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Processo n.º 1141/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional.
1. Relatório
1.1. A., B., C. e D. interpuseram recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei
de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça (STJ), de 7 de Novembro de 2007, que negou provimento ao
recurso de revista por eles interposto do acórdão do Tribunal da Relação do
Porto, de 30 de Outubro de 2006, que, por seu turno, havia negado provimento ao
recurso de apelação pelos mesmos interposto contra a sentença do 2.º Juízo do
Tribunal do Trabalho de Guimarães, de 13 de Junho de 2005, que, em acção
especial emergente de acidente de trabalho intentada por E. (por si e em
representação de seus filhos menores F. e G.), patrocinada pelo Ministério
Público, os havia condenado no pagamento: (i) à autora, da pensão anual e
vitalícia de € 1455,33, acrescida de um doze avos no mês de Dezembro de cada
ano, com início em 2 de Outubro de 1999 e até à idade da reforma por velhice
sem doença física ou mental, e de € 1940,44 a partir da idade da reforma por
velhice ou se antes viesse a autora a sofrer de doença física ou mental que
afectasse sensivelmente a sua capacidade de trabalho; (ii) aos representados
autores, da pensão anual de € 970,22, acrescida de um doze avos no mês de
Dezembro de cada ano, com início em 2 de Outubro de 1999, até perfazerem
dezoito, vinte e dois ou vinte e cinco anos, enquanto frequentassem,
respectivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior,
sem doença física ou mental, ou sem limite de idade, caso padecessem de doença
física ou mental que os incapacitasse sensivelmente para o trabalho; (iii) a
todos os autores, do montante de € 768,15, a título de despesas de funeral; (iv)
à viúva, € 5,99 de despesas de transporte nas deslocações ao tribunal; e (v)
juros de mora, à taxa legal, sobre todas as quantias ainda não pagas.
De acordo com o requerimento de interposição de recurso,
os recorrentes pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie a
inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade constante do
artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), “da aplicação da Base
XIX da Lei n.º 2127, sem ter em conta as repercussões que para o mesmo decorrem
da Lei n.º 135/99, se interpretadas no sentido de, passando o cônjuge sobrevivo
do sinistrado, falecido em acidente de trabalho, a viver em união de facto com
outrem, não lhe ser aplicável o n.º 3 da primeira daquelas duas disposições
legais”, na parte em que determina que “se a viúva [de vítima mortal de acidente
de trabalho] passar a segundas núpcias, receberá, por uma só vez, o triplo da
pensão anual” a que tem direito nos termos do n.º 1, alínea a), da mesma Base.
1.2. A alegação apresentada pelos ora recorrentes no
recurso de revista endereçado ao STJ foi sintetizada nas seguintes conclusões:
“I – A entrada em vigor da Lei n.º 135/99, de 29 de Agosto,
procedendo à equiparação para efeitos de prestações por morte do unido de facto
sobrevivo ao cônjuge sobrevivo, estendeu ao primeiro, quer a atribuição do
direito (Base XIX, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965),
quer as condições e limitações do exercício desse mesmo direito (Base XIX, n.º
3, da Lei n.º 2127).
II – Ao desconsiderar a circunstância de a autora viver em união de
facto com outro homem – há mais de 2 anos quando foi proferida a primeira
sentença, há mais de 5 anos quando da segunda sentença na primeira instância e
há mais de 6 aquando da prolação do acórdão recorrido – para efeitos do cálculo
das prestações por morte, o Tribunal da Relação não considerou a entrada em
vigor da Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, e a sua aplicação à Lei n.º 2127.
III – Provado que foi que a autora vive, pelo menos desde Agosto de
2000, em união de facto com outro homem, o Tribunal recorrido dever‑lhe‑ia ter
concedido, nos termos do n.º 3 da referida Base XIX da Lei n.º 2127, de uma só
vez, o montante equivalente ao triplo da pensão anual.
IV – A alínea a) do n.º 1 e do n.º 3 da Base XIX da Lei n.º 2127, na
interpretação que lhes foi dada pelo acórdão recorrido, no sentido de apenas
proceder à extensão aos unidos de facto da previsão daquele normativo e não das
condições do respectivo exercício (n.º 3 daquela norma), operada pela entrada em
vigor da Lei n.º 135/99, é manifestamente inconstitucional, por violação do
princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição da República
Portuguesa, na medida em que permite tratar de forma mais favorável os
beneficiários de prestações por morte em acidente de trabalho que venham a
contrair união de facto do que os que venham a contrair novo casamento, ao
arrepio também do disposto no artigo 36.º do Diploma Fundamental.
V – Quando a razão de ser da atribuição de prestações por morte ao
cônjuge sobrevivo e ao unido de facto sobrevivo se baseiam na perda do «amparo»
que o falecido trazia para a vida familiar e que por virtude da sua morte
aqueles deixam de auferir (cf., neste sentido, o recente acórdão da Relação de
Coimbra, de 28 de Março de 2006).
VI – E o fundamento daquelas prestações – que normalmente, se não
forem remidas, se estendem por vários anos – a que aludia o n.º 3 do Base XIX da
Lei n.º 2127 e a que agora alude o artigo 20.º, n.º 3, da Lei n.º 100/97 está
justamente no facto de o sobrevivo (cônjuge ou unido de facto) ter na data em
que as pensões hão‑de ser pagas encontrado novo amparo, seja por casamento, seja
por união de facto.
VII – A viúva apenas tem direito a receber as prestações
correspondentes ao período de tempo entre a morte do seu cônjuge (1 de Outubro
de 1999) e a data em que passou a viver em união de facto com outro homem, como
se fossem marido e mulher (Agosto de 2000), acrescidas por referência a essa
data do triplo da pensão anual.”
1.3. O acórdão do STJ, de 7 de Novembro de 2007, ora
recorrido, negou a revista e desatendeu a arguição de inconstitucionalidade
suscitada pelos recorrentes, com base na seguinte fundamentação:
“3. Resulta das «conclusões» dos impugnantes do recurso principal
que a questão que os mesmos pretendem ver submetida ao escrutínio deste Supremo
Tribunal se liga, essencialmente, em saber se a autora, pelo facto de passar a
viver em união de facto com outro homem, tem direito, desde essa vivência, a que
lhes sejam concedidas as prestações devidas pela morte do sinistrado ou, ao
invés, se lhe não haveria somente de ser concedido o montante previsto no n.º 3
da Base XIX da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, sendo que os mesmos
recorrentes entendem que a interpretação que foi perfilhada no acórdão
recorrido, no sentido de a previsão da equiparação, para efeitos de atribuição
de prestações por morte do cônjuge ao unido de facto, previsão essa operada pela
Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, se estender tão‑só à concessão do benefício e
não já às condições do respectivo exercício, seria manifestamente
inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, na medida em que
permite tratar mais favoravelmente os beneficiários que venham a contrair união
de facto, referentemente aos que venham a contrair casamento.
Tendo em conta o que se prescreve no artigo 41.º da Lei n.º 100/97,
de 13 de Setembro, a data da entrada em vigor do Decreto‑Lei n.º 142/99, de 30
de Abril (cf. seu artigo 71.º, n.º 1), e a data da ocorrência do acidente de que
versam os presentes autos [1 de Outubro de 1999], não será a disciplina
jurídica emergente daqueles diplomas a aplicável ao caso em apreço, mas sim a
legislação que a esta última data vigorava, designadamente, no que agora mais
importa, a Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965.
4. De harmonia com o dispositivo ínsito na primeira parte do n.º 3
da Base XIX daquela Lei n.º 2127, se a viúva (que, de acordo com o n.º 1, alínea
a), terá jus, em caso de acidente de que resulte a morte do seu marido, caso se
tiver casado antes do acidente, a uma pensão anual de 30 por cento da
retribuição base da vítima até perfazer 65 anos, e 40 por cento a partir desta
idade ou no caso de doença física ou mental que afecte sensivelmente a sua
capacidade de trabalho) passar a segundas núpcias, receberá, por uma só vez, o
triplo da pensão anual.
Nesse diploma, atento o contexto temporal e social em que foi
editado, não se previa que, nas situações de infortúnio laboral de que
resultasse a morte do trabalhador acidentado e estando este ligado a outrem por
vínculo não matrimonial, quem com o mesmo estivesse unido de facto iria
desfrutar, por algum modo, de benefício similar àquele que era titulado pelo
cônjuge na constância do matrimónio aquando do acidente (ou o cônjuge divorciado
ou judicialmente separado à data do acidente, mas que tivesse direito a
alimentos – cf. alínea c) do n.º 1 da falada Base XIX).
Porventura no entendimento de acordo com o qual o que vem
consagrado no n.º 1 do artigo 36.º da Constituição abarca dois direitos,
justamente o direito de constituir família e o direito de contrair casamento –
não admitindo, por isso, nesse entendimento, a Lei Fundamental que o conceito de
família se circunscreva somente à denominada «família matrimonial» esteada na
celebração ou produto do negócio jurídico do casamento, tal como é legalmente
erigido –, foi, no que agora interessa, editada a Lei n.º 135/99, de 29 de
Agosto, que intentou regular a situação jurídica das pessoas de sexo diferente e
que vivam em união de facto (cf. seu artigo 1.º).
De entre as suas variadas disposições, prescreveu‑se no seu artigo
3.º, alínea g), que quem viva em união de facto tem direito à prestação por
morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional, nos termos da
lei.
Perante este direito conferido pela lei ordinária, não se postam
grandes dúvidas em como, a partir da vigência do diploma onde o mesmo veio a
ficar consagrado, o regime de atribuição das pensões por acidentes de trabalho
ou doença profissional que vitimasse um trabalhador (ou uma trabalhadora) que
era, pela legislação vigente, atribuído ao cônjuge (no sentido jurídico próprio)
sobrevivo era extensível à unida (ou ao unido) de facto.
Tudo se passava, pois, ainda no domínio da Lei n.º 2127, como se a
disposição vertida nas alíneas a) e b) do n.º 1 da sua Base XIX abarcassem as
asserções «Viúva, se tiver casado antes do acidente, ou unida de facto antes do
acidente: … » e «Viúvo, se tiver casado antes do acidente, ou unido de facto
antes do acidente …» (cf., hoje, o artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º
100/97).
Não estando, por conseguinte, em causa a atribuição de tal direito,
a questão, porém, que é colocada neste recurso é se dessa atribuição haverá,
indissoluvelmente, de resultar que as condições, modos e, quiçá, constrição do
respectivo desfrute são, também elas, aplicáveis aos unidos de facto.
Neste particular é totalmente silente a Lei n.º 135/99.
Porém, sustentam os impugnantes do recurso principal que, ao menos,
aquilo que, agora na perspectiva deste Supremo Tribunal, poderá ser visualizado
como uma forma de constrição resultante do n.º 3 da aludida Base XIX da Lei n.º
2127, deverá também ser aplicável quando se trate de uma situação de união de
facto ou, se se quiser, de família não suportada em matrimónio, sob pena de ser
ofendido o princípio da igualdade que é postulado pelo artigo 13.º do Diploma
Básico, na medida em que, sem tal aplicação, se iria, irremediavelmente,
discriminar de forma negativa os unidos por casamento.
Será assim?
5. Na óptica dos recorrentes principais, se bem se entende a mesma,
a ratio daquele n.º 3 da Base XIX funda‑se na circunstância de a morte do
acidentado representar a perda de um benefício económico do casal unido por
vínculo matrimonial, advindo dos rendimentos de quem faleceu em consequência do
acidente de trabalho ou doença profissional; ora, ainda segundo aquela óptica,
parece querer apontar‑se que, pela ulterior união, por casamento, de acordo com
o elemento literal daquele preceito, uma tal perda deixaria, pelo menos em
abstracto, ou, se assim se quiser, por normalidade, de ter lugar, por isso que o
posteriormente unido por casamento iria contribuir economicamente para o trem de
vida do «casal»; e, sendo assim, ainda na esteira do entendimento dos
impugnantes principais, motivos não haveria para distinguir as situações nos
casos em que a ulterior união não fosse decorrente do casamento, já que também
quem viesse a ficar unido de facto serviria de «amparo» ao cônjuge supérstite.
Mesmo aceitando que seja defensável a razão de ser daquele n.º 3, o
que, desde já se adianta, se não pode aceitar é a consequência das primeiras
proposições do raciocínio dos recorrentes principais.
Viu‑se já que para eles a não extensão do regime – tal como se
encontra textualmente consagrado em tal preceito – ou, numa outra perspectiva, a
interpretação das disposições conjugadas do n.º 3 da Base XIX da Lei n.º 2127 e
da alínea g) do artigo 3.º da Lei n.º 135/99, interpretação essa de harmonia com
a qual, passando o cônjuge sobrevivo a viver em união de facto com outrem, não
lhe seria aplicável aquele n.º 3 da referida Base XIX, representaria uma
manifesta inconstitucionalidade por postergação do princípio da igualdade
previsto no artigo 13.º da Lei Fundamental, na medida em que iria permitir
tratar de forma mais favorável esse cônjuge, comparativamente com uma situação
em que o cônjuge, posteriormente, veio a contrair matrimónio.
Tendo‑se acima adiantado o não acompanhamento deste ponto de vista,
é momento de se explicitarem as razões da dissensão.
O princípio da igualdade, como sabido é, reclama a dação de igual ou
idêntica solução legal para situações iguais ou idênticas, reclamando, do mesmo
passo, a adopção de soluções diversas quando as situações a contemplar sejam,
elas mesmas, dissonantes.
Como, verbi gratia, se referiu no Acórdão do Tribunal Constitucional
n.º 319/2000 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47.º volume, pp. 497 e
seguintes), em que se levou a efeito uma síntese da jurisprudência
constitucional a propósito deste princípio postulante do nosso Diploma Básico e
outrossim indesligável do princípio do Estado de direito democrático:
[Omite‑se a transcrição]
Por outro lado, e à guisa de sustentação da admissibilidade das
denominadas «discriminações positivas», aquele órgão de fiscalização
concentrada da constitucionalidade normativa teve ocasião de exarar no seu
Acórdão n.º 232/2003 (ob. cit., 56.º volume, p. 7 e seguintes):
[Omite‑se a transcrição]
Os subsídios que se podem, e devem, extrair das indicações
jurisprudenciais acima exemplificadas e da doutrina neles citada apontam para
que, no caso que nos ocupa, concluamos pela não insolvência constitucional da
interpretação normativa que é questionada pelos recorrentes principais.
5.1. Na verdade, e muito embora se admitia, aliás sem o mínimo
rebuço, que a Constituição admite o direito de constituir família sem base
matrimonial, não deixa ela, porém, de dar relevo específico à erigida com base
no casamento, até porque a respectiva contracção é, também ela, um direito,
análogo aos direitos, liberdades e garantias fundamentais, consagrado, como se
viu, no n.º 1 do seu artigo 36.º. Por isso se pode dizer, com Jorge Miranda e
Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, p. 399), que da
«relevância assim atribuída ao casamento – e do reconhecimento (subjacente à
importância constitucional conferida aos requisitos, forma de celebração e
efeitos do casamento no artigo 36.º, n.º 2) do carácter institucional da relação
conjugal adveniente da assunção de um vínculo de natureza pública através da
celebração do casamento – resulta, concretamente, que, para o legislador
constitucional, o casamento é o quadro institucional mais favorável em que a
família se pode desenvolver».
Ora, conquanto reconhecendo o legislador constitucional – e, na sua
senda, o legislador ordinário – valia às uniões de facto, o certo é que existem
diferenças de regimes entre elas e as baseadas no matrimónio.
Os unidos de facto, porque assim o desejaram, não estão legalmente
adstritos ou vinculados, por entre outros, aos deveres jurídicos específicos de
coabitação, cooperação e assistência, neste se incluindo, direccionado para os
unidos pelo casamento, a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para
os encargos da vida familiar (cf. artigos 1672.º e 1675.º do Código Civil).
Temos, pois, como líquido que foi com base neste último dever que
foi consagrado o n.º 3 da Base XIX da Lei n.º 2127.
De facto, se, pela contracção de posterior casamento, o cônjuge
sobrevivo do acidentado mortalmente tem o direito de exigir do seu novo cônjuge
a prestação de alimentos e de contribuição para os encargos da vida familiar, ou
seja, tem o direito de exigir aquilo que os impugnantes principais designam por
«amparo», é razoável que o legislador, perante essa realidade de facto e
jurídica, gizasse aquele normativo.
Simplesmente, esse direito – e correspondente obrigação por banda do
outro unido – inexiste nos casos de união de facto. O «amparo» (para se utilizar
a expressão empregue pelos recorrentes) que porventura pode ser prosseguido pela
nova união de facto repousa, e tão‑só, na livre vontade do «novo membro do casal
assim formado», não podendo suportar‑se juridicamente qualquer pretensão a
título de assistência a ele dirigida pelo cônjuge sobrevivo do acidentado.
Trata‑se, assim, de situações diversas que, pela circunstância de o
serem, não podem reclamar, sem mais, um tratamento análogo, justificando‑se, por
isso, a «discriminação indirecta» positiva que se extrai do n.º 3 da Base XIX já
mencionada, assente em critérios de razoabilidade, racionalidade, coerência e
congruência com o sistema jurídico global, designadamente o que se encontra
previsto para o regime do casamento e dos deveres que desse regime promanam.
Claro que poderia talvez o legislador enveredar por outra via,
adoptando, para as uniões de facto contraídas posteriormente ao decesso do
acidentado, regulação idêntica à que existe para os unidos por vínculo
matrimonial, regulação essa que, na interpretação normativa acolhida pelo
acórdão recorrido, não é extensível àquelas uniões (e sem que com isto se
queira significar que, ao fazê‑lo, estava a efectuar uma «igualização» que, em
face da diversidade de situações, não era, de todo, passível de um juízo de
insolvência constitucional).
Simplesmente, esse não enveredar é que, no entendimento deste
Supremo, não é censurável por postergação de normas ou princípios
constitucionais, nomeadamente a ofensa ao princípio da igualdade.
Por conseguinte, entende‑se ser de manter a interpretação normativa
em que se ancorou o acórdão impugnado que, assim, se deve manter, pelo que, em
consequência, não deve a pensão atribuída à autora ser fixada nos termos do n.º
3 da Base XIX da Lei n.º 2127.”
1.4. Neste Tribunal Constitucional, os recorrentes
apresentaram alegações, sintetizadas nas seguintes conclusões:
“I – A entrada em vigor da Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto,
procedendo à equiparação para efeitos de prestações por morte do unido de facto
sobrevivo ao cônjuge sobrevivo, estendeu ao primeiro, quer a atribuição do
direito (Base XIX, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965),
quer as condições e limitações do exercício desse mesmo direito (Base XIX, n.º
3, da Lei n.º 2127).
II – Ao desconsiderar a circunstância de a autora viver em união de
facto com outro homem – há mais de 2 anos quando foi proferida a primeira
sentença, há cerca de 5 anos quando da segunda sentença na primeira instância,
há mais de 6 anos aquando da prolação do acórdão da Relação do Porto e há quase
8 anos na data do acórdão recorrido – para efeitos do cálculo das prestações
por morte, o Supremo Tribunal de Justiça não considerou a entrada em vigor da
Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, e a sua aplicação à Lei n.º 2127, de 3 de
Agosto de 1965.
III – Provado que foi que a autora vive, pelo menos desde Agosto de
2000, em união de facto com outro homem, o Tribunal recorrido dever‑lhe‑ia ter
concedido, nos termos do n.º 3 da referida Base XIX da Lei n.º 2127, de 3 de
Agosto de 1965, de uma só vez, o montante equivalente ao triplo da pensão anual.
IV – A Base XIX da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, na
interpretação que lhe foi dada pelo douto acórdão recorrido, no sentido de
apenas proceder à extensão aos unidos de facto dos direitos daquele normativo
(alínea a) do n.º 1) e não as condições e/ou limitações do respectivo exercício
(n.º 3 daquela norma), operada pela entrada em vigor da Lei n.º 135/99, de 28 de
Agosto, é manifestamente inconstitucional, por violação do princípio da
igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, na
medida em que permite tratar de forma mais favorável os beneficiários de
prestações por morte em acidente de trabalho que venham a contrair união de
facto do que os que venham a contrair novo casamento, ao arrepio também do
disposto no artigo 36.º do Diploma Fundamental.
V – A interpretação dada pelo douto acórdão recorrido ao artigo 56.º
do Decreto n.º 360/71, de 21 de Agosto, não permite tirar do n.º 3 da Base XIX
da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, qualquer aplicabilidade, quer em caso
de novo casamento, quer em caso de posterior união de facto, pois obrigaria a
que o novo enlace se tivesse de realizar no próprio dia do óbito.
VI – E o fundamento da limitação daquelas prestações – que
normalmente, se não forem remidas, se estendem por vários anos – a que aludia o
n.º 3 da Base XIX da Lei 2127 e a que agora alude o artigo 20.º, n.º 3, da Lei
n.º 100/97, de 13 de Setembro, está justamente no facto de o sobrevivo (cônjuge
ou unido de facto) ter, na data em que as pensões hão-de ser pagas, encontrado
novo amparo, seja por casamento, seja por união de facto.
VII – Quando a razão de ser da atribuição de prestações por morte ao
cônjuge sobrevivo e ao unido de facto sobrevivo se baseiam na perda do «amparo»
que o falecido trazia para a vida familiar e que por virtude da sua morte
aqueles deixam de auferir.
VIII – O douto acórdão recorrido, ao sustentar que a diferenciação
positiva da união de facto face ao casamento se funda na não obrigação de
alimentos que o novo unido de facto tem relativamente ao viúvo, esquece
completamente o disposto nos n.º 1 e 3 do artigo 20.º da Lei n.º 100/97, de 13
de Setembro, publicada dois anos antes da morte e que apenas por atraso na
respectiva regulamentação só entrou em vigor três meses após esta.
IX – Se a Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, não previa expressamente
a equiparação das limitações ou condições de exercício do direito, e cremos que
o fazia, impunha‑se que o Supremo Tribunal de Justiça tivesse tido em conta a
necessária equiparação entre casamento e união de facto não só quanto aos
direitos do sobrevivo a acidente de trabalho mas também quanto às condições ou
limitações em que tal direito pode ser exercido pelo mesmo.
X – Não o tendo feito, isto é, a decisão recorrida, ao ter aplicado
a lei apenas no que concerne à atribuição do direito sem ter em conta as
limitações ou condições do respectivo exercício (Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de
1965, na parte em que foi alterada pela Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto), é
manifestamente inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da
protecção da família e do casamento, previstos, respectivamente, nos artigos
13.º e 36.º da CRP.
XI – Principio da igualdade esse igualmente violado com a
inadmissível discriminação entre os beneficiários por acidentes de trabalho ao
abrigo da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, e aqueles que o forem ao abrigo
da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro,
XII – De forma intolerável nos presentes autos, em que a morte
ocorreu apenas 3 meses antes da entrada em vigor da Lei n.º 100/97, de 13 de
Setembro, e a viúva passou a viver com outro homem como se fossem marido e
mulher escassos 7 meses após essa data.
XIII – A viúva apenas tem direito a receber as prestações
correspondentes ao período de tempo entre a morte do seu cônjuge (1 de Outubro
de 1999) e a data em que passou a viver em união de facto com outro homem como
se fossem marido e mulher (Agosto de 2000), acrescidas por referência a essa
data do triplo da pensão anual.”
1.5. O representante do Ministério Público neste
Tribunal contra‑alegou, concluindo:
“1.º – Não é legítimo extrair do princípio da igualdade ou de
qualquer outro preceito ou princípio constitucional a regra da equiparação
total, no que respeita aos efeitos jurídicos a atribuir à relação matrimonial e
à mera convivência em união de facto, sendo perfeitamente legítimo ao
legislador infraconstitucional, no exercício da sua margem de livre
discricionariedade legislativa, regular, em termos diferenciados e autónomos,
as matérias de concessão de certo direito ao unido de facto com o lesado e da
preclusão desse beneficio, como decorrência de o beneficiário da pensão alterar
a sua situação familiar.
2.º – Não é, deste modo, inconstitucional a interpretação normativa
que, baseada na aplicação do regime dos acidentes de trabalho constante da Lei
n.º 2127, considera que a circunstância de o viúvo do sinistrado ter passado a
conviver, em união de facto, com outrem não conduz à preclusão do integral
recebimento da pensão, nos termos originariamente outorgados.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Constituem soluções tradicionais do direito
português de acidentes de trabalho a previsão, para os casos em que do acidente
tiver resultado a morte do trabalhador sinistrado, da atribuição de
indemnizações, sob a forma de pensões, a determinadas categorias de seus
familiares, e, bem assim, a previsão da cessação dessa atribuição relativamente
aos cônjuges sobrevivos, verificadas determinadas situações.
Assim, a Lei n.º 1942, de 27 de Julho de 1936, previa,
no artigo 16.º, a atribuição: (i) à viúva, de uma pensão de 25% do salário
anual, enquanto se mantivesse no estado de viuvez, perdendo esse direito se
passasse a viver em mancebia ou tivesse porte escandaloso, e recebendo, por uma
só vez, o triplo da pensão anual, se passasse a segundas núpcias; (ii) ao viúvo,
da mesma pensão de 25%, nos referidos termos, quando se provasse que estavam a
cargo da mulher os seus alimentos; (iii) ao cônjuge que se achasse divorciado ou
judicialmente separado da vítima à data do acidente, com direito a receber
alimentos, da mesma pensão referida nos itens anteriores e nos mesmos termos;
(iv) aos filhos menores de 16 anos, 15%, 30% ou 40% sobre o salário anual,
consoante houvesse apenas um, fossem dois ou fossem três ou mais (percentagens
que se elevavam para 25%, 45% e 60% se fossem órfãos de pai e mãe); e (v) na
falta de filhos ou cônjuge sobrevivo, aos ascendentes e quaisquer parentes
sucessíveis menores de 16 anos, desde que a alimentação de uns e outros
estivesse a cargo das vítimas, de 10% do salário anual, a cada um, não podendo,
porém, a totalidade da pensão exceder 40% do salário, procedendo‑se a rateio se
houvesse mais de 4 familiares. Na base da atribuição destas pensões estava o
propósito de compensar esses familiares do prejuízo decorrente da perda de
rendimentos derivada da morte do trabalhador sinistrado, exigindo‑se, nuns casos
(viúvo, cônjuge divorciado ou separado judicialmente, ascendentes e outros
parentes), a prova de que o sinistrado falecido lhes prestava alimentos, e,
noutros casos (viúva e filhos), presumindo‑se legalmente essa prestação.
Os traços fundamentais deste sistema e a sua apontada
justificação foram mantidos na redacção originária da Lei n.º 2127, de 3 de
Agosto de 1965, que substituiu a Lei n.º 1942, dispondo na sua Base XIX:
“1. Se do acidente resultar a morte, os familiares da vítima
receberão as seguintes pensões anuais:
a) Viúva, se tiver casado antes do acidente: 30 por cento da
retribuição‑base da vítima até perfazer 65 anos, e 40 por cento a partir desta
idade ou no caso de doença física ou mental que afecte sensivelmente a sua
capacidade de trabalho;
b) Viúvo, se tiver casado antes do acidente e estiver afectado de
doença física ou mental que lhe reduza sensivelmente a capacidade de trabalho,
ou se for de idade superior a 65 anos à data da morte da mulher, enquanto se
mantiver no estado de viuvez: 30 por cento da retribuição‑base da vítima;
c) Cônjuge divorciado ou judicialmente separado à data do acidente,
com direito a alimentos: a pensão estabelecida nas alíneas anteriores e nos
mesmos termos, até ao limite do montante dos alimentos;
d) Filhos legítimos ou legitimados, incluindo os nascituros, nas
condições da lei civil, até perfazerem 18 anos, ou 21 e 24 enquanto
frequentarem, com aproveitamento, respectivamente, o ensino médio ou superior, e
os afectados de doença física ou mental que os incapacite para o trabalho: 20
por cento da retribuição‑base da vítima se for apenas um, 40 por cento se forem
dois e 50 por cento se forem três ou mais, recebendo o dobro destes montantes,
até ao limite de 80 por cento do salário da vítima, se forem órfãos de pai e
mãe;
e) Ascendentes e quaisquer parentes sucessíveis até aos 18 anos, ou
21 e 24 enquanto frequentarem, com aproveitamento, respectivamente, o ensino
médio ou superior, ou sem limite de idade quando afectados de doença física ou
mental que os incapacite sensivelmente para o trabalho, desde que a vítima
contribuísse, com carácter de regularidade, para a sua alimentação: a cada um 10
por cento da retribuição‑base da vítima, não podendo o total das pensões exceder
30 por cento.
2. (…)
3. Se a viúva passar a segundas núpcias, receberá, por uma só vez, o
triplo da pensão anual. Se tiver porte escandaloso, perderá o direito à pensão.
4. (…)
5. (…).”
A jurisprudência do Tribunal Constitucional desde sempre
(cf. Acórdãos n.ºs 181/87, 449/87, 72/88 e 104/88) se pronunciou no sentido da
inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, da diferenciação
de tratamento entre viúvas e viúvos, resultante das alíneas a) e b) do n.º 1
desta Base, considerando que essa diferenciação, ainda que pudesse ter alguma
justificação histórica, dado o desfavorecimento da mulher no mercado de
trabalho, surgia actualmente em clara dessintonia com a realidade social e
jurídica, uma vez que, quer ao nível fáctico, quer ao nível jurídico, as
diferenças entre homens e mulheres trabalhadoras tem vindo a diluir‑se. Por
isso, aquela distinção radicava fundamentalmente no sexo e, sendo objectivamente
injustificável e irrazoável, violava o princípio da igualdade, tal como, em
termos materiais, o artigo 13.º da CRP o afirma. Esta jurisprudência culminou
com a prolação do Acórdão n.º 191/88, que declarou, com força obrigatória geral,
a inconstitucionalidade da norma da alínea b) do n.º 1 da Base XIX da Lei n.º
2127, “na parte apenas em que atribui ao viúvo, em caso de falecimento do outro
cônjuge em acidente de trabalho, e havendo casado previamente ao acidente, uma
pensão anual de 30 por cento da retribuição‑base da vítima, e isto desde que
esteja afectado de doença física ou mental que lhe reduza sensivelmente a
capacidade de trabalho, ou seja de idade superior a 65 anos à data da morte da
mulher”.
Na sequência desta decisão, a Lei n.º 22/92, de 14 de
Agosto, alterou a redacção da Base XIX da Lei n.º 2127, que passou a dispor:
“1. Se do acidente de trabalho ou da doença profissional resultar a
morte, os familiares da vítima receberão as seguintes pensões anuais:
a) Cônjuge – 30% da remuneração base da vítima até perfazer a idade
de reforma por velhice e 40% a partir daquela idade ou no caso de doença física
ou mental que afecte sensivelmente a sua capacidade de trabalho;
b) Cônjuge divorciado ou separado judicialmente à data do acidente e
com direito a alimentos – o valor da pensão estabelecida na alínea a) até ao
limite do quantitativo dos alimentos judicialmente fixado;
c) Filhos, incluindo os nascituros, até perfazerem 18 ou 22 e 25
anos, enquanto frequentarem, respectivamente, o ensino secundário ou curso
equiparado ou o ensino superior, e os afectados de doença física ou mental que
os incapacite para o trabalho – 20% da retribuição‑base da vítima se for apenas
um, 40% se forem dois, 50% se forem três ou mais, recebendo o dobro destes
montantes, até ao limite de 80% da retribuição da vítima, se forem órfãos de pai
e mãe;
d) Ascendentes e quaisquer parentes sucessíveis, estes até aos 18 ou
22 e 25 anos, enquanto frequentarem, respectivamente, o ensino secundário ou
curso equiparado ou o ensino superior, ou sem limite de idade quando afectados
de doença física ou mental que os incapacite sensivelmente para o trabalho,
desde que a vítima contribuísse com regularidade para o seu sustento – a cada,
10% da retribuição‑base da vítima, não podendo o total das pensões exceder 30%
desta.
2. (…)
3. O cônjuge sobrevivo que contraia casamento tem direito a receber,
por uma só vez, o triplo do valor da pensão anual.
4. (…)
5. (…).”
Foi o resultante desta redacção da Base XIX da Lei n.º
2127 o regime legal que o acórdão recorrido considerou aplicável ao caso dos
autos, por ter entendido que, atenta a data do acidente (1 de Outubro de 1999),
era ininvocável o regime da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e do Decreto‑Lei
n.º 142/99, de 30 de Abril, que, nos termos do artigo 41.º, n.º 1, alínea a), da
Lei n.º 100/97, só se aplica aos acidentes de trabalho ocorridos após a entrada
em vigor do Decreto‑Lei n.º 142/99, o que, por força do Decreto‑Lei n.º
382‑A/99, de 22 de Setembro, só veio a ocorrer em 1 de Janeiro de 2000. Apesar
da sua inaplicabilidade ao caso dos autos, interessa referir que o artigo 20.º
da Lei n.º 100/97 dispõe:
“1 – Se do acidente resultar a morte, as pensões anuais serão as
seguintes:
a) Ao cônjuge ou a pessoa em união de facto: 30% da retribuição do
sinistrado até perfazer a idade de reforma por velhice e 40% a partir daquela
idade ou no caso de doença física ou mental que afecte sensivelmente a sua
capacidade de trabalho;
b) Ao ex‑cônjuge ou cônjuge judicialmente separado à data do
acidente e com direito a alimentos: a pensão estabelecida na alínea anterior e
nos mesmos termos, até ao limite do montante dos alimentos fixados
judicialmente;
c) (…)
d) (…)
2. (…)
3. Qualquer das pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que
contraia casamento ou união de facto receberá, por uma só vez, o triplo do
valor da pensão anual, excepto se já tiver ocorrido a remição total da pensão.
4. (…)
5. (…)
6. (…)”
O n.º 2 do artigo 49.º do Decreto‑Lei n.º 143/99 veio
precisar que “para efeitos do disposto no artigo 20.º da lei, são consideradas
uniões de facto as que preencham os requisitos do artigo 2020.º do Código
Civil”.
2.2. Descrita a evolução do regime legal de atribuição
de pensões no caso de acidentes de trabalho mortais, cumpre agora indagar a
relevância jurídica das situações de união de facto, desde logo na perspectiva
constitucional.
A este respeito, e quer se busque apoio – como este
Tribunal tem feito (cf. Acórdão n.º 275/2002), na esteira da posição de J. J.
Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada,
4.ª ed., vol. I, Coimbra, 2007, p. 561) – no artigo 36.º, n.º 1, da CRP, que, ao
distinguir o direito de constituir família e o direito de contrair casamento,
não permitiria “a redução do conceito de família à união conjugal baseada no
casamento”, decorrendo desse preceito “uma abertura constitucional – se não
mesmo uma obrigação – para conferir o devido relevo jurídico às uniões
familiares «de facto»”, quer se prefira invocar – como propugnam Francisco
Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (Curso de Direito da Família, vol. I, 4.ª
edição, 2008, pp. 55‑58; cf. votos de vencido apostos aos Acórdãos n.ºs 86/2007
e 87/2007) – o direito ao desenvolvimento da personalidade, que a revisão
constitucional de 1997 reconheceu de modo explícito no n.º 1 do artigo 26.º, já
que “estabelecer uma união de facto é certamente uma manifestação ou forma de
exercício desse direito”, pelo que “a legislação que proibisse a união de facto,
que a penalizasse, impondo sanções aos membros de relação e coarctando de modo
intolerável o direito de as pessoas viverem em união de facto, seria (…)
manifestamente inconstitucional”, é seguro que a Constituição não impõe uma
equiparação total de direitos e deveres entre os casados e os unidos de facto,
existindo, neste domínio, uma ampla margem de liberdade de conformação do
legislador ordinário.
No domínio que especialmente interessa ao objecto do
presente recurso, foi a Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, que adoptou várias
medidas de protecção da união de facto, que veio, no seu artigo 3.º,
expressamente reconhecer, pela primeira vez, que “quem vive em união de facto
tem direito a: (…) g) Prestação por morte resultante de acidente de trabalho ou
doença profissional, nos termos da lei; (…)” [O acórdão do STJ, de 22 de Março
de 1995, proc. n.º 3878, disponível em www.dgsi.pt/jstj, não reconheceu a quem
vivia em união de facto com o trabalhador vítima de acidente mortal o direito à
pensão prevista na Base XIX da Lei n.º 2127, argumentando, além do mais, que o
legislador da Lei n.º 22/92, que alterou a redacção dessa Base, não podia deixar
de conhecer a existência de uniões de facto (definidas na revisão do Código
Civil de 1977), a par de relações matrimoniais, e, apesar disso, optou por
apenas atribuir a pensão por morte ao cônjuge do trabalhador sinistrado.]
A explicitação desse direito dos unidos de facto à
prestação por morte resultante de acidente de trabalho foi mantida no artigo
3.º, alínea f), da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, precisando agora o subsequente
artigo 6.º, n.º 1, que beneficia desse direito quem reunir as condições
constantes do artigo 2020.º do Código Civil.
Mas essas disposições não versam directamente sobre a
situação em causa no presente recurso: elas atribuem aos unidos de facto o
direito a perceber pensão no caso de morte, por acidente de trabalho, do outro
membro da união, e do que ora se trata é de saber se, adquirido pelo cônjuge
(ligada pelo casamento) do trabalhador falecido o direito à pensão, em princípio
vitalícia, este direito é substituído (o que, em termos práticos, significará
uma redução do benefício) pela percepção, de uma só vez, do triplo do montante
anual da pensão caso ele venha a estabelecer uma relação de união de facto, tal
como ocorreria se contraísse novo casamento.
O acórdão recorrido respondeu negativamente a essa
questão e o que está em causa no presente recurso não é apurar se essa é, ou
não, a mais correcta interpretação do direito ordinário, mas, assumindo esta
interpretação como um dado da questão, apreciar se a mesma ofende,
designadamente, o princípio da igualdade, por estabelecer uma diferenciação de
tratamento constitucionalmente injustificada.
Poderia sustentar‑se que, atendendo à razão de ser da
atribuição da pensão a familiares do trabalhador falecido – que, como vimos,
consistia na compensação da perda de rendimentos que para o familiar derivou da
morte do trabalhador e que, por isso, ou dependia da prova de que este prestava
alimentos ao familiar em causa (casos dos cônjuges divorciados ou separados
judicialmente, ascendentes e outros parentes) ou da presunção legal dessa
prestação (casos dos cônjuges e dos filhos) – seria mais coerente com a
atribuição de similar direito ao unido de facto (atribuição que radicaria na
presunção de que ele receberia assistência do outro membro) que, também no caso
de contracção de união de facto por parte do viúvo ou viúva do trabalhador
falecido, se procedesse à substituição da pensão (vitalícia) pela percepção de
uma vez só do triplo do montante anual da pensão, como sucede com a contracção
de novo casamento, pois a razão desta “redução” do benefício estará, neste caso,
no entendimento de que o novo cônjuge do titular da pensão passará a contribuir
para as suas despesas.
Acontece, porém, que o acórdão recorrido considerou – e
a inexistência de disposições legais expressas sobre a matéria legitima tal
entendimento – que existe uma diferença jurídica relevante entre, por um lado,
a situação dos cônjuges, que estão reciprocamente vinculados pelo dever de
assistência (artigo 1672.º do Código Civil), que compreende “a obrigação de
pagar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar” (artigo
1675.º, n.º 1, do mesmo Código) e, por outro lado, a situação dos unidos de
facto, relativamente aos quais esse dever de assistência, na constância da
relação, não está legalmente consagrado. Dos diversos Projectos de Lei
apresentados sobre a matéria só o Projecto de Lei n.º 384/VII (Diário da
Assembleia da República, II Série‑A, n.º 53, de 19 de Junho de 1997, pp.
1049‑1056), da iniciativa do PCP, estabelecia a aplicação à união de facto do
disposto no artigo 1676.º do Código Civil (dever de contribuir para os encargos
da vida familiar), mas tal não passou ao texto da lei. Persistiu, assim, o que
já foi considerado uma “originalidade” do tratamento da união de facto pelo
legislador português (em comparação, por exemplo, com os regimes francês e
brasileiro), e que consiste “na distinção entre um estatuto (…) «social», que
define os direitos das pessoas a viver em união de facto face aos organismos
públicos e à sociedade em geral, e que foi progressivamente aumentando; e um
estatuto (…) «privado», relativo aos próprios direitos e deveres recíprocos
entre essas pessoas, que foi sendo ignorado pela lei” (Rita Lobo Xavier, “Novas
sobre a união more uxorio em Portugal”, em Estudos Dedicados ao Prof. Doutor
Mário Júlio de Almeida Costa, Lisboa, 2002, pp. 1393‑1406, em especial p. 1398).
Na doutrina, Francisco Pereira Coelho e Guilherme de
Oliveira (obra citada, p. 69) referem que “não assumindo compromissos, os
membros da união de facto não estão vinculados por qualquer dos deveres pessoais
que o artigo 1672.º impõe aos cônjuges” (dispondo este preceito que “os
cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade,
coabitação, cooperação e assistência”). Já José António de França Pitão (Uniões
de Facto e Economia Comum, 2.ª edição, Coimbra, 2006, pp. 115‑116) entende que
“muito embora sem qualquer carácter sancionatório ou cominatório, (…) existe um
recíproco dever entre os membros da união de facto heterossexual em
contribuírem para os encargos da vida familiar”.
Perante o silêncio da lei, o entendimento, acolhido no
acórdão recorrido, de que existe uma diferença relevante entre a relação assente
no casamento (na pendência do qual existe um dever de assistência recíproca
entre os cônjuges) e a emergente de uma união de facto (na pendência da qual
esse dever não está legalmente consagrado), constitui fundamento suficiente
para que não se dê por verificada a violação do princípio da igualdade, enquanto
proibição de soluções jurídicas arbitrárias, porque assentes em diferenciações
carecidas de fundamento bastante à luz dos valores constitucionais pertinentes.
É certo que se pode entender que “ao autonomizar o
direito de contrair casamento (n.º 1), ao dedicar especial atenção aos
requisitos, efeitos e formas de celebração do casamento e à sua dissolução (n.º
2), e ao se ocupar especificamente do estatuto dos cônjuges (n.º 3), o artigo
36.º da Constituição reconhece o papel especial do casamento (Acórdão n.º
57/95)” e que “da relevância assim atribuída ao casamento – e do reconhecimento
(subjacente à importância constitucional conferida aos requisitos, forma de
celebração e efeitos do casamento no artigo 36.º, n.º 2) do carácter
institucional da relação conjugal adveniente da assunção de um vínculo de
natureza pública através da celebração do casamento – resulta, concretamente,
que, para o legislador constitucional, o casamento é o quadro institucional mais
favorável em que a família se pode desenvolver” (Jorge Miranda e Rui Medeiros,
Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Lisboa, 2005, pp. 398‑399), de que
resultaria para o legislador o dever de conferir “um tratamento preferencial à
família nascida do casamento” (Rita Lobo Xavier, estudo citado, p. 1405). Este
Tribunal, designadamente no Acórdão n.º 275/2002, através de considerações que
foram retomadas nos Acórdãos n.ºs 86/2007 e 87/2007, considerou
constitucionalmente conformes medidas legislativas mais favoráveis para as
pessoas unidas pelo casamento em confronto com os unidos de facto,
designadamente enquadradas em “políticas de incentivo à família que se funda no
casamento”, desde que respeitados os limites da razoabilidade.
Nesta perspectiva, poderia colocar‑se a questão da
constitucionalidade de soluções que, como a subjacente ao caso dos presentes
autos, pode ser vista como envolvendo objectivamente um tratamento mais
favorável aos unidos de facto e, consequentemente, desincentivadora da
constituição de família “matrimonial”: para a viúva do sinistrado é
patrimonialmente “preferível” manter a situação de união de facto (que se
entendeu não afectar o seu direito a pensão vitalícia) do que contrair casamento
com a pessoa com quem vive more uxorio, hipótese em que veria aquela pensão ser
substituída pela percepção, de uma só vez, do triplo do montante anual da
pensão. Para Nuno de Salter Cid (A Comunhão de Vida à Margem do Casamento:
Entre o Facto e o Direito, Coimbra, 2005, p. 629), a propósito da previsão
legal da perda do direito a pensões de sobrevivência por contracção de novo
casamento pelos beneficiários (sem previsão de igual perda para a hipótese de o
beneficiário entrar em união de facto), “estes convites à união de facto, em
prejuízo do direito fundamental de contrair casamento, dificilmente podem
resistir ao confronto com os artigos 18.º e 36.º, n.º 1, da CRP: para não se
ofenderem estes preceitos constitucionais, impõe‑se, pois, esta regra: sempre
que o casamento ou o novo casamento implique a perda (ou a diminuição) de
benefícios, dever‑se‑á considerar que a «união de facto» ou a «nova união de
facto» do beneficiário acarreta o mesmo efeito”.
Este Tribunal, no citado Acórdão n.º 57/95, foi chamado,
entre outras questões, a apreciar a constitucionalidade do tratamento fiscal
alegadamente mais desfavorável do rendimento dos agregados familiares fundados
no casamento em comparação com os contribuintes unidos de facto ou solteiros.
Apesar de reconhecer que “a constatação de que a tributação conjunta dos
rendimentos do agregado familiar, desacompanhada de um instrumento de correcção
dos seus efeitos negativos, origina, por via de regra, uma discriminação fiscal
da família baseada no casamento, em comparação com as uniões de facto e com as
pessoas solteiras, esteve na base de declarações de inconstitucionalidade
emitidas pelo Tribunal Constitucional da República Federal da Alemanha [Acórdão
de 17 de Janeiro de 1957], pelo Tribunal Constitucional italiano [Sentença n.º
179, de 15 de Julho de 1976] e pelo Tribunal Constitucional espanhol [Sentença
n.º 45/89, de 20 de Fevereiro de 1989]”, o referido Acórdão acabou por
considerar que as normas que estabeleciam a incidência do IRS sobre o conjunto
dos rendimentos do agregado familiar na constância do matrimónio – e que
constituíam um instrumento técnico constitucionalmente adequado de
regulamentação do imposto sobre o rendimento “tendo em conta as necessidades e
os rendimentos do agregado familiar” – não violavam o princípio da igualdade, já
que não se configurava como arbitrária a distinção, para este efeito
estabelecida, entre a família fundada no matrimónio e a união de facto.
Também no presente caso, tendo em conta a diferenciação
básica, no que respeita à existência do dever de assistência recíproca na
pendência do casamento e na pendência da união de facto, que foi assumida no
acórdão recorrido, não se pode dizer que viole o princípio da igualdade, por
constituir uma solução desprovida de fundamento razoável, o entendimento de que
a regra do n.º 3 da Base XIX da Lei n.º 2127 não é aplicável quando a
beneficiária de pensão estabelece uma união de facto. Trata‑se de domínio que
se encontra na liberdade de conformação do legislador, que, consoante atribua
maior relevância à realidade “jurídica” da inexistência de consagração legal
expressa do dever de assistência recíproca entre os membros da união de facto ou
à realidade “social” de que será normal a prestação dessa assistência, assim não
equiparará ou equiparará o estabelecimento de uma relação desse tipo à
contracção de novas núpcias, para efeitos de determinar a substituição da pensão
vitalícia pela percepção, de uma só vez, do triplo do montante actual da
pensão. Daqui não se segue, como é óbvio, que se repute inconstitucional a
solução que acabou por ser adoptada no artigo 20.º, n.º 3, da Lei n.º 100/97;
apenas se entende que esta não é a única solução constitucionalmente
admissível.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a interpretação segundo a
qual o disposto no n.º 3 da Base XIX da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, na
redacção da Lei n.º 22/92, de 14 de Agosto, que determina que se o cônjuge
sobrevivo de vítima mortal de acidente de trabalho contrair casamento receberá,
por uma só vez, o triplo do valor da pensão anual, não é aplicável se o mesmo
passar a viver em união de facto com outrem; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida, na parte impugnada.
Custas pelos recorrentes, fixando‑se a taxa de justiça
em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 31 de Julho de 2008.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Benjamim Silva Rodrigues (Com dúvidas, que não consegui ultrapassar, por o
referido considerado pelo acórdão recorrido – inexistência de obrigação de
“amparo” relativamente ao unido de facto – não constituir uma inevitabilidade
jurídica face ao sistema jurídico, onde é pensável a intervenção dos institutos
do enriquecimento sem causa e do abuso de direito)
Rui Manuel Moura Ramos