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Processo n.º 423/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. e outros reclamam para a conferência, ao abrigo do disposto
no n.º 3 do art.º 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual
versão (LTC), da decisão do relator, no Tribunal Constitucional, que decidiu não
conhecer do recurso de constitucionalidade interposto dos acórdãos do Tribunal
da Relação de Lisboa, de 31 de Maio de 2007 e de 17 de Janeiro de 2008.
2 – Fundamentando a sua reclamação, os reclamantes discorrem do
seguinte jeito:
«A., e outros, nos autos de recurso de constitucionalidade à margem
identificados, vêm mui respeitosamente, ao arrimo do disposto no nº 3 do artigo
78°-A da lei de organização, funcionamento e processo do Tribunal
Constitucional, reclamar para a conferência, da decisão sumária que não admitiu
o recurso, o que faz pela forma seguinte:
1. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, os
recorrentes grafaram que os réus não haviam apresentado os recibos de renda para
o que haviam sido convidados e instados, uma situação que, no critério dos
autores, atentava contra o princípio da proibição da indefesa ínsito no artigo
20° da Constituição da República Portuguesa.
Requereram, por isso, fosse julgada inconstitucional, por violação do redito
princípio, a norma contida no artigo 787° do Código Civil, na interpretação
segundo a qual, o recibo de quitação relativamente às rendas não serve para
atestar a identidade do arrendatário (ut págs. 6/7 do requerimento recursório).
Sobre o ponto, a decisão sumária pronunciou-se deste modo: “Em ponto algum do
acórdão recorrido se sustenta, porém, que os recibos de renda não são, em si ou
conjugadamente com outros meios de prova, em abstracto, documentos idóneos para
poderem representar o facto da entidade que assume a posição de arrendatário no
contrato de arrendamento” (vd. pág. 14 do douto Ac.).
Ora, o que a Relação fez foi justamente POSTULAR, PROFESSAR O ENTENDIMENTO (o
seu entendimento específico expresso pela interpretação, ou plasmado na
interpretação que fez da norma enunciada) de que, se o recibo de renda serve
para provar o seu pagamento, ele já não é idóneo, ele já não serve para, por si
só, atestar a identidade a favor de quem foi celebrado o contrato de
arrendamento.
A Relação não se referiu aos recibos cuja falta foi denunciada pelos autores,
não. Não disse que os recibos a que os autores se referiam, atento quanto se
passou, não serviam para provar que o arrendatário não era o B. e sim a
sociedade. O mesmo Tribunal emite, preconiza, defende o ponto de vista, sufraga
a opinião de que O RECIBO DE RENDA EM GERAL (não os recibos de renda, em
particular, por cuja apresentação os autores pugnaram) não é idóneo a, por si
só, provar a identidade do arrendatário.
Não parece então, salvo o devido respeito, que o mesmo Órgão Jurisdicional
houvesse feito a ponderação que se diz ter efectuado.
E dizemos isto porquanto, lendo com redobrada atenção a página 7 do aliás douto
Acórdão de 31 de Maio de 2007, constata-se que a Relação o que diz é que,
tendo-se provado que o arrendamento não foi outorgado ao B., enquanto pessoa
singular, mas sim à sociedade de que ele era sócio, e apurado que a acção não
foi proposta contra a mesma sociedade, teria de dar-se por provada a
ilegitimidade dos réus, por não serem os titulares da relação jurídica
controvertida.
Depois, na sequência do pedido de aclaração, é que o Tribunal de 2ª instância,
aí sim, acabou por referir a inutilidade que seria pronunciar-se sobre as
consequências da não apresentação dos recibos de renda pelos réus, fosse qual
fosse o seu texto, porquanto já se mostrava estabelecido que a arrendatária era
a sociedade e não o B..
Ora, como é sabido, a ninguém é permitido desdizer aquilo que disse
anteriormente. Se disse, está e ficou dito, não se podendo voltar atrás.
Mantém-se, consequentemente, que a interpretação feita pela Relação da
disposição do Código Civil que se pronuncia, no fundo, sobre o direito à
quitação, é inconstitucional, no sentido de que o recibo – repete-se – serve
apenas para a prova do pagamento da renda e não a titularidade (a pessoa a quem
o mesmo foi outorgado) do arrendamento, ou da pessoa que detém essa qualidade, a
qualidade/posição de arrendatário.
E é inconstitucional pelas razões que foram aduzidas no requerimento do recurso,
pelo que se julga inoportuno referi-las de novo.
Escreve-se outrossim na decisão sumária, que o Tribunal de apelação, não
ignorando o disposto no nº 2 do artigo 519° do Código de Processo Civil, “(...)
cuja aplicação fora alegada pelos recorrentes, teve como inteiramente provado,
no âmbito da livre apreciação das concretas provas que foram produzidas nos
autos, que o contrato fora efectivamente celebrado pela sociedade, e que os
termos específicos em que os recibos houvessem sido emitidos, fossem eles quais
forem, e como tal antecipados, não tinham a possibilidade de, segundo o mesmo
princípio de apreciação, concretamente inverterem esse firme juízo afirmativo”
(vd. pág. 15 do Ac.).
Analisemos com mais pormenor este incipit interpretativo.
2. Na petição inicial, os autores alegaram que o locado foi dado de arrendamento
ao B., pai e sogro dos réus.
Na contestação, os réus alegaram que o arrendamento não foi feito ao B., mas a
uma sociedade da qual ele era sócio.
Ao sustentarem a existência de uma grande quantidade de recibos emitidos em nome
do tal B., é porque os senhorios sabiam da sua existência. E se assim é, é
porque, para eles, o arrendamento pertencia ao inquilino e não à sociedade, fora
outorgado ao locatário e não à sociedade da qual era sócio.
Na sentença proferida pela instância originária, deu-se por provado, MAS SEM A
APRESENTAÇÃO DOS RECIBOS EM NOME DO B., que a locatária era a sociedade.
Pois bem. Quando se diz que o Tribunal teve como inteiramente provado, no âmbito
da livre apreciação das concretas provas produzidas nos autos, que a locatária
era ou é a dita sociedade, é manifesto que se está a dizer que tal conclusão
assentou na livre apreciação de todos os elementos de prova carreados e
colectados, MENOS NOS RECIBOS QUE NÃO FORAM JUNTOS!!!
Ou doutro modo: existindo recibos que comprovam, sem qualquer margem para
dúvidas, que o locado foi dado de arrendamento ao B. (foi aliás o que foi
participado às Finanças pelo então proprietário, como justamente se refere no
Acórdão proferido pela Relação, na nota (1) da pág. 5), o dar-se por provado que
a titularidade do arrendamento assentou no âmbito da livre apreciação das
concretas provas que foram produzidas nos autos, quando não foi feita a junção
dos recibos que justamente serviam, e que de ordinário servem para provar quem
detém a posição de arrendatário, tal interpretação apenas demonstra que se
violou o princípio de estalão constitucional que proíbe a INDEFESA.
A violação do princípio que proíbe a INDEFESA está patente na interpretação,
seja a que foi efectuada pelo Tribunal da Relação, seja a que se mostra
sufragada na douta decisão deste colendo Tribunal, como está patente na decisão
proferida pela primeira instância.
Em suma, deu-se como provado um arrendamento, não com base na identidade do
verdadeiro arrendatário, a quem foram emitidos e entregues uma abada de recibos,
mas com base em depósitos feitos por uma sociedade da qual o arrendatário era
sócio. E fez-se isso sem se atentar que assim procedendo, se estaria a
comprometer o direito de que a ninguém é permitida a indefesa, pois todos têm o
direito de se defenderem quando está em causa a defesa dos seus direitos. E não
dando seguimento ao solicitado pelos autores para que os réus apresentassem os
recibos, isso comprometeu (e de que maneira!), o direito dos autores, o direito
de se poderem defender.
O que é isto senão a privação ou limitação do direito de defesa do cidadão
perante os órgãos jurisdicionais e quando está em causa a defesa estrénua,
embora justa, embora lícita, dos seus direitos, dos seus interesses?!
Os autores foram IMPEDIDOS de poder tirar partido de um facto fundamental,
crucial ia dizer-se, para a prova de que o B. é que foi o locatário.
Ninguém tem o direito de lhes fazer uma coisa dessas! Como podem postergar um
direito destes, como podem exorcizar e deitar por terra a supina e imarcescível
garantia de que todos têm direito a um processo justo e equitativo?! Os autores
não se resignam com esta situação, que se lhes afigura absolutamente INJUSTA!
Aos autores foi-lhes retirado, foi-lhes ‘roubado’ o direito ao direito de
fazerem uso do CONTRADITÓRIO, sendo deste princípio axial do processo civil que
decorre a regra fundamental da proibição da indefesa, uma regra de cariz e matiz
constitucional, consagrada no nº 4 do artigo 20º da Constituição.
Decerto que os autores não estão a discutir a decisão judicial. Seria estultícia
fazê-lo! Sabem-no bem!
O que não podem é, contudo, deixar de suscitar a inconstitucionalidade
perpetrada pelo Tribunal da Relação junto do Tribunal Constitucional.
Vejamos agora a outra situação igualmente aduzida no requerimento de
interposição do presente recurso – uma questão que sem dúvida tem que ver com a
forma como devem ser interpretados os actos postulativos, como também as
próprias decisões proferidas pelos tribunais.
Diz-se quanto a esse particular que a Relação não terá atribuído ao vocábulo
‘argumentações’ a mesma significação ou valoração semântica que os então
apelantes lhe atribuíram.
E no entendimento da decisão sumária, a interpretação efectuada pela Relação
como traduzindo o melhor sentido para o sobredito lexema terá sido esta: “(...)
conjunto de razões com que, num processo de raciocínio, se pode sustentar,
rebater ou tirar ilações ou consequências relativamente à alegada mudança de fim
ou de ramo do arrendado, sem que tais razões se concretizem em factos ou
questões que tenham de ser alegadas pelas partes ou que devam constar dos autos”
(ut pág. 16 da douta decisão sumária).
Vejamos se assim é ou pode ser.
3. Na alegação apresentada no recurso de apelação, os recorrentes disseram o
seguinte (vd. pág. 31 do corpus da alegação):
“Tudo leva a supor então que a decisão que recaiu sobre a espécie mudança para
fim ou ramo de negócio diverso do convencionado terá sido proferida com base em
factos que não foram alegados por quem de direito – os réus!”. “E que a decisão
é dada com base nos fundamentos indicados no troço imediatamente anterior, não
podem restar dúvidas, dado o modo como se transita de uma página para outra, do
campo dos fundamentos para o limbo, para o cerne da decisão propriamente dita,
através do marcador linear de sequência “A este propósito (...) (vd. fls. 642).”
“Mas repisa-se que os réus nada alegaram quanto a esta questão, quanto à questão
do armazenamento dos aparelhos ortopédicos.” “E a ser assim, o que acontece é
que se conheceu de questão de que se não podia tomar conhecimento, nos temos do
disposto na alínea d), 2ª parte, do nº 1 do artigo 668° do Código de Processo
Civil, fazendo com que seja nula a sentença.”
Portanto, quando se refere, na conclusão “XVIII” da mesma alegação que o
Julgador decidiu dar por verificado o facto-fundamento invocado, utilizando para
tal uma argumentação inexistente (pois que quod non est in actis non est in
mundo), porque também não adscrita pela parte a quem incumbe o ónus de prova do
facto e que no caso só podem ser os réus, é manifesto que qualquer perito do
direito verificaria que a locução utilizada “argumentação inexistente”, no
contexto em que foi aplicada, só podia ter o sentido de factos inexistentes, de
materialidade não alegada pela parte a quem incumbia o ónus da prova do facto.
O velho cliché judicial quod non est in actis non est in mundo diz respeito a
factos que não foram alegados e que portanto não estão nos autos, não a
argumentos evidentemente.
Como observa CARLOS JOÃO CORREIA, poderá dizer-se que o texto, no fundo qualquer
texto, é mudo. Por isso, é que para se conceber uma compreensão pura de um
texto, seria necessário que este último fosse, em si mesmo, explicativo (vd.
Paul Ricoeur e a Expressão Simbólica do Sentido, ed. da Fundação Calouste
Gulbenkian, Maio de 1999, pág. 559).
As mais das vezes, aliás, é o leitor quem terá de conjecturar, de decifrar (ler
é decifrar, como falar é traduzir ‘metapherein’) o sentido do texto, dado que a
intenção do autor fica para além do nosso alcance (PAUL RICOUER, Teoria da
Interpretação, o Discurso e o Excesso de Significação, 1976, trad. de Artur
Mourão, Edições 70, pág. 87).
Os textos devem, por isso, ser interpretados e julga-se que a interpretação dos
actos postulativos em geral, devem de ordinário obedecer ao critério
normativista previsto na lei, que o mesmo é que dizer, devem fazer-se com base
nos critérios da teoria da impressão do destinatário, contida no nº 1 do artigo
236° do Código Civil.
É dizer que, de acordo com esta teoria ou critério, a Relação não podia deixar
de interpretar a expressão “argumentação inexistente”, como significando ou
traduzindo a “materialidade ou facticidade inexistente”.
Com efeito, na esteira do Professor TEIXEIRA DE SOUSA, os actos das partes devem
ser interpretados de acordo com o regime previsto no artigo 236° do Código
Civil, face ao estatuído no artigo 295° do mesmo diploma.
Os actos das partes, segundo ensina, devem ser interpretados de acordo com o
sentido que um destinatário normal, colocado na posição do real destinatário (o
tribunal ou a contraparte) possa deduzir do comportamento da parte. Isto
porquanto qualifica o tribunal, como a contraparte, como constituindo
declaratórios do acto (in Introdução ao Processo Civil Declaratório, pág. 96,
cit. por PAULA COSTA E SILVA, Acto e Processo, Coimbra Editora, 2003, págs.
363/364).
Por conclusão, a argumentação que não constava dos autos, não era senão os
factos que não constavam dos autos, os factos que não haviam sido para tanto
alegados pelos réus.
E foi nesse sentido que os recorrentes apresentaram o problema à Relação, no
consabido pedido de aclaração.
Poder-se-á dizer, enfim..., que a palavra ou a expressão utilizada não foi a
mais correcta, mas a verdade é que olhando para o contexto em que o fizeram,
ninguém e muito menos os conspícuos Senhores Desembargadores poderiam atribuir
qualquer outro sentido ou significado que não o referido.
4. De notar é por último que, já no corpus da alegação que se vem de mencionar,
isto é, a alegação apresentada em instância de recurso de apelação, os apelantes
discretearam do seguinte modo:
“Não punir a parte que teimosamente não colaborou para a descoberta da verdade
é, no fundo, como salta aos olhos do entendimento, pôr em risco a própria
justiça, e com isso, a própria segurança das pessoas”. “Fazer da norma em
análise letra morta, é dar um rude golpe em alguns dos mais importantes
princípios que informam o processo civil – o dever de colaboração das partes
para a descoberta da verdade, o princípio de que todos têm direito a um processo
justo, e o princípio da igualdade”
Ou seja, já nesse momento, os recorrentes alegaram que o procedimento dos réus
atentava contra as regras e princípios que informam o processo civil, mas também
disseram que tal maneira de proceder, que tal modus operandi, atraiçoava,
violava, violentava, atentava contra o princípio de que todos têm direito a um
processo justo, como também contra o princípio da igualdade, que são,
inegavelmente, princípios de ordem constitucional, de cariz constitucional.
É por isso que também não se pode concordar com a douta decisão sumária, quando
na mesma se refere que a questão de constitucionalidade não foi tempestivamente
suscitada, e que os recorrentes não haviam suscitado na alegação do recurso para
o tribunal a quo, qualquer questão da validade constitucional das normas que
agora impugnam (sic).
Àquela altura, os apelantes referiram, expressamente, que a interpretação do
Tribunal de 1ª instância atentava contra o princípio constitucional ínsito no nº
4 do artigo 20º da C.R.P., o princípio de que todos têm direito a um processo
justo e equitativo.
Ponto é que a instância a quo não se pronunciou sobre a questão, nada disse
sobre o assunto, sotopondo e subestimando tão-somente a questão da
desnecessidade de se pronunciar sobre a não-junção dos recibos.
Por outro lado, a forma como os apelantes elaboraram a sua alegação recursória
permite intuir que, para os mesmos, a forma como o mesmo tribunal resolveu a
questão foi insólita, foi inesperada, imprevisível mesmo.
É quanto os autores pretendem seja ponderado e levado em consideração pela
Conferência.
Nestes termos e nos mais de direito, a reclamação deve ser, pois, atendida e, em
consequência, ser igualmente admitido o recurso, como é de JUSTIÇA.».
3 – Os reclamados não responderam.
4 – A decisão reclamada é do seguinte teor:
«1 – A. e outros recorrem para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, na sua actual versão (LTC), dos acórdãos do Tribunal da Relação de
Lisboa, de 31 de Maio de 2007 e de 17 de Janeiro de 2008, através do seguinte
requerimento:
«1. A presente acção foi movida com base em dois factos-fundamento de resolução
do contrato de arrendamento: a mudança de fim e a cedência ilícita, porque não
autorizada, da posição contratual.
A acção foi proposta contra os sucessores de B., pelo facto de o contrato ter
sido outorgado ao próprio e como tal participado à Repartição de Finanças
competente (vd. alínea “D” da matéria assente e nota 1, na pág. 5 do Ac.
proferido pelo tribunal a quo, com data de 31.05.2007).
Na contestação, vieram os réus alegar que o contrato não havia sido feito ao B.,
mas à sociedade comercial do tipo por quotas “E. & Filhos, Lda.”
Na decisão sub specie facti foi dado como provado que o contrato não fora feito
ao referenciado B., enquanto pessoa singular, visto que o mesmo nunca exercera
qualquer actividade comercial enquanto empresário em nome individual, mas sim à
igualmente supra citada sociedade por quotas da qual ele era sócio e gerente.
A acção foi julgada improcedente, pelo facto de se haver provado que o
arrendamento foi feito à apontada sociedade, como pelo facto ainda de não ter
sido provada qualquer mudança de fim ou ramo de negócio diverso do inicialmente
contratado.
Os autores levaram recurso da decisão, tendo o tribunal de 2ª instância negado
provimento ao mesmo e, de par com isso, mantido a sentença proferida pelo
tribunal a quo com o argumento de que tendo o contrato sido feito à sociedade, a
mesma não poderia ter cedido a sua posição contratual a si própria, como também
pela circunstância de não se ter provado qualquer mudança significativa de ramo
de negócio.
1. 1. Pois bem, como decorre da acta de audiência de julgamento, foi requerido
pelos autores que os réus fossem notificados para apresentar os últimos recibos,
respeitantes aos anos posteriores a 1995 e até à data em que a renda passou a
ser depositada na Caixa Geral de Depósitos (vd. acta cit., a fls. 422).
O M° Juiz deferiu ao requerido, ordenando a notificação da parte contrária para
juntar aos autos os ditos documentos no prazo de 10 (dez) dias. (ibidem).
Mas a verdade é que os réus não o fizeram, como nunca o quiseram fazer de resto.
Esse facto fez com que da parte dos autores, tivesse havido uma enérgica reacção
de não-aceitação e de não-resignação perante a atitude dir-se-ia irreverente e
aviltante dos réus em não quererem respeitar nem acatar a injunção judicial para
que apresentassem os tais recibos (vd., por exemplo, requerimentos ingressados
na Secretaria do Tribunal, a 19 e 20 de Maio de 2005).
Os autores chegaram a impetrar junto do Tribunal a notificação da empresa que
explora a Sapataria C. (pertencente ao Grupo “D.”), em ordem a que ela
disponibilizasse os pretendidos recibos.
O que foi uma vez mais deferido pelo Sr. Juiz da causa.
Mas mais: o Tribunal teve o cuidado de notificar o mandatário dos autores a fim
de que ele disponibilizasse a morada correcta dos escritórios dos “D.”, a fim de
ser feita a requerida e deferida notificação, o que se fez por requerimento
apresentado no dia 30 de Maio de 2005.
Mas a verdade é que nada! De recibos, nem o cheiro...
Naturalmente que os autores ficaram convencidos de que o Tribunal iria insistir
junto dos réus para que fornecessem os elementos solicitados. E mais ficaram
quando o tribunal pediu ao seu mandatário que indicasse o endereço certo do
Grupo “D.”.
E muito embora esta sociedade não houvesse feito a remessa dos recibos – para o
que havia sido expressamente notificada – dos recibos em nome do verdadeiro
arrendatário, fê-lo com respeito a muitos duplicados de depósitos de renda por
ela mesma efectuados.
Realizado o julgamento, decidiu-se sic et simpliciter que o arrendamento não
fora feito ao B., mas à sociedade “E. & Filhos”!!!
Os autores não aceitaram a decisão e recorreram, como se disse.
E na respectiva alegação, insistiram na questão (vd. conclusões “I” a VI”).
Ao que a Relação retorquiu: “Na sua alegação os Autores desenvolvem o tema dos
recibos, alegando longamente sobre o facto de os Réus os não terem junto ao
processo. Cremos que estão equivocados: o recibo da renda serve para provar o
seu pagamento, mas não é idóneo a, por si só, atestar a identidade do
arrendatário” (vd. pág. 7 do douto Ac.).
Os apelantes suscitaram a aclaração do acórdão, focando uma vez mais a “questão
dos recibos”, ao que o mesmo tribunal emitiu: “Daqui resulta com clareza que a
verdadeira inquilina é a sociedade e não os herdeiros do falecido B., que é
aliás alegação dos Réus desde a contestação. De onde resulta inútil apreciar as
consequências da não apresentação dos recibos de renda pelos Réus, pois seja
qual for o seu texto, quer os recibos estejam passados em nome de B. quer
estejam passados em nome da sociedade, a conclusão continuará a ser a de que a
arrendatária é a sociedade; a questão está pois – evidentemente – prejudicada”
(vd. pág. 2 do acórdão que se debruçou sobre o pedido de aclaração, sendo nosso
o sublinhado).
1. 2. Há que dizer antes de mais nada, que o pedido de apresentação dos recibos
foi feito antes de se mostrar decidido quem era, afinal, o arrendatário.
O Tribunal decidiu que o locatário é a sociedade, sem que os réus tivessem
apresentado os recibos que tinham, os muitos recibos que possuíam e que foram
emitidos em nome do B.. O Tribunal não podia decidir a questão da titularidade
do arrendamento sem que, primeiro, os réus tivessem junto os recibos que tinham.
Se estava em causa decidir quem era o locatário, se existiam recibos passados ao
B., como decidir que a locatária é a sociedade sem primeiro compulsar os recibos
existentes em nome do primeiro, sem insistir junto dos demandados para que o
fizessem impreterivelmente?!
Acresce que para poder decidir que o arrendatário não é o B., mas a sociedade, o
Tribunal teve que estribar-se nalguma coisa, julgando-se indubitavelmente que o
fez na base do conjunto de duplicados de depósitos efectuados pela sociedade
(uma grande parte do 3º volume dos autos é constituída por duplicados de
depósito de rendas efectuados pela sociedade).
Se o fez, é porque considerou que os tais duplicados de depósitos tinham
potencialidade para o efeito. Mas se assim foi, então também não podia decidir o
ponto sem que, primeiro, os réus tivessem apresentado os recibos passados ao B..
Isto parece claro!
Daí que o entendimento professado pela Relação de que os recibos de renda
(fossem quais fossem esses recibos ou seja qual for o seu texto, para utilizar a
terminologia do Acórdão que apreciou e decidiu o pedido de aclaração dos
apelantes) não eram idóneos para a prova da entidade que detém, na relação
locatícia, a posição de arrendatário, e de que resultava inútil apreciar as
consequências da não apresentação dos recibos de renda pelos réus, quando o
Julgador já havia decidido que a arrendatária era a sociedade (e quando para
decidir que a locatária é a sociedade, o tribunal teve que se louvar no conjunto
de duplicados de depósitos apresentados por esta), essa interpretação atenta
contra princípios axiais de ordem e cariz constitucional, como seja o caso do
princípio da igualdade, do contraditório e do direito ao processo justo e
equitativo, consagrado no nº 4 do artigo 20º da CRP, sendo do princípio do
contraditório que decorre em primeira linha, a regra fundamental da proibição da
indefesa (vd. doutos Acs. proferidos pelo Tribunal Constitucional, nºs 335/95 e
473/94, citados no igualmente douto Ac. nº 100/03, da 2ª secção, em que foi
relator, o Exmo. Sr. Juiz Conselheiro, Dr. Mário Torres).
Não se pode dizer que os recibos não são necessários, só por que já se havia
decidido, com base noutros recibos, posteriores aos primeiros, que a
arrendatária é a sociedade.
Pois que se assim aconteceu, foi apenas porque não se deu oportunidade à parte a
quem pertencia o ónus de demonstrar (quando existiam como existem elementos
objectivos e materiais bastantes para o efeito) que o inquilino, o verdadeiro
inquilino era o B..
Esta situação consubstancia, sem margem para quaisquer dúvidas, a indefesa dos
autores, violando a garantia de acesso aos tribunais para a defesa dos seus
direitos e interesses legítimos, uma questão de resto enfocada na alegação dos
apelantes.
Cumpre ainda referir que não passando recibo, o senhorio estará em condições de
negar a locação, e simular com êxito que apenas concedeu um comodato (vd. PINTO
FURTADO, Manual do Arrendamento Urbano, 2ª ed. 1999, pág. 1009 e passim).
Como quer que seja, como dispõe o artigo 787°, nº 1 do Código Civil, quem cumpre
a obrigação, tem o direito de exigir quitação daquele a quem é feita.
1. 3. A proibição da indefesa consiste na privação ou limitação do direito de
defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem
questões que lhes dizem respeito. Essa violação, como observam GOMES CANOTILHO e
VITAL MOREIRA, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas
processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a possibilidade de o
particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos
para os seus interesses (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª
ed., Coimbra, 1993, págs. 163/ 164, e Fundamentos da Constituição, Coimbra,
1991, págs. 82/83).
O direito de acesso aos tribunais, por outro lado, é um direito que implica que
a solução jurídica dos conflitos deve ser obtida em prazo razoável e com
observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se,
designadamente, um correcto funcionamento do contraditório, em termos de cada
uma das partes poder deduzir as sua razões (de facto e de direito), oferecer as
suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor de uma
e outras (vd. douto Ac. do TC nº 86/88, publicado no DR, II Série, de 22 de
Agosto de 1988).
O facto de o tribunal da Relação dizer que não se tornava necessário discutir a
questão dos recibos passados em nome do B., quando para julgar a questão da
titularidade do arrendamento se tornou necessário verificar se existiam ou não
recibos de renda ou de depósitos de rendas, isso traduz uma restrição
constitucionalmente intolerável do direito de defesa.
O entendimento da instância a quo em não atender a esse natural direito dos
autores a poderem fazer a prova da qualidade de arrendatário na relação de
arrendamento invocada, que funcionava como um pressuposto e antecedente lógico
da acção, não consubstancia um tratamento equitativo das partes nem a
efectividade da tutela jurisdicional, não podendo deixar de ser considerado como
violador do princípio da proibição da indefesa, previsto no artigo 20º da
Constituição da República Portuguesa.
Deverá, por isso, ser julgada inconstitucional, por violação do princípio da
violação da indefesa, previsto no artigo 20° da Constituição da República
Portuguesa, a norma do artigo 787° do Código Civil, na interpretação segundo a
qual, o recibo de quitação relativamente às rendas não serve para atestar a
identidade do arrendatário, uma identidade que pode (pelos vistos!) ser
comprovada pela exibição de duplicados de depósitos de renda posteriormente
efectuados por terceiros, como foi justamente o que sucedeu no caso vertente, em
que, ficando os autores arredados de fazer a prova do contrato feito ao B., que
pagou uma infinidade de rendas ao senhorio e a quem o mesmo emitiu recibos de
quitação que ficaram na posse dele, concedeu-se aos réus a possibilidade de o
poderem provar através dos duplicados de depósitos efectuados por um terceiro,
no caso, a sociedade “E. & filhos, Lda.”
Mas isto não é tudo.
2. No pedido de aclaração apresentado pelos apelantes, os mesmos referiram que o
Julgador havia dado por não-verificado o facto-fundamento da mudança de fim ou
de ramo, utilizando para tanto uma argumentação que não constava dos autos, na
sequência, aliás, de quanto já haviam referido na conclusão “XVIII” da
respectiva alegação.
Mas a verdade é que se tivesse havido alguma vontade de perscrutar o sentido que
os apelantes pretenderam atribuir ao vocábulo “argumentação” (e sabemos que os
actos, como também as peças processuais podem e devem ser interpretadas, até por
que, como diz S. Fish, o sentido literal independente do contexto não existe),
facilmente se chegaria à conclusão de que os mesmos pretenderam dizer que o
Julgador se havia louvado em factos que não haviam sido alegados pelos réus.
Isso mesmo se mostra referido no corpo da alegação, na página 31.
Se os réus disseram que a utilização do locado para o conserto de sapatos não
causara ao prédio maior desgaste, nem qualquer tipo de deterioração ou
destruição, já quanto à utilização do mesmo para guarda de artigos ortopédicos,
os réus nada disseram. Antes confessaram o facto.
A causa resolutiva foi, assim, dado como não-provada, mas sem que para o efeito
os réus tivessem alegado o quer que seja.
E que disse a Relação quanto a isso, na sequência do pedido de aclaração
apresentado pelos apelantes?
Referiu que “ (...) o Tribunal pode usar de todas as argumentações que bem
entender desde que tenham interesse para a causa, nem consta seguramente na lei
do processo qualquer disposição que sancione o uso de argumentações não
constantes dos autos pelos Juízes” (vd. Ac. de 17.01.2008).
Assim se pronunciando, a Relação viola o princípio do Estado de Direito
Democrático (CRP, arts. 2° e 9°, alínea b), o princípio da igualdade (CRP, art.
13°), bem como o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva,
consagrado no artigo 20° da Lei Fundamental.
A garantia da via judiciária envolve a atribuição aos interessados legítimos do
direito de acção judicial, destinado a efectivar todas as situações
juridicamente relevantes que o direito substantivo lhes conceda, mas também a
garantia de que o processo, uma vez iniciado, se deve subordinar a determinados
princípios e garantias fundamentais, como é justamente o caso dos princípios da
igualdade, do contraditório e a regra do processo equitativo (são palavras
pedidas emprestadas ao Dr. Lopes do Rego, exaradas no Estudo intitulado “Os
princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos
ónus e cominações e o regime de citação em processo civil”, nos Estudos em
Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra, 2003, págs.
835/859).
Deverá, por isso, ser julgada inconstitucional, por violação dos princípios do
Estado de Direito Democrático, do princípio da igualdade e do princípio do
acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, na sua vertente de que todos
têm direito a um processo justo e equitativo, como também por violação do
princípio da violação da indefesa, previstos na Constituição da República
Portuguesa, as normas ínsitas nos artigos 660° e 664° do Código de Processo
Civil, na interpretação segundo a qual, o Tribunal pode usar de todas as
argumentações (com o sentido que os apelantes atribuíram ao lexema verbal) que
bem entender desde que tenham interesse para a causa, mesmo que se fundamente em
factos não articulados pelas partes, nem constantes dos autos.
O recurso sobe nos próprios autos e tem efeito suspensivo».
2 – Os ora recorrentes interpuseram no Tribunal Judicial da Comarca
do Funchal acção de despejo de um prédio contra F. e outros, pedindo a resolução
do contrato de arrendamento com base, em síntese, na utilização do arrendado
para fim ou ramo de negócio diverso daquele a que se destina [art.º 64.º, n.º 1,
alínea b) do RAU] e no subarrendamento ou empréstimo, total ou parcial, do
prédio arrendado, ou na cessação ilícita da posição contratual, nos casos em que
estes actos são ilícitos, inválidos por falta de forma ou ineficazes em relação
ao senhorio, salvo o disposto no art. 1049.º do Código Civil [n.º 1, alínea f)
do mesmo artigo do RAU].
3 – A acção foi julgada improcedente por sentença da 1.ª instância.
4 – Inconformados os AA. interpuseram recurso para o Tribunal da
Relação, sintetizando nas seguintes conclusões as razões antes expendidas nas
alegações:
«I) – A recusa dos réus na apresentação dos recibos de renda
entregues pelo senhorio no escritório da sapataria C., e cuja existência foi
confirmada em audiência de discussão e julgamento, não pode deixar de ser
apreciada pelo Tribunal, nos termos do preceituado no nº 2 do artigo 519° do
Código de Processo Civil.
II) – Tais recibos, emitidos em nome do B., servem para demonstrar que o
arrendamento do rés-do-chão do prédio identificado no artigo 3° da petição
inicial, foi-lhe dado “a ele”, existe na sua titularidade, que não na
titularidade da sociedade “E. & Filhos, Lda.”.
III) – O facto de, a partir de certa altura, a renda passar a ser depositada na
Caixa Geral de Depósitos, através da redita sociedade, não releva para se poder
dar como provado que a arrendatária foi essa mesma sociedade, subestimando o
facto de os recibos terem sido emitidos em nome do B..
IV) – Resultam, assim, incorrectamente julgados, os pontos de facto constantes
da base instrutória, sob os nºs 8, 13, 14, 15, 27, 28 e 34, onde se abarca a
questão da titularidade da relação arrendatícia discutida nos autos.
V) – Para prova da existência dos tais recibos, ou o que vai dar no mesmo, a
título de meios probatórios constantes do processo e neste caso, da gravação
nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, os autores indicam
determinados segmentos das declarações prestadas pelas testemunhas H. e L., cuja
transcrição se mostra efectuada no corpo da alegação, ou mais precisamente nos
itens 2 e 7 da motivação, pelo que descabe, por absoluta redundância e perda de
tempo, fazê-lo de novo neste local.
VI) – A recusa dos réus quanto à apresentação dos recibos em nome do B. só
poderá ser explicada pelo receio que os mesmos tiveram de o fazer, dada a mais
do que óbvia possibilidade de com isso os autores poderem comprovar a cessão da
posição contratual feita à sociedade, ou quando menos, o empréstimo do locado à
mesma.
VII) – Mostra-se desta forma incorrectamente julgado o ponto de facto, na base
instrutória sob o nº 10.
VIII) – Apesar do objecto da sociedade não ser o comércio de calçado e qualquer
outro, porquanto de acordo com a certidão apresentada pelos réus com a
contestação (certificada a fls. 60, mas especialmente a fls. 67), o escopo da
referida sociedade comercial cinge-se apenas ao comércio de calçado, a verdade é
que se mostra confessado no artigo 21° da contestação que a sociedade em questão
se dedicava ao comércio de calçado, artigos e aparelhos ortopédicos, malas, e
diversos acessórios, entre outros artigos, sendo todos eles armazenados no
locado.
IX) – Encontrando-se confessado o facto, não havia que o provar de novo, dado o
valor da confissão enquanto meio probatório.
X) – Não atenta contra o princípio da indivisibilidade da confissão, o facto de
os autores não terem aceite, na resposta, que a sociedade “E.... & Filhos, Lda.”
podia dedicar-se ao comércio de artigos e aparelhos ortopédicos, pois que quem o
faz é uma outra sociedade, denominada “D., Lda.”, proprietária do “G.”, à Rua da
…, na cidade do Funchal.
XI) – Não o tendo aceite, naturalmente que estribados na certidão já referida, o
facto é que a confissão a propósito da armazenagem no locado de artigos e
aparelhos ortopédicos não foi rejeitada pelos demandantes, como não foi retirada
pelos réus, mantendo, por isso, toda a sua força probatória, que é pleníssima.
XII) – A força probatória plena da confissão manter-se-á quanto ao facto
desfavorável ao confitente, desde que a contraparte prove, por qualquer meio, a
inexactidão dos factos favoráveis ao confitente, por ele aditados à declaração
confessória.
XIII) – Mostra-se, assim, incorrectamente julgado o ponto de facto sob o nº 16,
indicando-se a certidão já referida, a título de concreto meio probatório
constante do processo, que impunha decisão diversa da recorrida.
XIV) – O Tribunal não se pode pronunciar sobre quesito que esteja plenamente
provado por confissão judicial escrita, sob pena de a resposta ser havida como
não escrita, cabendo ao juiz levar em linha de conta os factos provados por
confissão, de acordo com a orientação traçada nos artigos 646°, 4, 653°, 2 e
659°, 3 do Código de Processo Civil.
XV) – Tendo o locado sido arrendado para armazém de apoio à sapataria C., se se
mostra confessado e mesmo provado, que são aí armazenados artigos e aparelhos
ortopédicos, é quanto basta para se poder dar como demonstrada a mudança de fim
ou de ramo de negócio diverso do autorizado.
XVI) – Com efeito, os autores não têm que provar a gravidade da infracção, pois
que não se está em sede do direito comum de resolução por incumprimento, sendo
suficiente que ela revista um daqueles tipos ou modalidades taxativamente
fixadas no artigo 64° do RAU, como não cabe ao juiz apreciar a importância da
violação para efeitos resolutivos.
XVII) – Acresce que, não tendo os réus aduzido matéria de excepção peremptória
na contestação, relativamente à matéria em análise, isto é, à mudança de fim ou
ramo de negócio, também não poderia ser o Julgador a invocar factos não alegados
pelos demandados, designadamente a provisoriedade, ocasionalidade ou
transitoriedade da existência dos aparelhos ortopédicos no locado, dizendo que
não bastava um simples uso acidental ou isolado, para neutralizar a verificação
do fundamento exercitado, que de resto, foi por eles confessado a todo o
comprimento e sem qualquer reserva.
XVIII) – E o facto do Julgador ter decidido dar por não-verificado o
facto-fundamento invocado, utilizando para tal uma argumentação inexistente
(pois que quod non est in actis non est in mundo), porque também não adscrita
pela parte a quem incumbe o ónus de prova do facto e que no caso só podiam ser
os réus, faz com que a sentença seja nula, nos termos do disposto na alínea d),
2ª parte, do nº 1, do artigo 668° do Código de Processo Civil.
XIX) – De modo que foi incorrectamente julgado o ponto de facto relativo à
mudança de fim ou de ramo diferente do estipulado no contrato de arrendamento,
uma vez que o locado é igualmente utilizado para a guarda de material
ortopédico, que não é comercializado pela sapataria C., mas pela sociedade do
tipo por quotas, denominada “D., Lda.”, num outro estabelecimento comercial,
chamado G., situado na Rua …, no Funchal.
XX) – Como concretos elementos de prova, constantes do processo e da gravação
nele efectuada quanto a esta matéria, que impunham decisão diversa da recorrida,
os autores indicam as declarações prestadas pelas testemunhas, H., I. e J., cuja
delimitação e especificação dos depoimentos são os mesmos que ficaram indicados
no corpo da motivação, não se afigurando necessária a sua repetição neste local.
XXI) – Concorre igualmente para a verificação da espécie, a confissão a que
temos vindo a fazer referência, não sendo despicienda a questão, igualmente
confessada no artigo 24º, no sentido de que a loja a que os autores se terão
referido no artigo 17º da petição, “é aquela que é explorada pela sociedade “D.,
Lda. ‘ sita à Rua …”.
XXII) – Mostra-se igualmente relevante para a prova da afectação a fim
diferente, o facto sobre que assentava o ponto nº 58 da base instrutória, qual
seja o de a chave do locado não se encontrar na C. mas na posse do motorista da
carrinha que faz a distribuição pelas demais Sapatarias e pelo Hospital, no dia
em que a co-autora decidiu visitar o interior do rés-do-chão arrendado.
XXIII) – A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 352°, 355°, 1 e 2,
356°, 1, 357°, 1, 358°, 1 e 371°, 1 do Código Civil, artigos 519°, 2, 646°, 4,
653°, 2, 659°, 3 e 668°, 1, alínea d), 2 parte do Código de Processo Civil, além
dos artigos 64°, 1, alíneas b) e f) do RAU».
5 – A Relação julgou improcedente a apelação, discreteando, após
fazer menção da matéria de facto vinda como provada da 1.ª instância, do
seguinte jeito:
«Os Autores alegam que o ponto 10 da base instrutória foi mal julgado.
Rezava o seguinte:
Os Réus subarrendaram ou emprestaram a loja arrendada à sociedade “E. & Filhos,
Lda.”, que vem utilizando o locado como armazém ou depósito de mercadorias
afectas ao seu escopo comercial?
E mereceu a resposta “Não provado”.
Na sua alegação os Autores desenvolvem o tema dos recibos, alegando longamente
sobre o facto de os Réus os não terem junto ao processo.
Cremos que estão equivocados: o recibo da renda serve para provar o seu
pagamento, mas não é idóneo a, por si só, atestar a identidade do arrendatário.
Aliás, face aos factos provados supra sob os nºs 13 e 14, a presente acção está
inevitavelmente votada ao naufrágio.
Apurado que o prédio em causa não foi dado de arrendamento a B., enquanto pessoa
singular, sendo certo que este nunca exerceu qualquer actividade comercial
enquanto empresário em nome individual; e que foi arrendado, sim, à sociedade
comercial E. & Filhos, Lda., de que o referido B. era sócio gerente, apurado que
a acção não foi proposta contra a arrendatária sociedade, teria de dar-se por
verificada a ilegitimidade dos Réus, pois não são titulares da relação jurídica
controvertida - porém, uma vez que a legitimidade já está declarada com trânsito
(fls. 106), a questão já não se coloca nesta fase.
De qualquer modo, provando-se que B. era gerente da dita sociedade e que não
exercia o comércio em nome individual e provando-se que o arrendamento tinha fim
comercial, a conclusão é mais ou menos evidente: a beneficiária do contrato foi
a sociedade e não a pessoa singular.
A sociedade não foi sequer demandada, pelo que o processo não pode quanto a ela
produzir efeitos.
Ainda que tal obstáculo fosse ultrapassável, não vemos como podia a acção
proceder com fundamento em uso diverso do contratado, pois, para além de não
haver contrato escrito com a indicação do ramo de negócio que a arrendatária
pode desenvolver no locado, não se provam quaisquer factos que indiciem um
qualquer uso irregular susceptível de fundamentar despejo.
Finalmente, atento o facto de a arrendatária ser a sociedade, perde o sentido a
alegação da sub-locação a seu favor, impossível por natureza – a sociedade não
pode sub-locar a si própria o local de que é arrendatária.
Assim, em qualquer caso, a acção teria de improceder.
Como improcede a apelação.
III – Decisão.
De harmonia com o exposto, acordam os Juízes desta Relação em declarar
improcedente a apelação, confirmando-se a douta sentença do Tribunal a quo.
Custas pelos apelantes».
6 – Arguíram, então, os AA. a nulidade do acórdão da Relação,
invocando o disposto no art.º 668.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo
Civil, por, entre o mais, este não ter conhecido da questão posta, relativamente
à sentença da 1.ª instância, de “na parte em que se dá por não verificado o
fundamento da mudança de fim ou ramo” utilizar uma argumentação que não constava
dos autos”.
7 – O pedido foi desatendido, por acórdão de 17 de Janeiro de 2008,
dizendo-se quanto ao problema referido no numero anterior:
«[…]
Não vemos em que é que o Tribunal de 1.ª instância usou uma
“argumentação que não constava dos autos” mas ponderamos que o Tribunal pode
usar de todas as argumentações que bem entender desde que tenham interesse para
a causa, nem consta seguramente na lei do processo qualquer disposição que
sancione o uso de argumentações não constantes dos autos pelos Juízes”.
8 – O recurso de constitucionalidade foi admitido pelo tribunal a
quo. Esta circunstância não impede que o Tribunal Constitucional não conheça do
recurso, dado aquela decisão não o vincular, como se estabelece no n.º 3 do
art.º 76.º da LTC.
E porque se configura uma situação que se enquadra na hipótese
recortada no n.º 1 do art.º 78.º-A, da mesma LTC passa a decidir-se
imediatamente.
9.1 – Estabelecem os art.ºs 280º, n.º 1, al. b), da CRP, e 70º, n.º1, al. b), da
LTC que cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões dos tribunais
que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o
processo.
Segundo a jurisprudência constante e uniforme deste Tribunal, só podem
constituir objecto desse recurso constitucional normas jurídicas que tenham
constituído ratio decidendi da decisão (cf., por exemplo, o Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 18/96, publicado no DR II Série, de 15 de Maio de 1996, e J.
J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra,
1998, p. 821).
O recurso de constitucionalidade, tal como foi gizado pelo legislador
constitucional – com natureza instrumental e relativamente a normas jurídicas -,
tem em vista o controlo da conformidade com a Constituição (as normas e
princípios constitucionais) das normas jurídicas que tenham sido convocadas como
suporte normativo da concreta decisão proferida.
Sendo assim, estão arredados do objecto do recurso os outros actos admitidos na
ordem jurídica, embora estes façam aplicação directa das normas e princípios
constitucionais, como acontece com as decisões judiciais (sentenças e
despachos), os actos administrativos e os actos políticos.
Deste modo, não pode, no recurso de constitucionalidade, sindicar-se a correcção
jurídica da sentença, seja no que se refere à determinação, no plano do direito
infraconstitucional, da norma aplicada ao caso, seja no que importa à operação
de subsunção das circunstâncias do caso ao quadro normativo elegido e ao
resultado de uma tal actividade cognitivo-decisória, seja mesmo no que concerne
à aplicação que a mesma faça directamente das normas de direito
infraconstitucional e das normas e princípios constitucionais.
A violação directa das normas e princípios constitucionais pela decisão
judicial, atenta a circunstância de não vigorar entre nós o meio constitucional
do recurso de amparo, apenas pode ser conhecida no plano dos recursos de
instância previstos na respectiva ordem de tribunais.
Não obstante o recurso de constitucionalidade respeitar a uma decisão judicial e
a decisão naquele proferida no sentido da inconstitucionalidade ou da
constitucionalidade da(s) norma(s) jurídica(s) nele sindicadas poder afectar a
manutenção da decisão, na medida em que um juízo nele tirado sobre a questão de
constitucionalidade em sentido desconforme com o efectuado na decisão proferida
pelo tribunal recorrido obrigará à reforma desta, o objecto do recurso é tão só
a norma jurídica que constitua a ratio decidendi da decisão. Nesse recurso
apenas cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre se a norma jurídica
concretamente aplicada é ou não constitucionalmente válida.
Acresce, por outro lado, que a questão de inconstitucionalidade dessas normas
há-de ser suscitada em tempo e de modo funcionalmente adequado para que o
tribunal recorrido pudesse conhecer dela.
Como nota José Manuel M. Cardoso da Costa (A jurisdição constitucional em
Portugal, 3.ª edição revista e actualizada, 2007, págs. 40 e segs.), «quanto ao
controlo concreto – ao controlo incidental da constitucionalidade (…), no
decurso de um processo judicial, de uma norma nele aplicável – não cabe o mesmo,
em primeira linha, ao Tribunal Constitucional, mas ao tribunal do processo. Na
verdade, não obstante a instituição de uma jurisdição constitucional autónoma,
manteve-se na Constituição de 1976, mesmo depois de revista, o princípio, vindo
das Constituições anteriores (…), segundo o qual todos os tribunais podem e
devem, não só verificar a conformidade constitucional das normas aplicáveis aos
feitos em juízo, como recusar a aplicação das que considerarem inconstitucionais
(…). Este allgemeinen richterlichen Prüfungs - und Verwerfungsrecht encontra-se
consagrado expressamente (…), e com o reconhecimento dele a Constituição vigente
permanece fiel ao princípio, tradicional e característico do direito
constitucional português, do “acesso” directo dos tribunais à Constituição (…).
Quando, porém, se trate de recurso de decisão de aplicação de uma norma (…) é
ainda necessário que a questão da inconstitucionalidade haja sido suscitada
durante o processo, em consequência do que o juiz tomou posição sobre ela (…).
Compreende-se, na verdade, que a invocação da inconstitucionalidade unicamente
ex post factum (depois de proferida a decisão) não seja suficiente para abrir o
recurso para o Tribunal Constitucional (sob pena, além do mais, de se converter
num mero expediente processual dilatório)».
Torna-se, pois, necessário que a questão de inconstitucionalidade tenha sido
suscitada durante o processo. A suscitação durante o processo tem sido
entendida, de forma reiterada pelo Tribunal, como sendo a efectuada em momento
funcionalmente adequado, ou seja, em que o tribunal recorrido pudesse dela
conhecer por não estar esgotado o seu poder jurisdicional. É evidente a razão de
ser deste entendimento: o que se visa é que o tribunal recorrido seja colocado
perante a questão da validade da norma que convoca como fundamento da decisão
recorrida e que o Tribunal Constitucional, que conhece da questão por via de
recurso, não assuma uma posição de substituição à instância recorrida, de
conhecimento da questão de constitucionalidade fora da via de recurso. É por
isso que se entende que não constituem já momentos processualmente idóneos
aqueles que são abrangidos pelos incidentes de arguição de nulidades, pedidos de
aclaração e de reforma, dado terem por escopo não a obtenção de decisão com
aplicação da norma, mas a sua anulação, esclarecimento ou modificação, com base
em questão nova sobre a qual o tribunal não se poderia ter pronunciado (cf.,
entre outros, os Acórdãos n.º 496/99, publicado no Diário da República II Série,
de 17 de Julho de 1996, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33.º vol., p.
663; n.º 374/00, publicado no Diário da República II Série, de 13 de Julho de
2000, BMJ 499.º, p. 77, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47.º vol.,
pp.713; n.º 674/99, publicado no Diário da República II Série, de 25 de
Fevereiro de 2000, BMJ 492.º, p. 62, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 45.º
vol., p. 559; n.º 155/00, publicado no Diário da República II Série, de 9 de
Outubro de 2000, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46.º vol., p. 821, e n.º
364/00, inédito).
9.2 – Ora, apreciando o requerimento de interposição de recurso de
constitucionalidade, verifica-se que o que os recorrentes verdadeiramente
pretendem é discutir a correcção das decisões recorridas quanto a vários pontos
da sua fundamentação.
Na verdade, sob a capa do questionamento da constitucionalidade do
art.º 787.º do Código Civil, o que os recorrentes põem em causa é, por um lado,
a correcção da actividade instrutória levada a cabo pelo tribunal, a pedido dos
AA., com vista à junção aos autos dos recibos de quitação das rendas que foram
pagas relativamente ao locado, e, por outro, a bondade do resultado do juízo
probatório tirado pela decisão recorrida sobre os factos alegados na acção com
base nas específicas provas produzidas nos mesmos autos.
Sustentam, em resumo, os recorrentes que o tribunal deveria atribuir
credibilidade ao depoimento de testemunhas ouvidas em audiência no sentido de
haverem sido passados recibos de pagamento de rendas em nome individual de B. e,
congruentemente, determinar diligências para a sua apresentação ou, então,
concluir que existem esses recibos, apenas não sendo juntos aos autos por os RR.
os sonegarem, e que daí só poderá extrair-se o juízo de que o contrato foi
celebrado com o B. em nome próprio e não como representante da sociedade.
Em ponto algum do acórdão recorrido se sustenta, porém, que os
recibos de renda não são, em si ou conjugadamente com outros meios de prova, em
abstracto, documentos idóneos para poderem representar o facto da entidade que
assume a posição de arrendatário no contrato de arrendamento.
O que se diz é que, tendo o tribunal considerado provado que o
contrato de arrendamento foi celebrado em nome da sociedade, pelo seu gerente
B., “resulta inútil apreciar as consequências da não apresentação dos recibos de
renda pelos Réus, pois seja qual for o seu texto, quer os recibos estejam
passados em nome de B. quer estejam passados em nome da sociedade, a conclusão
continuará a ser a de que a arrendatária é a sociedade”.
Dimana claramente desta asserção que o tribunal, não ignorando o
estatuído na segunda parte do n.º 2 do art.º 519.º do Código de Processo Civil,
nos termos do qual “se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o
valor da recusa [da apresentação do documento] para efeitos probatórios (…)”,
cuja aplicação fora alegada pelos recorrentes, teve como inteiramente provado,
no âmbito da livre apreciação das concretas provas que foram produzidas nos
autos, que o contrato fora efectivamente celebrado pela sociedade, e que os
termos específicos em que os recibos houvessem sido emitidos, fossem eles quais
forem, e como tal antecipados, não tinham a possibilidade de, segundo o mesmo
princípio de apreciação, concretamente inverterem esse firme juízo afirmativo.
Os recorrentes questionam, pois, a decisão judicial em si própria,
como se o recurso de constitucionalidade fosse um recurso de instância em que
fosse possível o reexame da questão de facto e de direito infraconstitucional.
Pugnam, ainda, os recorrentes pela apreciação da constitucionalidade
das “normas ínsitas nos artigos 660.º e 664.º do Código de Processo Civil, na
interpretação segundo a qual o Tribunal pode usar de todas as argumentações com
o sentido que os apelantes atribuíram ao lexema verbal que bem entender desde
que tenham interesse para a causa, mesmo que se fundamente em factos não
articulados pelas partes, nem constantes dos autos”.
Ora, em primeira linha, constata-se que o acórdão recorrido decidiu
a questão alegada de que a decisão por ele conhecida utilizara “argumentação que
não constava dos autos” e que tal consubstanciava uma nulidade da decisão
subsumível ao art.º 668.º, n.º 1, alínea d), segunda parte, do CPC, no sentido
de que tal não acontecia, afirmando que não via em que é que o Tribunal de 1.ª
instância o fizera.
Esta é a essencial ratio decidendi do decidido quanto à questão
posta. Trata-se, assim, de uma ponderação concreta efectuada no domínio
processual cuja correcção não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar.
Mas, para além de tal facto, verifica-se que, independentemente da
questão de saber se a decisão recorrida fez aplicação de tais preceitos de
direito positivo, dado que jamais os mesmos foram antes convocados, o certo é
que esta não atribuiu seguramente ao vocábulo “argumentações” o mesmo sentido
que os recorrentes lhe associam – o de questões ou fundamentos de facto ou de
direito da decisão – e muito menos considerou que a decisão se pudesse
fundamentar em factos não articulados pelas partes, nem constantes dos autos.
A decisão recorrida atribui à palavra “argumentações” o sentido de
conjunto de razões com que, num processo de raciocínio, se pode sustentar,
rebater ou tirar ilações ou consequências relativamente à alegada mudança de fim
ou de ramo do arrendado, sem que tais razões se concretizem em factos ou
questões que tenham de ser alegadas pelas partes ou que devam constar dos autos.
Não fez, pois, a decisão recorrida aplicação da norma que se
pretende sindicar constitucionalmente.
Por último, importa, ainda, notar que, mesmo a admitir-se que a
decisão recorrida houvesse feito aplicação, como ratio decidendi, das normas
cuja apreciação constitucional se pretende, sempre se teria de concluir pela
falta do pressuposto específico do recurso de constitucionalidade traduzido na
adequada e tempestiva suscitação das questões de constitucionalidade.
É que os recorrentes não suscitaram, nas alegações do recurso para o
tribunal a quo, qualquer questão da validade constitucional das normas que agora
impugnam, nem tão pouco, independentemente de tal afirmação ser ou não atendida,
alegaram ser caso de normas cuja utilização por parte da decisão recorrida, e
com o sentido que foi por eles definido no requerimento de interposição de
recurso, era de todo “insólita” e “imprevisível”, sendo que o prévio juízo de
prognose relativo à aplicação das normas apenas pode ser dispensado quando ele
for desrazoável e inadequado dentro dos quadros da prudência técnica exigível de
quem exerce o mandato forense por profissão.
10 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide não tomar conhecimento do recurso, condenando os recorrentes nas custas,
fixando a taxa de justiça em 8 UCs.».
B – Fundamentação
5 – Os reclamantes repetem no arrazoado da sua reclamação a
argumentação desenvolvida no requerimento de interposição de recurso sobre a
qual se pronunciou a decisão ora reclamada.
É por demais claro que o que os reclamantes controvertem é a
correcção da decisão judicial em si própria, quer quanto ao seu momento
determinativo, no plano do direito infraconstitucional, do direito aplicado,
quer quanto ao seu momento aplicativo-subsuntivo, tal qual já o fizeram nas
alegações de recurso para o Tribunal da Relação agora recorrido.
Na verdade, e no tocante ao art.º 787.º do Código Civil, o que se
passa é que os reclamantes sustentam uma dimensão normativa que não foi aplicada
pela decisão recorrida, qual seja a de que o meio de prova dos recibos de renda,
por si só ou conjugadamente com outros meios de prova, só pode conduzir à prova
do facto de que o contrato de arrendamento foi celebrado, intervindo na
qualidade de arrendatário, quem figura no recibo como a pessoa a quem é dada a
quitação.
Diversamente, como se diz na decisão reclamada, o entendeu o acórdão
recorrido, para quem a ocorrência desse resultado não é necessária mas apenas
possível, não ocorrendo na concreta ponderação probatória efectuada.
Nesta medida, não pode, sequer, sustentar-se ter a concreta dimensão
normativa pretendida sindicar constitucionalmente, constituído a sua ratio
decidendi.
Sendo de acolher a fundamentação da decisão reclamada, é de
indeferir a reclamação.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação e condenar os reclamantes nas custas, fixando a
taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 31 de Julho de 2008
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos