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Processo n.º 263/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – O Ministério Público, junto do Tribunal Judicial da Comarca de
Santarém, recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos
art.ºs 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, da Lei n.º 28/82,
de 15 de Novembro de 2008, na sua actual versão (LTC) da sentença proferida por
aquele tribunal, pretendendo a apreciação da questão de constitucionalidade das
“normas cuja aplicação foi recusada: o critério de apreciação de insuficiência
económica previsto no ponto I, 1, alínea c), do Anexo à Lei n.º 34/2004, de 29
de Julho, e os artigos 6.º, 8.º e 9.º, bem como os anexos para que remetem, tudo
da Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto”.
2 – Alegando neste Tribunal, o recorrente concluiu o seu discurso
argumentativo dizendo:
“1.º
A norma constante do ponto I, 1, alínea c), do Anexo à Lei n.º
34/04, conjugado com os artigos 6.º, 8.º e 9.º e respectivos anexos da Portaria
n.º 1085-A/04, de 31/08, interpretados no sentido de que determinam que seja
considerado para efeitos do cálculo do rendimento relevante do requerente do
benefício de apoio judiciário o rendimento do seu agregado familiar nos termos
aí rigidamente impostos, sem permitir em concreto aferir da real situação
económica do requerente, em função da sua efectiva carência económica, face aos
seus rendimentos e encargos, é materialmente inconstitucional, por violação do
artigo 2.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
2.º
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade
formulado pela decisão recorrida”.
3 – Não houve contra-alegações.
4 – Com interesse para a compreensão do caso, vê-se nos autos:
4.1 – A. requereu, em 5 de Novembro de 2007, perante os pertinentes
Serviços da Segurança Social, apoio judiciário, na modalidade de dispensa de
taxa de justiça e demais encargos, para propor acção de demarcação com o valor
de 10.000 euros.
O pedido foi deferido tão só parcialmente, tendo-lhe sido concedido
o benefício apenas na modalidade de pagamento faseado da taxa de justiça, de
periodicidade trimestral e com a prestação de €80,00.
4.2 – O requerente impugnou judicialmente esta decisão
administrativa, tendo a decisão ora recorrida julgado procedente o recurso de
impugnação e concedido o benefício do apoio judiciário, na modalidade
pretendida, tendo para tanto desaplicado expressamente “por
inconstitucionalidade material o critério de apreciação de insuficiência
económica previsto no ponto I,1,alínea c), do anexo à Lei n.º 34/2004, de 29 de
Julho, e os artigos 6.º, 8.º e 9.º e os anexos para quem remetem, tudo da
Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto”.
Na parte relevante à intelecção da decisão recorrida, discreteou
esta do seguinte jeito:
«[…]
Além disso, deverá sempre o tribunal verificar se as normas legais aplicadas se
conformam com os ditames constitucionais, nomeadamente, se constituem ou não uma
restrição desproporcionada e injustificada do direito fundamental de acesso ao
direito (artigos 18º, nºs 1 e 2, 20º e 204º, todos da Constituição da República
Portuguesa).
No caso dos autos, verifica-se que por efeito da aplicação do critério de
apreciação da insuficiência económica previsto no ponto I, 1, alínea c), do
anexo à lei nº 34/2004, de 29 de Julho e dos resultados da fórmula constante da
Portaria 1085-A/2004, de 31 de Agosto, a Segurança Social concluiu que o
requerente tinha condições económicas para lhe ser deferido apoio judiciário na
modalidade de pagamento faseado.
Analisando o rendimento líquido do agregado familiar do requerente, tendo em
conta o valor global desse rendimento e a sua provável distribuição por catorze
meses, verifica-se que tal rendimento corresponde, per capita, a € 246,98
mensais e, se se distribuir tal rendimento anual por doze meses, equivalerá a um
rendimento mensal per capita de € 288,14.
É notório que se trata de um rendimento exíguo, ainda para mais tratando-se de
pessoa idosa, certamente com gastos acrescidos de saúde, alguns deles
eventualmente sem comparticipação.
O resultado daquele critério e da referida fórmula é ainda mais chocante se
atentarmos no valor do salário mínimo nacional, presentemente de € 426,00, valor
que é considerado, por exemplo para efeitos de penhorabilidade, correspondente
ao mínimo de subsistência (artigo 824º, nº 2, parte final, do Código de Processo
Civil).
É certo que no artigo 20º, nº 2, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, existe uma
“válvula de escape” à frieza dos números imposta pela Portaria nº 1085-A/2004,
de 31 de Agosto, mecanismo que porém não foi usado pela Segurança Social e que
não é facultado ao requerente do apoio judiciário.
Assim, no caso concreto, afigura-se-nos que a aplicação do critério de
apreciação de insuficiência económica previsto no ponto I, 1, alínea c), do
anexo à lei nº 34/2004, de 29 de Julho e dos critérios matemáticos vazados na
Portaria nº 1085-A/2004, de 31 de Agosto e que conduzem a que alguém com
rendimento mensal líquido de € 288,14, apenas tenha direito a apoio judiciário
na modalidade de pagamento faseado de taxa de justiça, sendo a prestação
trimestral de tal pagamento faseado de € 80,00, se traduz numa intolerável
restrição do direito fundamental de acesso ao direito.
A situação ainda é mais caricata se se atentar que para a causa para que se
pretende o apoio judiciário (atribui-se-lhe o valor de € 10.000,00), a taxa de
justiça devida por cada parte no processo é de € 288,00, sendo a taxa de justiça
inicial devida por cada parte de € 144,00, estando o beneficiário de apoio
judiciário sujeito, por força do disposto no artigo 13º da Portaria 1085-A/2004,
de 31 de Agosto, ao pagamento da taxa de justiça total do processo, isto é,
sofrendo um encargo maior do que sofreria se não beneficiasse de apoio
judiciário. Ora, o não beneficiário de apoio judiciário só se sujeita ao
pagamento de tal valor caso venha a sucumbir totalmente na acção e apenas a
final terá que suportar tal valor.
Pelo exposto, porque se entende que a aplicação do critério de apreciação de
insuficiência económica previsto no ponto I, 1, alínea c), do anexo à lei nº
34/2004, de 29 de Julho e dos critérios matemáticos da Portaria nº 1085-A/2004,
de 31 de Agosto conduzem, no caso concreto, pelo que se expôs, a uma
desproporcionada e injustificada restrição do direito fundamental de acesso ao
direito, desaplicam-se, por inconstitucionalidade material o critério de
apreciação de insuficiência económica previsto no ponto I, 1, alínea c), do
anexo à lei nº 34/2004, de 29 de Julho e os artigos 6º, 8º e 9º e os anexos para
que remetem, tudo da Portaria nº 1085-A/2004, de 31 de Agosto.
Considerando um rendimento mensal líquido de € 288,14, tendo em conta a idade
avançada do requerente, facto que torna previsíveis encargos de saúde, alguns
deles certamente não comparticipados, tendo em conta o valor da taxa de justiça
de € 288,00 que o requerente terá de suportar necessariamente no processo para
que requereu apoio judiciário, afiguram-se-nos reunidas as condições para que se
conclua que o requerente não tem condições económicas para suportar a mencionada
taxa de justiça.
Nesta medida, por força da desaplicação do critério de apreciação de
insuficiência económica previsto no ponto I, 1, alínea c), do anexo à lei nº
34/2004, de 29 de Julho e dos citados normativos da Portaria nº 1085-A/2004, de
31 de Agosto já citados e numa apreciação casuística do caso, afiguram-se-nos
reunidos os pressupostos para que seja deferido o apoio judiciário requerido
pelo recorrente.
Decisão: pelo fundamentos expostos, desaplicando-se por
inconstitucionalidade material o critério de apreciação de insuficiência
económica previsto no ponto I, 1, alínea c), do anexo à lei nº 34/2004, de 29 de
Julho e os artigos 6º, 8º e 9º e os anexos para que remetem, tudo da Portaria nº
1085-A/2004, de 31 de Agosto, julga-se procedente o recurso de impugnação
interposto nestes autos por A. e, em consequência, concede-se-lhe apoio
judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e outros
encargos do processo. Custas do presente recurso pela entidade recorrida, por
ter dado causa ao recurso ao não aplicar o disposto no artigo 20º, nº 2, da Lei
nº 34/2004, de 29 de Julho. Notifique».
B – Fundamentação
5 – Da delimitação do recurso
No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, o
recorrente identificou as normas “cuja aplicação com fundamento em
inconstitucionalidade havia sido recusada” como sendo “o critério de apreciação
de insuficiência económica previsto no ponto I, 1, alínea c), do Anexo à Lei n.º
34/2004, de 29 de Julho, e os artigos 6.º, 8.º e 9.º, bem como os anexos para
que remetem, tudo da Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto”.
Porém, nas alegações de recurso, o mesmo recorrente reduziu o âmbito
da norma cuja apreciação requer, passando do seu significado geral para uma sua
concreta dimensão, identificando-a como sendo “a norma constante do ponto I, 1,
alínea c), do Anexo à Lei n.º 34/04, conjugado com os artigos 6.º, 8.º e 9.º e
respectivos anexos da Portaria n.º 1085-A/04, de 31/08, interpretados no sentido
de que determinam que seja considerado para efeitos de cálculo do rendimento
relevante do requerente do benefício de apoio judiciário o rendimento do seu
agregado familiar nos termos aí rigidamente impostos, sem permitir em concreto
aferir da nela situação económica do requerente, em função da sua efectiva
carência económica, face aos seus rendimentos e encargos”.
Verifica-se deste modo que o recorrente restringiu o objecto do
recurso.
A restrição do recurso, nas conclusões da alegação, é legalmente
admissível, nos termos do n.º 3 do art.º 684.º do Código de Processo Civil
(CPC), aplicável ao processo constitucional por mor do disposto no art.º 69.º da
LTC.
De qualquer modo, sempre se teria de circunscrever à dimensão
normativa agora recortada o objecto do recurso de constitucionalidade.
Esta conclusão deriva não só do facto de, tratando-se de um recurso
interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do art.º 70.º da LTC pelo Ministério
Público, o recurso obrigatório se ter de cingir à concreta
norma/dimensão/critério normativos cuja aplicação foi recusada como da
circunstância de o recurso de constitucionalidade ter natureza instrumental.
A obrigatoriedade do recurso postula que o âmbito deste se
circunscreva ao âmbito significativo da norma que foi concretamente aplicado
como ratio dedicendi da decisão recorrida.
Por outro lado, a instrumentalidade do recurso demanda que apenas
deva conhecer-se do recurso na medida em que o juízo de constitucionalidade
possa repercutir-se sobre a concreta decisão. Ora, tal possibilidade só pode
ocorrer relativamente à concreta norma que tenha constituído o fundamento
normativo do decidido.
Assim sendo, conhecer-se-á do recurso nos termos que foram
delimitados nas conclusões da alegação do recurso, acima apontados.
6 – Do objecto do recurso
Os preceitos de direito positivo, de que se inferiu a norma
desaplicada, dispõem do seguinte modo (transcreve-se a totalidade do preceito,
para facilidade de apreensão do seu conteúdo, constando a parte questionada em
itálico).
Anexo da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho:
“Anexo
I – Apreciação da insuficiência económica
1 – A insuficiência económica é apreciada da seguinte forma:
a) O requerente cujo agregado familiar tem um rendimento relevante para efeitos
de protecção jurídica igual ou menor do que um quinto do salário mínimo nacional
não tem condições objectivas para suportar qualquer quantia relacionada com os
custos de um processo;
b) O requerente cujo agregado familiar tem um rendimento relevante para efeitos
de protecção jurídica superior a um quinto e igual ou menor do que metade do
valor do salário mínimo nacional considera-se que tem condições objectivas para
suportar os custos da consulta jurídica e por conseguinte não deve beneficiar de
consulta jurídica gratuita, devendo, todavia, usufruir do benefício de apoio
judiciário;
c) O requerente cujo agregado familiar tem um rendimento relevante para efeitos
de protecção jurídica superior a metade e igual ou menor do que duas vezes o
valor do salário mínimo nacional tem condições objectivas para suportar os
custos da consulta jurídica, mas não tem condições objectivas para suportar
pontualmente os custos de um processo e, por esse motivo, deve beneficiar do
apoio judiciário na modalidade de pagamento faseado, previsto na alínea d) do nº
1 do artigo 16º da presente lei;
d) Não se encontra em situação de insuficiência económica o requerente cujo
agregado familiar tem um rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica
superior a duas vezes o valor do salário mínimo nacional.
2 – Se o valor dos créditos depositados em contas bancárias e o montante de
valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado de que o
requerente ou qualquer membro do seu agregado familiar sejam titulares forem
superiores a 40 vezes o valor do salário mínimo nacional, considera-se que o
requerente de protecção jurídica não se encontra em situação de insuficiência
económica, independentemente do valor do rendimento do agregado familiar.
3 – Para os efeitos desta lei, considera-se que pertencem ao mesmo agregado
familiar as pessoas que vivam em economia comum com o requerente de protecção
jurídica”.
Preceitos da Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto, sendo o
último artigo na versão decorrente da Portaria n.º 288/2005, de 21 de Março:
“Artigo 6.º
Rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica
1 — Para efeitos do disposto no anexo da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, o
rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica (YAP) é o montante que
resulta da diferença entre o valor do rendimento líquido completo do agregado
familiar (YC) e o valor da dedução relevante para efeitos de protecção jurídica
(A), ou seja, YAP = YC–A.
2 — O rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica (YAP) é expresso
em múltiplos do salário mínimo nacional.
Artigo 7.º
Rendimento líquido completo do agregado familiar
1 — O valor do rendimento líquido completo do agregado familiar (YC) resulta da
soma do valor da receita líquida do agregado familiar (Y) com o montante da
renda financeira implícita calculada com base nos activos patrimoniais do
agregado familiar (YR), ou seja, YC= Y+ YR.
2 — Por receita líquida do agregado familiar (Y) entende-se o rendimento depois
da dedução do imposto sobre o rendimento, das contribuições obrigatórias dos
empregados para regimes de segurança social e das contribuições dos
empregadores para a segurança social.
3 — O cálculo da renda financeira implícita é efectuado nos termos previstos no
artigo 10.º da presente portaria.
Artigo 8.º
Dedução relevante para efeitos de protecção jurídica.
1 — O valor da dedução relevante para efeitos de protecção jurídica (A) resulta
da soma do valor da dedução de encargos com necessidades básicas do agregado
familiar (D) com o montante da dedução de encargos com a habitação do agregado
familiar (H), ou seja, A = D + H.
2 — O valor da dedução de encargos com necessidades básicas do agregado familiar
(D) resulta da aplicação da seguinte fórmula:
D=(1+n–1)×d×YC
10
em que n é o número de elementos do agregado
em que n é o número de elementos do agregado familiar e d é o coeficiente de
dedução de despesas com necessidades básicas do agregado familiar, determinado
em função dos diversos escalões de rendimento, de acordo com o previsto no anexo
I.
3 — O montante da dedução de encargos com a habitação do agregado familiar (H)
resulta da aplicação do coeficiente h ao valor do rendimento líquido completo do
agregado familiar (YC), ou seja, H = h×YC, em que h é determinado em função dos
diversos escalões de rendimento, de acordo com o previsto no anexo II.
Artigo 9.º
Cálculo do valor do rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica
O valor do rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica, especificado
nos artigos anteriores, é calculado através da fórmula prevista no anexo III
desta portaria”.
E o anexo III desta portaria, para o qual o preceito remete, reza
assim:
ANEXO III
Fórmula a que se refere o artigo 9.o
A fórmula de cálculo do valor do rendimento relevante
para efeitos de protecção jurídica é a seguinte:
YAP=[1–(1+n1–01)×d – h]×YC
A fórmula de cálculo resulta das seguintes identidades
algébricas:
YAP=YC – A
A=D+H
D=(1+n1–01)×d×YC
H=h×YC
Portanto, por operações aritméticas elementares:
YAP=YC – (D+H)
BYAP=YC – [(1+n – 1)×d×YC+h×YC] 10
BYAP=[1–(1+n – 1)×d–h]×YC»
7 – Do mérito do recurso
O sistema do apoio judiciário visa concretizar o direito fundamental
de acesso ao direito e aos tribunais consagrado no art.º 20.º, n.º 1, da
Constituição, na parte em que nele se dispõe “(…) não podendo a justiça ser
denegada por insuficiência de meios económicos”.
Trata-se, deste modo, de um instrumento jurídico-financeiro que dá
cumprimento à dimensão “prestacional” compreendida naquele direito fundamental,
devendo cumprir a função constitucional de “garantir uma igualdade de
oportunidades no acesso à justiça, independentemente da situação económica dos
interessados”, como tem sido reconhecido em vários momentos pelo Tribunal
Constitucional (cf., a título de exemplo, os Acórdãos n.ºs 433/87 e 352/91,
disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Mas se é assim, temos que a igualdade de oportunidades no acesso à
justiça que releva é uma igualdade material referida aos elementos pertinentes
do sistema de justiça que são susceptíveis de impedir ou dificultar a motivação
do cidadão de recorrer a ela, na defesa dos seus direitos e interesses
legítimos, decorrendo, desde logo, do art.º 13.º, n.º 2, da Constituição.
E perante o nosso sistema de justiça são, essencialmente, dois os
factores que são susceptíveis de motivar os cidadãos no acesso e utilização do
sistema de justiça: a possibilidade económica de suportar os honorários do
patrono jurídico ou judiciário e a de arcar com as custas da respectiva acção
judicial, no caso de se ter de recorrer a juízo.
Daí que a previsão do benefício, por parte do legislador ordinário,
se traduza nas modalidades de informação jurídica e de protecção jurídica,
decompondo-se esta, por seu turno, na consulta jurídica e no apoio judiciário
(cf. art.ºs 4.º e 6.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho).
Enquanto exercício de uma actividade pessoal, o exercício do
patrocínio jurídico ou judiciário acarreta custos, maxime, de remuneração dessa
actividade.
Por seu lado, não consagrando Constituição um direito à
administração gratuita da justiça e demandando a mesma a realização de despesas,
pode o Estado repercutir sobre os cidadãos que a ela recorram os respectivos
custos, optando por uma justiça mais barata ou mais cara, conquanto “tenha na
devida conta o nível geral dos rendimentos dos cidadãos, de modo a não tornar
incomportável para o comum das pessoas o custeio de uma demanda judicial, pois,
se tal suceder, se o acesso aos tribunais se tornar incomportável ou
especialmente gravoso, violar-se-á o direito de acesso aos tribunais” (Acórdão
102/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
E tal como o legislador ordinário goza de liberdade
normativo-constitutiva, dentro de tais parâmetros constitucionais, para
configurar o concreto sistema das taxas de justiça, do mesmo passo goza de
discrionariedade legislativa no que importa à modelação do sistema de apoio
judiciário, estando, porém, vinculado a prosseguir, nele, aquele escopo
constitucional de igualdade material no acesso e na utilização do sistema de
justiça, de sorte a não impedi-los ou dificultá-los de forma incomportável para
o cidadão.
Como é evidente o espectro de insuficiência económica que o Estado
tem de suprir variará, assim, em concreto, em função quer da específica situação
económica do cidadão quer do concreto nível de agravamento tributário que tenha
adoptado na estruturação do sistema de custas, não podendo deixar de aumentar
perante sistemas mais onerosos de justiça.
Abandonando o método anterior de utilização de normas abertas à
ponderação, no caso concreto, da insuficiência económica e respectivo grau e bem
como o recurso a presunções de “pobreza”, para algumas situações, cuja aplicação
foi cometido, primeiro, directamente aos tribunais (Decreto-Lei n.º 387-B/87) e,
depois, à Segurança Social (Lei n.º 30-E/2000), o legislador da Lei n.º 34/2004,
de 29 de Julho, construiu um sistema próprio funcionalizado para apurar a
insuficiência económica, e o respectivo grau, que desse resposta ao direito
constitucional de “a justiça não lhe poder ser denegada por insuficiência de
meios económicos”.
Os termos em que o instituto de apoio judiciário se mostra
actualmente gizado já foram censurados, por diversas vezes, pelo Tribunal
Constitucional.
Em qualquer dos casos, a censura constitucional recaiu sobre uma
concreta modelação do instituto, por esta, na projecção dos efeitos decorrentes
da operacionalidade das normas estatuídas pelo legislador ordinário, desembocar
numa situação de restrição intolerável do direito de acesso aos tribunais.
Aconteceu assim no Acórdão 654/2006, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt (e dentro da mesma linha nas Decisões sumárias
n.ºs 206/2007, 530/2007 e 625/2007, disponíveis no mesmo sítio), em que a razão
de inconstitucionalidade se prendia com o facto de o legislador imputar
positivamente ao rendimento do agregado familiar do requerente rendimentos da
pessoa que lhe prestava os alimentos aí considerados (também sobre a imputação
de rendimentos ao agregado familiar, cf. os Acórdãos n.ºs 273/08 e 274/08,
publicados no Diário da República II Série, de 12 de Junho de 2008)
E aconteceu, ainda, pelo menos, nos Acórdãos n.ºs 46/08, 125/08,
126/08 e 127/08, disponíveis no mesmo sítio, se bem que, aqui, por manifesta
inadequação ou imprestabilidade dos critérios legais estatuídos, ou para
absorverem no elemento normativo “valor da dedução relevante para efeitos de
protecção jurídica” despesas suportadas com o pagamento faseado de taxas de
justiça em outros processos (Ac. 46/08), ou para atenderem, no mesmo plano
jurídico, à específica situação do agregado familiar, constituído pelo
requerente, esposa doméstica e seis filhos, quatro dos quais estudantes, vivendo
em situações habitacionais precárias e carecendo do apoio das instituições de
apoio social (Ac. 125/08), ou à existência de outros encargos do agregado
familiar para além dos admitidos nos artigos 6.º a 9.º da Portaria n.º
1085-A/2004, de 31 de Agosto (Acs. 126/08 e 127/08).
Em todos esses casos, o Tribunal Constitucional julgou
“inconstitucionais, por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da
República Portuguesa, as normas constantes do Anexo à Lei n.º 34/2004, de 29 de
Julho, conjugado com os artigos 6.º a 10.º da Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de
Agosto, alterada pela Portaria n.º 288/2005, de 21 de Março, interpretadas no
sentido de que determinam que seja considerado para efeitos de cálculo do
rendimento relevante do requerente do benefício do apoio judiciário o rendimento
do seu agregado familiar nos termos aí rigidamente impostos, sem permitir em
concreto aferir da real a situação económica do requerente em função dos seus
rendimentos e encargos”.
Como se fez notar nesses arestos, o legislador ordinário concebeu,
dentro da sua discricionariedade constitutiva, um método de apuramento da
insuficiência económica para efeitos de protecção jurídica, construído em torno
da consideração de elementos rígidos ou estáticos, aptos a obviarem à
variabilidade subjectiva da decisão decorrente da subjectividade da apreciação
do decisor administrativo.
Em termos abreviados, esse método consiste na imputação ao agregado
familiar de todos os rendimentos líquidos dos seus membros, incluindo a renda
financeira implícita calculada nos termos definidos (art.º 10.º da Portaria n.º
1085-A/2004) sobre os activos patrimoniais traduzidos pelos valores dos imóveis,
participações sociais e valores mobiliários (considerando-se como tal o
rendimento depois da dedução do imposto sobre o rendimento, das contribuições
obrigatórias dos empregados para regimes da segurança social e das contribuições
dos empregadores para a segurança social) e na subtracção a esse valor da soma
do valor da dedução de encargos com necessidades básicas do agregado familiar
com o montante da dedução de encargos com a habitação.
O valor da dedução de encargos com a satisfação das necessidades
básicas do agregado familiar relevante para o efeito é determinado, de acordo
com o referido art.º 8.º da Portaria n.º 1085-A/2004, em função do número de
elementos do agregado familiar e de um coeficiente pré-determinado, variável em
função de diversos escalões de rendimento, também pré-estabelecidos, constantes
do anexo I da mesma Portaria.
Por seu lado, o montante da dedução de encargos com a habitação do
agregado familiar é igualmente o resultado da aplicação de um coeficiente
pré-estabelecido sobre o valor do rendimento líquido completo, variando aquele
coeficiente em função de diversos escalões de rendimento pré-determinados, não
podendo, porém, ser superior ao montante da despesa efectivamente suportada
(art. 8.º, n.ºs 3 e 4, e anexo II da mesma Portaria).
A concessão ou denegação de protecção jurídica, total ou parcial,
encontra-se associada pelo legislador, no anexo I, da Lei n.º 34/2004, à relação
proporcional que intercede entre o valor do rendimento relevante para efeitos de
protecção jurídica, resultante da subtracção ao rendimento líquido das deduções
relevantes para o mesmo efeito, acima assinaladas, e o valor do salário mínimo
nacional.
Ora, se é certo que o método assim construído pelo legislador
permite afastar a subjectividade do decisor administrativo na ponderação dos
elementos económico-financeiros que seriam susceptíveis de evidenciar a
capacidade económico-financeira para pagar as custas devidas na acção (sistema
de custas esse conformado em função do valor da acção e que deve atender ao
nível geral dos rendimentos dos cidadãos, conforme se faz notar no Acórdão n.º
102/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), também não é menos certo
que ele se mostra insensível para atender às especificidades da situação
económica de muitos cidadãos requerentes do apoio judiciário.
Em certa perspectiva, a concreta inadequação do modelo para
responder a essas situações resulta, essencialmente, do facto de em caso de
baixos rendimentos ou aproximados e de algumas composições do agregado familiar,
os coeficientes e os escalões de rendimento fixados, no âmbito das deduções,
constantes nos anexos I a IV da Portaria, não serem capazes de deixar disponível
para o cidadão uma margem de rendimento com o qual possa satisfazer as custas da
acção, mesmo na forma faseada, sem que isso corresponda, perante a emergência de
satisfação de necessidades básicas ou essenciais não relevadas ou não relevadas
suficientemente pelo legislador, a um impedimento ou dificuldade incomportável,
próprios de uma situação de insuficiência económica.
Na verdade, esses coeficientes e valores não partem de qualquer
consideração sobre o nível geral dos rendimentos e das despesas dos cidadãos
médios, mas de um patamar abaixo dele.
O coeficiente de dedução de despesas com necessidades básicas do
agregado familiar não é fixado em função das despesas médias do cidadão médio,
integrado em um agregado familiar médio, que permita a satisfação das
necessidades básicas correspondentes a esse “arquétipo” social, mas por
referência às “forças” do próprio rendimento líquido completo do agregado
familiar, variando regressivamente à medida que tal rendimento aumenta, mas sem
que o coeficiente mais baixo se mostre idóneo para espelhar um índice adequado
das despesas que é preciso suportar para que saiam satisfeitas as necessidades
básicas do agregado familiar.
Para além disso, acresce que o referente com o qual é confrontado o
rendimento relevante para efeitos da protecção jurídica, para determinar se a
situação económica justifica e qual o modo ou grau de concessão do benefício do
apoio judiciário, estabelecido no anexo da Lei n.º 34/2004, é, também, não o
salário correspondente ao nível geral dos cidadãos mas o salário mínimo
nacional.
Ora, sabido que este decorre da ponderação do legislador sobre o que
a economia está em condições de suportar em salários e o mínimo necessário para
que o trabalhador que o aufere possa, ele próprio e apenas, viver com a
dignidade própria de pessoa humana, fácil será constatar que o resultado
relevado nos termos do método elegido pelo legislador se afastará, em muitos
casos, de uma situação económica tal que permita aos requerentes pagar as
despesas de justiça sem que isso represente um impedimento ou constrangimento
intolerável no direito de acesso aos tribunais.
E é o que se passa na situação dos autos, como bem considerou a
decisão recorrida.
Na verdade, não poderá deixar de considerar-se, parafraseando o que
se diz no Acórdão n.º 46/2008, que, no caso dos autos, mais do que a «rigidez»
da fórmula matemática, vinculante da decisão da Segurança Social acerca do
peticionado apoio judiciário, aqui o que está em causa é a sua manifesta
inadequação e imprestabilidade, face aos valores constitucionais, por permitir
concluir que tem condições económicas para suportar uma taxa de justiça de
288,00, paga faseada e trimestralmente, quem tem “um rendimento mensal líquido
de €288,14, tem avançada idade, facto que torna previsíveis encargos de saúde,
alguns deles certamente não comparticipados”.
Mas mesmo para quem não acompanhe integralmente a presente
demonstração não deixará de se impor a mesma conclusão. Com efeito, como se
considerou nos acórdãos deste Tribunal acima citados (654/2006, 46/08, 125/08,
126/08 e 127/08), sempre o mecanismo legalmente imposto preclude a possibilidade
de aferir em concreto da real situação económica do requerente em função dos
seus rendimentos e encargos, o que, só por si, e como se julgou naquelas
decisões, basta para excluir a sua conformidade constitucional.
C – Decisão
8 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do direito de acesso aos
tribunais, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa, a norma constante do ponto I, 1, alínea c), do Anexo à Lei n.º
34/2004, conjugado com os artigos 6.º, 8.º e 9.º e respectivos anexos da
Portaria n.º 1085-A/2004, de 31/08, interpretados no sentido de que determinam
que seja considerado para efeitos de cálculo do rendimento relevante do
requerente do benefício de apoio judiciário o rendimento do seu agregado
familiar nos termos aí rigidamente impostos, sem permitir em concreto aferir da
real situação económica do requerente, em função da sua efectiva carência
económica, face aos seus rendimentos e encargos.
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 23.09.2008
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano (com a declaração que votei o presente acórdão exclusivamente
pelos fundamentos que já constam dos acórdãos 654/2006, 46/08, 125/08 e 127/08,
deste Tribunal).
Joaquim de Sousa Ribeiro (com declaração, nos termos da do Conselheiro João Cura
Mariano)
Rui Manuel Moura Ramos