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Processo n.º 80/2008
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No âmbito da acção especial de constituição de um fundo de limitação de
responsabilidade, proposta, entre outros, por A. e B., ao abrigo da Convenção
Internacional sobre o Limite de Responsabilidade dos Proprietários de Navios de
Alto Mar, concluída em Bruxelas em 10 de Outubro de 1957, que correu os seus
temos no Tribunal Marítimo de Lisboa sob o n.º 189/03.7 TNLSB, foi deferida a
constituição de um fundo de limitação de responsabilidade no montante de €
8.267,41 com vista ao ressarcimento dos danos que viessem a ser reclamados por
eventuais lesados com direito a indemnização, por referência à abalroação
verificada entre duas determinadas embarcações de pesca.
Posteriormente, em sede de convocação de credores, C. e D., entre outros, vieram
reclamar créditos no valor global de Esc. 47.086.770$00 (€ 234.867,82),
acrescido de juros de mora, a título de indemnização por danos patrimoniais
emergentes do referido sinistro marítimo.
Em 27 de Fevereiro de 2006, o Tribunal Marítimo de Lisboa proferiu sentença e,
por referência aos aludidos credores, após lhes ter reconhecido e considerado
provados danos patrimoniais no valor global de € 65.785,04, viria a condenar A.
e “B.” a pagar-lhes apenas a quantia global de € 2.465,34, isto após repartição
da totalidade do aludido fundo de limitação de responsabilidade por todos os
credores reclamantes.
Os referidos credores interpuseram recurso de apelação dessa sentença e o
Tribunal da Relação de Lisboa, mediante acórdão datado de 19 de Abril de 2007,
julgou improcedente a apelação.
Inconformados com esta decisão, os referidos credores interpuseram recurso de
revista da mesma para o Supremo Tribunal de Justiça que, mediante acórdão datado
de 27 de Novembro de 2007, negou provimento a esse recurso.
Os aludidos credores interpuseram então recurso desta decisão para o Tribunal
Constitucional, no âmbito do qual requereram, ao abrigo do disposto nas alíneas
b) e c), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional (LTC), respectivamente:
a) a apreciação da constitucionalidade da constituição do fundo de limitação de
responsabilidade com os quantitativos previstos no artigo 3.º da Convenção
Internacional sobre o Limite de Responsabilidade dos Proprietários de Navios de
Alto Mar, concluída em Bruxelas em 10 de Outubro de 1957, introduzida na ordem
jurídica portuguesa pelo Decreto-lei n.º 49.028, de 26 de Maio de 1969, quando
daí resulte uma desproporção entre o prejuízo sofrido e a indemnização
decorrente do fundo;
b) e a declaração da ilegalidade da aplicação da referida Convenção aos navios
de pesca costeira.
*
Os Recorrentes apresentaram posteriormente as respectivas alegações, culminando
as mesmas com a formulação das seguintes conclusões:
“1ª – Resulta inequívoco da redacção dada ao texto legal, não só quando foi
proposta a sua ratificação através do Decreto-Lei nº. 48036 de 14 de Novembro de
1967, quer quando introduzida no Direito interno português pelo Decreto-Lei nº.
49028 de 26 de Maio de 1969, que o Estado Português quis incluir apenas os
navios de alto mar na Convenção Internacional Sobre o Limite da Responsabilidade
dos Proprietários de Navios em Alto Mar, concluída em Bruxelas em 10 de Outubro
de 1957, seguidamente identificada por “Convenção”.
2ª – Como consta dos autos, quer os navios envolvidos no sinistro, o “…”
propriedade dos recorrentes e o “…” propriedade do lesante, são embarcações de
pesca costeira, tendo o acidente ocorrido em zona que não pode ser, de acordo
com as definições oficiais, tida por alto mar.
3ª – Nenhuma razão ou justificação de ordem jurídica ou de ordenamento social ou
interesse público permitem concluir pela aplicação desta Convenção a navios não
incluídos na categoria de “navios de alto mar”.
4ª – Não podem ser associados a “navios de alto mar” por incompatibilidade na
sua própria definição, os navios costeiros, nem pode atribuir-se a ignorância do
legislador e órgãos de soberania que intervieram nos respectivos diplomas o
facto de a tradução do texto em francês ter sido a que consta em todos os
diplomas publicados.
5ª – Aliás, no entender dos recorrentes, a tradução de “navires de mer” do texto
original para “navios de mar” é a mais correcta, sendo certo que este argumento
é irrelevante na medida em que a própria Convenção permite aos Estados definirem
que categoria de navios devem ser abrangidos pela Convenção, e o texto
utilizado pelo Estado Português não pode significar mais do que ter sido da
vontade do Estado Português reservar aos “navios de alto mar” a aplicação da
Convenção.
6ª – A aplicação da Convenção e consequente aplicação do Fundo nele prevista,
se, contra a letra da Lei, fosse aplicável a navios costeiros, violaria o
princípio do Estado de Direito Democrático que o artigo 2º da Constituição da
República Portuguesa consagra.
7ª – Mas mesmo que se admitisse não inconstitucional por ilegalidade a
aplicação a navios costeiros da Convenção, sempre, por violação do direito à
propriedade privada consagrado no artigo 62º da Constituição da República
Portuguesa, a aplicação ao caso concreto desta Convenção seria inconstitucional.
8ª – Como resulta dos autos, o valor da embarcação e dos prejuízos sofridos
pelos recorrentes ascendem a mais de 220.611,91€ (cfr. fls. 519 dos autos).
9ª – A indemnização que lhes caberia, face à constituição e repartição do Fundo
previsto e segundo as regras da Convenção, seria de 8.267,41€ (fls. 520 dos
autos) o que corresponde a 3,75% (três virgula setenta e cinco por cento) do
prejuízo realmente sofrido.
10ª – Ora, se este Venerando Tribunal Constitucional já decidiu no sentido de,
nas expropriações por utilidade pública, ser inconstitucional a atribuição de
uma indemnização manifestamente injusta, muito menos se aceitará que, numa lesão
provocada culposamente por terceiro, uma Lei, ainda para mais de interpretação
duvidosa, possa merecer aprovação constitucional quando, pela sua aplicação
resulta um montante que reduz praticamente a nada o direito dos lesados a uma
justa indemnização.
11ª – Donde resultar manifesto que a aplicação da Convenção ao caso vertente é
inconstitucional por violação do direito de propriedade constitucionalmente
consagrado”.
A Recorrida B. contra-alegou e concluiu pela seguinte forma:
“1. O recurso com fundamento em ilegalidade das normas aplicadas pelo Tribunal a
quo, não toca qualquer matéria de natureza jurídico-constitucional, pelo que se
concorda com o douto despacho proferido a 26.02.2008, por não se verificarem os
fundamentos de que a al. d) do n.º 2 do art.º 280º da CRP faz depender o
recurso, tratando-se de matéria que se encontra fora do âmbito da competência
específica do Tribunal ad quem (art.º 221º da CRP);
2. Para além disso, o requerimento de recurso dos Recorrentes devia ter sido
indeferido, impugnando-se a sua admissão, uma vez que não se encontra
identificada a peça processual em que estes terão suscitado a questão da
inconstitucionalidade, não especificaram que norma ou normas seriam
inconstitucionais por violação do invocado art.º 62º da CRP e por o recurso se
mostrar, neste particular, manifestamente infundado (al. b) do n.º 1 do art.º
280º da CRP e al. b) do n.º 1 do art.º 70º, n.ºs 1 e 2 do art.º 75º-A, e n.º 2
do art.º 76º da LTC);
3. Não obstante, foi com base no art.º 2º do DL n.º 49 028, de 26 de Maio de
1969, e na al. a) do n.º 1 e nos n.ºs 2, 7, 8 e 9 do art.º 3º da Convenção de
1957, que o fundo de limitação da responsabilidade foi constituído e repartido,
e nenhuma destas normas é inconstitucional por violar o art.º 62º da CRP e os
princípios nele consagrados:
4. Os Recorrentes não foram arbitrariamente privados dos bens da sua propriedade
nem, tão pouco, foram desapropriados pelos Recorridos;
5. Também a garantia do direito dos Recorrentes à satisfação dos seus créditos
não foi afectada, posto que os mesmos viram os respectivos créditos serem
reconhecidos e graduados;
6. A limitação de responsabilidade do devedor, em termos gerais, é admitida pelo
nosso Direito Civil, enquanto excepção à regra geral de que pelas dívidas do
devedor de uma obrigação responde todo o seu património penhorável (art.º 601º
do Cód. Civil);
7. E em especial, a limitação de responsabilidade dos proprietários de navios de
mar prevista na Convenção de Bruxelas de 1957 é um caso mais, a somar a outros
consagrados em convenções internacionais sobre matérias específicas, como por
exemplo, a poluição marítima, perfeitamente justificado atendendo ao risco da
actividade marítima;
8. Trata-se de um instituto clássico do Direito Marítimo, criado para fomentar o
investimento privado na empresa marítima através da limitação da
responsabilidade do proprietário do navio a um valor calculado com base nas
características do próprio navio causador do dano e independentemente desse bem
existir ou não, o que resulta vantajoso para os credores;
9. O seguro de embarcações de pesca não é obrigatório em Portugal e mesmo que a
embarcação culpada esteja segura, isso não isenta o seu proprietário da
responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros, até porque as apólices
contemplam um tecto máximo para as suas coberturas – o capital seguro – a partir
do qual não poderão ser responsabilizadas;
10. Conforme foi doutamente decidido pelo douto acórdão recorrido, as normas
jurídicas aplicadas não prevêem qualquer “restrição que faça correr um credor
comum num risco desproporcionado de ver totalmente frustrada a possibilidade de
satisfação do seu crédito”.
*
Fundamentação
1. Da idoneidade do objecto do recurso
No requerimento de interposição de recurso, os recorrentes, abrigando-se no
disposto nas alíneas b), e c), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), solicitaram
respectivamente:
a) a apreciação da constitucionalidade da constituição do fundo de limitação de
responsabilidade com os quantitativos previstos no artigo 3.º da Convenção
Internacional sobre o Limite de Responsabilidade dos Proprietários de Navios de
Alto Mar, concluída em Bruxelas em 10 de Outubro de 1957, introduzida na ordem
jurídica portuguesa pelo Decreto-lei n.º 49.028, de 26 de Maio de 1969, quando
daí resulte uma desproporção entre o prejuízo sofrido e a indemnização
decorrente do fundo;
b) e a declaração da ilegalidade da aplicação da referida Convenção aos navios
de pesca costeira.
Começando pela análise do recurso de legalidade, os recorrentes pretendem que o
Tribunal Constitucional leve a cabo a fiscalização concreta da legalidade da
aplicação da Convenção de Bruxelas de 1957 às embarcações de pesca costeira.
No essencial, os recorrentes entendem, e apenas no plano puramente hermenêutico,
que os proprietários de embarcações de pesca costeira não podem beneficiar do
instituto de limitação de responsabilidade à luz das normas constantes da
aludida convenção internacional e que o tribunal a quo andou mal quando aplicou
essa convenção internacional ao caso dos autos.
A sua discordância é, pois, relativa à interpretação que o tribunal fez do
âmbito de aplicação da referida convenção internacional.
Ora, na invocada alínea c), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, admite-se o
recurso das decisões dos tribunais “que recusem a aplicação de norma de acto
legislativo, com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor
reforçado.”
O acórdão do S.T.J. limitou-se a incluir, num raciocínio subsuntivo, a situação
em concreto dos presentes autos no âmbito de aplicação da Convenção de Bruxelas
de 1957, não tendo recusado a aplicação de qualquer norma, nem aplicado qualquer
norma de acto legislativo que contrarie lei com valor reforçado, o que, neste
último caso, poderia configurar a possibilidade de recurso admitida pela alínea
f), do mesmo n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
Não tendo a decisão recorrida aplicado ou recusado a aplicação de qualquer norma
integrante de um acto legislativo que desrespeite norma com valor superior, a
discordância relativamente ao âmbito de aplicação duma convenção internacional
não se enquadra nas hipóteses de recurso para o Tribunal Constitucional
referidas nas alíneas c) e f), do nº 1, do artigo 70º, da LTC.
Assim, não pode ser conhecido o recurso interposto na parte em que suscita a
existência duma situação de ilegalidade.
Relativamente ao recurso de constitucionalidade, os recorrentes pediram a
apreciação da constitucionalidade da constituição do fundo de limitação de
responsabilidade com os quantitativos previstos no artigo 3.º, da Convenção
Internacional sobre o Limite de Responsabilidade dos Proprietários de Navios de
Alto Mar, concluída em Bruxelas em 10 de Outubro de 1957, introduzida na ordem
jurídica portuguesa pelo Decreto-lei n.º 49.028, de 26 de Maio de 1969, quando
daí resulte uma desproporção entre o prejuízo sofrido e a indemnização
decorrente do fundo.
Como facilmente se alcança, os recorrentes indicaram efectivamente a dimensão
normativa cuja constitucionalidade pretendem ver apreciada, sem prejuízo do
objecto assim configurado, mercê da instrumentalidade do recurso de
constitucionalidade, carecer de alguma restrição de âmbito e de alguma precisão
normativa, por referência ao caso concretamente apreciado no tribunal recorrido.
Na verdade, a decisão recorrida considerou que, apesar de estarmos perante um
caso em que todos os interessados, bem como o tribunal de julgamento, pertencem
ao mesmo Estado (Portugal), se aplicavam como direito interno, as regras da
Convenção Internacional sobre o Limite de Responsabilidade dos Proprietários de
Navios de Alto Mar, concluída em Bruxelas em 10 de Outubro de 1957, por força do
disposto no artigo 12.º, do Decreto-lei n.º 202/98, de 10 de Julho, tendo, por
isso, admitido a constituição de um fundo de limitação da responsabilidade, nos
termos previstos naquela Convenção.
Os recorrentes censuram os quantitativos a que os proprietários de navios podem
limitar a sua responsabilidade na situação em que a indemnização decorrente da
repartição do fundo pelos credores cobre apenas 3,75% do montante dos créditos
que lhes foram reconhecidos enquanto lesados, quanto estes somam € 65.785,04.
É esta desproporção – e não qualquer desproporção em geral – que importa
sindicar no plano da justiça constitucional, por força da natureza instrumental
do recurso de constitucionalidade.
Por outro lado, com relevância para o caso concreto, importa ter presente que o
artigo 3.º da Convenção Internacional sobre o Limite de Responsabilidade dos
Proprietários de Navios de Alto Mar, concluída em Bruxelas em 10 de Outubro de
1957, introduzida na ordem jurídica portuguesa pelo Decreto-lei n.º 49.028, de
26 de Maio de 1969, sofreu alterações ditadas pelo Protocolo de Bruxelas de 21
de Dezembro de 1979, por seu turno aprovado para ratificação pelo Decreto n.º
6/82, de 21 de Janeiro.
Estas alterações são relevantes porque visaram estabelecer os novos
quantitativos a que o proprietário de um navio pode limitar a sua
responsabilidade e, sobretudo, porque foram precisamente aqueles que foram
aplicados na decisão recorrida, em especial, o previsto na alínea a), do n.º 1,
do referido artigo 3.º.
A questão de constitucionalidade foi suscitada pelos recorrentes nas alegações
de revista apresentadas perante o Supremo Tribunal de Justiça (vide as
conclusões 16.ª a 18.ª) e disso foi expressamente dado conta no requerimento de
interposição de recurso de constitucionalidade.
Não existem, assim, razões para que se não conheça do recurso interposto
restringindo-se esse conhecimento à constitucionalidade da norma respeitante à
constituição do fundo de limitação de responsabilidade com o quantitativo
previsto no artigo 3.º, n.º 1, alínea a), da Convenção Internacional sobre o
Limite de Responsabilidade dos Proprietários de Navios de Alto Mar, concluída em
Bruxelas em 10 de Outubro de 1957, introduzida na ordem jurídica portuguesa pelo
Decreto-lei n.º 49028, de 26 de Maio de 1969, com as alterações efectuadas pelo
Protocolo de Bruxelas de 21 de Dezembro de 1979, aprovado para ratificação pelo
Decreto n.º 6/82, de 21 de Janeiro, quando a indemnização decorrente da
repartição do fundo pelos credores cobre apenas 3,75% do montante dos créditos
reconhecidos a determinados lesados, com o valor de € 65.785,04.
2. Do mérito do recurso
O presente recurso de constitucionalidade versa a matéria da limitação legal da
responsabilidade extracontratual, em especial a limitação da responsabilidade
civil objectiva do proprietário de navio por danos materiais emergentes de um
abalroamento imputável, a título de culpa, à sua tripulação.
A decisão recorrida perfilhou o entendimento que a responsabilidade pela
reparação destes danos pode ser limitada, nos termos dos tratados e convenções
internacionais vigentes em Portugal, valendo essas regras internacionais
convencionais como direito interno, por força do disposto no artigo 12.º, do
Decreto-lei n.º 202/98, de 10 de Julho.
A limitação da responsabilidade que importa apreciar resultou da aplicação da
referida Convenção Internacional sobre o Limite de Responsabilidade dos
Proprietários de Navios de Alto Mar, concluída em Bruxelas em 10 de Outubro de
1957, com as alterações introduzidas pelo Protocolo de 1979 (doravante designada
abreviadamente como Convenção de Bruxelas de 1957).
Nos termos do artigo 1.º, da Convenção de Bruxelas de 1957, o proprietário de
um navio de alto mar pode limitar a sua responsabilidade ao montante determinado
no seu artigo 3.º, em relação aos pedidos de indemnização resultantes de
qualquer das seguintes causas, a menos que o motivo que deu origem ao referido
pedido tenha resultado da culpa pessoal do proprietário:
a) Morte ou lesões corporais de qualquer pessoa encontrando-se a bordo do navio
para ser transportada e perdas ou danos de quaisquer bens a bordo do navio;
b) Morte ou lesões corporais de qualquer outra pessoa, quer em terra, quer no
mar, perdas ou danos de quaisquer outros bens, ou infracções a quaisquer
direitos causados pela acção, negligência ou dolo de qualquer pessoa a bordo do
navio, por quem o proprietário seja responsável, ou de qualquer outra pessoa
que, não se encontrando a bordo do navio e por quem o proprietário é
responsável, desde que, neste último caso, a acção, negligência ou dolo se
refiram à navegação ou à administração do navio ou ao carregamento, transporte
ou descarregamento da sua carga, ou ao embarque, transporte ou desembarque dos
passageiros.
Os efeitos da limitação da responsabilidade previstos na Convenção de Bruxelas
de 1957 são os seguintes:
- Quando o conjunto dos pedidos de indemnização que derivam do mesmo evento
exceda os limites da responsabilidade, tais como são determinados pelo artigo
3.º, o montante global correspondente a esses limites poderá constituir-se num
fundo de limitação único (artigo 2.º, n.º 2).
- O fundo assim constituído será exclusivamente consignado ao pagamento dos
pedidos de indemnização em relação aos quais a limitação de responsabilidade
pode ser invocada (artigo 2.º, n.º 3).
- Consequentemente, depois da constituição do fundo nenhum credor deste poderá
exercer o seu direito sobre quaisquer outros bens do proprietário por pedidos de
indemnização aos quais o fundo está consignado, desde que o fundo de limitação
esteja efectivamente afectado ao benefício do credor (artigo 2.º, n.º 4).
- No caso de danos materiais o proprietário de um navio pode limitar a sua
responsabilidade à importância total de 66,67 unidades de conta por tonelada de
arqueação do navio, (artigo 3.º, n.º 1, a)).
- A unidade de conta que releva é o Direito de Saque Especial, tal como é
definido pelo Fundo Monetário Internacional (artigo 3.º, n.º 6).
- A repartição do fundo de limitação entre os credores far-se-á, em proporção
com os montantes dos créditos reconhecidos (artigo 3.º, n.º 2).
- Este limite é também aplicável à responsabilidade objectiva do fretador, do
armador, do armador gerente do navio e dos empregados destes e do proprietário
do navio, enquanto actuando no exercício das suas funções (artigo 6.º, n.º 2).
- Este limite é ainda aplicável à responsabilidade do comandante e dos membros
da tripulação, mesmo quando ela tenha por fundamento a culpa destes (artigo 6.º,
n.º 3).
Para melhor se compreender o alcance normativo da limitação de responsabilidade
acolhida na decisão recorrida, importa recuperar sucintamente os elementos de
facto que servem de pano de fundo ao presente recurso.
Na sequência de um abalroamento verificado entre duas embarcações de pesca, o
proprietário do navio abalroador, bem como a respectiva seguradora, ora
recorrida, requereram, ao abrigo da referida Convenção de Bruxelas de 1957, a
constituição de um fundo de limitação de responsabilidade no montante de €
8.267,41, tendo por referência 100 toneladas de arqueação do navio abalroador,
com vista ao ressarcimento de todos os danos materiais que viessem a ser
reclamados por eventuais lesados com direito a indemnização, por referência ao
referido abalroamento.
Por seu turno, os recorrentes, nada menos do que os proprietários e tripulantes
do navio abalroado, viram ser-lhes judicialmente reconhecidos danos
patrimoniais resultantes do referido evento no montante global de € 65.785,04,
respeitante aos covos perdidos, ao custo da rocega, à perda de capturas, aos
quinhões perdidos como tripulantes, aos haveres pessoais perdidos e aos lucros
cessantes como armadores.
O tribunal recorrido entendeu que a abalroação tinha sido causada exclusivamente
por omissão ilícita e culposa da tripulação do navio abalroador e que o
respectivo proprietário-armador estava obrigado a responder pelos danos
derivados dessa omissão nos termos em que o comitente responde pelos actos do
comissário.
O tribunal recorrido entendeu ainda que a culpa do navio abalroador se bastava
com a culpa da respectiva tripulação mas que esta não se identificava com a
culpa pessoal do armador, a qual, aliás, considerou não verificada no caso
concreto, para depois concluir que assistia ao proprietário do navio abalroador
– bem como à sua seguradora – o direito de limitar a sua responsabilidade em
relação aos pedidos de indemnização reclamados na presente acção, nos termos
permitidos pela referida Convenção de Bruxelas de 1957.
Todavia, mercê do concurso de credores, os recorrentes apenas puderam contar com
a atribuição de uma indemnização no montante global de € 2.465,34,
correspondente a 29,82% da totalidade do fundo de limitação de responsabilidade
constituído para esse efeito, sendo certo que a indemnização assim atribuída
apenas cobre 3,75% do montante dos créditos reconhecidos aos lesados
recorrentes.
Interessa agora saber se a norma da Convenção de Bruxelas de 1957, respeitante
aos quantitativos máximos a que o proprietário de navio pode limitar a sua
responsabilidade pelo risco, quando interpretada e aplicada no sentido da
indemnização decorrente da repartição do fundo cobrir apenas 3,75% dos danos
materiais reconhecidos a determinados lesados, quanto estes importam em €
65.785,04, viola algum parâmetro constitucional.
Os recorrentes entendem que a referida dimensão normativa viola o direito à
propriedade privada, em especial o direito à justa indemnização consagrado no
artigo 62.º, da C.R.P.
O n.º 1 do referido artigo 62.º dispõe que “a todos é garantido o direito à
propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da
Constituição”, acrescentando o n.º 2 que “a requisição e a expropriação por
utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento
de justa indemnização”.
O direito de propriedade privada é um direito fundamental de natureza análoga
aos direitos, liberdades e garantias, nos termos do artigo 17.º da C.R.P., que
tem como seu componente o direito da pessoa não ser privada dos bens que
integram a sua esfera patrimonial, cuja função é a de proteger a posição
jurídica patrimonial do cidadão perante as medidas de socialização, confisco
político e expropriação (vide FERNANDO ALVES CORREIA, em “Manual do Direito do
Urbanismo”, volume I, pág. 667-669, da 3.ª Edição, da Almedina).
O direito de não ser privado da propriedade não goza de protecção constitucional
em termos absolutos, estando garantido apenas um direito de não ser
arbitrariamente privado da propriedade e de ser indemnizado em caso de
desapropriação resultante de acto de requisição ou de expropriação por utilidade
pública (GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, em “Constituição da República
Portuguesa anotada”, vol. I, pág. 805, da 4ª ed., da Coimbra Editora).
No caso em apreço, por causa da abalroação, os recorrentes sofreram a perda das
artes de pesca (covos) e dos seus haveres pessoais, mas viram-se igualmente
privados, durante a inactividade da embarcação abalroada, dos rendimentos que
lhes caberiam enquanto tripulantes e armadores.
Apesar de estarmos perante uma situação de ofensa do direito de propriedade dos
recorrentes sobre os seus bens, a mesma não resulta duma desapropriação forçada
resultante de acto voluntário de autoridade pública, pelo que o direito ao
recebimento duma indemnização pelos prejuízos sofridos não é uma exigência do
disposto no artigo 62.º, n.º 2, da C.R.P., mas sim de um princípio geral, do
qual este preceito é uma refracção.
Na verdade, do princípio estruturante do Estado de direito democrático,
consagrado no artigo 2.º, da C.R.P., colhe-se um direito geral à reparação dos
danos, de que são expressão particular os direitos de indemnização previstos nos
artigos 22.º, 37.º, n.º 4, 60.º, n.º 1, e 62.º, n.º 2, da C.R.P. (vide GOMES
CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ob. cit., pág. 206).
Constituindo missão do Estado de direito democrático a protecção dos cidadãos
contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça, não poderá o legislador
ordinário deixar de assegurar o direito à reparação dos danos injustificados que
alguém sofra em consequência da conduta de outrem. A tutela jurídica dos bens e
interesses dos cidadãos reconhecidos pela ordem jurídica e que foram
injustamente lesionados pela acção ou omissão de outrem, necessariamente
assegurada por um Estado de direito, exige, nestes casos, a reparação dos danos
sofridos, tendo o instituto da responsabilidade civil vindo a desempenhar nessa
tarefa um papel primordial.
Conforme se referiu em anteriores acórdãos deste tribunal, a propósito do
direito de reparação dos danos que assiste aos consumidores (artigo 60.º, n.º 1,
da C.R.P.), o legislador ordinário tem ampla liberdade de conformar mais ou
menos limitativamente o direito à reparação dos danos, seja definindo condições
para a constituição de uma obrigação de indemnização, seja limitando os danos
ressarcíveis. Necessário é, que, no estabelecimento dessas condições e limites,
não se venha a tornar desprovido de significado o «núcleo» desse direito, ou
seja, que o direito à reparação dos danos, na prática, não venha a ser
impossibilitado de operar, ou que dos limites fixados não resulte um
ressarcimento dos danos irrisório ou desprezível, devendo essas condições e
limites serem justificadas pelos interesses em jogo (vide, neste sentido, os
acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 153/90, em “Acórdãos do Tribunal
Constitucional”, 16.º vol., pág. 231, n.º 650/2004, em “Acórdãos do Tribunal
Constitucional”, 60.º vol., pág. 133, e n.º 117/2008, no Diário da República, II
Série, n.º 70, de 9-4-2008, pág. 15.915).
Lê-se no citado acórdão n.º 650/2004, a propósito do direito à reparação dos
danos sofridos pelos consumidores:
“…entende o Tribunal que o direito consagrado na parte final do nº 1 do artigo
60º da Constituição não veda que o legislador ordinário, no uso da sua liberdade
de conformação, venha a modelar o ressarcimento dos prejuízos causados aos
consumidores e motivados por uma menor qualidade dos bens e serviços
consumidos, por sorte a que a respectiva indemnização possa ser fixada em
limites menores do que aqueles que, de acordo com as regras gerais comuns do
ordenamento jurídico, poderiam conferir um mais amplo ressarcimento.
Ponto é, contudo, que, no estabelecimento desses limites, de uma parte, não se
venha a tornar desprovido de significado o «núcleo» do direito consagrado na
parte final do nº 1 do artº 60º da Constituição, ou seja, que o direito à
reparação dos danos dos consumidores, na prática, não venha ser impossibilitado
de operar; de outra, que dos limites fixados não resulte um ressarcimento
irrisório ou desprezível e, por fim, que, a haver limitações à reparação
integral dos prejuízos, sejam elas justificadas pelos interesses em presença.”
A limitação do direito à reparação dos danos aqui sob fiscalização respeita a
uma responsabilização pelo risco.
O artigo 4.º, do Decreto-lei n.º 202/98, de 4 de Julho, responsabiliza o armador
que seja proprietário do navio, independentemente de culpa, pelos danos
derivados de actos e omissões da tripulação do navio, aplicando-se a esta
responsabilidade as disposições da lei civil que regulam a responsabilidade do
comitente pelos actos do comissário.
É por demais sabido que a imputação pelo risco resulta do desenvolvimento
tecnológico e industrial do mundo contemporâneo e da consideração de que os
danos causados a terceiros por meios criadores de perigo para bens alheios devem
também ser suportados pelas pessoas ou entidades que deles recolhem particulares
benefícios, independentemente de um juízo de culpa sobre a sua conduta (vide VAZ
SERRA, em “Fundamento da responsabilidade civil (em especial, responsabilidade
por acidentes de viação terrestre e por intervenções lícitas”, no “Boletim do
Ministério da Justiça”, n.º 90, 1959, pág. 22 e segs.; ANTUNES VARELA, em “Das
obrigações em geral”, vol. I, pág. 653 e segs., da 9.ª ed., da Almedina; ALMEIDA
COSTA, em “Direito das Obrigações”, pág. 528 e seg., da 11.ª ed., da Almedina;
PINTO MONTEIRO, em “Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade
civil”, pág. 54 e seg., da separata do vol. XXVIIII, do Suplemento ao
B.F.D.U.C.). A responsabilidade pelo risco cumpre duas funções: a função
primária de indemnizar o lesado e a função secundária de prevenir o prejuízo,
incentivando o agente a adoptar as medidas necessárias para evitar a
concretização do risco (MENEZES CORDEIRO, em “Da responsabilidade civil dos
administradores das sociedades comerciais”, pág. 484, da ed. de 1997, da Lex).
No caso da responsabilidade objectiva do comitente por actos culposos do
comissário, a responsabilidade do primeiro perante terceiros “assenta numa dupla
consideração: por um lado, quando um indivíduo se serve de uma outra pessoa
para, sob a sua direcção, realizar determinada tarefa, implícita ou tacitamente
se responsabiliza pela actuação dela, como se ele próprio agisse, sendo o
comissário, no domínio restrito da comissão, uma espécie de núncio ou
representante do comitente; por outro lado, é mais justo que os efeitos da
frequente insuficiência económica do património do comissário recaiam sobre o
comitente, que o escolheu e o orientou na sua actuação, do que sobre o lesado
que apenas sofreu as consequências desta” (ANTUNES VARELA, ob. cit., pp. 669).
Para alguma doutrina, é compreensível, razoável e até conveniente que o
legislador tenha estabelecido limites máximos para a indemnização nos casos de
responsabilidade objectiva, desde logo porque se não há culpa do responsável,
este não deve suportar encargos excessivos (vide, VAZ SERRA, ob. cit., pp.
206-207; ANTUNES VARELA, ob. cit., p. 714; ALMEIDA COSTA, ob. cit., pág. 645). A
verdade, porém, é que a introdução de limites máximos de indemnização impede que
a responsabilidade pelo risco cumpra plenamente a sua função primária, de
indemnizar o lesado de todos os danos, e mesmo a sua função secundária, de
incentivar o lesante a tomar todas as medidas necessárias para prevenir os
danos, havendo quem pugne pela responsabilidade pelo risco ilimitada (vide NUNO
PINTO OLIVEIRA, “Em tema de revogação do artigo 508.º do Código Civil”, in
Cadernos de Direito Privado, n.º 4, Outubro-Dezembro 2003, pp. 65-67).
Como é que a Constituição lida com a limitação do conteúdo da obrigação de
indemnizar decorrente da responsabilidade civil pelo risco?
Na ausência de quaisquer directrizes inequívocas da Constituição no plano da
densificação do direito à reparação dos danos, dir-se-á que o legislador
ordinário goza de uma ampla margem de conformação, não estando obrigado a
garantir a ressarcimento de todos os danos, seja qual for o título de imputação
da responsabilidade ou responsabilidades previstas.
Necessário é, que essas limitações tenham uma justificação fundamentadora e que
não resultem em indemnizações irrisórias, que se traduzam numa quase exclusão do
direito à reparação dos danos, inadmissível atenta a relevância dos interesses
em presença.
O direito dos proprietários dos navios à limitação da sua responsabilidade
encontra as suas raízes na Europa mediterrânica do século XI e tem passado por
várias figurinos até aos nossos dias, sem nunca ter deixado de estar envolto em
controvérsia (vide, sobre a temática da limitação de responsabilidade em Direito
Marítimo, JAN LOPUSKI, em “La responsabilidad por danos y la distribucion del
riesgo en el Derecho Maritimo”, em “Anuario de Derecho Marítimo”, 1982, vol. II,
pág. 221 e segs.; RENÉ RODIÉRE e EMMANUEL PONTAVICE, “Droit Maritime”, pág. 146
e segs., da ed. de 1986, da Daloz; VASCONCELOS ESTEVES, em “Direito Marítimo –
Introdução. Armamento”, vol. 1, pág. 74 e segs., da ed. de 1990, da Petrony,;
MARTINE REMOND-GUOILLOUD, em “Droit Maritime”, pág. 195 e segs., da ed. de 1993,
da Pedone; IGNACIO ARROYO, em “Convenios internacionales e derecho interno.
Referencia especial a la limitacion de la responsabilidad por abordaje”, em
“Estudios de Derecho Marítimo”, 1993, vol. I, pág. 357 e segs.; JOSÉ LUIS
GARCÍA-PITA Y LASTRES, em “El naviero, su regimen y su responsabilidad”, em “La
Reforma de la Legislación Marítima”, pág. 42 e segs., da ed. de 1999, da
Aranzadi,; JOSÉ LUIS GABALDÓN GARCÍA, em “La responsabilidad civil del armador
del buque de pesca”, em “Anuario de Derecho Marítimo”, 2002, vol. XIX, pág. 117
e segs.; MARTIN DOCKRAY, em “Cases e Materials on the Carriage of Goods by Sea”,
pág. 337 e segs., da ed. de 2004, da Cavendish; e JOHN HARE, em “Limitation of
liability – A Nigerian perspective”, University of Cape Town, 2004, no site
www.uctshiplaw.com).
A riqueza e influência das potências marítimas dependiam obviamente da
regularidade e intensidade das expedições marítimas levadas a cabo pelos
armadores com a ajuda dos investidores. Porém, os perigos que rodeavam a viagem
marítima - tempestades, roubos e actos de guerra – assumiam uma potencialidade
tão destrutiva que desencorajava qualquer empresa de responsabilidade ilimitada.
Por isso, por uma mera razão de conveniência, os armadores passaram a ser
responsáveis de acordo com o valor do seu navio e nada mais.
Nos séculos XVI e XVII, esta limitação de responsabilidade constava da
legislação das potências marítimas europeias continentais.
O direito inglês conheceu o instituto da limitação de responsabilidade mais
tarde que os direitos continentais mas passou a ser a principal referência nesta
matéria desde 1734 até aos nossos dias, tendo inspirado o processo de
uniformização do direito comercial marítimo internacional subjacente às várias
Convenções que vieram a ser aprovadas a partir do início do século XX.
Esta mudança legislativa teve na sua raiz uma acção julgada perante o King’s
Bench em que o proprietário de um navio foi responsabilizado integralmente
perante o expedidor pelos prejuízos causados pelo seu capitão e pela respectiva
tripulação que decidiram apropriar-se de uma grande quantidade de ouro carregado
em Portugal. Os armadores ingleses, temendo a sua insolvência, ameaçaram com a
redução e abandono da navegação marítima, forçando, assim, a aprovação
parlamentar do Responsibility of Shipowners Act de 1734 e, desde então, por
razões assumidamente de ordem pública, relacionadas com a protecção do comércio
internacional, a responsabilidade dos proprietários dos navios por desfalques e
furtos cometidos pelo capitão e pela tripulação passou a ser limitada ao valor
do navio e do frete da viagem em que ocorresse o evento danoso.
A lei inglesa foi sofrendo várias alterações – nos anos de 1786, 1813, 1854,
1862 e 1894 - até conhecer a sua redacção actual, a qual se traduz, desde 1995,
no direito dos proprietários dos navios à limitação da sua responsabilidade a um
valor baseado na tonelagem do navio por perdas e danos causados por quaisquer
actos ou omissões do capitão e tripulação, desde que não haja culpa ou pelo
menos um conhecimento das causas dessas perdas e danos por parte dos referidos
proprietários.
Se é verdade que as potências comerciais marítimas sempre protegeram os seus
armadores e preveniram a respectiva insolvência no plano do direito interno,
também não é menos verdade que tentaram prosseguir esse desiderato no plano
internacional através da aprovação de convenções internacionais que seguiram
muito de perto o figurino inglês.
A Convenção de Limitação de Responsabilidade de 1924 traduziu-se na adopção
internacional do artigo 503.º do Merchant Shipping Act of 1894, então em vigor
em Inglaterra.
Esta Convenção falharia, no entanto, o esforço de harmonização internacional
nesta matéria e seguir-se-lhe-ia a Convenção de Bruxelas de 1957 que integra o
objecto do presente recurso de constitucionalidade.
A Convenção de Bruxelas de 1957, relativamente à anterior Convenção de 1924,
além do mais, traduziu-se no aumento dos limites de responsabilidade por danos
materiais e pessoais e na cobertura das despesas de remoção de navios
naufragados até então afastadas do benefício da limitação de responsabilidade.
Mesmo assim, os limites de responsabilidade previstos na Convenção de Bruxelas
de 1957 continuaram a ser tidos como muito baixos e irrealistas por diversos
Estados, ao ponto do Comité Marítimo Internacional ter promovido a aprovação de
outra convenção internacional, a qual viria a ser ultimada no ano de 1976
(Convention on Limitation of Liability for Maritime Claims, assinada em Londres,
em 19 de Dezembro) e que, desde a sua entrada em vigor em 1 de Dezembro de 1986,
já foi adoptada por Estados com enorme peso no plano do comércio marítimo
mundial, como o Reino Unido, Alemanha, Japão, França, Espanha, Grécia, Irlanda,
Suécia, Noruega, Holanda, Finlândia, Dinamarca, e Bélgica (como subscritores
apenas da Convenção de Bruxelas de 1957 restam actualmente o Belize, Fiji, Gana,
Granada, Islândia, Irão, Israel, Líbano, Madagáscar, Mónaco, Papua-Nova Guiné,
Portugal, S. Vicente e Granadinas, Seicheles, Ilhas Salomão e Tuvalu).
Era necessário estabelecer, na óptica do Comité Marítimo Internacional, um
equilíbrio entre a necessidade de assegurar níveis de ressarcimento razoáveis
dos lesados com direito a indemnização e, por razões de ordem pública, a
necessidade dos proprietários dos navios limitarem a sua responsabilidade a um
capital de risco que proporcionasse um prémio de seguro razoável.
Será que as antigas razões de ordem pública que determinaram a limitação de
responsabilidade continuam a desempenhar algum papel determinante no Direito
Marítimo contemporâneo?
Argumentam uns, esquecendo que a responsabilidade pelo risco prescinde de
qualquer juízo de culpa, que não andando habitualmente o proprietário embarcado
nos seus navios seria injusto responsabilizá-lo ilimitadamente pelos actos
ilícitos e culposos praticados pelo capitão e pela tripulação, sobretudo quando
o capitão goza de amplos poderes de representação fora do local da sede do
proprietário em tudo o que se relacione com a expedição marítima que inviabiliza
qualquer culpa in vigilando e de uma independência técnica assinalável no
governo do navio, mercê da sua habilitação legal para o efeito, que obsta à
ideia de culpa in eligendo (JOSÉ LASTRES, ob. cit., pág. 52, e RENÉ RODIÉRE e
EMMANUEL PONTAVICE, na ob. cit., pág. 148).
Acrescenta-se ainda, subvalorizando o facto de muitos dos lesados não terem essa
qualidade, que a circunstância dos proprietários de navios serem credores e
devedores uns dos outros, relativamente aos danos ocorridos nas suas
embarcações, eles são, enquanto credores, prejudicados pelas limitações
impostas, mas, por outro lado, beneficiam delas como devedores. Daí se
concluindo que “o mundo marítimo funciona em vasos comunicantes” (MARTINE
REMOND-GOUILLOUD, na ob. cit., pág. 196).
A decisão sobre a admissibilidade da imposição de limitações a esta
responsabilidade reside sobretudo na ponderação do interesse dos lesados em
verem reparados os prejuízos sofridos e do interesse público da salvaguarda da
viabilidade económica das empresas marítimas.
Nesta ponderação, defendem uns que, se considerarmos a capacidade dos mercados
modernos dos seguros, com amplas possibilidades de resseguro internacional, que
permite a cobertura de riscos de magnitudes consideráveis, a limitação da
responsabilidade dos proprietários dos navios por danos imputáveis à sua
tripulação apenas se pode aceitar em casos de riscos catastróficos associados,
como por exemplo, aos derrames marítimos de crude, cujas consequências podem
exceder largamente os limites da cobertura do seguro (vide JAN LOPUSKI, ob.
cit., pp. 223-224). A este respeito, Lord MUSTILL (“Ships are different – or are
they?”, em “Lloyd’s Maritime and Commercial Law Quarterly” (1993), pp. 490-501)
entende que a limitação de responsabilidade constitui um instituto totalmente
ultrapassado e que as sociedades hodiernas reclamam que os chamados “grandes
negócios” sejam responsáveis pelas suas acções e por quaisquer danos que possam
causar. Segundo este autor, o conteúdo da obrigação de indemnizar não pode
variar consoante o lesado seja transportado num veículo terrestre a motor, numa
aeronave ou num navio, ou mesmo consoante a tonelagem do navio causador dos
danos, com isso se originando resultados indemnizatórios necessariamente
ilógicos e imorais.
Ora, não se pode pretender tratar de forma igual realidades que são diferentes.
Os interesses em confronto nos transportes rodoviário, aéreo e marítimo de
passageiros e de mercadorias não se confundem entre si, desde logo porque os
investimentos e riscos associados a cada um dos referidos transportes são muito
diferentes. Não se podem estabelecer equivalências minimamente operativas entre
um abalroamento verificado entre dois navios e uma colisão ocorrida entre dois
veículos automóveis, ou ainda entre qualquer uma destas situações e a queda de
uma aeronave no espaço urbano.
A razão estará sobretudo do lado de DAVID STEEL (“Ships are different – the case
for limitation of liability”, em Lloyd’s Maritime and Commercial Law Quarterly
(1995), pp. 77-87) quando sustenta que a limitação de responsabilidade ainda
desempenha um papel no encorajamento do investimento no comércio internacional
marítimo ao expor todos os envolvidos aos mesmos riscos, sem suscitar grandes
dificuldades de cobertura dos riscos marítimos pela indústria seguradora e desde
que garantido o ressarcimento mínimo dos lesados, ou de RUIZ SOROA (“Manual de
Derecho de Accidentes de la Navegación”, p. 99, da ed. de 1987, da E.A.M.) para
quem é a limitação de responsabilidade que torna possível o armador cobrir a sua
responsabilidade pelo seguro e assim exercer a sua actividade, uma vez que uma
responsabilidade sem limites ou com limites muito altos geraria custos
excessivos para o sector, intransferíveis para o utilizador, ou mesmo, nalguns
casos, nem sequer seguráveis.
Continuando a revelar-se justificada uma limitação da responsabilidade do
proprietário do navio pelos danos causados a terceiros por actos imputáveis à
sua tripulação, a constitucionalidade desta limitação dependerá, afinal, dos
limites quantitativos concretamente adoptados pelo legislador.
Será sempre problemática a margem de liberdade de conformação daquele, em
matéria de definição dos limites de responsabilidade pelo risco dos
proprietários de navios, mas a mesma não pode, obviamente, deixar de existir,
ainda que sujeita ao crivo da justiça constitucional. Apesar de não caber a este
Tribunal aferir qual o concreto patamar em que a indemnização resultante da
aplicação de tectos legais se torna de tal modo irrisória que deixa de poder ser
considerada uma verdadeira reparação pelos danos sofridos, deve, contudo, velar
pelo respeito pelo referido parâmetro constitucional, perante o concreto valor
da indemnização fixada, como resultado da aplicação daqueles tectos, segundo o
princípio do controlo da evidência.
Interessa, pois, apurar simplesmente se a indemnização arbitrada aos
recorrentes, por força da aplicação da norma que estabelece o fundo de limitação
de responsabilidade constituído nos autos ao abrigo do disposto na Convenção de
Bruxelas de 1957, é irrisória ou desprezível à face do valor dos danos
materiais merecedores de reparação.
Recuperando os limites previstos na alínea a), do n.º 1, do artigo 3.º, da
Convenção de Bruxelas de 1957 – 66,67 DSE por tonelada de arqueação líquida do
navio, se do evento resultam apenas danos materiais –, o eventual juízo de
inconstitucionalidade depende, desde logo, do peso relativo de três variáveis, a
saber: a) a tonelagem do navio causador do evento; b) o montante global dos
danos reclamados e reconhecidos; c) e o montante dos danos reconhecidos a cada
lesado.
O fundo de limitação de responsabilidade dos autos apresenta o limite de €
8.267,41 (66,67 DSE), tendo por referência 100 toneladas de arqueação líquida do
navio abalroador.
Os recorrentes viram ser-lhes judicialmente reconhecidos danos materiais
resultantes do referido evento no montante global de € 65.785,04, respeitantes
aos covos perdidos, ao custo da rocega, à perda de capturas, aos quinhões
perdidos como tripulantes, aos haveres pessoais perdidos e aos lucros cessantes
como armadores.
Mercê do concurso de credores, os recorrentes apenas puderam contar com a
atribuição de uma indemnização no montante global de € 2.465,34, correspondente
a 29,82% da totalidade do fundo de limitação de responsabilidade constituído
para esse efeito, sendo certo que a indemnização assim atribuída apenas cobre
3,75% do montante dos créditos indemnizatórios reconhecidos aos lesados
recorrentes.
Uma indemnização que apenas cubra 3,75% do respectivo crédito deve ser
considerada uma indemnização manifestamente irrisória, se tivermos presente que
o montante global dos danos reconhecidos aos lesados ascende ao quantitativo de
€ 65.785,04. A desproporção entre este valor e o da indemnização arbitrada é tão
gritante que esta só pode ser considerada desprezível (vide sobre esta
qualificação a propósito das indemnizações devidas por nacionalização, FREITAS
DO AMARAL, em “Indemnização justa ou irrisória?”, em “Direito e Justiça”, vol.
V, 1991, pág. 63-65).
Ora, sucede que é o próprio quantitativo do fundo, no montante máximo de €
8.267,41, que é, desde logo, irrisório, apesar de estarmos na presença de um
navio culpado com 100 toneladas de arqueação líquida (mesmo que os recorrentes
tivessem beneficiado da atribuição da totalidade do fundo, ainda assim só lhes
seria assegurada a cobertura de 12,5% dos danos sofridos). Admitir que um navio,
qualquer que seja a sua tonelagem, possa culposamente abalroar outro navio, e
até afundá-lo, ficando apenas obrigado a ressarcir os danos materiais causados
até ao limite máximo de € 8.267,41, coloca obviamente em risco o núcleo
essencial do direito constitucional à reparação de danos, inerente ao princípio
do Estado de direito democrático, pela possibilidade da sua aplicação concreta
resultar numa desproporção intolerável entre o valor dos danos sofridos e o da
indemnização arbitrada.
A situação é tanto mais grave quanto os recorrentes, à luz da Convenção de
Bruxelas de 1957, não podem obter qualquer outra reparação dos danos suportados,
nomeadamente dos comissários que agiram com culpa, na medida em que estes também
lhes podem opor a mesmíssima limitação de responsabilidade (art. 6.º, n.º 2 e 3,
da Convenção de Bruxelas de 1957).
Para melhor ilustrar que é irrisório o ressarcimento propiciado pela Convenção
de Bruxelas de 1957, nada como chamar à colação, para efeitos meramente
comparativos, o regime da acima referida Convention on Limitation of Liability
for Maritime Claims, de 1976, com as alterações introduzidas pelo Protocolo de
1996.
A Convenção de Londres de 1976, seguindo o critério mais generoso da tonelagem
bruta, estabelece como limite indemnizatório, quando estejam em causa apenas
danos materiais causados por um navio até 2000 toneladas, o quantitativo de
1.000.000 DSE. Depressa se percebe que os Estados subscritores desta Convenção
– actualmente representativos de cerca de 45% da tonelagem mundial –, tiveram
consciência que os riscos presentes no comércio marítimo internacional podem
originar danos muito elevados, pelo que os limites das respectivas
indemnizações, com responsabilidade fundada no risco, não deixaram de contemplar
essa possibilidade.
Assim, se esta Convenção fosse aplicável ao caso concreto, o fundo de limitação
de responsabilidade ascenderia proporcionalmente a € 124.004.949,70 e os
recorrentes – e demais credores reclamantes - teriam visto os seus danos
integralmente ressarcidos.
Tendo-se verificado que a indemnização decorrente da repartição pelos credores
do fundo de limitação de responsabilidade, com o quantitativo constituído nos
termos do art. 3.º, n.º 1, alínea a) da Convenção Internacional sobre o Limite
de Responsabilidade dos Proprietários de Navios de Alto Mar, concluída em
Bruxelas em 10 de Outubro de 1957, introduzida na ordem jurídica portuguesa pelo
DL 49028, de 26 de Maio de 1969, com as alterações efectuadas pelo Protocolo de
Bruxelas de 21 de Dezembro de 1979, aprovado para ratificação pelo Decreto 6/82,
de 21 de Janeiro, cobre apenas 3,75% do montante dos danos sofridos pelos
lesados recorrentes que ascende a € 65.785,04, conclui-se que estamos perante o
arbitramento de um quantitativo irrisório e desprezível que viola o direito
constitucional à reparação dos danos, inerente ao princípio do Estado de
direito democrático, consagrado no artigo 2.º, da C.R.P.
Por esta razão deve o recurso ser julgado procedente nesta parte.
*
Decisão
Pelo exposto:
a) não se conhece do recurso interposto quanto ao pedido de declaração de
ilegalidade;
a) julga-se inconstitucional a norma respeitante à constituição do fundo de
limitação de responsabilidade com o quantitativo previsto no art. 3.º, n.º 1,
alínea a), da Convenção Internacional sobre o Limite de Responsabilidade dos
Proprietários de Navios de Alto Mar, concluída em Bruxelas em 10 de Outubro de
1957, introduzida na ordem jurídica portuguesa pelo Decreto-lei n.º 49.028, de
26 de Maio de 1969, com as alterações efectuadas pelo Protocolo de Bruxelas de
21 de Dezembro de 1979, aprovado para ratificação pelo Decreto n.º 6/82, de 21
de Janeiro, quando a indemnização decorrente da repartição do fundo pelos
credores cobre apenas 3,75% do montante dos créditos reconhecidos a determinados
lesados, com o valor de € 65.785,04.
c) e, consequentemente, julga-se procedente o recurso nesta parte,
determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente
juízo de inconstitucionalidade.
*
Custas pela recorrida B., fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta,
tendo em consideração os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do
Decreto-lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (art. 6.º, n.º 2, do mesmo diploma).
*
Lisboa, 23 de Setembro de 2008
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos