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Processo n.º 758/08
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
EM CONFERÊNCIA DA 1ª SECÇÃO ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I.
Relatório:
1. Notificado do acórdão proferido em 28 de Maio de 2008 no Supremo
Tribunal de Justiça pelo qual improcedeu o recurso interposto – e assim lhe
manteve a pena de 6 anos de prisão que, em cúmulo, lhe fora fixada –, dele
recorre para o Tribunal Constitucional o arguido A. nos seguintes termos: '[...]
não se podendo conformar com o teor do acórdão, vem [...] interpor recurso do
mesmo , nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 75º da Lei n.º 28782 de 15
de Novembro, para o Tribunal Constitucional, o qual sobe imediatamente nos autos
e com efeito suspensivo.'
O recorrente apresentou imediatamente a motivação deste recurso, na qual
conclui:
III - CONCLUSÕES
1. O princípio da presunção da inocência é antes de mais um princípio natural,
lógico, de prova.
2. Todo o processo nasce a partir de uma dúvida e dados os limites do
conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida permanece a final,
malgrado o esforço para a superar.
3. Neste caso, o princípio da presunção da inocência imporá a absolvição, já
que, sendo a condenação penal e a pena um castigo destinado a resgatar a culpa e
a ressocializar o delinquente, é inaceitável que seja condenado sem que haja a
certeza moral da culpabilidade a redimir.
4. A livre valoração da prova pelo tribunal não pode ser entendida como uma
operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por
meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação.
5. Deve, tratar-se, ao invés, de uma valoração racional e crítica, de acordo com
as regras comuns da lógica, da razão, da experiência e dos conhecimentos
científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma
efectiva motivação da decisão.
6. A apreciação global da prova que se mostra transcrita e que pode ser
confirmada mediante audição da prova gravada, permite-nos pôr em crise a
factualidade tida por assente pelo tribunal a quo e demonstrar que existe um non
liquet na questão da prova.
7. O tribunal a quo inverteu o ónus da prova, ao considerar que os
estupefacientes encontrados no veículo do outro arguido eram seus e com destino
à venda.
8. Não existem no processo quaisquer elementos de prova que demonstrem tal
facto.
9. O tribunal a quo ignorou, por completo, o depoimento dos agentes da P.S.P.,
e, principalmente, o depoimento do agente B., o qual demonstrou isenção e rigor
no depoimento e na descrição dos factos que presenciou.
10. Podemos, ainda, afirmar que o tribunal a quo, perante a dúvida, e a
requerimento do arguido C., fez acareação entre os agentes da P.S.P., tendo
estes demonstrado que não havia qualquer contradição.
11. O seu depoimento foi claro e demonstrativo de que a posse da cocaína
apontava para o arguido C..
12. A situação de non liquet surgiu na audiência de julgamento.
13. De facto, a conclusão de que as 44,720 grs. de cocaína eram do recorrente,
que o mesmo a colocou no porta-luvas do veículo do arguido C., e que se
destinavam à venda a terceiros não se baseia em qualquer elemento de prova
constante nos autos.
14. O tribunal a quo, confrontado com a dúvida de quem era a cocaína — esta
dúvida existiu, assumiu uma posição arbitrária e discricionária, concluindo que
a mesma era do recorrente, apenas porque o seu depoimento não foi convincente e
que já tinha sido condenado, por diversas vezes, como traficante de
estupefacientes.
15. Verifica-se aqui uma situação em que o tribunal, confrontado com a dúvida,
não valorou a prova a favor do arguido, condenando-o e violando o princípio in
dubio pro reo.
16. É notório que o tribunal não decidiu com a firme certeza que a lei lhe
exige.
17. Ora, quando a prova produzida, depois de avaliada segundo as regras de
experiência e a liberdade de apreciação da prova, conduziu à subsistência no
espírito do tribunal de uma dúvida positiva sobre a existência ou inexistência
do facto, impõe-se ao tribunal que aplique o princípio in dubio pro reo,
corolário do princípio constitucional da presunção da inocência.
18. O tribunal ad quem deve valorar a prova dos autos e aplicar o princípio do
in dubio pro reo.
19. Verificamos, pois, em face do supra alegado, que o acórdão, ao condenar o
recorrente, violou o equilíbrio existente entre o princípio da presunção da
inocência e o princípio da livre apreciação a prova.
20. De facto, perante uma situação em que não existe prova que permita concluir
que a cocaína era do recorrente e que este a destinava à venda a terceiros —
tais factos surgem de meras conclusões, somos obrigados a concluir que existe
violação do princípio da livre apreciação da prova.
21. Daqui resulta, entre outras consequências, a inadmissibilidade de qualquer
espécie de “culpabilidade por associação” ou “colectiva” e que todo o acusado
tenha direito de exigir prova da sua culpabilidade no seu caso particular.
22. A presunção da inocência é também uma importantíssima regra sobre a
apreciação da prova, identificando-se com o princípio in dubio pro reo, no
sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a
favor do arguido.
23.A livre apreciação da prova não pode ir para além dos factos que são
apresentados ao tribunal, não pode assentar numa predisposição mental anterior à
apresentação dos factos.
24. Quando isso não é possível, por existirem situações de non liquet na questão
da prova, o tribunal deve inibir-se de aplicar extensivamente o princípio da
livre apreciação da prova e retirar conclusões com base numa experiência que,
num determinado caso, irá conduzi-lo a uma leitura errónea e falsa dos factos
apresentados.
25. O princípio da livre apreciação da prova, quando aplicado de forma extensiva
entra em choque directo com o princípio da presunção da inocência, pois entra na
atmosfera da dúvida e da falta de uma firme certeza.
26. Esta é a situação que qualifica o acórdão sob censura.
27. Deu-se como provado que a cocaína era do recorrente; no entanto, não existem
quaisquer provas que revelem que o mesmo a tinha – ninguém viu – ou que a tenha
colocado no interior do porta-luvas do veículo do arguido C. – que nada viu ou
ouviu.
28. Estes espaços em branco ou em suspenso foram preenchidos através de um
raciocínio conclusivo, sustentado apenas pelo facto do tribunal não valorar a
versão apresentada pelo recorrente.
29. Nessa medida, e caso o tribunal ad quem assim não o entenda, o que só por
mera hipótese académica se admite, qual ultima ratio regum, verificamos que a
acórdão sob censura padece de uma inconstitucionalidade, que só agora se argúi,
por constituir decisão surpreendente e anómala.
30. Com tal entendimento, o aresto interpretou o artigo 32º, nº 2, da
Constituição de forma restritiva, cerceando e comprimindo, de forma
injustificada, o direito, constitucionalmente consagrado, que lhe é inerente.
31. E interpretou o artigo 127º do Código de Processo Penal de forma extensiva,
o que restringe o princípio da presunção da inocência.
32. Verifica-se, pois, que o acórdão sob censura padece de uma
inconstitucionalidade.
33. Pelo que se requer a apreciação da constitucionalidade da norma constante no
nº 2 do artigo 32º da Constituição, quando apreciada no sentido restritivo,
sendo essa restrição motivada pela aplicação extensiva do princípio da livre
apreciação da prova, ou seja, quando não existe prova concreta e rigorosa que
permita afastar o princípio do in dubio pro reo.
34. Bem como se requer a apreciação da constitucionalidade da norma constante no
n.º 2 do artigo 32º da Constituição, quando apreciada no sentido de se verificar
no acórdão condenatório ter invertido o ónus da prova.
35. O acórdão, ao não relevar o relatório social no sentido de que a
socialização do recorrente se encontra conseguida e que uma atenuação especial
da pena, mormente a aplicação de pena privativa de liberdade, suspensa na sua
execução, poderia preencher a necessidade de protecção dos bens jurídicos, de
forma adequada e proporcional, e o objectivo final de reintegração do agente na
sociedade.
36. Verifica-se, pois, que o acórdão sob censura padece de uma
inconstitucionalidade.
37. Pelo que se requer a apreciação da constitucionalidade da norma constante no
nº 2 do artigo 18º da Constituição, quando apreciada no sentido restritivo,
sendo que essa restrição afasta um dos objectivos da aplicação da pena – a
reintegração do agente na sociedade, ou seja, será constitucional aplicar uma
pena privativa de liberdade quando estamos perante uma realidade em que o agente
já se encontra reintegrado, com um ambiente familiar equilibrado, uma situação
profissional, crendo-se que poderão existir condições para que este possa dar
continuidade a um projecto de vida socialmente integrado?
38. O acórdão sob censura violou, entre outras, os artigos 18º, n.º 2, e 32º, nº
2 e nº 5, da Constituição da República Portuguesa.
39. Por todo o exposto, e pelos fundamentos invocados, deve conceder-se
provimento ao presente recurso, revogando o acórdão recorrido, que deverá ser
substituído por outro que absolva o recorrente ou, caso assim não entenda, actue
de acordo com o supra exposto.
TERMOS em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, por assim ser
de inteira JUSTIÇA.
2. Todavia, o recurso não lhe foi admitido no Supremo Tribunal de Justiça, por
despacho do seguinte teor:
“O arguido vem interpor recurso do acórdão deste STJ para o Tribunal
Constitucional.
Contudo, é patente que o recorrente não impugna a constitucionalidade de
qualquer norma que haja sido aplicada, como é imposto pelo art. 70 da LTC.
O recorrente impugna, sim, a decisão recorrida, por ser inconstitucional, em seu
entender.
Nestes termos, por não se verificar o condicionalismo do art. 70.º da LTC, não
recebo o recurso interposto”.
3. Inconformado, o recorrente reclama dessa decisão para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 76.º n.º 4 da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro (LTC), nos seguintes termos:
“1. O Colendo Supremo Tribunal de Justiça, no uso das suas atribuições,
determinou o não recebimento do recurso interposto, porquanto não se verifica o
condicionalismo previsto no art. 70º da LTC.
2. Com o devido respeito, a defesa não concorda com tal decisão.
3. Em primeiro lugar, determina o art. 70º, n.º 1, al. b), que cabe recurso para
o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais que apliquem
norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
4. Em segundo lugar, o n.º 2 da mesma norma determina que o recurso previsto na
al. b) do n.º 1 apenas cabe de decisões que não admitam recurso ordinário, por a
lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam.
5. Ora, apud acta verificamos que, quer no recurso para o Tribunal da Relação de
Lisboa, quer para no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente
suscitou várias questões de inconstitucionalidade, derivadas de uma errónea
aplicação dos arts. 32º, n.º 2 e n.º 5, ambos da CRP, art. 127º do CPP, e de uma
omissão do princípio estipulado no art. 18º, n.º 2, da CRP.
6. É opinião do recorrente que ambos os tribunais a quo interpretaram o art.
32º, n.º 2, da CRP de forma restritiva, cerceando e comprimindo, de forma
injustificada, o direito, constitucionalmente consagrado, que lhe é inerente.
7. O que lhes está constitucionalidade vedado pelo art. 18º, n.º 2, da CRP.
8. Bem como interpretou o art. 127.º do CPP de forma extensiva, o que restringe
automática e inevitavelmente, o princípio da presunção da inocência.
9. Em suma, existiu uma inversão do princípio da presunção da inocência.
10. A defesa considera que a interpretação realizada pelos tribunais a quo às
normas descritas violou o equilíbrio existente entre o princípio da presunção da
inocência e o princípio da livre apreciação da prova, decorrente daí a
inconstitucionalidade que ora se argúi e que melhor se alegará.
11. Existe, pois, inconstitucionalidade da decisão na aplicação restritiva do
art. 32º, n.º 2, da CRP, e na aplicação extensiva do art. 127º do CPP.
12. A aplicação das referidas normas, que a defesa considera inconstitucional,
viola o equilíbrio prescrito no art. 18º, n.º 2, da CRP.
13. Esta inconstitucionalidade foi invocada e consta no requerimento de
interposição do recurso para o Tribunal Constitucional.
14. Carece, assim, razão ao despacho que recusou o recebimento do recurso.
15. Acresce que o conhecimento da questão de inconstitucionalidade submetida
pelo recorrente ao Tribunal Constitucional tem um interesse superior para o
ordenamento jurídico português e para o delinear das fronteiras que acercam os
direitos, liberdades e garantias do arguido, mormente o princípio da presunção
da inocência, na medida em que uma cuidada e maturada análise dos presentes
autos irá demonstrar uma inversão do princípio da presunção da inocência”.
4. O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional pronuncia-se
pela improcedência da reclamação.
II.
Fundamentação:
5. Os recursos interpostos ao abrigo do disposto do n.º 1 do artigo
70.º da LTC, tendo por objecto a fiscalização concreta da inconstitucionalidade,
têm natureza normativa. Por essa razão, deve aceitar-se que escapa competência
ao Tribunal Constitucional para sindicar directamente as decisões dos tribunais
e avaliar estas decisões no que se reporta à selecção da matéria de facto, à
escolha do direito aplicável e à sua subsunção ao caso concreto. Com efeito,
conforme o Tribunal tem repetidamente afirmado, a sua competência, nestes
recursos, cifra-se na questão de inconstitucionalidade normativa, ou seja,
resume-se a analisar a conformidade constitucional de norma ou normas
efectivamente aplicadas na decisão recorrida como sua ratio decidendi.
Acontece que, conforme se retira das conclusões da motivação
apresentada, o recorrente não impugna a conformidade constitucional de qualquer
norma que haja sido aplicada pela decisão recorrida; as questões de
inconstitucionalidade que suscita são referidas directamente à decisão
recorrida.
Tal conclusão é reforçada pelo teor da reclamação onde textualmente se afirma
que 'a interpretação realizada pelos tribunais a quo às normas descritas violou
o equilíbrio existente entre o princípio da presunção da inocência e o princípio
da livre apreciação da prova, decorrente daí a inconstitucionalidade que ora se
argúi e que melhor se alegará. Existe, pois, inconstitucionalidade da decisão na
aplicação restritiva do art. 32º, n.º 2, da CRP, e na aplicação extensiva do
art. 127º do CPP.'
É, por isso, inequívoco que o recorrente pretende obter a apreciação da própria
decisão recorrida, tarefa que não cabe nas atribuições do Tribunal
Constitucional.
O recurso não reúne, em suma, os indispensáveis pressupostos, pelo que o
respectivo requerimento de interposição deve ser, como efectivamente foi,
indeferido.
III.
Decisão:
6. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação
apresentada. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de Justiça em 20 UC.
Lisboa, 28 de Outubro de 2008
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Gil Galvão