a que se fizeram equivaler todas as penas do n.º
1 do artigo 11.º do EDFAACRL de 1979), e, no n.º 2, para a aplicação, aos
funcionários do quadro geral que se encontrassem ao seu serviço, das penas dos
n.ºs 1 a 3 do mesmo artigo 564.º (a que se fizeram corresponder as penas de
repreensão e multa), acrescentando o § único que “o presidente da câmara
municipal tem competência para advertir e repreender qualquer funcionário
municipal”], resulta que, relativamente aos funcionários municipais, era da
competência do “corpo administrativo” (câmara municipal) a aplicação de todas as
penas constantes do n.º 1 do artigo 11.º, podendo o presidente da câmara
municipal aplicar a pena de repreensão (ou advertência).
Na autorização legislativa para alteração do regime
disciplinar dos funcionários da Administração Local não poderia deixar de estar
inserida a matéria relativa à definição da correspondente competência
disciplinar, isto é, designadamente, a definição de quais os órgãos dessa
Administração competentes para aplicar cada tipo de pena disciplinar.
Tratava‑se de matéria que se prendia de modo directo com a definição do regime
geral de punição das infracções disciplinares e de uma parte das bases do
regime e âmbito da função pública, só indirectamente e de modo reflexo
respeitando ao estatuto das autarquias locais, na parte em que este estatuto
abrange a definição da competência dos órgãos das autarquias. Sendo o propósito
primordial da projectada intervenção legislativa a revisão de todo o regime
disciplinar da função pública, de que a função autárquica constituía uma parte,
compreende‑se que a lei de autorização legislativa se tenha limitado a invocar
as alíneas d) e u) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP então vigente. Da omissão de
referência à alínea r) do mesmo preceito não é lícito retirar – porque tal seria
flagrantemente contraditório como o objectivo visado – que o Parlamento não quis
conceder autorização ao Governo para regular o regime disciplinar dos
funcionários da Administração Local num ponto tão central como o da definição da
competência punitiva dos respectivos órgãos.
Conclui‑se, assim, que a Lei n.º 10/83 encerra
credencial parlamentar bastante para a edição, pelo Governo, da norma do artigo
18.º do EDFAACRL de 1984, pelo que não se verifica o vício de
“inconstitucionalidade orgânica e formal de cariz originário” que o recorrente
arguiu.
Ao que sempre se poderia acrescentar que tal norma, na
parte relevante para o presente recurso – isto é, na parte em que atribui à
câmara municipal, e não ao seu presidente, competência para aplicar a um
funcionário municipal a pena de suspensão –, não se reveste de carácter
inovatório, pois já resultava do artigo 572.º do Código Administrativo e foi
mantida em vigor pelo EDFAACRL de 1979, pelo que, também por esta razão,
improcederia a acusação de inconstitucionalidade orgânica.
Refira‑se, por último, quanto a este ponto, embora o
recorrente não tenha questionado o cumprimento adequado da definição do sentido
da autorização legislativa, que este Tribunal, pelos Acórdãos n.ºs 257/97,
380/98, 743/98 e 491/99, sempre entendeu que o n.º 3 do artigo 1.º da Lei n.º
10/83 não violava o n.º 2 do artigo 168.º da CRP, na versão então vigente, por
falta de definição de sentido preciso da autorização legislativa.
2.3. A segunda questão de inconstitucionalidade
suscitada pelo recorrente respeita a alegada “inconstitucionalidade material de
natureza superveniente”, decorrente de a revisão constitucional de 1997, no n.º
2 do artigo 243.º, ter aditado ao teor primitivo do n.º 2 do correspondente
artigo 244.º das anteriores versões (“é aplicável aos funcionários e agentes da
administração local o regime dos funcionários e agentes do Estado”) a expressão
“com as adaptações necessárias, nos termos da lei”.
Da introdução deste inciso retira o recorrente a
afirmação da prevalência das leis organizatórias das autarquias locais
(Decreto‑Lei n.º 100/84, de 29 de Março, na redacção dada pelo Decreto‑Lei n.º
18/91, de 12 de Junho, e Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro), designadamente do
artigo 68.º, n.º 2, alínea a), desta última Lei, que, ao atribuir ao presidente
da câmara o poder de tomar todas as decisões relacionadas com a gestão dos
recursos humanos afectos aos serviços municipais, o teria reconhecido como o
órgão executivo autárquico dotado de genérica competência disciplinar.
Já se disse que não compete ao Tribunal Constitucional
tomar posição quanto à questão de saber se esta última norma determinou a
revogação do artigo 18.º, n.ºs 1, 3 e 4, do EDFAACRL de 1984. Constata‑se apenas
que a jurisprudência administrativa – tal como veio a decidir o acórdão ora
recorrido – nunca aderiu a essa tese: o acórdão do STA, de 5 de Maio de 1999,
proc. n.º 41 514, decidiu que o Decreto‑Lei n.º 100/84, na redacção dada pelo
Decreto‑Lei n.º 18/91, não revogou os artigos 18.º e 75.º, n.º 4, do EDFAACRL de
1984 (pelo que o presidente da câmara municipal não era competente para aplicar
a pena de aposentação compulsiva), no mesmo sentido (quanto à primeira
proposição) tendo decidido o acórdão do Tribunal Central Administrativo, de 2 de
Março de 2000, proc. n.º 3597/99; os acórdãos do Tribunal Central Administrativo
Norte, de 23 de Setembro de 2004, proc. n.º 126/04, e de 22 de Novembro de 2007,
proc. n.º 1592/05.3BRPRT, tomaram idêntica decisão face à Lei n.º 169/99; e o
acórdão deste mesmo Tribunal, de 3 de Abril de 2008, proc. n.º 1887/05.6BEPRT,
fê‑lo quer face ao diploma de 1991 quer face ao diploma de 1999.
Ora, o entendimento de que esses diplomas organizatórios
das autarquias locais não revogaram a lei, tida por especial, constante do
EDFAACRL de 1984, em nada contende com o preceito constitucional invocado – o
artigo 243.º, n.º 2, na versão de 1997 –, pois neste apenas se possibilita que o
legislador, se o entender, introduza alterações ao regime dos funcionários e
agentes do Estado quando aplicado aos funcionários e agentes da Administração
Local.
É claramente improcedente a tentativa de transformar
esta norma meramente habilitadora de uma intervenção deixada à liberdade do
legislador ordinário numa regra de absoluta prevalência dos diplomas
organizatórios autárquicos sobre o regime disciplinar da função pública, tanto
mais que, neste regime, constante do EDFAACRL, o legislador, justamente no
questionado artigo 18.º, introduziu já a adaptação que considerou adequada
quando tratou de definir a competência disciplinar relativamente aos
funcionários da Administração Local.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucionais as normas constantes do
artigo 18.º, n.ºs 1, 3 e 4, do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes
da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 24/84,
de 16 de Janeiro, interpretadas no sentido de que compete à câmara municipal a
aplicação de sanções disciplinares aos funcionários e agentes da autarquia, com
excepção da pena de repreensão, que pode ser aplicada pelo presidente desse
órgão executivo; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 23 de Setembro de 2008.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos