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Processo n.º 495/08
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A. inconformado com a decisão sumária proferida no âmbito dos presentes
autos, vem da mesma reclamar para a conferência.
Disse, no seu requerimento:
1. A dimensão dos direitos fundamentais acolhida na decisão em causa, afigura-se
como manifestamente redutora da dimensão humana, do direito de personalidade e
do direito à honra.
2. Com efeito, afigura-se que o facto de o cidadão ser sujeito a julgamento,
estar presente no banco dos réus, e comparecer em juízo são actos que se
afiguram como de todo inócuos, do ponto de vista da avaliação dos direitos,
liberdades e garantias dos cidadãos — o que só pode significar um total e
completo afastamento do mais elementar sentir dos cidadãos.
3. A sujeição a julgamento é, para qualquer bonus pater familias, um vexame –
por alguma razão, uma e outra vez os cidadãos que comparecem a juízo, mesmo como
testemunhas referem o amargo da sua comparência a juízo, e na condição de
arguido, este sentimento é ainda mais gravoso, tanto mais que, a absolvição após
o julgamento, não tem qualquer efeito de reparação sobre o cidadão sujeito a
julgamento.
4. Mais, a maioria das questões prévias ou incidentais, apenas são suscitadas em
processo, precisamente como meio de evitar maior ofensa ao cidadão ― a sujeição
a julgamento; É por esta razão que se requerem as aberturas de instrução, é por
esta razão que se suscitam as questões instrumentais, prévias ou incidentais,
que, não obstante serem incidentais ou prévias, não deixam de revestir o elenco
das garantias de defesa dos cidadãos.
5. Ora, considerar-se que, as garantias de defesa do cidadão, nomeadamente o
direito ao recurso não se encontra beliscado, se se postergar para após a
sentença tal direito, ou seja, se o recurso das questões for apenas conhecido
após a sentença, nada se garantiu ao cidadão, porque este não se pode defender
contra a sua sujeição a julgamento
6. É para o comum dos cidadãos manifesto que, se na lei anterior podiam
recorrer, e com efeito suspensivo, das questões prévias ou incidentais
suscitadas na instrução, e na nova lei não o podem fazer, apenas o podendo fazer
a final, as suas garantias de defesa se encontram diminuídas, de forma sensível.
2. A decisão sumária reclamada tem a seguinte fundamentação:
4. Face ao esclarecimento prestado pelo Recorrente, constitui objecto do recurso
a interpretação dos artigos 5.º, n.ºs 1 e 2, e 310.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal, segundo a qual o regime de recursos da decisão instrutória
previsto pela lei nova e é imediatamente aplicável na medida em que esta norma
não preclude o direito de defesa, limitando-se a introduzir uma “dilação” do
direito ao recurso para o momento posterior à sentença, não ocorrendo, assim, um
agravamento sensível e evitável da situação processual do arguido, nomeadamente
uma limitação do seu direito de defesa.
4.1. Este foi, com efeito, o critério decisório que norteou o despacho da Exma.
Vice-Presidente da Relação do Porto que, em sede de reclamação, confirmou a não
admissão do recurso tentado interpor de despacho instrutório que pronunciou o
arguido pelos factos da acusação do Ministério Público.
4.2. Como é sabido, o controlo da interpretação das normas de direito ordinário
aplicáveis ao caso concreto escapa à esfera de competências do Tribunal
Constitucional em sede de fiscalização concreta. Essa interpretação surge assim
como um dado imutável a partir do qual este Tribunal apreciará as questões
normativas que integrem o objecto do recurso de constitucionalidade.
4.3. Importa, portanto, analisar a interpretação efectuada das normas citadas de
modo a aferir da sua compatibilidade com a Lei Fundamental. Entendeu o Tribunal
da Relação que a irrecorribilidade prescrita pelo artigo 310.º, n.º 1, do Código
de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de
Agosto, tem como efeito a dilação do recurso para momento posterior ao da
prolação da sentença. Assim, nesta interpretação, a questões suscitadas pelo
Recorrente – relacionadas com a eventual nulidade da notificação prevista na
redacção actual do artigo 105.º, do RGIT – poderão ser objecto de ulterior
apreciação no recurso que eventualmente venha a ser interposto da decisão final.
5. Resta saber se este entendimento comporta um agravamento sensível da situação
processual do arguido, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do Código de Processo
Penal, em termos de ferir a garantia constitucional do direito de defesa, como
sustenta o Recorrente.
5.1. O Tribunal Constitucional tem reiteradamente sustentado que, na
determinação e modelação do regime dos recursos, assiste ao legislador ampla
margem de conformação desde que respeitados os ditames constitucionais. No que
respeita à dilucidação do conteúdo normativo concretizado por tais parâmetros, a
jurisprudência constitucional é uniforme no sentido de que o direito ao recurso
é constitucionalmente garantido quando se trate de decisões em que esteja em
causa eventual privação ou restrição da liberdade ou de qualquer outro direito
fundamental (cfr. por todos, o Acórdão n.º 265/94, publicado no Diário da
República, II Série, de 19 de Julho de 1994). Aliás, a revisão constitucional
operada pela Lei Constitucional n.º 1/97 consagrou, de forma expressa, o direito
ao recurso em processo criminal, na esteira do que vinha já sendo afirmado pelo
Tribunal Constitucional.
5.2. Não significa isto que todo e qualquer acto judicial deva ser, à luz da
Constituição, susceptível de recurso. De facto, a irrecorribilidade de certas
decisões não implica, automaticamente, a violação do direito constitucional de
defesa consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental, podendo, ao invés,
visar a realização de outros interesses fundamentais, tal como a celeridade na
aplicação da justiça, que se impõem, com particular incidência, no âmbito do
processo penal, como preceitua o artigo 32.º, n.º 2, in fine (cfr., nesse
sentido, Acórdão n.º 216/99,).
Atente-se no seguinte excerto do Acórdão n.º 216/99, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, com inteira aplicabilidade à situação sub
juditio:
“Como se escreveu no acórdão nº 101/98 (inédito) deste Tribunal, a intenção do
legislador constituinte não foi ‘significar que haveria de ser consagrada, sob
pena de inconstitucionalidade, a recorribilidade de todas as decisões
jurisdicionais proferidas em processo criminal, mas sim que do elenco das
garantias de defesa que tal processo há-de assegurar se contará a possibilidade
de impugnação das decisões judiciais de conteúdo condenatório, na esteira do que
já era entendido pela jurisprudência deste órgão de fiscalização (veja-se
também, no mesmo sentido, o acórdão nº 299/98, inédito). O arguido pode sempre,
pois, recorrer da decisão condenatória que lhe seja dirigida, e aí contestar
todos os vícios que derivem de uma má apreciação de qualquer questão
interlocutória.”
5.3. Este aresto tratou a questão da compatibilidade do artigo 310.º, n.º 1, do
Código de Processo Penal, na redacção então em vigor, na interpretação segundo a
qual a irrecorribilidade aí estabelecida para a decisão instrutória que
pronunciasse o arguido pelos factos constantes da acusação pública abrangia
também o segmento de tal decisão que dirimisse questões prévias ou incidentais.
Esta é precisamente a interpretação normativa contestada nos autos conjugada com
o problema da aplicação imediata da nova lei processual.
5.4. Assim, desde que se salvaguarde a possibilidade de recurso da decisão
final, no qual possam ainda ser contestados todos os vícios eventualmente
imputáveis a uma questão interlocutória, não se afere qualquer violação do
núcleo fundamental dos direitos de defesa em processo penal, como entendeu
igualmente o Tribunal Constitucional no aresto citado.
6. Conclui-se, portanto, que, ao invés do que sustenta o Recorrente, não se
verifica qualquer agravamento sensível da situação processual do arguido em
termos de daí resultar uma limitação do seu direito de defesa. Da interpretação
adoptada deriva, tão-somente, a aplicação do novo regime em termos de adiar para
um momento posterior – em sede de recurso da decisão final – a apreciação das
questões que o Recorrente pretendia imediata. E isto contende apenas com a
conformação do regime legal dos meios impugnatórios de decisões judiciais que,
não implicando qualquer ofensa do núcleo fundamental das garantias de defesa do
arguido, cai inteiramente no espaço conformativo do legislador, consubstanciando
opção de política legislativa cuja sindicância não tem lugar em sede de
fiscalização da constitucionalidade.”
3. O Ministério Público pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A reclamação deduzida carece de fundamento.
Reiterando o que foi dito na decisão sumária reclamada, “Da interpretação
adoptada deriva, tão-somente, a aplicação do novo regime em termos de adiar para
um momento posterior – em sede de recurso da decisão final – a apreciação das
questões que o Recorrente pretendia imediata. E isto contende apenas com a
conformação do regime legal dos meios impugnatórios de decisões judiciais que,
não implicando qualquer ofensa do núcleo fundamental das garantias de defesa do
arguido, cai inteiramente no espaço conformativo do legislador, consubstanciando
opção de política legislativa cuja sindicância não tem lugar em sede de
fiscalização da constitucionalidade.”
5. O Recorrente pretende sustentar que a alteração do regime de recurso
aplicável à hipótese em análise colide com o seu “direito a não ser submetido a
julgamento.”. O Tribunal Constitucional tem entendido, todavia, embora com votos
de vencido, que a Constituição da República não pretende garantir um direito a
não ser submetido a julgamento e, ainda que assim fosse, não decorre – nem
poderia decorrer – a exigência constitucional de recorribilidade de todas as
decisões judiciais que antecedem a fase de julgamento. Como se escreveu no
Acórdão n.º 610/96, publicado no Diário da República, II Série, de 6 de Julho de
1996, “se a protecção do interesse em não ser submetido a julgamento é a função
última da própria fase instrutória, a confirmação pelo juiz de instrução dos
termos de acusação do Ministério Público não deixa prevalecer (em abstracto)
esse interesse sobre a necessidade de valorar a existência (já controlada pelo
juiz de instrução) de fortes indícios de que resulta uma razoável possibilidade
de ao arguido vir a ser aplicada pena ou medida de segurança.”
6. Não resultando, por conseguinte, da norma que determina a irrecorribilidade
da decisão instrutória, que, ao determinar a pronúncia pelos factos constantes
da acusação, decide questões prévias ou incidentais, a violação das garantias de
defesa, nomeadamente da presunção de inocência e do direito ao recurso, a
aplicabilidade imediata da lei nova que estabelece tal regime processual,
correspondendo a uma legítima opção político-legislativa, não merece censura do
ponto de vista constitucional.
Assim,
III – Decisão
7. Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido de negar provimento ao recurso.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 25 de Setembro de 2008
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos