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Processo n.º 412/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A., SA, e B. apresentaram reclamação para a
conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26
de Fevereiro (LTC), contra a decisão sumária do relator, de 1 de Julho de
2008, que decidiu, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 desse preceito,
não conhecer do objecto do recurso.
1.1. A referida decisão sumária tem a seguinte
fundamentação:
“1. A., SA, e B. interpuseram recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da [LTC],
contra o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13 de Fevereiro de 2008,
que negou provimento a recursos por elas deduzidos contra dois despachos da
juíza de instrução criminal: o despacho que desatendeu reclamação contra
decisão que indeferira diligências de prova; e a decisão instrutória, na parte
relativa a questões prévias e incidentais e a nulidades da própria decisão
instrutória.
De acordo com o requerimento de interposição do recurso, este visa
apreciar a inconstitucionalidade das seguintes normas:
«a) A (in)constitucionalidade do artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006,
de 29 de Dezembro (que aprovou o Orçamento Geral do Estado para 2007), em
conjugação com o n.º 4 do artigo 105.º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, que
contém o ‘Regime Geral das Infracções Tributárias’ (RGIT), quando interpretada
no sentido de que a mesma não implica a descriminalização/despenalização das
omissões de entrega de prestações tributárias comunicadas à Administração
Fiscal que, até 31 de Dezembro de 2006, já se tinham constituído em infracção
criminalmente punível – por violação dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, 27.º,
29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa;
e/ou, em formulação distinta, mas substancialmente equiparada,
b) A (in)constitucionalidade do n.º 4 do artigo 105.º da Lei n.º
15/2001, de 5 de Junho, que contém o ‘Regime Geral das Infracções Tributárias’
(RGIT), na versão que lhe foi dada pelo artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de 29
de Dezembro (que aprovou o Orçamento Geral do Estado para 2007), quando
interpretada no sentido de que os comportamentos consistentes nas omissões de
entrega de prestações tributárias comunicadas à Administração Fiscal que, até 31
de Dezembro de 2006, já se tinham constituído em infracção criminalmente punível
continuam a ser criminalmente puníveis – por violação dos artigos 1.º, 2.º,
18.º, n.º 2, 27.º, 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa;
c) A (in)constitucionalidade do artigo 2.º, n.º 2 e/ou n.º 4, do
Código Penal quando interpretado no sentido de que a exigência de notificação
prévia introduzida pelo artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro (que
aprovou o Orçamento Geral do Estado para 2007), no n.º 4 do artigo 105.º da Lei
n.º 15/2001, de 5 de Junho, que contém o ‘Regime Geral das Infracções
Tributárias’ (RGIT) (quer a mesma seja entendida como a introdução de uma nova
condição objectiva de punibilidade ou elemento constitutivo da norma
incriminadora, sendo certo que o efeito descriminalizador se verifica quer se
trate de um caso ou de outro) não determina a descriminalização das condutas em
causa (neste caso, a conduta em causa consiste nas omissões de entrega de
prestações tributárias comunicadas à Administração Fiscal que, até 31 de
Dezembro de 2006, já se tinham constituído em infracção criminalmente punível)
– por violação dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, 27.º, 29.º e 32.º da
Constituição da República Portuguesa;
d) A (in)constitucionalidade do artigo 105.º do RGIT quando
interpretado no sentido de que o conceito de apropriação e de culpa não
relevam para efeitos da verificação do crime de abuso de confiança fiscal – por
violação dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, e 27.º da Constituição da República
Portuguesa (bem como do artigo 1.º do Protocolo 4 adicional à CEDH);
e) A (in)constitucionalidade do artigo 303.º do Código de Processo
Penal quando interpretado no sentido de que a verificação e consideração pelo
Tribunal de factos relativos a uma nova condição de punibilidade não constantes
da acusação não deve implicar a concessão aos arguidos de um prazo de defesa
relativamente a tais factos (não constantes da acusação) – por violação do
artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa;
f) A inconstitucionalidade do artigo 291.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal quando interpretado no sentido de ser permitido o indeferimento
de diligências de prova indicadas no requerimento de abertura de instrução com
outros fundamentos que não os aí expressamente previstos ou no sentido de ser
permitido que o interesse das diligências de prova para a instrução seja aferido
subjectivamente, segundo o ponto de vista e o critério do Juiz de Instrução, e
não objectivamente, segundo os elementos em presença, nomeadamente os dos autos
– por violação dos artigos 60.º, 61.º (maxime alínea f)), 287.º, n.º 1, alínea
a), 288.º, n.º 4, 289.º, n.º 1, 290.º, n.º 1, e 291.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal e 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, 27.º, 29.º e 32.º da Constituição
da República Portuguesa;
g) A inconstitucionalidade do artigo 301.º, n.º 3, do Código de
Processo Penal quando interpretado no sentido de que a natureza indiciária das
provas pode ser apreciada subjectivamente, segundo o ponto de vista e o critério
do Juiz de Instrução, e não objectivamente, segundo os elementos em presença,
nomeadamente os dos autos – por violação dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2,
20.º, 27.º, 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa;
h) A inconstitucionalidade do artigo 310.º do Código de Processo
Penal quando interpretado no sentido de que não integra a categoria de
‘nulidade, questão prévia ou incidental’, susceptível de ser apreciada pelo
Tribunal da Relação em recurso interposto da decisão instrutória, a questão de
uma eventual despenalização/descriminalização das condutas imputadas a um
arguido, não obstante tal questão poder conduzir à extinção do procedimento
criminal – por violação dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, 27.º, 29.º e 32.º da
Constituição da República Portuguesa.»
De acordo com o mesmo requerimento, as questões de
inconstitucionalidade foram suscitadas pelas recorrentes: (i) as referidas nas
alíneas a), b), f) e g): na motivação dos recursos para o Tribunal da Relação do
Porto e na resposta ao parecer do Ministério Público; (ii) a referida na alínea
c): na motivação dos recursos para o Tribunal da Relação do Porto; (iii) a
referida na alínea d): no requerimento de abertura de instrução, na motivação
dos recursos para o Tribunal da Relação do Porto e na resposta ao parecer do
Ministério Público; e (iv) a referida na alínea e): no debate instrutório e na
motivação dos recursos para o Tribunal da Relação do Porto. Quanto à
inconstitucionalidade referida na alínea h), aduzem as recorrentes que,
resultando a mesma «de interpretação, expressa no douto acórdão recorrido, de
norma que, de surpresa, foi invocada pelo Tribunal da Relação do Porto para
limitar o ‘âmbito’ do recurso», ela «não foi, nem podia ser, invocada
anteriormente porquanto a mesma surge, como questão autónoma, com o douto
acórdão recorrido e com base nos entendimentos nele expressos, entendimentos
que, por um lado, são ‘insólitos’ e ‘imprevisíveis’ e que, por outro lado,
contrariam o único sentido compatível do texto normativo».
O recurso foi admitido por despacho de 4 de Abril de 2008 do
Desembargador Relator do Tribunal da Relação do Porto, decisão que, como é
sabido, não vincula o Tribunal Constitucional (n.º 3 do artigo 76.º da LTC); e,
de facto, entende‑se que o presente recurso é inadmissível, o que determina o
não conhecimento do seu objecto e possibilita a prolação de decisão sumária ao
abrigo do n.º 1 do artigo 78.º‑A da LTC.
2. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a
competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas,
hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o
sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de
inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si
mesmas consideradas, ou a condutas ou omissões processuais.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua
admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão
de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo
72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio
decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente. Aquele primeiro requisito (suscitação da questão de
inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a
decisão impugnada) só se considera dispensável nas situações especiais em que,
por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota
com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo
excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade
processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a
decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que
suscitasse então a questão de constitucionalidade.
Acresce que, quando o recorrente questiona a conformidade
constitucional de uma interpretação normativa, deve identificar essa
interpretação com o mínimo de precisão, não sendo idóneo, para esse efeito, o
uso de fórmulas como «na interpretação dada pela decisão recorrida» ou
similares. Com efeito, constitui orientação pacífica deste Tribunal a de que
(utilizando a formulação do Acórdão n.º 367/94) «ao suscitar‑se a questão de
inconstitucionalidade, pode questionar‑se todo um preceito legal, apenas parte
dele ou tão‑só uma interpretação que do mesmo se faça. (...) [E]sse sentido
(essa dimensão normativa) do preceito há‑de ser enunciado de forma que, no caso
de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua
decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os
operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido
com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a
Constituição.»
3. Recordados estes critérios, cumpre analisar a situação que emerge
dos presentes autos.
As ora recorrentes interpuseram dois recursos para o Tribunal da
Relação do Porto, tendo o primeiro recurso por alvo o despacho do juiz de
instrução criminal que não atendera reclamação contra despacho que indeferira a
realização de diligências de prova por elas requeridas, bem como desatendera a
arguição da correspondente nulidade, e o segundo recurso a «parte da decisão
relativa a questões prévias e incidentais e nulidades da própria decisão
instrutória».
O acórdão ora recorrido negou provimento a ambos os recursos, tendo
precedido a apreciação de cada um deles das seguintes considerações gerais:
«19. Ao tempo em que os recursos foram interpostos, a Lei previa já
restrições ao recurso da decisão instrutória – restrições que, actualmente, são
mais limitativas da possibilidade de recurso. Dizia, então, o artigo 310.º do
Código de Processo Penal: ‘1 – A decisão instrutória que pronunciar o arguido
pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível e
determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
2 – É recorrível o despacho que indeferir a arguição da nulidade cominada no
artigo anterior.’ (realce nosso)
20. A questão foi amplamente tratada pela jurisprudência criminal e
constitucional, não oferecendo agora dúvidas de interpretação e de aplicação. Na
verdade, o Assento n.º 6/2000 (Diário da República, n.º 56, Série I‑A, de 8 de
Março de 2000) veio alargar a possibilidade de recurso prevista pelo n.º 2 ‘às
demais questões prévias ou incidentais’ [vantagem que a actual redacção excluiu
expressamente]. Também o Tribunal Constitucional vem declarando não
inconstitucional a norma em causa, como é o caso, entre muitos outros, dos
Acórdãos n.ºs 610/96, 158/98 e 30/2001, todos em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/, acedidos em Janeiro último.
21. Para justificar esta restrição apontam‑se, fundamentalmente, duas
considerações. Por um lado, sendo a instrução uma fase de comprovação judicial
da decisão do inquérito em submeter, ou não, a causa a julgamento, deve a mesma
cingir‑se ao estritamente necessário para permitir esse juízo. É assim que, sem
cuidar de realizar um pré‑julgamento dos factos, o juiz de instrução criminal
deve ser célere e objectivo, restringindo a sua actividade apenas àquilo que se
lhe afigurar necessário para, com base no somatório dos indícios recolhidos
[inquérito e instrução] e dos debates travados, confirmar ou rejeitar a decisão
de submeter a causa a julgamento – artigos 288.º, n.º 4, 289.º, n.º 1, 291.º,
n.º 1, e 301.º, n.º 3, do Código de Processo Penal [de 1998].
22. Por outro lado, no reconhecimento dessa discricionalidade‑vinculada – e
para evitar delongas excessivas que retardam, e com isso perturbam, a
genuinidade da produção da prova em sede de julgamento [momento nobre da
justiça penal] e prejudicam a pessoa do arguido, prolongando a incerteza quanto
ao desfecho da acusação –, o citado artigo 291.º, n.º 1 [na versão anterior à
Revisão de Setembro último] determina: «1. (...) O juiz indefere, por despacho
irrecorrível, os actos requeridos que não interessarem à instrução e servirem
apenas para protelar o andamento do processo e pratica ou ordena
oficiosamente aqueles que considerar úteis, sem prejuízo da possibilidade de
reclamação.» [sublinhado nosso]
23. Também esta norma tem sido objecto de intensa jurisprudência que vem
confirmando, sem sobressaltos, a idoneidade constitucional do preceito – ver,
entre muitos, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 375/2000, 371/2000 e
176/2002, todos acedidos no mesmo sítio e ocasião.
24. Ou seja, apesar da amplitude da motivação do recurso, a apreciação deste
tribunal cinge‑se aos aspectos admitidos por lei e fixados pelo assento – a
saber: indeferimento de nulidade e questões prévias ou incidentais.
25. Vejamos, então, que ‘nulidades’ foram arguidas e indeferidas, e que
‘questões prévias ou incidentais’ se mostram passíveis de conhecimento em sede
de recurso, fazendo, para isso, um breve excurso pelas motivações apresentadas.»
Entrando, de seguida, na apreciação do primeiro recurso, lê‑se no
acórdão ora recorrido:
«26. Resulta do citado artigo 291.º, n.º 1, que o despacho que
indefere os actos de instrução requeridos é irrecorrível. Ora, se a lei
determina que o despacho é irrecorrível, admitindo apenas a oportunidade de
apresentação de reclamação – que foi decidida em consonância –, fácil é concluir
que não é admissível recurso do despacho que conheceu a reclamação [sob pena de
esvaziar de conteúdo o preceito normativo citado]. Como referimos, o Tribunal
Constitucional tem vindo a pronunciar‑se, sem sobressaltos, pela não
inconstitucionalidade do artigo citado [291.º]. Tanto assim que, hoje, a lei
assumiu a declaração expressa da irrecorribilidade do despacho que decidiu a
reclamação [ver actual redacção do n.º 2 do artigo 291.º].
27. E quanto à nulidade arguida? As recorrentes são muito precisas
na sua identificação: trata‑se da nulidade prevista pelo artigo 120.º, n.º 2,
alínea d), do Código de Processo Penal, que se traduz na ‘insuficiência do
inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente
obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar‑se
essenciais para a descoberta da verdade’. Está em causa a inquirição das
testemunhas que as recorrentes arrolaram, e que a juíza de instrução criminal
indeferiu com base na relevância da prova documental nos crimes em apreço e no
facto de as arguidas ‘não os negarem’ [aos crimes], alegando ‘essencialmente
“justificativas e atenuantes” e fazendo considerações de direito e conclusivas
que não são susceptíveis de prova testemunhal’ [fls. 118 e 110]. Ora, sendo
irrecorrível, nos termos da Lei, o despacho que indefere diligências não
obrigatórias de instrução, não pode o mesmo ser atacado pela via da arguição
de nulidade – nesse sentido, ver acórdãos da Relação do Porto, de 13 de
Dezembro de 2006 [Relatora: Maria do Carmo], processo 0615884, e de 18 de
Janeiro de 2006 [Relator: António Gama], processo 0543982, ambos in
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/Pesquisa+Campo?OpenForm, acedidos em Janeiro de
2008.
28. Mais uma vez, seria ultrapassar a restrição da lei invocando uma
mera nulidade. As recorrentes não podem, pela via da arguição de nulidade,
atacar um despacho que é irrecorrível. Segundo afirmam, existe a obrigação legal
de realização das diligências «requeridas» [fls. 195 destes autos]. Mas não é
verdade: a única obrigação legal é a da realização das diligências
obrigatórias; no mais, cabe ao juiz de instrução avaliar, caso a caso, se as
diligências [requeridas] interessam à instrução [artigo 291.º, n.ºs 1 e 2, do
Código de Processo Penal de 1998] e se se enquadram na natureza indiciária
típica desta fase [artigo 301.º, n.º 3, do Código de Processo Penal de 1998].
Foi essa avaliação que foi feita e explanada, dando origem ao despacho
irrecorrível proferido. Também nesta matéria a jurisprudência do Tribunal
Constitucional não apresentou qualquer censura [ver Acórdãos supracitados e os
mencionados nos acórdãos da Relação referidos].
29. Por outras palavras: não sendo, a instrução, tão simplesmente
uma fase ‘notarial’, como sugerem as recorrentes, a verdade é que também não é
uma fase de pura investigação criminal. É ao juiz de instrução – e não aos
sujeitos processuais – que incumbe, através de um juízo prudencial, aferir da
essencialidade ou não da produção de qualquer prova que seja requerida ou que
pretenda autonomamente realizar, no âmbito de uma fase processual que é
essencialmente garantística, e que visa apenas o controlo judicial da decisão do
Ministério Público de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a
submeter ou não a causa a julgamento.»
Quanto ao segundo recurso, o acórdão ora recorrido consignou o
seguinte:
«I – Interpretação dada à alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º, do
RGIT.
30. Como a própria designação deixa entender, trata‑se de uma
divergência de interpretação jurídica em torno de um preceito legal, actividade
que não suscitou, nem podia suscitar, a arguição de qualquer nulidade, nem
integra a categoria de uma questão prévia ou incidental. De todo o modo, fica o
registo de que a notificação efectuada [fls. 112 destes autos] segue a
interpretação maioritária da jurisprudência portuguesa, com relevo para a
unanimidade atingida no Supremo Tribunal de Justiça [por todos, ver os acórdãos
do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Março de 2007 (Relator: Henriques
Gaspar), processo n.º 06P4079,
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/Pesquisa+Campo?OpenForm, acedido em Janeiro de
2008, e de 7 de Fevereiro de 2007 (Relator: Santos Cabral), Colectânea de
Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2007, tomo I, p.
184).
II – Inconstitucionalidade resultante da interpretação segundo a
qual a apropriação e a culpa não revelam para efeitos da verificação do crime de
abuso fiscal.
31. É matéria absolutamente estranha ao âmbito legal deste recurso, como vimos
referindo – pelo que prejudicada está a questão suscitada.
III – Nulidade por omissão de uma diligência essencial para a descoberta da
verdade e respectiva constitucionalidade.
32. Referem-se as recorrentes à omissão, na acusação, do facto relativo à
notificação antes referida [a da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT].
Ora, a acusação não tem de o incluir – nem o despacho de pronúncia de o aditar.
Na verdade, o[s] artigo[s] 283.º [e 308.º] do Código de Processo Penal não
cont[ê]m referência expressa a aspectos desta natureza no conteúdo formal e
objectivo da acusação [ou do despacho de pronúncia].
33. Portanto, mais uma vez, a situação invocada não integra, de facto, qualquer
nulidade susceptível de permitir/exigir uma reapreciação por via de recurso –
nem a conjecturada ‘alteração substancial ou não substancial dos factos
descritos na acusação ou na pronúncia’.
IV – Nulidade por omissão de uma diligência essencial para a descoberta da
verdade e respectiva constitucionalidade.
34. Trata-se da mesma nulidade invocada no primeiro recurso – e já apreciada
[ver §§ 26 a 29].
V – Inconstitucionalidades.
35. Resta‑nos uma palavra sobre a sistemática invocação da
inconstitucionalidade de todo o entendimento contrário às teses pugnadas pelas
recorrentes. Como não é admissível o conhecimento das questões invocadas
[irrecorribilidade da decisão de pronúncia pelos factos constantes da acusação
do Ministério Público salvo tratando‑se de indeferimento da arguição de
nulidades, e questões prévias ou incidentais], impossibilitado está, também,
qualquer juízo de constitucionalidade concreta sobre as normas apontadas – para
além daquelas referências que foram sendo feitas ao longo do texto em apoio das
leituras admissíveis para os normativos processuais invocados e em que, como
vimos, nenhum alerta de inconstitucionalidade foi, até ao momento, deixado pelo
Tribunal Constitucional.»
Como resulta inequivocamente destas transcrições, o acórdão
recorrido não aplicou, como ratio decidendi, as «interpretações normativas»
indicadas nas alíneas a) a e) do requerimento de interposição de recurso de
inconstitucionalidade, pela elementar razão de ter considerado as
correspondentes questões estranhas ao âmbito legal do recurso admissível para a
Relação. Não tendo a decisão recorrida feito aplicação dessas «interpretações
normativas», é inadmissível o presente recurso na parte relativa a essas cinco
primeiras questões.
Similarmente, quanto às questões enunciadas nas alíneas f) e g) do
mesmo requerimento, o acórdão ora recorrido desatendeu o correspondente
«primeiro recurso» das recorrentes, decisivamente, por resultar do artigo 291.º,
n.º 1, do Código de Processo Penal a irrecorribilidade do despacho de
indeferimento de diligências de prova, nos termos aí previstos, não tendo,
assim, feito aplicação, como ratio decidendi, das «dimensões normativas» cuja
constitucionalidade integrava as 6.ª e 7.ª questões que as recorrentes
pretendiam ver apreciadas por este Tribunal e que, assim, não há que
conhecer.
Finalmente, quanto à última questão de inconstitucionalidade
referida no requerimento de interposição de recurso, as próprias recorrentes
reconhecem não a terem suscitado antes de proferido o acórdão recorrido.
Porém, ao contrário do que aduzem no sentido da irrelevância dessa falha, o
critério acolhido no acórdão recorrido não se pode considerar de todo insólito
e inesperado, em termos de dispensar as recorrentes do ónus da prévia
suscitação da questão de constitucionalidade. Ao que acresce que, na resposta do
Ministério Público, na 1.ª instância, à motivação dos recursos (fls. 145 a 154),
a que o representante dessa Magistratura na 2.ª instância aderiu (fls. 161),
foi justamente aventada a tese de que as questões respeitantes à eventual
descriminalização derivada da alteração de redacção do n.º 4 do artigo 105.º do
RGIT pela Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro, não respeitavam a nulidades ou
questões prévias e incidentais susceptíveis de impugnação pela via do recurso;
ora, as recorrentes tiveram oportunidade de responder, como efectivamente
responderam (fls. 168 a 179), a esse parecer, sem que tivessem suscitado – como
lhes cumpria – a questão de inconstitucionalidade que agora pretendem ver
apreciada. Não tendo suscitado, podendo tê‑lo feito, tal questão, dela não se
pode conhecer no âmbito do presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b)
do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Tanto basta para se decidir pelo não conhecimento, na totalidade, do
recurso interposto, sem necessidade de se entrar na apreciação de outras
possíveis causas de não conhecimento, como, por exemplo, a deficiente
identificação das interpretações normativas tidas por inconstitucionais, ou o
carácter manifestamente infundado, atenta a anterior jurisprudência deste
Tribunal, de algumas dessas questões.”
1.2. A reclamação das recorrentes desenvolve a seguinte
argumentação:
“IV – DOS ERROS DA DOUTA DECISÃO SUMÁRIA
a) A (in)constitucionalidade do artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de
29 de Dezembro (que aprovou o Orçamento Geral do Estado para 2007), em
conjugação com o n.º 4 do artigo 105.º da Lei n.° 15/2001, de 5 de Junho, que
contém o «Regime Geral das Infracções Tributárias» (RGIT) quando interpretada
no sentido de que a mesma não implica a descriminalização/despenalização das
omissões de entrega de prestações tributárias comunicadas à Administração
Fiscal que, até 31 de Dezembro de 2006, já se tinham constituído em infracção
criminalmente punível – por violação dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, 27.º,
29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa;
e/ou, em formulação distinta, mas substancialmente equiparada,
b) A (in)constitucionalidade do n.º 4 do artigo 105.º da Lei n.º
15/2001, de 5 de Junho, que contém o «Regime Geral das Infracções Tributárias»
(RGIT), na versão que lhe foi dada pelo artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de 29
de Dezembro (que aprovou o Orçamento Geral do Estado para 2007), quando
interpretada no sentido de que os comportamentos consistentes nas omissões de
entrega de prestações tributárias comunicadas à Administração Fiscal que, até 31
de Dezembro de 2006, já se tinham constituído em infracção criminalmente punível
continuam a ser criminalmente puníveis – por violação dos artigos 1.º, 2.º,
18.º, n.º 2, 27.º, 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa:
19. Esta inconstitucionalidade foi alegada pelas arguidas nas suas
alegações de recurso perante o Tribunal da Relação do Porto, bem como na
resposta ao douto parecer do Ministério Público (fls. 168‑179).
20. Sendo que, como se viu, na douta decisão sumária, o Ex.mo Senhor
Juiz Conselheiro Relator conclui não ser de conhecer nesta parte o objecto do
presente recurso em virtude de, alegadamente, o Tribunal da Relação do Porto ter
considerado estas questões estranhas ao âmbito legal do recurso admissível para
a Relação, o que, no seu entendimento, teria feito com que o Tribunal da Relação
não tivesse feito aplicação da mencionada «interpretação normativa».
21. Trata‑se, no entender das recorrentes, de uma errada apreciação
do Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator do acórdão da Relação e das normas
legais e constitucionais aplicáveis.
22. Isto porque não é correcto o entendimento de que o Tribunal da
Relação do Porto não tenha feito aplicação da mencionada interpretação
normativa.
23. Na verdade, se é certo que o Tribunal da Relação procura fugir à
apreciação dessa matéria (no que, no entender das recorrentes, representa uma
grave falha no cumprimento das suas obrigações de soberania), é indubitável que
não deixa de registar (a fls. 234) o seguinte: «…. fica o registo de que a
notificação efectuada [fls. 112 destes autos] segue a interpretação maioritária
da jurisprudência portuguesa, com relevo para a unanimidade atingida no Supremo
Tribunal de Justiça…»;
24. Ou seja, pese embora procurando aparentemente não decidir sobre
uma claríssima inconstitucionalidade normativa alegada pelas arguidas, o
Tribunal da Relação não deixou de registar que seguiu a aludida «interpretação
normativa» na sua apreciação.
25. Conforme Acórdãos n.ºs 88/86, 47/90 e 235/93, a aplicação da
norma tanto pode ser expressa como implícita, sendo que, também conforme o
Acórdão n.º 318/90, o não conhecimento por parte de um tribunal da
inconstitucionalidade de uma norma, quando podia e devia fazê‑lo, equivale à
aplicação implícita da mesma.
26. Sucede que, neste caso, é forçoso concluir‑se que o Tribunal da
Relação aplicou as normas em questão, e aplicou‑as na interpretação que se
alegou ser inconstitucional.
27. Em primeiro lugar, aplicou‑a porque essas normas estão mesmo no
epicentro dos presentes autos: o Tribunal da Relação, para poder concordar com o
Tribunal de Instrução, teve que analisar a norma pela qual foi introduzida na
nossa ordem jurídica a actual redacção do tipo legal pela qual as arguidas
foram acusadas e pronunciadas e teve que analisar a actual redacção do tipo
legal pela qual as arguidas foram acusadas e pronunciadas.
28. Negar que o Tribunal da Relação tenha apreciado e aplicado as
normas em causa é negar que o Tribunal da Relação se tenha debruçado sobre a
actual redacção do tipo legal pelo qual considera que as arguidas devem ser
julgadas.
29. O que, naturalmente, não faz qualquer sentido.
30. Em segundo lugar, o Tribunal da Relação aplicou as normas em
questão, na interpretação que se alegou ser inconstitucional, uma vez que das
mesmas só pode haver duas interpretações: ou se interpreta essas normas no
sentido de que as mesmas não implicam a descriminalização/despenalização das
omissões de entrega de prestações tributárias comunicadas à Administração Fiscal
que, até 31 de Dezembro de 2006, já se tinham constituído em infracção
criminalmente punível; ou se se interpreta essas normas no sentido de que as
mesmas implicam a descriminalização/despenalização das omissões de entrega de
prestações tributárias comunicadas à Administração Fiscal que, até 31 de
Dezembro de 2006, já se tinham constituído em infracção criminalmente punível.
31. Não havendo, assim, meio-termo que se possa equacionar.
32. Ora, em face do exposto, deve reconhecer‑se que o Tribunal da
Relação interpretou essas normas no sentido de que as mesmas não implicam a
descriminalização/despenalização das omissões de entrega de prestações
tributárias comunicadas à Administração Fiscal que, até 31 de Dezembro de 2006,
já se tinham constituído em infracção criminalmente punível.
33. Isto porque acaso tivesse interpretado essas normas que aplicou
em sentido oposto, isso significaria que, verificada que estava a
descriminalização/despenalização, teria decidido pela extinção do presente
procedimento criminal (conforme resulta do exposto no âmbito da alínea h) infra,
que aqui se dá por reproduzido).
34. Dado as causas de descriminalização/despenalização integrarem
indubitavelmente a categoria de «nulidade, questão prévia ou incidental»,
susceptível de ser apreciada pelo Tribunal da Relação em recurso interposto da
decisão instrutória, desde logo por se tratar de uma questão que, a obter
vencimento, levaria à extinção do procedimento criminal.
35. E não teria deixado o processo prosseguir, para além do mais
deixando expressamente registado o seu entendimento de que «… a notificação
efectuada [fls. 112 destes autos] segue a interpretação maioritária da
jurisprudência portuguesa, com relevo para a unanimidade atingida no Supremo
Tribunal de Justiça ...».
c) A (in)constitucionalidade do artigo 2.º, n.º 2 e/ou n.º 4, do
Código Penal quando interpretado no sentido de que a exigência de notificação
prévia introduzida pelo artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro (que
aprovou o Orçamento Geral do Estado para 2007), no n.º 4 do artigo 105.º da Lei
n.º 15/2001, de 5 de Junho, que contém o «Regime Geral das Infracções
Tributárias» (RGIT) (quer a mesma seja entendida como a introdução de uma nova
condição objectiva de punibilidade ou elemento constitutivo da norma
incriminadora, sendo certo que o efeito descriminalizador se verifica quer se
trate de um caso ou de outro), não determina a descriminalização das condutas em
causa (neste caso, a conduta em causa consiste nas omissões de entrega de
prestações tributárias comunicadas à Administração Fiscal que, até 31 de
Dezembro de 2006, já se tinham constituído em infracção criminalmente punível)
– por violação dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, 27.º, 29.º e 32.º da
Constituição da República Portuguesa:
36. Esta inconstitucionalidade foi alegada pelas arguidas nas suas
alegações de recurso perante o Tribunal da Relação do Porto.
37. Sendo que, como se viu, na douta decisão sumária, o Ex.mo Senhor
Juiz Conselheiro Relator conclui não ser de conhecer nesta parte o objecto do
presente recurso em virtude de, alegadamente, o Tribunal da Relação do Porto ter
considerado esta questão estranha ao âmbito legal do recurso admissível para a
Relação, o que, no seu entendimento, teria feito com que o Tribunal da Relação
não tivesse feito aplicação da mencionada «interpretação normativa».
38. Trata‑se, também aqui, no entender das recorrentes, de uma
errada apreciação do Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator do acórdão da Relação
e das normas legais e constitucionais aplicáveis.
39. Isto porque não é correcto o entendimento de que o Tribunal da
Relação do Porto não tenha feito aplicação da mencionada interpretação
normativa.
40. Na verdade, se é certo que o Tribunal da Relação procura fugir à
apreciação dessa matéria (no que, no entender das recorrente, representa uma
grave falha no cumprimento das suas obrigações), é indubitável que não deixa de
registar (a fls. 234) o seguinte: «… fica o registo de que a notificação
efectuada [fls. 112 destes autos] segue a interpretação maioritária da
jurisprudência portuguesa, com relevo para a unanimidade atingida no Supremo
Tribunal de Justiça…».
41. Ou seja, pese embora procurando aparentemente não decidir sobre
uma claríssima inconstitucionalidade normativa alegada pelas arguidas, o
Tribunal da Relação não deixou de registar que seguiu a aludida «interpretação
normativa» na sua apreciação.
42. Conforme Acórdãos n.ºs 88/86, 47/90 e 235/93, a aplicação da
norma tanto pode ser expressa como implícita, sendo que, também conforme o
Acórdão n.º 318/90, o não conhecimento por parte de um tribunal de
inconstitucionalidade de uma norma, quando podia e devia fazê‑lo, equivale à
aplicação implícita da mesma.
43. Sucede que, neste caso, é forçoso concluir‑se que o Tribunal da
Relação aplicou a norma em questão (artigo 2.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal), e
aplicou‑as na interpretação que se alegou ser inconstitucional.
44. Em primeiro lugar, aplicou‑a […] uma vez que é um facto público
e notório que o artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro (que
aprovou o Orçamento Geral do Estado para 2007) veio dar nova redacção ao n.º 4
do artigo 105.º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, que contém o «Regime Geral
das Infracções Tributárias» (RGIT).
45. Ou seja, verifica‑se que a disposição penal que é o epicentro
dos presentes autos teve (para o que aqui releva) duas redacções: uma, a
redacção vigente no momento da prática dos alegados factos; outra, a redacção
posterior, que veio a ser introduzida pelo artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de
29 de Dezembro (que aprovou o Orçamento Geral do Estado para 2007).
46. Consequentemente, em face destas duas redacções, o Tribunal da
Relação não tinha alternativa senão aplicar, como o fez, o artigo 2.º do Código
Penal, em ordem a determinar as consequências para o processo da alteração
legislativa verificada.
47. Negar que o Tribunal da Relação tenha apreciado e aplicado o
artigo 2.º do Código Penal é negar que o Tribunal da Relação se tenha debruçado
sobre o facto – público, notório, indubitável e relevantíssimo – de que se
verificou uma alteração legislativa que deu nova redacção ao tipo legal pelo
qual considera que as arguidas devem ser julgadas, e que não apreciou as
consequências dessa alteração legislativa (quer fossem entendidas como sua
consequência a descriminalização, quer a da aplicação do regime mais
favorável).
48. O que, naturalmente, não faz qualquer sentido.
49. Em segundo lugar, o Tribunal da Relação aplicou as normas em
questão, interpretação que se alegou ser inconstitucional.
50. É de recordar as palavras do Tribunal da Relação: «… fica o
registo de que a notificação efectuada [fls. 112 destes autos] segue a
interpretação maioritária da jurisprudência portuguesa, com relevo para a
unanimidade atingida no Supremo Tribunal de Justiça …».
51. Esta afirmada unanimidade atingida pelo Supremo Tribunal de
Justiça encontra‑se, por todos, reflectida no Acórdão de Fixação de
Jurisprudência n.º 6/2008: «... Entendem os defensores desta posição que, não
obstante a alteração do regime punitivo, o crime de abuso de confiança fiscal
se consuma com a omissão de entrega, no vencimento do prazo legal, da prestação
tributária e que, em sede de tipicidade, aquela lei orçamental nada alterou.
Todavia, ressalvam a aplicabilidade do disposto no artigo 2.º, n.º 4, do Código
Penal, uma vez que o regime actualmente em vigor é mais favorável para o agente.
(...) Esta posição tem sido uniformemente adoptada por este Supremo Tribunal de
Justiça nas sucessivas vezes que tem sido chamado a pronunciar‑se sobre a
questão objecto do presente acórdão ...» (realce nosso).
52. No qual, errada e inconstitucionalmente se considera estar
perante um caso de uma «nova condição objectiva de punibilidade que, por
aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos
ocorridos antes da sua entrada em vigor …».
53. Ora, em face do exposto, deve reconhecer‑se que o Tribunal da
Relação interpretou essas normas no sentido de que as mesmas não implicam a
descriminalização/despenalização das omissões de entrega de prestações
tributárias comunicadas à Administração Fiscal que, até 31 de Dezembro de 2006,
já se tinham constituído em infracção criminalmente punível.
54. Isto porque, acaso tivesse interpretado essas normas que aplicou
em sentido oposto, isso significaria que, verificada que estava a
descriminalização/despenalização, teria decidido pela extinção do presente
procedimento criminal.
55. E não teria deixado o processo prosseguir, para além do mais
deixando expressamente registado o seu entendimento de que «…a notificação
efectuada [fls. 112 destes autos] segue a interpretação maioritária da
jurisprudência portuguesa, com relevo para a unanimidade atingida no Supremo
Tribunal de Justiça ...».
d) A (in)constitucionalidade do artigo 105.º do RGIT quando
interpretado no sentido de que o conceito de apropriação e de culpa não relevam
para efeitos da verificação do crime de abuso de confiança fiscal – por violação
dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, e 27.º da Constituição da República
Portuguesa (bem como do artigo 1.º do Protocolo 4 adicional à CEDH):
56. Esta inconstitucionalidade foi alegada pelas arguidas no
requerimento de abertura de instrução, nas suas alegações de recurso perante o
Tribunal da Relação do Porto, bem como na resposta ao douto parecer do
Ministério Público (fls. 168-179).
57. Sendo que, como se viu, na douta decisão sumária, o Ex.mo Senhor
Juiz Conselheiro Relator conclui não ser de conhecer nesta parte o objecto do
presente recurso em virtude de, alegadamente, o Tribunal da Relação do Porto ter
considerado esta questão estranha ao âmbito legal do recurso admissível para a
Relação, o que, no seu entendimento, teria feito com que o Tribunal da Relação
não tivesse feito aplicação da mencionada «interpretação normativa».
58. É certo que esta é a única das questões sobre as quais se pediu
a pronúncia do Tribunal Constitucional que o Tribunal da Relação do Porto
expressou ser matéria «… estranha ao âmbito legal (...) [do] recurso».
59. Afirmando estar prejudicada a questão suscitada.
60. O que, no entanto, não corresponde à realidade efectivamente
verificada.
61. Na verdade, conforme Acórdãos n.ºs 88/86, 47/90 e 235/93, a
aplicação da norma tanto pode ser expressa como implícita, sendo que, também
conforme o Acórdão n.º 318/90, o não conhecimento por parte de um tribunal de
inconstitucionalidade de uma norma, quando podia e devia fazê‑lo, equivale à
aplicação implícita da mesma.
62. Ora, dúvidas não restam de que o Tribunal da Relação, ao
confirmar a pronúncia das arguidas nos termos das decisões proferidas (acusação
e despacho de pronúncia), e ao verificar que de tais decisões não consta a
invocação de quaisquer factos que se pudessem subsumir aos conceitos de
«apropriação» pelas arguidas dos montantes declarados e não entregues e de
«culpa» das arguidas nessa pretensa actuação, está a decidir‑se pela não
inconstitucionalidade do artigo 105.º do RGIT quando interpretado no sentido de
que o conceito de apropriação e de culpa não relevam para efeitos da verificação
do crime de abuso de confiança fiscal – por violação dos artigos 1.º, 2.º, 18.º,
n.º 2, e 27.º da Constituição da República Portuguesa (bem como do artigo 1.º do
Protocolo 4 adicional à CEDH).
63. E o não conhecimento dessa inconstitucionalidade equivale à
aplicação implícita dessa norma.
64. De onde se conclui que o Tribunal da Relação do Porto fez
aplicação da mencionada interpretação normativa,
65. podendo e devendo a questão ser apreciada por este Tribunal
Constitucional.
e) A (in)constitucionalidade do artigo 303.º do Código de Processo
Penal quando interpretado no sentido de que a verificação e consideração pelo
Tribunal de factos relativos a uma nova condição de punibilidade não constantes
da acusação não deve implicar a concessão aos arguidos de um prazo de defesa
relativamente a tais factos (não constantes da acusação) – por violação do
artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa:
66. Esta inconstitucionalidade foi alegada pelas arguidas no debate
instrutório e nas suas alegações de recurso perante o Tribunal da Relação do
Porto.
67. Sendo que, como se viu, na douta decisão sumária, o Ex.mo Senhor
Juiz Conselheiro Relator conclui não ser de conhecer nesta parte o objecto do
presente recurso em virtude de, alegadamente, o Tribunal da Relação do Porto ter
considerado esta questão estranha ao âmbito legal do recurso admissível para a
Relação, o que, no seu entendimento, teria feito com que o Tribunal da Relação
não tivesse feito aplicação da mencionada «interpretação normativa».
68. Ora, é claríssimo que o Tribunal da Relação do Porto, ao
contrário do que é referido na douta decisão sumária, conheceu desta questão, e
sobre ela se pronunciou nos capítulos III e III do seu acórdão [trata‑se de dois
capítulos, certamente por lapso, com a mesma numeração, começando o primeiro na
página 33 do douto acórdão (fls. 234) e o outro na página 34 (fls. 235 verso)] –
esta última remetendo e dando por reproduzido o anteriormente exposto nessa
mesma decisão, nos §§ 26 a 29.
69. No primeiro dos mencionados capítulos, o Tribunal da Relação do
Porto afirma: «... a acusação não tem de o incluir – nem o despacho de
pronúncia de o aditar. Na verdade, o[s] artigo[s] 283.º [e 308.º] do Código de
Processo Penal não cont[ê]m referência expressa a aspectos desta natureza no
conteúdo formal e objectivo da acusação [ou do despacho de pronúncia]…».
70. Concluindo, repetindo a fórmula «decido, dizendo que não
decido», nos seguintes termos: «…Portanto, mais uma vez a situação invocada não
integra, de facto, qualquer nulidade susceptível de permitir/exigir uma
reapreciação por via de recurso …».
71. Só que, como anteriormente se expôs, conforme Acórdãos n.ºs
88/86, 47/90 e 235/93, a aplicação da norma tanto pode ser expressa como
implícita, sendo que, também conforme o Acórdão n.º 318/90, o não conhecimento
por parte de um tribunal de inconstitucionalidade de uma norma, quando podia e
devia fazê‑lo, equivale à aplicação implícita da mesma.
72. Ora, dúvidas não restam de que o Tribunal da Relação:
a) ao confirmar a pronúncia das arguidas nos termos das decisões
proferidas (acusação e despacho de pronúncia);
b) ao verificar que de tais decisões não consta a referência ao
facto de se ter verificado a notificação exigida pela alínea b) do n.º 4 do
artigo 105.º do RGIT;
c) ao verificar que, em face da actual redacção desse preceito, a
existência dessa notificação é essencial para a procedência de uma qualquer
acusação;
d) ao considerar a existência da mencionada notificação, sem a
reflectir no conteúdo da acusação ou da pronúncia;
e) e ao não conceder um prazo de defesa às arguidas para se
pronunciarem sobre a eventual existência, legalidade, completude e correcção
dessa essencial notificação,
… está a decidir‑se pela não inconstitucionalidade do artigo 303.º
do Código de Processo Penal quando interpretado no sentido de que a verificação
e consideração pelo Tribunal de factos relativos a uma nova condição de
punibilidade não constantes da acusação não deve implicar a concessão aos
arguidos de um prazo de defesa relativamente a tais factos (não constantes da
acusação).
73. E o não conhecimento dessa inconstitucionalidade equivale à
aplicação implícita dessa norma.
74. De onde se conclui que o Tribunal da Relação do Porto fez
aplicação da mencionada interpretação normativa,
75. podendo e devendo a questão ser apreciada por este Tribunal
Constitucional.
76. No segundo dos mencionados capítulos III do douto acórdão, o
Tribunal da Relação do Porto afirma: «… trata‑se da mesma nulidade invocada no
primeiro recurso – e já apreciada [§§ 26 a 29]» (sic!) – realce nosso.
77. Sendo que do seu próprio teor resulta que o Tribunal da Relação
do Porto reconhece ter apreciado a questão.
78. O que realmente sucedeu.
79. De facto, também aqui vale o entendimento dos Acórdãos n.ºs
88/86, 47/90 e 235/93, a aplicação da norma tanto pode ser expressa como
implícita, sendo que, também conforme o Acórdão n.º 318/90, o não conhecimento
por parte de um tribunal de inconstitucionalidade de uma norma, quando podia e
devia fazê‑lo, equivale à aplicação implícita da mesma.
f) A inconstitucionalidade do artigo 291.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal quando interpretado no sentido de ser permitido o indeferimento
de diligências de prova indicadas no requerimento de abertura de instrução com
outros fundamentos que não os aí expressamente previstos ou no sentido de ser
permitido que o interesse das diligências de prova para a instrução seja aferido
subjectivamente, segundo o ponto de vista e o critério do Juiz de Instrução, e
não objectivamente, segundo os elementos em presença, nomeadamente os dos autos
– por violação dos artigos 60.º, 61.º (maxime alínea f)), 287.º, n.º 1, alínea
a), 288.º, n.º 4, 289.º, n.º 1, 290.º, n.º 1, e 291.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal e 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, 27.º, 29.º e 32.° da Constituição
da República Portuguesa;
e
g) A inconstitucionalidade do artigo 301.º, n.º 3, do Código de
Processo Penal quando interpretado no sentido de que a natureza indiciária das
provas pode ser apreciada subjectivamente, segundo o ponto de vista e o critério
do Juiz de Instrução, e não objectivamente, segundo os elementos em presença,
nomeadamente os dos autos – por violação dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2,
20.º, 27.º, 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa:
80. Estas inconstitucionalidades foram alegadas pelas arguidas nas
suas alegações de recurso perante o Tribunal da Relação do Porto, bem como na
resposta ao douto parecer do Ministério Público (fls. 168‑179).
81. Na douta decisão sumária, o Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro
Relator conclui não ser de conhecer nesta parte o objecto do presente recurso em
virtude de, alegadamente, o Tribunal da Relação do Porto ter considerado que
resultava do artigo 291.º, n.º 1, do Código de Processo Penal a
irrecorribilidade do despacho de indeferimento de diligências de prova e,
pretensamente, não ter feito aplicação, como ratio decidendi, das dimensões
normativas cuja constitucionalidade integrava estas questões que as recorrentes
pretendiam ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional.
82. Ou seja, nestes pontos já a douta decisão sumária parece
conceder, por um lado, ter havido tomada de posição do Tribunal da Relação do
Porto sobre elas e, por outro lado, ter havido a aplicação das mencionadas
normas jurídicas nas dimensões normativas expostas.
83. Considerando, no entanto, o Ex.mo Senhor Juiz Relator, que tais
«dimensões normativas» não correspondem à chamada ratio decidendi.
84. Só que, na verdade, o Tribunal da Relação do Porto aplicou, como
ratio decidendi, o artigo 291.º, n.º 1, do Código de Processo Penal na
interpretação segundo a qual seria permitido o indeferimento de diligências de
prova indicadas no requerimento de abertura de instrução com outros fundamentos
que não os aí expressamente previstos ou no sentido de ser permitido que o
interesse das diligências de prova para a instrução seja aferido
subjectivamente, segundo o ponto de vista e o critério do Juiz de Instrução,
85. bem como aplicou, como ratio decidendi, o artigo 301.º, n.º 3,
do Código de Processo Penal interpretado no sentido de que a natureza indiciária
das provas pode ser apreciada subjectivamente, segundo o ponto de vista e o
critério do Juiz de Instrução, e não objectivamente, segundo os elementos em
presença, nomeadamente os dos autos.
86. Para tanto, basta atentar no seguinte trecho do ponto 28 do
douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto: «... Segundo afirmam [as
recorrentes] existe a obrigação legal de realização das diligências
‘requeridas’ [fls. 195 destes autos]. Mas não é verdade: a única obrigação legal
é a da realização das diligências obrigatórias; no mais, cabe ao juiz de
instrução avaliar, caso a caso, se as diligências [requeridas] interessam à
instrução. É ao juiz de instrução – e não aos sujeitos processuais – que
incumbe, através de um juízo prudencial, aferir da essencialidade ou não da
produção de qualquer prova ...».
87. Sendo que essa aplicação desses artigos foi a ratio decidendi da
decisão tomada nesta parte.
h) A inconstitucionalidade do artigo 310.º do Código de Processo
Penal quando interpretado no sentido de que não integra a categoria de
«nulidade, questão prévia ou incidental», susceptível de ser apreciada pelo
Tribunal da Relação em recurso interposto da decisão instrutória, a questão de
uma eventual despenalização/descriminalização das condutas imputadas a um
arguido, não obstante tal questão poder conduzir à extinção do procedimento
criminal – por violação dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, 27.º, 29.º e 32.º da
Constituição da República Portuguesa:
88. Esta inconstitucionalidade resulta de interpretação, expressa no
douto acórdão recorrido, de norma que, de surpresa, foi invocada pelo Tribunal
da Relação do Porto para limitar o «âmbito» do recurso.
89. Esta inconstitucionalidade não foi, nem podia ser, invocada
anteriormente porquanto a mesma surge, como questão autónoma, com [o] douto
acórdão recorrido e com base nos entendimentos nele expressos, entendimentos
que, por um lado, são «insólitos» e «imprevisíveis» e que, por outro lado,
contrariam o único sentido compatível do texto normativo.
90. Na verdade, o douto acórdão da Relação do Porto veio aplicar o
artigo 310.º do Código de Processo Penal no sentido de que não integra a
categoria de «nulidade, questão prévia ou incidental», susceptível de ser
apreciada pelo Tribunal da Relação em recurso interposto da decisão
instrutória, a questão de uma eventual despenalização/descriminalização das
condutas imputadas a um arguido, não obstante tal questão poder conduzir à
extinção do procedimento criminal.
91. Neste caso, ao contrário do que sucedeu relativamente a muitas
das questões anteriormente tratadas, o Ex.mo Senhor Juiz Relator reconhece que
houve uma clara aplicação da norma mencionada, na vertente interpretativa
identificada e que se considera inconstitucional.
92. Sucede que quanto a esta questão, pode ler‑se na douta decisão
sumária: «…quanto à última questão de inconstitucionalidade referida no
requerimento de interposição de recurso, as próprias recorrentes reconhecem não
a terem suscitado antes de proferido o acórdão recorrido. Porém, ao contrário
do que aduzem no sentido da irrelevância dessa falha [(sic!)], o critério
acolhido no acórdão recorrido não se pode considerar de todo insólito e
inesperado, em termos de dispensar as recorrentes do ónus da prévia suscitação
da questão de constitucionalidade …».
93. Ou seja, o que diz o Ex.mo Senhor Juiz Relator, com isto, é que
o critério acolhido no douto acórdão recorrido (o de que não se verifica a
inconstitucionalidade do artigo 310.º do Código de Processo Penal quando
interpretado no sentido de que não integra a categoria de «nulidade, questão
prévia ou incidental», susceptível de ser apreciada pelo Tribunal da Relação em
recurso interposto da decisão instrutória, a questão de uma eventual
despenalização/descriminalização das condutas imputadas a um arguido, não
obstante tal questão poder conduzir à extinção do procedimento criminal) não
representa a aplicação de uma norma inconstitucional (nessa interpretação) e,
ainda para mais, deveria ter sido prevista como uma decisão natural e esperada
(ou, se se preferir, não insólita nem inesperada).
94. E acrescenta ainda a douta decisão sumária: «... Ao que acresce
que, na resposta do Ministério Público, na 1.ª Instância, à motivação dos
recursos (fls. 145 a 154), a que o representante dessa Magistratura na 2.ª
instância aderiu (fls. 161), foi justamente aventada a tese de que as questões
respeitantes à eventual descriminalização derivada da alteração de redacção do
n.º 4 do artigo 105.º do RGIT pela Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro, não
respeitavam a nulidade ou questões prévias e incidentais susceptíveis de
impugnação pela via do recurso; ora, as recorrentes tiveram oportunidade de
responder, como efectivamente responderam (fls. 168 a 179), a esse parecer, sem
que tivesse suscitado – como lhes cumpria – a questão de inconstitucionalidade
que agora pretendem ver apreciada. Não tendo suscitado, podendo tê‑lo feito, tal
questão, dela não se pode conhecer no âmbito do presente recurso ...».
95. Ou seja, o que diz o Ex.mo Senhor Juiz Relator, com isto, é que
para além do entendimento acima exposto, assumido pelo Tribunal da Relação, não
dever ser considerado como insólito e inesperado, as recorrentes deveriam ter
alegado a inconstitucionalidade da norma em causa, na mencionada interpretação,
uma vez que essa hipótese teria sido – pretensamente – aventada em parecer do
Ministério Público a que as recorrentes teriam respondido sem alegar essa
inconstitucionalidade.
96. Ora, é com frontalidade – mas sempre com o devido respeito, que
é muito – que as recorrentes clamam perante a conferência por justiça …
97. … ao verificarem, por um lado, que a consideração como não
insólito e não inesperado um entendimento como o exposto, que conduziu à
aplicação da mencionada norma na aludida interpretação que se crê
inconstitucional, representa uma muito censurável interpretação jurídica, por
violadora dos mais básicos direitos fundamentais.
98. E, por outro lado, ao verificarem que o Ex.mo Senhor Juiz
Relator afirma que o Ministério Público se pronunciou em parecer num sentido
precisamente contrário àquele em que, efectivamente, se pronunciou.
99. Naquilo que só se pode crer tratar‑se de uma manifesto lapso de
leitura ou interpretação.
100. Mas, vamos por partes, para se perceber bem do erro em que
laborou a douta decisão sumária.
h.1. Quanto ao entendimento, invocado na douta decisão sumária, de
que o critério acolhido no douto acórdão recorrido (o de que não se verifica a
inconstitucionalidade do artigo 310.º do Código de Processo Penal quando
interpretado no sentido de que não integra a categoria de «nulidade, questão
prévia ou incidental», susceptível de ser apreciada pelo Tribunal da Relação em
recurso interposto da decisão instrutória, a questão de uma eventual
despenalização/descriminalização das condutas imputadas a um arguido, não
obstante tal questão poder conduzir à extinção do procedimento criminal) não
representa a aplicação de uma norma inconstitucional (nessa interpretação) e,
ainda para mais, deveria ter sido prevista como uma decisão natural e esperada
(ou, se se preferir, não insólita nem inesperada).
101. É com dificuldade que se argumenta sobre algo que se considera
tão óbvio e que, sinceramente e sem ironias, se julgava isento de margem para
discussão.
102. Na verdade, não se percebe como pôde defender‑se, na douta
decisão sumária, que o critério acolhido no douto acórdão do Tribunal da
Relação do Porto (o de que não se verifica a inconstitucionalidade do artigo
310.º do Código de Processo Penal quando interpretado no sentido de que não
integra a categoria de «nulidade, questão prévia ou incidental», susceptível de
ser apreciada pelo Tribunal da Relação em recurso interposto da decisão
instrutória, a questão de uma eventual despenalização/descriminalização das
condutas imputadas a um arguido, não obstante tal questão poder conduzir à
extinção do procedimento criminal) era um critério admissível e razoavelmente
expectável na aplicação do aludido artigo 310.º.
103. E muito menos se percebe como pôde aí defender‑se que essa
aplicação desse normativo, com essa interpretação, não deveria ser considerada
insólita e inesperada.
104. Isto porque, no entender das recorrentes, é evidente que uma
qualquer causa de descriminalização/despenalização integra a categoria de
«nulidade, questão prévia ou incidental», susceptível de ser apreciada pelo
Tribunal da Relação em recurso interposto da decisão instrutória, desde logo por
se tratar de uma questão que, a obter vencimento, levaria à extinção do
procedimento criminal.
105. Ou seja, a verificação de uma causa de
descriminalização/despenalização dos factos imputados a um arguido implica a
imediata extinção do procedimento criminal, sem necessidade (ou, melhor, sem que
seja legalmente admissível) a submissão do mesmo a julgamento.
106. Trata‑se – o entendimento das recorrentes – do único
entendimento legal e constitucionalmente admissível.
107. Por outro lado, o entendimento contrário – o de que uma
qualquer causa de descriminalização/despenalização não integra a categoria de
«nulidade, questão prévia ou incidental», e não é susceptível de ser apreciada
pelo Tribunal da Relação em recurso interposto da decisão instrutória –
implicaria o absurdo jurídico que consistiria na impossibilidade de um Tribunal
Superior evitar a submissão a julgamento de alguém que houvesse sido pronunciado
por factos patentemente descriminalizados.
108. O que, como é evidente, não pode ser!!!
109. Por representar uma violação frontal do disposto nos artigos
1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, 27.º, 29.º e 32.º da Constituição da República
Portuguesa.
110. Tão clamorosa violação dos mencionados preceitos
constitucionais não podia, de facto, ser esperada pelas recorrentes.
111. Que das decisões judiciais esperam sempre – como se presume
acontecer com o legislador – a devida razoabilidade.
112. E, como bem refere o Acórdão n.º 489/94, às partes apenas cabe
considerar antecipadamente as várias hipóteses de interpretação razoáveis das
normas em questão.
h.2. Quanto às afirmações, constantes da douta decisão sumária, de
que as recorrentes deveriam ter alegado a inconstitucionalidade da norma em
causa, na mencionada interpretação, uma vez que essa hipótese teria sido –
pretensamente – aventada em parecer do Ministério Público a que as recorrentes
teriam respondido sem alegar essa inconstitucionalidade.
113. Estas afirmações (acima descritas), constantes da douta decisão
sumária, são produzidas com o intuito de demonstrar, por um lado, que não
existiria o aludido carácter insólito da aplicação das normas em questão na
interpretação com que foi aplicada e, por outro lado, que as recorrentes teriam
tido uma oportunidade processual para alegarem a respectiva
inconstitucionalidade, oportunidade essa que teriam desperdiçado.
114. Ora, quanto a este ponto, e, uma vez mais, com o devido
respeito, não há outra forma de o dizer: Não corresponde à realidade factual o
que consta da douta decisão sumária!
115. Designadamente, não corresponde à realidade factual que, na
resposta do Ministério Público, na 1.ª Instância, à motivação dos recursos
(fls. 145 a 154), a que o representante dessa Magistratura na 2.ª instância
aderiu (fls. 161), tenha sido justamente aventada a tese de que as questões
respeitantes à eventual descriminalização derivada da alteração de redacção do
n.º 4 do artigo 105.º do RGIT pela Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro, não
respeitavam a nulidade ou questões prévias e incidentais susceptíveis de
impugnação pela via do recurso.
116. Estas afirmações, como se disse, só podem resultar de um
manifesto lapso do Ex.mo Senhor Juiz Relator da douta decisão sumária na
análise dos documentos em causa.
117. Pelo que dessas erradas afirmações, obviamente, não podem ser
retiradas as consequências que são retiradas na douta decisão sumária.
118. Para que dúvidas não restem, cita‑se o que foi defendido no
mencionado parecer do Ministério Público:
«… não restam dúvidas que o segundo recurso interposto tem de ser
rejeitado na parte que não respeite às nulidades susceptíveis de impugnação por
esta via. (...) Consequentemente, não cabe, aqui e agora, conhecer da impugnada
verificação do crime de abuso de confiança fiscal, designadamente da
verificação dos elementos constitutivos do tipo legal em causa, ou seja, das
questões colocadas e relacionadas com o significado ou sentido do elemento
apropriação, dolo ou de quaisquer circunstâncias atinentes à exclusão da
ilicitude e da culpa (...).
No que toca à alegada descriminalização operada com a redacção que
a Lei n.º 53‑A/2006 deu ao n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, admitindo‑se que dela
se possa conhecer em sede de recurso, nesta fase do processo, por se tratar de
questão que, a obter vencimento, levaria à extinção do procedimento criminal,
cumpre realçar que, pese embora a oportuna notificação dos arguidos (...) não
suscitaram eles a questão até ao momento em que foi conhecida a decisão
instrutória.
Sobre esta matéria, diremos, antes de mais, que discordamos em
absoluto da posição defendida pelos arguidos, conhecendo, no entanto, que já há
jurisprudência que a defende, nomeadamente jurisprudência do Tribunal da Relação
do Porto.
Contudo, também a há, e desse mesmo Tribunal, em sentido contrário
ao da tese apresentada.» – (Realce nosso)
119. Assim, ao contrário daquilo que foi apresentado na douta
decisão sumária como sendo a posição constante do parecer do Ministério Público,
não corresponde à realidade factual que, na resposta do Ministério Público, na
1.ª Instância, à motivação dos recursos (fls. 145 a 154), a que o representante
dessa Magistratura na 2.ª instância aderiu (fls. 161), tenha sido justamente
aventada a tese de que as questões respeitantes à eventual descriminalização
derivada da alteração de redacção do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT pela Lei n.º
53‑A/2006, de 29 de Dezembro, não respeitavam a nulidade ou questões prévias e
incidentais susceptíveis de impugnação pela via do recurso.
120. Pelo contrário, como dessa posição se pode ler, o Ministério
Público perspectivou a matéria em causa – como, aliás, no entender das
recorrentes, não podia deixar de ser, sob pena de flagrante violação dos acima
identificados preceitos constitucionais – como integrando o conceito de
«nulidade, questão prévia ou incidental», ou seja, de matéria que podia
(rectius, devia) ser objecto de análise e decisão pelo Tribunal da Relação, por
se tratar de matéria que, a obter vencimento, levaria à extinção do procedimento
criminal e obstava ao julgamento.
121. Assim se constata também que, ao contrário do afirmado na douta
decisão sumária, nenhum sentido faria as recorrentes alegarem a
inconstitucionalidade ora alegada quando o Ministério Público afirmava
claramente ter, sobre esta matéria (da possibilidade de apreciação) o mesmo
entendimento das recorrentes.
122. Estando‑lhes mesmo legalmente vedada a invocação de uma
inconstitucionalidade da aplicação de uma norma com um sentido que não tinha
sido aplicado, tinha, pelo contrário, sido rejeitado pelo Ministério Público, é
rejeitado pela doutrina e pela jurisprudência e é, finalmente, irrazoável (nos
termos expostos).
V – DO ÚLTIMO PARÁGRAFO DO PONTO 3 DA DOUTA DECISÃO SUMÁRIA E DA
PATENTE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
123. Termina o ponto 3 da douta decisão sumária nos seguintes
termos: «Tanto basta para se decidir pelo não conhecimento, na totalidade, do
recurso interposto, sem necessidade de se entrar na apreciação de outras
possíveis causas de não conhecimento, como, por exemplo, a deficiente
identificação das interpretações normativas tidas por inconstitucionais, ou o
carácter manifestamente infundado, atenta a anterior jurisprudência deste
Tribunal, de algumas dessas questões».
124. As recorrentes apenas se referem a este ponto com o objectivo
de, com lealdade, nada deixar por esclarecer.
125. Isto porque convém recordar que o requerimento de interposição
de recurso (a que, segundo se crê, se seguirão as respectivas alegações) consta
de umas generosas 6 folhas.
126. Nas quais se respeitaram – e na íntegra – os legais requisitos
para a sua admissão, expressamente previstos na LTC.
127. Foram, designadamente, claramente identificadas as
interpretações normativas tidas por inconstitucionais.
128. De tal forma que muitas delas, de resto, vinham sendo alegadas
desde as instâncias inferiores e decididas por essas instâncias que para as
decidirem, obviamente, têm que as ter compreendido.
129. Também a douta decisão sumária as entendeu plenamente, ao ponto
de lograr afirmar, quanto a algumas delas, que o douto acórdão do Tribunal da
Relação do Porto delas não fez aplicação como ratio decidendi;
130. ... e, quanto a uma delas (a tratada no âmbito da alínea h) do
ponto IV supra), que a mesma não tinha sido atempadamente invocada, por constar
já de peça processual anterior.
131. Não fazendo sentido que a douta decisão sumária se pronuncie
sobre determinadas questões e, simultaneamente, sugira que as mesmas, afinal,
não se encontram identificadas de forma a poderem ser percebidas.
Termos em que devem ser rejeitadas as teses consagradas na douta
decisão sumária, sendo a mesma revogada e devendo as questões de fundo
requeridas para apreciação pelo Tribunal Constitucional ser apreciadas,
declarando‑se a inconstitucionalidade das disposições legais identificadas, nas
vertentes normativas que foram assumidas e aplicadas pelo douto acórdão do
Tribunal da Relação do Porto recorrido, assim se fazendo inteira Justiça!”
1.3. O representante do Ministério Público apresentou
resposta, do seguinte teor:
“1.º – A presente reclamação é, a nosso ver, improcedente.
2.º – Na verdade, a longa argumentação das reclamantes em nada abala
os fundamentos da douta decisão reclamada – sendo, a nosso ver ostensiva que
quem incorre em erros e lapsos manifestos não é o Ex.mo Conselheiro Relator, na
decisão sumária proferida, mas os reclamantes, na impugnação que deduzem.
3.º – O vício lógico‑jurídico que inquina tal reclamação
consubstancia‑se numa sobreposição entre os planos do mérito da causa e dos
pressupostos de uma possível condenação penal e das questões adjectivas e
nulidades processuais, quando só estas são susceptíveis de fundar um recurso
interposto do despacho de pronúncia.
4.º – Daqui decorrendo uma evidente e inquestionável conclusão: a de
que a Relação não apreciou, nem tinha que apreciar, as questões atinentes aos
pressupostos do sancionamento penal dos arguidos que lhe foram colocadas em
recurso, interposto na fase da pronúncia, embora «camuflado» sob a capa de
pretensas «nulidades» processuais.
5.º – Constituindo a sucinta e lateral referência, no acórdão
recorrido, ao entendimento jurisprudencial dado à alínea b) do n.º 4 do artigo
105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias – depois de expressamente se
dizer que tal matéria não integra nulidade ou questão prévia ou incidental – um
exemplo paradigmático de mero obiter dictum, sempre insusceptível de fundar um
recurso para o Tribunal Constitucional.
6.º – Igualmente falece razão às ora reclamantes no que se refere às
questões procedimentais efectivamente apreciadas pela Relação: assim, quanto à
norma constante do n.º 1 do artigo 291.º do Código de Processo Penal, é
evidente que o acórdão recorrido não aplicou o critério normativo
consubstanciado como objecto do recurso (e que se traduziria na atribuição de
uma subjectiva discricionariedade ao juiz de instrução, quanto à realização de
diligências instrutórias requeridas) – limitando‑se a considerar que a
irrecorribilidade, legalmente prevista, obsta a que a decisão jurisdicional em
causa possa ser impugnada pela via das pretensas nulidades, quando o juiz se
limitou a decidir, casuística e prudencialmente, sobre o interesse das
diligências probatórias em causa.
7.º – Finalmente, temos como seguro que não pode qualificar‑se como
«decisão‑supresa», de conteúdo insólito e imprevisível, a que se traduz em não
qualificar como «questão procedimental» (integrando o elenco das nulidades e
questões prévias ou incidentais) a que – obviamente ligada ao mérito da causa –
incide sobre a pretendida descriminalização dos comportamentos penalmente
imputados aos arguidos – incidindo naturalmente sobre estes o ónus de
anteciparem uma solução que lhes pudesse ser desfavorável, suscitando
oportunamente a questão de constitucionalidade que tivessem por pertinente e
adequada.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. O objecto da reclamação de decisão sumária de não
conhecimento do recurso cinge‑se à apreciação da correcção das razões pelas
quais na decisão reclamada se entendeu não se verificarem os pressupostos do
conhecimento do recurso de constitucionalidade. No presente caso, essas razões
consistiram, quanto às questões enunciadas nas alíneas a) a g) do requerimento
de interposição de recurso, na constatação de que o acórdão recorrido não havia
aplicado, como ratio decidendi, as dimensões normativas mencionadas nessas sete
alíneas; e, quanto à questão enunciada na alínea h) do mesmo requerimento, na
constatação de que as recorrentes não haviam suscitado, perante o tribunal
recorrido e antes de proferido o acórdão impugnado, a inconstitucionalidade do
critério normativo aí identificado e no entendimento de que não se verificavam
aquelas circunstâncias excepcionais que este Tribunal tem considerado como
justificadoras da dispensa do cumprimento do ónus da prévia suscitação da
questão de inconstitucionalidade que se pretende ver apreciada.
Quanto às primeiras sete questões, resulta claramente do
acórdão recorrido que nele se entendeu que das mesmas não podia conhecer por
extravasarem o âmbito admissível dos recursos interpostos. Na verdade, a decisão
instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação do
Ministério Público (coincidência factual que se verificava no presente caso) é
irrecorrível, com excepção da “parte respeitante à matéria relativa às
nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões
prévias ou incidentais”, como fora decidido no “Assento n.º 6/2000” [sendo, no
caso, ainda inaplicável, por os recursos terem sido interpostos antes da entrada
em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, a revogação da doutrina desse
Assento operada pela redacção dada por essa Lei ao n.º 1 do artigo 310.º do
Código de Processo Penal (CPP), sendo agora claro que a decisão instrutória que
pronuncia o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação do Ministério
também é irrecorrível “mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras
questões prévias e incidentais”], e uma vez que as questões suscitadas não
respeitavam a nulidades ou outras questões prévias ou incidentais. Por outro
lado, sendo legalmente irrecorrível, nos termos do artigo 291.º, n.º 1, do CPP,
o despacho do juiz de instrução que indefira diligências requeridas que não
interessem à instrução e sirvam apenas para protelar o andamento do processo, a
coerência do sistema exige que se considere igualmente irrecorrível quer a
decisão que indefira a reclamação de tal despacho (reclamação para o autor do
acto, admitida na parte final desse n.º 1, na redacção então vigente), quer a
decisão que desatenda arguição de nulidade do mesmo despacho.
Na perspectiva do acórdão recorrido extravasavam o
âmbito admissível dos recursos interpostos as questões agora identificadas nas
alíneas a) a d) do requerimento de interposição do recurso, por directamente
ligadas à (in)constitucionalidade das normas incriminadoras em que se fundou a
acusação e que a pronúncia acolheu, quer por pretensa descriminalização operada
pela redacção dada ao n.º 4 do artigo 105.º do RGIT pelo artigo 95.º da Lei n.º
53‑A/2006, quer pela alegada relevância dos conceitos de apropriação e de culpa
para efeitos de verificação do crime de abuso de confiança fiscal. Nestes
termos, é manifesto que o acórdão recorrido não aplicou, como ratio decidendi,
os critérios normativos segundo os quais o artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, ao
alterar o n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, “não implic[ou] a
descriminalização/despenalização das omissões de entrega de prestações
tributárias comunicadas à Administração Fiscal que, até 31 de Dezembro de
2006, já se tinham constituído em infracção criminalmente punível”, ou que
“continuam a ser criminalmente puníveis” “os comportamentos consistentes nas
omissões de entrega de prestações tributárias comunicadas à Administração Fiscal
que, até 31 de Dezembro de 2006, já se tinham constituído em infracção
criminalmente punível”, ou que “a exigência de notificação prévia”, por ele
introduzida, “não determin[ou] a descriminalização das condutas em causa”, ou
ainda que “os conceitos de apropriação e de culpa não relevam para efeitos da
verificação do crime de abuso de confiança fiscal”. O “registo”, que o acórdão
anota, de que a notificação efectuada nos autos “segue a interpretação
maioritária da jurisprudência portuguesa, com relevo para a unanimidade
atingida no Supremo Tribunal de Justiça” é apenas isso mesmo: um “registo”. No
contexto em que foi feito, ele constitui a anotação marginal de um facto, não
sendo lícito ver aí a emissão de um juízo de valor ou a adesão ao entendimento
“registado”, o que, implicando que o Tribunal da Relação passaria a entrar na
apreciação do mérito da pronúncia, seria claramente incongruente com a
afirmação, contida no período imediatamente anterior, de que divergências de
interpretações jurídicas acerca de um preceito legal não integram a categoria
das “nulidades, questões prévias e incidentais”, às quais estava legalmente
limitada a cognoscibilidade pela Relação do recurso interposto da decisão
instrutória.
Quanto à questão referida sob a alínea e), o acórdão
recorrido é claro ao referir, no seu n.º 33, que “a situação invocada não
integra (…) qualquer nulidade susceptível de permitir/exigir uma reapreciação
por via de recurso”, pelo que não aplicou, como ratio decidendi, o critério
segundo o qual “a verificação e consideração pelo Tribunal de factos relativos
a uma nova condição de punibilidade não constantes da acusação não deve
implicar a concessão aos arguidos de um prazo de defesa relativamente a tais
factos”.
Quanto às questões mencionadas sob as alíneas f) e g), o
n.º 34 do acórdão recorrido remete para os precedentes n.ºs 26 a 29, onde se
consignara que “sendo irrecorrível (…) o despacho que indefere diligências não
obrigatórias de instrução, não pode o mesmo ser atacado pela via da arguição de
nulidade”, pelo que, não tendo entrado – por a tal se considerar legalmente
impedido – na apreciação do mérito da decisão de indeferimento de diligências
de prova, ele não aplicou o critério normativo segundo o qual é “permitido o
indeferimento de diligências de prova indicadas no requerimento de abertura
de instrução com outros fundamentos que não os aí expressamente previstos ou no
sentido de ser permitido que o interesse das diligências de prova para a
instrução seja aferido subjectivamente, segundo o ponto de vista e o critério do
Juiz de Instrução, e não objectivamente, segundo os elementos em presença,
nomeadamente os dos autos”, ou o critério normativo de que “a natureza
indiciária das provas pode ser apreciada subjectivamente, segundo o ponto de
vista e o critério do Juiz de Instrução, e não objectivamente, segundo os
elementos em presença, nomeadamente os dos autos”.
Resta, assim, a questão mencionada sob a alínea h) do
requerimento de interposição de recurso – reportada à “inconstitucionalidade do
artigo 310.º do Código de Processo Penal quando interpretado no sentido de que
não integra a categoria de «nulidade, questão prévia ou incidental»,
susceptível de ser apreciada pelo Tribunal da Relação em recurso interposto da
decisão instrutória, a questão de uma eventual
despenalização/descriminalização das condutas imputadas a um arguido, não
obstante tal questão poder conduzir à extinção do procedimento criminal” – que a
decisão sumária ora reclamada considerou não poder ser conhecida por falta de
suscitação prévia perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão
impugnada.
Aduzem as reclamantes que a interpretação acolhida pelo
acórdão recorrido era, de todo, inesperada, pelo que se verificaria uma daquelas
situações excepcionais em que, perante interpretações insólitas e imprevisíveis,
se tem entendido estar o recorrente dispensado – por “inexigibilidade” – do
ónus da suscitação prévia da inconstitucionalidade dessas interpretações, como
condição para abrir a via ao recurso de constitucionalidade.
Mas sem razão, pois, na verdade, o entendimento,
subjacente à decisão recorrida, de que uma questão directamente relacionada com
a inconstitucionalidade de uma interpretação que não reconheceria natureza
descriminalizadora a uma alteração legislativa das normas em que a acusação
(confirmada pela pronúncia) se alicerçou, não integra a categoria das “nulidades
e outras questões prévias e incidentais”, nada tem de insólito, inesperado,
anómalo ou imprevisível. Basta a leitura do “Assento n.º 6/2000” (Diário da
República, I Série‑A, n.º 56, de 7 de Março de 2000, p. 850), que fixou a
jurisprudência no sentido de que “a decisão instrutória que pronunciar o arguido
pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é recorrível na parte
respeitante à matéria relativa às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou
da instrução e às demais questões prévias ou incidentais”, para se concluir que
a parte da decisão instrutória que foi considerada recorrível é a parte a que se
reporta o n.º 3 do artigo 308.º do CPP, tendo o “acórdão fundamento”, a cuja
fundamentação o “Assento” aderiu, claramente diferenciado a parte (irrecorrível
por expressa determinação legal) da decisão instrutória que pronuncia o arguido
pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, “o que inculca uma
decisão instrutória de fundo”, e a parte (que considerou recorrível) da
“decisão instrutória de forma, designadamente a que se reporta às questões
prévias ou incidentais do artigo 308.º, n.º 3, do referido Código”,
exemplificando como questões deste tipo “a controvérsia sobre a competência ou a
incompetência absoluta do tribunal”. E citando J. Souto de Moura (Jornadas de
Processo Penal, p. 130), reconduz essa parte da decisão instrutória ao
“saneamento preliminar”, onde “se abordarão antes de mais os pressupostos
processuais, a começar pela competência do tribunal”, a que se seguem “as
nulidades ou eventuais questões incidentais” e só “se nada obstar ao
conhecimento do mérito da causa, decidirá o juiz de instrução criminal a
pronúncia ou a não pronúncia”, concluindo‑se que: “a decisão instrutória
incluirá o saneamento e a apreciação do mérito, redundando este na pronúncia ou
na não pronúncia; daí que a falência de um pressuposto processual não dê origem
a uma não pronúncia. Rigorosamente, originará uma decisão instrutória de forma
que não aborda o fundo da questão. Implicará em regra a absolvição da instância,
sem mais”. E no subsequente “Acórdão de uniformização de Jurisprudência n.º
7/2004” (Diário da República, I Série‑A, n.º 282, de 2 de Dezembro de 2004, p.
6950) – que decidiu: “Sobe imediatamente o recurso da parte da decisão
instrutória respeitante às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da
instrução e às demais questões prévias ou incidentais, mesmo que o arguido seja
pronunciado pelos factos constantes da acusação do Ministério Público” –, após
referir que o “Assento n.º 6/2000” partiu “da tese de que a decisão
instrutória é composta de duas partes: a decisão de fundo (a pronúncia sobre os
factos) e a de forma (em que se inserem as questões prévias e incidentais)”,
considerou justificável esta cindibilidade da decisão instrutória para efeitos
de recurso “pela diversa posição e função processual que assumem uma e outra”
dessas partes: “no que respeita a nulidades e outras questões prévias ou
incidentais, a decisão tem por finalidade a regularidade do processo e a
criação, no momento final de uma fase do processo (instrução), de pressupostos
de estabilidade processual necessária ao prosseguimento da fase de julgamento,
evitando o risco da continuidade sub conditione do processo, com as
contingências que poderia implicar (v. g. posterior anulação, ex tunc, em
consequência de vícios anteriores). Diversamente, a pronúncia, stricto sensu,
não tem uma função de regularidade processual, mas apenas instrumental da
vinculação temática, sempre provisória, porque não determina mais do que a
fixação do thema da decisão apresentada ao tribunal de julgamento.”
Surge, assim, como destituído de qualquer elemento de
surpresa o entendimento, sufragado pelo acórdão recorrido, de que questões
tendo por objecto a interpretação das normas incriminadoras em que se alicerçou
a acusação e sua posterior alteração legislativa, estando indissociavelmente
ligada ao “mérito” da acusação e da subsequente pronúncia, não integram a
categoria das “nulidades ou outras questões prévias ou incidentais”, referidas
no n.º 3 do artigo 308.º do CPP (em formulação repetida no subsequente artigo
311.º, n.º 1, com o explícito alcance de se tratarem de questões que “obst[a]m à
apreciação do mérito da causa”), pelo que não podem integrar o objecto do
recurso (admissível na vigência do “Assento n.º 6/2000”) da parte “formal” ou de
“saneamento preliminar” por que se inicia a decisão instrutória.
Esta a razão – por si só determinante – pela qual na
decisão sumária se entendeu não estarmos perante um caso de dispensa do ónus de
suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade.
A referência suplementar feita à circunstância de na
resposta do magistrado do Ministério Público na 1.ª instância (a que aderiu o
parecer do seu representante junto do tribunal recorrido e à qual as
recorrentes responderam) se ter “aventado” – o que é distinto de se ter
“defendido” ou “sustentado” – “a tese de que as questões respeitantes à
eventual descriminalização derivada da alteração de redacção do n.º 4 do
artigo 105.º do RGIT pela Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro, não respeitavam
a nulidades ou questões prévias e incidentais susceptíveis de impugnação pela
via do recurso”, baseia‑se justamente na transcrição da parte dessa resposta
feita na presente reclamação, em que aquele magistrado refere: “No que toca à
alegada descriminalização operada com a redacção que a Lei n.º 53‑A/2006 deu ao
n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, admitindo‑se que dela se possa conhecer em sede
de recurso, nesta fase do processo, por se tratar de questão que, a obter
vencimento, levaria à extinção do procedimento criminal, cumpre realçar que,
pese embora a oportuna notificação dos arguidos (...) não suscitaram eles a
questão até ao momento em que foi conhecida a decisão instrutória” (sublinhado
acrescentado). Ora, a formulação dubitativa ou de mera concessão (“admitindo‑se
que dela se possa conhecer em sede de recurso”) pressupõe necessariamente a
questionabilidade da admissibilidade do recurso tendo por objecto tal questão, o
que significa “aventar” a existência de duas teses opostas e devia ter servido
de “alerta” adicional para as recorrentes, se assim o entendessem, suscitarem a
inconstitucionalidade da tese da inadmissibilidade do recurso na oportunidade
processual que efectivamente tiveram para o efeito (a resposta ao parecer do
Ministério Público).
De qualquer forma, basta a natureza não insólita nem
imprevisível da interpretação acolhida no acórdão recorrido, inicialmente
demonstrada, para afastar a possibilidade de considerar as recorrentes
dispensadas do ónus de suscitação da questão de inconstitucionalidade. Não o
tendo feito – devendo e podendo fazê‑lo – o recurso é, também nesta última
parte, inadmissível, o que determina o não conhecimento da totalidade do seu
objecto, como decidiu a decisão sumária reclamada.
Apenas se aditará que este Tribunal já teve oportunidade
de emitir juízos de não inconstitucionalidade da norma do artigo 310.º, n.º 1,
do CPP, interpretado no sentido de estender a irrecorribilidade do despacho de
pronúncia à decisão dele constante sobre as questões prévias e incidentais
referidas no n.º 3 do artigo 308.º. Fê‑lo nos Acórdãos n.ºs 216/99 e 387/99
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 43.º vol., p. 239, e 44.º vol., p. 391,
respectivamente), perante interpretações normativas, assumidas nas decisões
então recorridas, em sentido oposto ao que viria a ser consagrado no “Assento
n.º 6/2000”, mas que, como já se referiu, é o sentido agora de novo estabelecido
pelo legislador na redacção dada àquele n.º 1 do artigo 310.º pela Lei n.º
48/2007.
3. Termos em que acordam em indeferir a presente
reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pelas recorrentes, fixando‑se a taxa de justiça
em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 29 de Julho de 2008.
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos