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Processo n.º 35/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto
no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua
actual versão (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29 de
Novembro de 2007, que lhe rejeitou por manifesta improcedência o recurso
interposto de despacho do juiz do 1.º Juízo Criminal de Almada, proferido no
Proc. n.º 3004/95.0 JA PRT, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da
norma do “artigo 5.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, na parte em
que, ao conceder o perdão sob condição resolutiva de reparação do lesado da
indemnização que lhe é devida, a satisfazer nos 90 dias imediatos à notificação
que deve para o efeito ser feita ao condenado, prejudica o condenado em razão da
sua situação económica (artigo 13.º, n.º 2), não considerando o condenado igual
perante a lei (artigo 13.º, n.º 1), e restringe os seus direitos, liberdades e
garantias (artigo 18.º, n.º 2), sem que essa restrição de direitos, liberdades e
garantias revista carácter geral e abstracto (artigo 18.º, n.º 3, todos da
Constituição da República Portuguesa)”.
2 – A recorrente foi condenada criminalmente, juntamente com outras
duas arguidas, na pena efectiva de 2 anos e 6 meses de prisão e, solidariamente,
em indemnização à ofendida.
A recorrente apenas cumpriu parte dessa pena, tendo beneficiado do
perdão de um ano de prisão, ao abrigo da Lei n.º 29/99, mas sob a condição de
satisfazer a indemnização em que fora condenada no prazo de 90 dias imediatos à
notificação que para o efeito lhe foi feita.
Entendendo haver satisfeito esta condição resolutiva, a arguida
requereu ao tribunal da condenação que a considerasse cumprida, por estar a
pagar a dívida emergente da condenação em processo de execução, mediante penhora
de parte do seu salário, e, caso assim se não pensasse, que lhe fosse concedido
novo prazo de 90 dias a contar de notificação para o efeito.
A pretensão da recorrente, sob qualquer das suas vertentes, foi
desatendida por decisão da 1.ª instância.
Inconformada, a arguida recorreu para o Tribunal da Relação de
Lisboa, continuando a defender os seus já referidos pontos de vista e suscitando
a questão da inconstitucionalidade do art.º 5.º, n.ºs 1 e 5, da Lei n.º 29/99,
porque “prejudica o condenado em razão da sua situação económica (art.º 13.º,
n.º 2), não considerando o condenado igual perante a lei (art.º 13.º, n.º 1), e
restringindo os seus direitos, liberdades e garantias (art.º 18.º, n.º 2), sem
que essa restrição de direitos, liberdades e garantias revista carácter geral e
abstracto (art.º 18.º, n.º 3, todos da Const. da República Portuguesa)”.
3 – O tribunal ora recorrido rejeitou, por manifesta improcedência,
o recurso interposto, tendo-se abonado para decidir a questão de
inconstitucionalidade que lhe fora colocada nas seguintes considerações:
«VIII. Resta, agora, dedicar a atenção merecida à invocação da
inconstitucionalidade dos nºs 1 e 2, do art. 5°, da Lei nº 29/99, por violação
do princípio da igualdade dos cidadãos, consagrada no art. 13º nºs 1 e 2 e 18º
nºs 2 e 3, da CRP.
O tratamento jurídico do princípio da igualdade, enquanto princípio estruturante
do sistema constitucional global, com o significado de que ninguém pode ser
beneficiado, prejudicado ou privado de qualquer direito em função, além do mais,
da situação económica, tem sido objecto de tratamento jurisprudencial uniforme
no sentido de, numa das suas irradiações, proibir discriminações injustificadas,
visto o disposto no art. 13º nº 1, da CRP. O preceito apenas veda o tratamento
desigual daquilo que é igual, não já diferenciação de tratamento de situações
desiguais.
O princípio da igualdade desdobra-se, assim, na obrigação de tratar de forma
igual aquilo que é igual e desigual aquilo que é desigual. A obrigação de
diferenciação surge como a forma mais justa, logo em manifestação do princípio
da igualdade, de tratar situações desiguais.
O que se exige, para actuação prática do princípio, é que as medidas sejam
materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da
proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiam em qualquer
motivo constitucionalmente impróprio. As diferenciações são legítimas quando
assentam numa distinção objectiva de situações, tenham em vista um fim legítimo
e se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas ao seu objectivo (cfr.
Constituição da República Portuguesa, Anotada, Coimbra Editora, 128, Profs.
Gomes Canotilho e Vital Moreira).
A recorrente, sem, no entanto, aduzir uma verdadeira razão de
inconstitucionalidade por ofensa ao princípio da igualdade na revogação do
perdão por incumprimento da função de reparar os danos que causou com a sua
conduta criminalmente ilícita, não tem razão na invocação que faz. De facto a
revogação do perdão por incumprimento da reparação apenas se aplica aos
condenados que não hajam cumprido a obrigação de reparação, não se podendo dizer
que seja materialmente injusta aquela obrigação; que esta seja “irrazoável e
arbitrária” (cfr. o Ac. do TC, nº 108/99, DR II Série, de 1/4/99). É razoável,
justo e proporcionado que o legislador, se o arguido quer beneficiar do perdão
de pena de prisão, ponha a seu encargo a satisfação dos prejuízos que causou; o
Estado pode dispor do seu poder punitivo, mas já não pode (ou deve) dispor do
interesse do lesado, assegurado por um poder soberano.
Por outro lado do que se trata, com a imposição legal em causa não é de
prejudicar alguém em virtude da sua situação económica, mas outrossim de impedir
incondicionalmente que o obrigado prive o lesado de ser ressarcido, o que
redundaria em seu injustificado desfavor; ao fim e ao cabo tratando-se
diferenciadamente quem o deve ser.
Também se não trata de tratar o arguido que foi condenado pela prática de grave
crime de natureza patrimonial, que por deficiência económica se não acha em
condições de satisfazer a condição do perdão, de forma diferenciada dos
restantes cidadãos que, por deficientes condições económicas não satisfazem as
suas dívidas, porque aqueles cometeram um crime, sendo a reparação imposta em
condenação a consequência da prática do ilícito, nos termos do art. 129°, do CP.
Está, pois, o legislador legitimado para estabelecer imposições, que se nos
afiguram inteiramente pertinentes, consoante os interesses a acautelar e os fins
visados com a punição, as quais estão fora da dimensão da proibição do arbítrio
(cfr. Ac. do TC, de 2/11/99, in BMJ 491, 5.
Por lado a lei de amnistia trata de forma igual todos os cidadãos que se
encontrem na situação das arguidas, não representando a aplicação da lei
qualquer discriminação.”
Para esta argumentação e solução remetemos a recorrente a qual, de resto já era
conhecedora uma vez que desse aresto havia sido notificada.
Por último, a pretensão da recorrente em que lhe seja concedido novo prazo de 90
dias não tem agora qualquer possibilidade de ser satisfeito pelas razões acima
expendidas relativas ao tempo decorrido desde o cometimento do acto ilícito, da
condenação proferida e da notificação, que lhe foi feita há mais de 1 ano, ou
seja, pelo menos há quatro vezes o prazo de 90 dias, para a reparação ser
efectuada, uma vez que o deferimento dessa pretensão só representaria o
adiamento do problema para mais tarde, em suma, uma fuga em frente que contraria
frontalmente as razões que presidiram à concessão do perdão nos moldes
condicionados que a lei adoptou.
Assim sendo, afigura-se manifesto que o alegado não pode, manifestamente,
merecer acolhimento.».
4 – Dizendo-se mais uma vez inconformada, a recorrente interpôs o
presente recurso para o Tribunal Constitucional. Tendo o relator inicialmente
decidido não conhecer dele, veio tal decisão a ser alterada pela conferência,
nos termos do n.º 3 do art.º 78.º-A da LTC, em deferimento de reclamação
deduzida pela recorrente.
5 – Notificada para alegar sobre o objecto do recurso, a recorrente
concluiu do seguinte jeito o seu discurso argumentativo:
«1. A arguida e recorrente indicou à queixosa/exequente os seus vencimentos, que
esta nomeou à penhora, para pagamento da indemnização arbitrada, com a
notificação a que alude o art. 5°, nº 2, da Lei nº 29/99, de 12.05.
2. Desde 05/2007 e até hoje que os vencimentos da arguida se encontram
penhorado, sendo os respectivos descontos depositados à ordem do Tribunal.
3. Com tal penhora e descontos nos vencimentos da arguida, que são depositados à
ordem do Tribunal, entendemos que o art. 5°, nºs 1 e 2, da Lei nº 29/99, de
12.05, ao conceder o perdão sob condição resolutiva de reparação ao lesado da
indemnização que lhe é devida, a satisfazer nos 90 dias imediatos à notificação
que deve para o efeito ser feita ao condenado, prejudica o condenado em razão da
sua situação económica (art. 13°, nº 2), não considerando o condenado igual
perante a lei (art. 13°, nº 1), e restringindo os seus direitos, liberdades e
garantias (art. 18°, nº 2), sem que essa restrição de direitos, liberdades e
garantias revista carácter geral e abstracto (art. 18°, nº 3, todos da Const.
República Portuguesa).
4. Acrescendo que, em prisão, no caso desta ser decretada com a revogação do
perdão concedido, a arguida não poderá pagar à queixosa/exequente a indemnização
fixada, por deixar de auferir vencimentos.
5. Donde ser inconstitucional o art. 5º, nºs 1 e 2, da Lei nº 29/99, de 12.05,
que determina que a arguida satisfaça, nos 90 dias imediatos à notificação que
para o efeito lhe será feita, a indemnização a que foi condenada, sob condição
resolutiva, com a revogação do perdão de 1 ano concedido, no caso da reparação
ao lesado não ocorrer no prazo indicado, inconstitucionalidade, essa, que se
verifica por o condenado estar a pagar ao lesado com a penhora dos seus
vencimentos, que indicou ao lesado, e por não ter outros meios para pagar, com
excepção daqueles que declarou para penhora.
6. É inconstitucional o art. 5º, nºs 1 e 2, da Lei nº 29/99, de 12.05, na parte
em que revoga o perdão concedido quando há penhora dos seus vencimentos, que
indicou ao lesado, para pagar a indemnização arbitrada a este, por violação dos
arts. 13°, nºs 1 e 2, e 18°, nºs 2 e 3, da Const. da República Portuguesa.».
6 – O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional,
contra-alegou, concluindo:
«1. Não é inconstitucional a norma do artigo 5°, nº 1 e 2 da Lei nº 29/99, de 12
de Maio, na medida em que estabelece o pagamento da indemnização devida, nos
noventa dias imediatos à notificação do condenado, como condição resolutiva à
concessão do perdão da pena.
2. Termos em que não deverá proceder o presente recurso.».
B – Fundamentação
6 – O objecto do recurso cinge-se, como decorre da decisão que
deferiu a reclamação, à questão de saber se a aposição, como condição à
concessão do perdão de um ano concedido pelo art.º 1.º, n.º 1, da Lei n.º 29/99,
de 12 de Maio, do pagamento da indemnização ao lesado, no prazo de 90 dias
imediatos à notificação que para o efeito será feita ao condenado, nos termos
previstos no art.º 5.º, n.ºs 1 e 2, da mesma Lei, é constitucionalmente
inválida, em face das normas e princípios constitucionais, quer sejam os
apontados pela recorrente, quer seja de outros.
O art.º 1.º, n.º 1, da referida Lei estatui que “nas infracções
praticadas até 25 de Março de 1999, inclusive, é perdoado um ano de prisão […]”.
A concessão deste perdão foi sujeita, porém, a condição resolutiva.
Na verdade, os n.ºs 1 e 2 do art.º 5.º dispõem que:
“1 – Sempre que o condenado o tenha sido também em indemnização o
perdão é concedido sob condição resolutiva de reparação ao lesado ou, nos casos
de crime de emissão de cheque sem provisão, ao portador do cheque.
2 – A condição referida no número anterior deve ser satisfeita nos
90 dias imediatos à notificação que para o efeito será feita ao condenado”.
7 – Antes de mais, importa caracterizar o perdão genérico de penas,
por a resolução da concreta questão contender com tal categoria dogmática e os
termos da sua sujeição aos cânones constitucionais.
O perdão de penas constitui uma medida de clemência ou de graça “do
príncipe” que é aplicada em função das penas em que as pessoas foram condenadas.
Como medida de clemência, o perdão emerge de um acto político,
tornado fonte jurígena de efeitos sobre as penas aplicadas (sobre a compreensão
da clemência como virtude do legislador, cf. Cesare Beccaria, Dos Delitos e das
Penas, tradução de José Faria Costa, 2.ª edição da Fundação Calouste Gulbenkian,
p. 161).
Ele impede a execução da pena aplicada pela prática de crimes (cf.
sobre a acepção do conceito e das figuras afins, entre outros, Pedro Duro,
«Notas sobre alguns limites do poder de amnistiar”, Themis, Revista da Faculdade
de Direito da UNL, Ano II, n.º 3, 2001, pp. 323 e segs. e Francisco Aguilar,
Amnistia e Constituição, Almedina, pp. 37 e segs).
Na medida em que se traduz num irrelevar, para efeitos do seu
cumprimento, da pena concretamente aplicada pela prática de um crime tipificado
e cominado na lei – ou visto de outro ângulo, numa desconsideração, total ou
parcial, da pena aplicada que foi abstractamente adstringida pelo legislador à
violação dos bens jurídico-penais que a definição do tipo legal encerra – o
perdão genérico de penas é, por regra, por isso, decretado pelo órgão com
competência para definir esse ilícito criminal.
Nesta perspectiva, ele é, ainda, um meio específico de concretização
da política criminal referente à efectivação das penas aplicadas pela prática
dos crimes definidos na lei.
Tratando-se de uma medida de clemência geral que é aplicada a todos
em função das penas aplicadas, o perdão é um perdão geral.
Na medida, porém, em que o perdão genérico opera em função das penas
aplicadas e abrange, em princípio, todos os condenados, ele distingue-se da
amnistia e do indulto.
A própria Constituição reconhece, a partir da revisão de 1982, com o
aditamento à parte final da alínea f) do art.º 164.º da expressão “e perdões
genéricos”, de par com a referência à amnistia e com a previsão já constante do
art.º 137.º, n.º 1, alínea e), de competência do Presidente da República para
conceder indultos e comutações de penas aplicadas, a diferenciação dos
conceitos.
E, assumindo os conceitos tradicionais, presentes no texto
constitucional, o art.º 126.º do Código Penal de 1982, publicado posteriormente
a tal revisão, a que corresponde agora o art.º 128.º do actual Código Penal, e
focando tais institutos pelo lado dos efeitos que desencadeiam, diz que a
amnistia “extingue o procedimento criminal (amnistia própria) e, no caso de ter
havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como
da medida de segurança” (amnistia própria, na primeira situação, e amnistia
imprópria no segundo caso); que o perdão genérico “extingue a pena, no todo ou
em parte” e que o indulto “extingue a pena, no todo ou em parte, ou substitui-a
por outra mais favorável prevista na lei” (para uma compreensão histórica da
amnistia, cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 444/97, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
Deste modo, a amnistia atinge a punibilidade dos actos definidos
como crimes; actua em função dos crimes, deixando os actos praticados até ao
momento histórico-jurídico considerado de poderem ser enquadrados nos tipos
legais amnistiados.
A amnistia apaga retroactivamente a punibilidade criminal dos factos
típicos, continuando os tipos penais a valerem, por inteiro, para o futuro.
Por seu lado, o indulto atinge apenas a pena concretamente aplicada
a uma concreta pessoa por decisão transitada em julgado, extinguindo-a, no todo
ou em parte, ou alterando-a ou suspendendo-a; falando-se nestas últimas
situações de comutação de penas.
A Constituição da República Portuguesa atribui a competência
exclusiva para conceder amnistias e perdões genéricos à Assembleia da República,
na alínea f) do art.º 161.º.
Tal reserva absoluta de competência da Assembleia da República
encontra, exactamente, o seu fundamento material naquele elemento de o perdão
genérico defluir de um acto essencialmente político com reflexos sobre a
política criminal concretamente adoptada pelo parlamento quando procede à
definição dos tipos penais e previsão das correspondentes medidas
sancionatórias.
Já a concessão do indulto e comutação de penas está atribuída à
competência própria do Presidente da República, estando o seu exercício
dependente da audição do Governo [art.º 134.º, alínea f), da CRP].
8 – Embora a concessão do perdão genérico – única figura que agora
nos interessa – seja efeito de um acto político, que pode ter por causa as mais
diversas motivações (cf., referindo-se à amnistia, os Acórdãos n.ºs 444/97 e
510/98, ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), como sejam a
magnimidade por occasio publicae laetitia excepcional, razões de política geral
de apaziguamento ou outras, de correcção de determinadas ponderações anteriores
efectuadas pelo direito ou do modo da sua aplicação pela jurisprudência ou pela
administração, ela expressa-se através de uma lei em sentido material.
Ora, cabendo a sua edição na competência do legislador ordinário,
tomada no campo da política criminal, não pode deixar de se lhe reconhecer
discricionariedade normativo-constitutiva na conformação do seu conteúdo.
Referindo-se à circunstância de as Leis n.ºs 23/91, de 4 de Julho,
15/94, de 11 de Maio e 29/99 não terem contemplado, nos perdões genéricos
concedidos, a medida de segurança de internamento, disse-se no Acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 42/02, disponível em www.tribunalconstitucional.pt:
“Neste domínio, o Tribunal Constitucional vem entendendo, com
significativa reiteração, que, nos óbvios parâmetros do Estado de direito
democrático, a liberdade de conformação legislativa goza de alargado espaço onde
têm lugar preponderantes considerações não necessariamente restritas aos fins
específicos do aparelho sancionatório do Estado, mas também outras ditadas pela
conveniência pública que, em última instância, entroncam na raison d’Etat”.
Mas essa discricionariedade normativo-constitutiva não é ilimitada:
ela tem de respeitar as normas e os princípios constitucionais.
Estas normas e princípios constitucionais surgem sempre como um
limite à actividade legiferante do órgão constitucionalmente competente para
dispor sobre a matéria.
Entre os princípios, cujo respeito se impõe ao legislador ordinário
competente para dispor sobre o perdão genérico das penas, contam-se o invocado
pela recorrente, o princípio da igualdade perante a lei e na lei (cf. além dos
referidos Acórdãos, Pedro Duro, op. cit., p. 336, e Francisco Aguilar, op. cit,
p. 209).
No que importa à primeira dimensão, importa reconhecer que o
legislador do perdão genérico não o desrespeitou.
Na verdade, o perdão foi concedido a todos condenados que houvessem
praticado os mesmos crimes pelos quais a recorrente foi condenada e se
encontrassem na mesma situação.
O perdão abrange todas as pessoas que sejam condenadas pela
prática, até ao momento considerado na lei, de todas as categorias de crime, à
excepção das pessoas condenadas que se encontrem em determinada situação, nela
definida de forma geral e abstracta (n.º 1 do art.º 2.º da Lei n.º 29/99), ou
hajam praticado certas categorias de crimes (n.º 2 do mesmo artigo).
Por outro lado, o estabelecimento do pagamento, dentro de certo
prazo, da indemnização como condição resolutiva da concessão do perdão mostra-se
também feito de forma geral e abstracta, colocando todos os condenados em penas
de prisão que o tenham sido igualmente no pagamento de indemnizações aos lesados
na mesmíssima situação quanto ao benefício da clemência.
Cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger,
quer a medida do perdão de penas – o quantum do perdão –, quer, em princípio, as
espécies de crimes ou infracções a que diga respeito a pena aplicada e perdoada,
quer a sujeição ou não a condições, desde que o faça de forma geral e abstracta,
para todas as pessoas e situações nela enquadráveis.
Importa, agora, saber se os preceitos referidos violam o princípio
da igualdade na lei ou se, ao invés, como alega a recorrente, procedem a uma
discriminação ilegítima em razão da situação económica do condenado.
Na óptica da recorrente, ao conceder o perdão sob a condição
resolutiva do pagamento ao lesado da indemnização arbitrada, dentro de certo
prazo, a lei discriminaria o condenado sem capacidade económica para a solver
relativamente àquele condenado que a possui, tratando-o desigualmente.
Já se viu que as pessoas beneficiárias do perdão de penas se
encontram na mesma situação quanto à sua sujeição à referida condição resolutiva
do pagamento da indemnização dentro de certo prazo.
Pode, porém, acontecer que os beneficiários do perdão tenham, no
plano de facto, diferente capacidade económica para poderem satisfazer a
indemnização em que foram condenados e assim satisfazer a condição resolutiva.
No art.º 13.º, n.º 2, a Constituição estabelece que “ninguém pode
ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou
isento de qualquer dever em razão […] da situação económica […]”.
Mas igualdade não é igualitarismo.
O Tribunal Constitucional tem uma vasta jurisprudência sobre o
princípio da igualdade.
Reflectindo o estado actual da compreensão do princípio da
igualdade, tanto na jurisprudência como na doutrina, nacionais e estrangeiras,
afirmou-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2003 (publicado no
Diário da República I Série-A, de 17 de Junho de 2003), assumindo em diversos
passos da sua fundamentação abundante argumentação de jurisprudência anterior:
“[...] Princípio estruturante do Estado de Direito democrático e do
sistema constitucional global (cfr., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993,
pág. 125), o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos,
tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cfr. ob.
cit., pág. 129) o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito
fundamental dos cidadãos e, por outro lado, da 'atribuição aos preceitos
constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força
jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de
qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as
entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou
jurisdicional (artigo 18º, nº 1, da Constituição)”(cfr. Acórdão do Tribunal
Constitucional nº 186/90, publicado no Diário da República II Série, de 12 de
Setembro de 1990).
[…]
1.2.- O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação
do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento,
“razoável, racional e objectivamente fundadas”, sob pena de, assim não
sucedendo, “estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do
acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores
constitucionalmente relevantes”, no ponderar do citado Acórdão nº 335/94. Ponto
é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a
discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar,
diz-nos j.c.vieira de andrade – Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299).
Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como “princípio
negativo de controlo” ao limite externo de conformação da iniciativa do
legislador - cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 127 e, por
exemplo, os Acórdãos nºs. 157/88, publicado no Diário da República, I Série, de
26 de Julho de 1988, e os já citados nºs. 330/93 e 335/94 - sem que lhe
retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou
mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de
tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e
jurídicas postadas face a um determinado referencial (“tertium comparationis”).
A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminando o
arbítrio (cfr., a este propósito, gomes canotilho, in Revista de Legislação e de
Jurisprudência, ano 124, pág. 327; alves correia, O Plano Urbanístico e o
Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 425; Acórdão nº 330/93).
Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e
redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual
de direito igual (cfr. gomes canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do
Legislador, Coimbra, 1982, pág. 381; alves correia, ob. cit., pág. 402) o que
pressupõe averiguação e valoração casuísticas da 'diferença'” de modo a que
recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e
diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação.
[…]
“[...] O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da
igualdade impõe que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da
mesma maneira e que situações pertencentes a categorias essencialmente
diferentes tenham tratamento também diferente. Admitem-se, por conseguinte,
diferenciações de tratamento, desde que fundamentadas à luz dos próprios
critérios axiológicos constitucionais. A igualdade só proíbe discriminações
quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional [cf., nomeadamente,
os Acórdãos nºs 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 11º vol. (1988), p. 233 e ss., e 16º vol. (1990), pp. 383 e ss.,
395 e ss. e 411 e ss., respectivamente; cf., igualmente, na doutrina, jorge
miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2ª ed., 1993, p. 213 e ss.,
gomes canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., 1993, pp. 564-5, e gomes
canotilho e vital moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 1993,
p.125 e ss.]”.
[…]
Assente a possibilidade de estabelecimento de diferenciações, tornar-se-á
depois necessário proceder ao controlo das normas sub judicio, feito a partir do
fim que visam alcançar, à luz do princípio da proibição do arbítrio
(Willkürverbot) e, bem assim, de um critério de razoabilidade.
Com efeito, é a partir da descoberta da ratio da disposição em causa que
se poderá avaliar se a mesma possui uma “fundamentação razoável” (vernünftiger
Grund), tal como sustentou o “inventor” do princípio da proibição do arbítrio,
Gerhard Leibholz (cf. f. alves correia, O plano urbanístico e o princípio da
igualdade, Coimbra, 1989, pp. 419ss). Essa ideia é reiterada entre nós por maria
da glória ferreira pinto: “[E]stando em causa (...) um determinado tratamento
jurídico de situações, o critério que irá presidir à qualificação de tais
situações como iguais ou desiguais é determinado directamente pela 'ratio' do
tratamento jurídico que se lhes pretende dar, isto é, é funcionalizado pelo fim
a atingir com o referido tratamento jurídico. A 'ratio' do tratamento jurídico
é, pois, o ponto de referência último da valoração e da escolha do critério”
(cf. Princípio da igualdade: fórmula vazia ou fórmula 'carregada' de sentido?,
sep. do Boletim do Ministério da Justiça, nº 358, Lisboa, 1987, p. 27). E, mais
adiante, opina a mesma Autora: “[O] critério valorativo que permite o juízo de
qualificação da igualdade está, assim, por força da estrutura do princípio da
igualdade, indissoluvelmente ligado à 'ratio' do tratamento jurídico que o
determinou. Isto não quer, contudo, dizer que a 'ratio' do tratamento jurídico
exija que seja este critério, o critério concreto a adoptar, e não aquele outro,
para efeitos de qualificação da igualdade. O que, no fundo, exige é uma conexão
entre o critério adoptado e a 'ratio' do tratamento jurídico. Assim, se se
pretender criar uma isenção ao imposto profissional, haverá obediência ao
princípio da igualdade se o critério de determinação das situações que vão ficar
isentas consistir na escolha de um conjunto de profissionais que se encontram
menosprezados no contexto social, bem como haverá obediência ao princípio se o
critério consistir na escolha de um rendimento mínimo, considerado indispensável
à subsistência familiar numa determinada sociedade” (ob. cit., pp. 31-32).
[…]».
Ora, a imposição da analisada condição resolutiva não se afigura
destituída de fundamento material ou racional bastante, de modo algum podendo
ser tida como medida irrazoável ou arbitrária.
A indemnização encontra a sua justificação na prática do crime. É a
prática do acto ilícito criminalmente que constitui causa ou fundamento jurídico
da condenação do arguido no pagamento da indemnização ao ofendido.
Nesta medida, ela é também um efeito jurídico da prática do crime,
tal como o é a condenação na pena criminal.
É claro que a pena visa satisfazer, essencialmente, interesses do
Estado, de reconstituição da paz jurídica entre a comunidade social e o
criminoso, conseguida através de medida funcionalizada para a prevenção geral e
para a sua ressocialização, e que a indemnização pretende “reparar um dano”
provocado ao ofendido, procurando reconstituir a situação que existiria se não
fora a verificação do “evento que obriga à indemnização” (cf. art.ºs 483.º e
562.º do Código Civil).
Nesta perspectiva, trata-se de efeitos jurídicos autónomos.
Só que a condenação em indemnização não deixa de corresponder a uma
concreta decorrência, ainda, da ilicitude (criminal) do facto praticado e de
reacção do sistema jurídico, aqui, em protecção ou favor do lesado.
Ela mantém uma conexão íntima com a prática do crime. Essa relação
intrínseca entre a prática do crime e o dever de reparar o dano provocado é, de
resto, assumida, expressamente, pelo Código Penal quando determina, no art.º
71.º, que se relevem as consequências do crime e a conduta destinada a
repará-las para efeitos de determinação da medida da pena, e, quando prevê, nos
art.ºs 50.º, n.ºs 1 e 2, e 52.º, n.º 1, alínea b), a possibilidade de, nas
condições aí definidas, a pena aplicada ser suspensa, mediante o pagamento da
indemnização ou a garantia do mesmo por meio de caução idónea, sendo que o
Tribunal Constitucional, apreciando esta última norma, considerou que ela não é
inconstitucional (cf. Acórdão n.º 596/99 e Acórdão n.º 440/87, este
relativamente ao correspondente preceito do C. Penal de 1982; cf., ainda,
referindo-se ao artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, na parte em que condiciona a
suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido do imposto em
dívida e respectivos acréscimos legais, os Acórdãos n.ºs 256/03, 335/03, 500/05
e 29/07, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Aquela conexão intrínseca era, aliás, a razão pela qual já o art.º
34.º do Código de Processo Penal, de 1929, consagrando o princípio da
oficiosidade do arbitramento da indemnização, estabelecia que “o juiz, no caso
de condenação, arbitrará aos ofendidos uma quantia como reparação por perdas e
danos, ainda que não tenha sido requerida”.
E não obstante o legislador do actual Código de Processo Penal ter
optado pelo princípio da adesão da acção cível à acção penal, obrigando à
dedução do respectivo pedido de indemnização, ao dispor no art. 71.º que “o
pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no
processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal
civil, nos casos previstos na lei”, não deixa tal opção de se basear na conexão
íntima da relação de indemnização com a relação penal.
Nessa medida, bem se compreende que o órgão competente (Assembleia
da República) do titular do poder de clemência e, simultaneamente, do “ius
puniendi” – o Estado – possa considerar que a paz jurídica só ficará, em caso de
perdão de pena, totalmente satisfeita se o condenado também em indemnização pela
prática do crime reparar efectivamente o dano provocado ao lesado.
Sendo o perdão uma medida de clemência que extingue, total ou
parcialmente, a pena do crime pelo qual o arguido foi condenado, mas não
extinguindo a ilicitude criminal e a ilicitude civil dos factos praticados, bem
se justifica que o legislador da clemência, dentro da sua discricionariedade
ponderativa de todos os bens jurídicos ofendidos (penais e civis) entenda não
ser ela de conceder quando existam efeitos civis indemnizatórios que tornam
ainda presente a necessidade de paz jurídica com o lesado.
Existe, pois, razão material bastante para justificar a irrelevação,
na concessão da graça do perdão genérico, da situação económica em que se
encontra o seu beneficiário.
Não se verifica, por isso, a violação do princípio da igualdade.
E também não ocorre a alegada violação do art.º 18.º, n.ºs 2 e 3, da
CRP.
Na verdade, a sujeição da concessão do perdão à condição resolutiva
de pagamento da indemnização em que foi condenado, dentro de certo prazo, não
contende com qualquer direito, liberdade ou garantia fundamental de que o mesmo
sentenciado seja titular que caiba na previsão dos referidos preceitos.
Mas independentemente disso, acresce que o condicionamento se mostra
feito de forma geral e abstracta, aplicando-se a todos os abrangidos pelo perdão
que tenham sido também condenados no pagamento de indemnização ao lesado, e que
o mesmo tem fundamento material.
C – Decisão
9 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 25 UCs.
Lisboa, 7 de Outubro de 2008
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
Mário José de Araújo Torres
Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, nos termos da declaração anexa)
Rui Manuel Moura Ramos Votei a decisão ainda que
não tenha superado todas as dúvidas que a invocação
do princípio da igualdade me suscitou e que demandariam um estudo mais
alargado.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Ainda que com alguma dúvida, resultante da impossibilidade de uma reflexão
esgotantemente ponderadora das consequências sistémicas da posição assumida, não
acompanhei a decisão, por entender que o regime questionado é, numa certa
dimensão, passível de censura constitucional.
É-o na medida em que o n.º 2 do artigo 5.º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio,
estabelece o prazo de 90 dias para o condenado satisfazer a indemnização devida
ao lesado, sob pena de resolução da concessão do perdão. Se a aposição desta
condição resolutiva, em si mesma, é constitucionalmente válida, já o mesmo se
não poderá dizer da não previsão de uma “cláusula de salvaguarda”, que
permitisse relevar situações de absoluta e comprovada impossibilidade de
pagamento.
Sendo inteiramente “cego” em relação a situações económicas efectivamente
impossibilitantes do cumprimento dentro daquele prazo, a norma em causa trata
igualmente situações desiguais, sem fundamento bastante, em violação do
princípio da igualdade.
Nem se diga, como se pode ler na sentença recorrida, que “o Estado pode dispor
do seu poder punitivo, mas já não pode (ou deve) dispor do interesse do lesado,
assegurado por um poder soberano”.
Pois, na verdade, não se trata de dispor do crédito indemnizatório do lesado.
Este permanece incólume, na sua esfera jurídica. Do que se trata é de não
condicionar o exercício do poder punitivo à satisfação de uma indemnização, em
certo prazo, sem qualquer margem para atendimento de situações de total
indisponibilidade económica, impeditivas de satisfação, no prazo fixado (mesmo
que susceptível de prorrogação, por igual período) da indemnização em dívida.
O caso dos autos é bem ilustrativo da carência de justificação razoável da
irrelevância normativa dessa situação e dos efeitos perversos a que ela pode
conduzir. A condenada indicou à penhora o seu único rendimento disponível: o
salário auferido como remuneração do trabalho. A resolução do perdão, com o
consequente retorno à prisão, acarreta a perda desse rendimento, o que vem a
redundar, ao fim e ao cabo, também num prejuízo para o lesado, sem que se
descortine qualquer valor ou interesse suficientemente fundamentador da solução.
Joaquim de Sousa Ribeiro