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Processo n.º 360/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
Por acórdão de 13 de Dezembro de 2006 do Tribunal da
Relação de Coimbra foi rejeitado, por manifesta improcedência, nos termos das
disposições conjugadas dos artigos 412.º e 420.º, n.º 1, do Código de Processo
Penal (CPP), o recurso interposto por a. contra o acórdão do Tribunal Colectivo
do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar, de 15 de Maio de 2006, que a
condenou, como autora material de quatro crimes de falsificação de documento,
previstos e punidos pelo artigo 256.º, n.ºs 1, alínea c), e 4, do Código Penal,
na pena de 18 meses de prisão por cada um, e de quatro crimes de peculato,
previstos e punidos pelo artigo 375.º, n.º 1, do mesmo Código, na pena de 2 anos
de prisão por cada um, e, em cúmulo, na pena única de 3 anos de prisão,
suspensa na sua execução pelo período de 4 anos.
A decisão de rejeição do recurso assentou nas seguintes
considerações:
“Diz‑nos o artigo 428.º, n.º 1, [do CPP] que «as Relações conhecem
de facto e de direito».
No entanto, exceptuando os casos abrangidos pelo n.º 2 do artigo
410.º – que são de conhecimento oficioso e que no caso em apreço não se
verificam –, a modificabilidade da decisão de facto da 1.ª instância só pode ter
lugar quando se verifiquem os requisitos estabelecidos no artigo 431.º do mesmo
diploma e que são:
a) se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe
serviram de base,
b) se, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada, nos
termos do artigo 412.º, n.º 3, ou
c) se tiver havido renovação da prova.
Conjugado com este normativo há que tomar em consideração [o] que
determina o n.º 3 do artigo 412.º, que impõe ao recorrente que impugne a
decisão proferida sobre a matéria de facto o dever de especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
Dispõe ainda o n.º 4 que «quando as provas tenham sido gravadas, as
especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem‑se por
referência aos suportes magnéticos, havendo lugar a transcrição».
Temos assim que a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de
facto é susceptível de modificação, no caso de gravação de prova, se tiver sido
impugnada nos termos do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4.
Antes de mais diremos, como Simas Santos e Leal‑Henriques, in
Recursos em Processo Penal, 5.ª edição, p. 92, que, com excepção do de revisão,
«todos os recursos vêm concebidos na lei como remédios jurídicos e não como
instrumentos de refinamento jurisprudencial, o que inculca que aos impugnantes
seja pedido (em obediência ao princípio da lealdade processual) que indiquem
qual o defeito ou vício de que padece o acto impugnado, por forma a habilitar o
tribunal superior a ajuizar do mérito das razões invocadas. Ora, é exactamente
para isso que serve a motivação lato sensu: permitir ao recorrente apontar ao
Tribunal ad quem o que na sua perspectiva foi mal julgado e oferecer uma
proposta de correcção para que o órgão judiciário a possa avaliar».
Ora, basta uma simples leitura das motivações lato sensu para que se
conclua sem receio de errar que o recorrente passa completamente ao lado do
formalismo mínimo legalmente exigido para que a sua pretensão possa ser
apreciada por este tribunal.
Por tais razões e conforme deixámos expresso no despacho de exame
preliminar proferido nos termos do artigo 417.º, n.º 1, do Código de Processo
Penal, o recurso deve ser rejeitado por manifesta improcedência.
Diga‑se desde já que as conclusões até cumprem o formalismo exigido
pelo artigo 412.º, n.ºs 2, 3 e 4, do Código de Processo Penal.
Contudo, isso não chega.
Ou melhor: atento o teor das motivações lato sensu, podemos dizer
que nem se pode considerar que existem conclusões.
Explicando:
Numa primeira leitura do artigo 412.º do Código de Processo Penal
pode parecer que a lei é mais exigente no que respeita às conclusões da
motivação do que no que respeita à própria motivação stricto sensu.
No entanto, só aparentemente assim é.
Na realidade, constituindo o texto da motivação (stricto sensu)
limite absoluto que não pode ser extravasado nas conclusões [Neste sentido e
entre muitos outros, v. g., acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de
Maio de 1998, proc. n.º 328/98, (cf. Código de Processo Penal Anotado, de Simas
Santos e Leal‑Henriques, II vol., 2.ª ed., p. 824), de 15 de Dezembro de 2005,
de 11 de Janeiro de 2001, proc. n.º 3408/00‑5, de 8 de Novembro de 2001, proc.
n.º 2453/01‑5, e de 4 de Dezembro de 2003 (www.pgdlisboa.pt/pgdl/jurel/stj)] e
sendo estas, logicamente, um resumo dos fundamentos por que se pede o
provimento do recurso [Neste sentido, v. g., acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, de 28 de Maio de 1998, proc. n.º 328/98 (cf. Código de Processo Penal
Anotado, de Simas Santos e Leal‑Henriques, II vol., 2.ª ed., p. 824)], há que
concluir que as exigências legais constantes dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 412.º
do Código de Processo Penal se aplicam às motivações, ainda que para estas haja
uma maior liberdade no modo de explanação das divergências para com a decisão
recorrida. O que se impõe é que tudo o que constar das conclusões tem que estar
contido na motivação stricto sensu, ou seja, tudo o que a lei impõe que conste
naquelas tem também que constar nestas pois que são aquelas que fixam os
poderes de jurisdição do tribunal ad quem.
Ora, no caso sub judice, é notório que as conclusões ultrapassam o
limite imposto pelo teor das motivações stricto sensu. Diremos mais: a quase
totalidade das conclusões não encontra qualquer fundamento nas motivações
stricto sensu.
Como facilmente se retira de uma simples leitura destas últimas,
muito embora a recorrente pretenda recorrer da matéria de facto, nelas não são
feitas por referência aos suportes técnicos, nem transcritas, as especificações
previstas na alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º
É de tal modo evidente o que acaba de ser afirmado que nos
dispensamos de maiores considerações.
Assim sendo, está o recurso votado à improcedência na parte em que
se fundamenta na prova produzida em audiência e que foi gravada.
O mesmo acontece quando incide sobre a prova documental.
Esta, desacompanhada de outra prova, nomeadamente da prova
testemunhal, não permite que se extraia mais do que os elementos
objectivamente visíveis, ou seja, os montantes inscritos, as datas, as
alterações, etc.
Temos assim que considerar como meras suposições todas as avaliações
que no recurso sobre ela são feitas, sendo, porém, de notar que estão sempre
conjugadas com a prova produzida em audiência e que, como ficou dito, não pode
ser aqui apreciada.
Assim sendo, também nesta parte é manifesta a improcedência.
A mesma manifesta improcedência ocorre com a restante matéria do
recurso.
Na realidade, também no que se refere à parte incidente sobre
matéria de direito, o recurso sofre do defeito já anteriormente apontado, ou
seja, ao longo das motivações stricto sensu não é feita qualquer alusão a
divergências sobre matéria de direito, o que apenas vem a acontecer em sede de
conclusões.
Também aqui a matéria das conclusões não encontra fundamento na
motivação stricto sensu.
Em resumo, diremos que formalmente as conclusões estão conformes ao disposto nos
n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 412.º, mas que não encontram qualquer fundamento nas
motivações stricto sensu, ou seja, a recorrente estruturou o recurso como se o
n.º 1 daquela disposição legal não existisse.
Assim sendo, é manifesta a improcedência do recurso, pelo que terá o mesmo que
ser rejeitado nos termos das disposições conjugadas dos artigos 412.º e 420.º,
n.º 1.
Termos em que se acorda em rejeitar o recurso.”
Notificada do acórdão da Relação, a arguida dele veio
interpor recurso para o Tribunal Constitucional, referindo no respectivo
requerimento de interposição:
“1. O presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) e da
alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LOFPTC),
na redacção dada pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, e pela Lei n.º 13‑A/98,
de 26 de Fevereiro;
2. Considerando os pressupostos do recurso fundando na alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da LOFPTC, pretende‑se ver apreciada a constitucionalidade
das interpretações normativas que o acórdão recorrido fez do artigo 412.°, n.ºs
2, alínea b), 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal (CPP);
3. O sentido normativo subjacente ao modo como os artigos 412.°,
n.ºs 2, alínea b), 3, alínea b), e 4, do CPP foram interpretados e aplicados na
decisão recorrida pode ser genericamente formulado – adquirindo,
consequentemente, dimensão normativa –, nos termos seguintes:
a. Considerou o acórdão recorrido que, no âmbito do recurso em
matéria de direito e em matéria de facto interposto nos autos em epígrafe ao
abrigo dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 412.° do CPP, o facto de a recorrente ter
feito as especificações previstas na alínea b) do n.º 2 e na alínea b) do n.º 3
do artigo 412.° do CPP somente nas conclusões e não, também, nas motivações
stricto sensu do recurso, traduz‑se numa violação das exigências formais da
motivação do recurso e respectivas conclusões, constantes dos n.ºs 3 e 4 do
mesmo artigo 412.°, constituindo fundamento para a sua rejeição por «manifesta
improcedência», nos termos do artigo 420.°, n.º 1, do CPP, sem que ao
recorrente tenha sido dada qualquer oportunidade de suprir as deficiências
formais apontadas. Independentemente, por agora, de um tal entendimento da
decisão recorrida não ter correspondência com a realidade, como melhor se
demonstrará em sede de alegações, fazendo a adequada relação dos factos
motivados com cada um dos artigos das conclusões, considerou o tribunal a quo
que, na medida em que as conclusões de recurso quanto à matéria de facto e de
direito excedam o limite imposto pelo conteúdo das motivações stricto sensu,
deverá o recurso ser rejeitado por «manifesta improcedência», sem que,
sublinhe‑se, seja dada ao recorrente qualquer possibilidade de rectificar a
deficiência formal em causa ou de especificar nas motivações stricto sensu do
recurso as indicações que apenas introduziu nas conclusões.
b. Interpretou também o acórdão recorrido a alínea b) do n.º 3 do
artigo 412.° do CPP no sentido de que o facto de a recorrente, no respeitante à
impugnação da matéria de facto, ter feito as especificações previstas naquele
preceito somente nas conclusões e não, também, nas motivações stricto sensu do
recurso, constitui fundamento para a rejeição do recurso por «manifesta
improcedência». No entanto, o que a alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP
determina é que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o
recorrente deve especificar: b) as provas que impõem decisão diversa da
recorrida», diversamente do estipulado no n.º 2 do mesmo artigo 412.°, o qual
refere que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena
de rejeição (...)». Ora, a circunstância de o acórdão recorrido entender que o
facto de o recorrente ter feito a especificação prevista da alínea b) do n.º 3
do artigo 412.° do CPP nas conclusões e não na motivação stricto sensu conduz
necessariamente à rejeição do recurso, não encontra qualquer fundamento no
preceito em causa que, como vimos, não impõe qualquer rejeição do recurso como
consequência do incumprimento da especificação.
4. Entende a ora recorrente que os sentidos interpretativos
supra‑expostos, que subjazem, no caso vertente, à aplicação das referidas
normas, violam de forma manifestamente desproporcionada o disposto no artigo
32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Com efeito, a interpretação
dos n.ºs 2, alínea b), 3, alínea b), e 4 do [artigo 412.º do] CPP, no sentido de
que a falta da especificação nele exigida nas motivações stricto sensu – embora
presente nas conclusões – de recurso que verse sobre matéria de direito e
matéria de facto tem como efeito a rejeição do recurso, sem que ao recorrente
tenha sido dada oportunidade de suprir a deficiência verificada, é violadora do
direito ao recurso enquanto núcleo essencial das garantias de defesa dos
arguidos, consagrado no artigo 3[2].º, n.º 1, da Constituição.
5. Entende ainda a ora recorrente que tais sentidos interpretativos
adoptados pela decisão recorrida concretizam o disposto nas referidas normas do
artigo 412.º do CPP, configurando as exigências formais da motivação e
respectivas conclusões consagradas neste preceito como uma verdadeira limitação
constitucionalmente desproporcionada do direito ao recurso, por violação do
artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, e não como uma forma de assegurar e
propiciar uma mais clara apreciação jurisdicional das motivações do recurso.
6. Importa assinalar que a recorrente não teve qualquer oportunidade
processual para suscitar em momento anterior, no âmbito do processo em
epígrafe, a questão de constitucionalidade supra‑identificada. Com efeito, a
decisão recorrida procedeu a uma interpretação e aplicação normativas dos
preceitos referenciados do CPP com um sentido objectivamente inesperado,
anómalo e completamente desrazoável para a recorrente, traduzindo‑se numa
situação que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem cunhado de
«decisão‑surpresa» e tornando assim inexigível à recorrente a suscitação da
questão de constitucionalidade num momento anterior àquele em que está a ser
efectuada. Tais situações de «decisão‑surpresa», em que o interessado não
dispôs manifestamente de qualquer oportunidade para suscitar a questão de
constitucionalidade antes de proferida a sentença, não lhe sendo
simultaneamente exigível que antevisse a possibilidade de aplicação e
interpretação das normas no caso concreto como estas acabaram por existir, são
reconhecidas quer ao nível da jurisprudência do Tribunal Constitucional (cf. o
Acórdão n.º 394/2005 ou o Acórdão n.º 140/2004, in Diário da República, II
Série, n.º 91, de 17 de Abril de 2004, no qual foi precisamente arguida a
constitucionalidade de uma interpretação e aplicação normativa dos n.ºs 2, 3 e
4 do artigo 412.º do CPP), quer ao nível da doutrina especializada (cf. Carlos
Blanco de Morais, Justiça Constitucional, tomo II, Coimbra, 2005, pág. 725, ou
António de Araújo/Joaquim P. Cardoso da Costa, Relatório – III Conferência da
Justiça Constitucional da Ibero-América, Portugal e Espanha, Lisboa, 2000, pág.
19), dispensando, pois, o recorrente da suscitação da questão de
constitucionalidade ao longo do processo, achando‑se cumprido, para todos os
efeitos, o pressuposto constante do artigo 72.º, n.º 2, da LOFPTC.
7. Considerando os pressupostos do recurso fundando na alínea g) do
n.º 1 do artigo 70.º da LOFPTC, pretende‑se que o Tribunal Constitucional
julgue inconstitucional uma interpretação e aplicação normativa já
anteriormente julgada inconstitucional pelo próprio Tribunal Constitucional. Com
efeito, no Acórdão n.º 401/2001, de 26 de Setembro (publicado no Diário da
República, II Série, n.º 258, de 7 de Novembro de 2001), no qual expressamente
se alude a vasta jurisprudência constitucional sobre interpretações idênticas à
ora em causa, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional, por violação do
disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, o artigo 412.º, n.º 2, do
Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a falta de indicação,
nas conclusões da motivação, das menções contidas nas alíneas a), b) e c)
daquele preceito tem como efeito a rejeição liminar, sem que ao recorrente seja
dada oportunidade de suprir tais deficiências. Acresce ainda que o Tribunal
Constitucional, pelo Acórdão n.º 320/2002, in Diário da República, I Série‑A,
de 7 de Outubro de 2002, declarou, com força obrigatória geral, a
inconstitucionalidade da norma do artigo 412.º, n.º 2, do Código de Processo
Penal, «interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da
motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem
como efeito a rejeição limitar do recurso, sem que ao mesmo seja facultada a
oportunidade de suprir tal deficiência».
8. Com efeito, sustenta a recorrente que se o Tribunal
Constitucional já julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1,
da Constituição, o artigo 412.º, n.º 2, do Código de Processo Penal,
interpretado no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da
motivação, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) daquele preceito tem
como efeito a sua rejeição liminar, sem que ao recorrente seja dada oportunidade
de suprir tais deficiências, crê‑se que por identidade de razão deverá o
Tribunal Constitucional julgar inconstitucional uma interpretação
substancialmente idêntica dos n.ºs 2, alínea b), 3, alínea b), e 4 [do artigo
412.º] do CPP, no sentido de que a verificação de uma deficiência formal das
referidas menções ao nível das motivações stricto sensu – embora, note‑se,
plenamente concretizadas ao nível das conclusões da motivação – tem como efeito
a rejeição do recurso em matéria de direito e de facto, sem que ao recorrente
tenha sido dada oportunidade de suprir a deficiência verificada, também por
violação do direito ao recurso como garantia essencial de defesa dos arguidos,
consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição. Aliás, de acordo com esta
mesma jurisprudência do Tribunal Constitucional, confirma‑se, precisamente, que
se uma deficiência formal ao nível das conclusões, como a que vimos analisando,
deve conduzir o juiz a quo a proferir um despacho‑convite ao recorrente para o
aperfeiçoamento das mesmas, um mesmo despacho‑convite deverá existir no caso de
semelhante deficiência incidir sobre as motivações stricto sensu.
Além de que, como salienta a apostila ao Parecer junta, no n.º 8 das
suas conclusões: «por seu turno, o artigo 414.º, n.º 2, do CPP – conjugado com o
artigo 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental – impele‑nos para uma compreensão ‘amiga’
do direito ao recurso do arguido, para um entendimento, tão amplo quanto
possível, da possibilidade de exercício daquele direito, dado que estabelece
que o recurso não deve ser admitido quando faltar a motivação e não quando esta
seja insuficiente ou confusa».
9. De harmonia com o preceituado no artigo 78.º, n.º 3, da LOFPTC,
conjugado com o disposto nos artigos 406.°, n.º 1, 407.º, n.º 1, alínea a), e
408.°, n.º 1, alínea a), todos do CPP, deverá o recurso subir imediatamente e
com efeito suspensivo.”
No Tribunal Constitucional, o relator, no despacho que
determinou a apresentação de alegações, formulou convite às partes para se
pronunciarem, querendo, sobre a eventualidade de se decidir não conhecer: (i)
do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), por o critério normativo adoptado
no acórdão recorrido não se poder considerar de tal modo inesperado, anómalo ou
insólito que dispensasse a recorrente do cumprimento do ónus de prévia
suscitação, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, da questão de
constitucionalidade que pretende ver apreciada; e (ii) do recurso interposto ao
abrigo da alínea g) do mesmo preceito, por falta de identidade entre o critério
normativo aplicado, como ratio decidendi, no acórdão recorrido e os critérios
normativos anteriormente julgados inconstitucionais pelo Tribunal
Constitucional nos Acórdãos invocados pela recorrente.
A recorrente apresentou alegações, que terminam com a
formulação das seguintes conclusões:
“1. As normas legais (bem como a interpretação que das mesmas
efectuem os Tribunais) não podem deixar de ter uma leitura conforme com a
Constituição;
2. Não era exigível ao recorrente que, in casu, arguísse a
inconstitucionalidade ora em apreço em momento anterior ao do esgotamento do
poder decisório do Tribunal a quo, não podendo o mesmo razoavelmente antecipar
que a sua peça processual iria ser considerada defeituosa e que, com esse
motivo, seria o recurso rejeitado por ser considerado manifestamente
improcedente, sem prévia possibilidade de aperfeiçoamento;
3. A decisão do Tribunal a quo encaixa‑se, assim, no conjunto de
situações que o Tribunal Constitucional e a doutrina têm considerado como
«decisões surpresa», que, pelo seu carácter insólito e inesperado, não podiam
ter sido equacionadas pelo recorrente como sendo minimamente expectáveis;
4. Existe uma clara identidade entre o critério normativo aplicado
pelo Tribunal a quo em rejeitar o recurso, por desconsiderar todas as menções
constantes nas conclusões que se não encontrem repetidas nas motivações stricto
sensu, e os critérios normativos já anteriormente julgados (e declarados)
inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional, quando à inadmissibilidade
constitucional de rejeição de recurso por deficiências formais das motivações de
recurso (v. g. ao nível das conclusões) sem prévia possibilidade dada ao
recorrente de aperfeiçoar a respectiva peça processual;
5. O Tribunal a quo, apesar de ter rejeitado o recurso por
considerar ser o mesmo manifestamente improcedente, fê‑lo pelo facto de
considerar inadmissíveis as menções constantes nas conclusões que não
encontrassem respaldo nas motivações stricto sensu, não permitindo ao
recorrente o aperfeiçoamento das motivações de recuso, o que seria facilmente
efectuado através de simples operação de copy and paste das conclusões para as
motivações stricto sensu;
6. Com efeito, o «pecado mortal» do recurso em causa foi o de não
ter repetido nas motivações stricto sensu o que estava nas conclusões, ou, visto
de outro prisma, não ter dito nas motivações stricto sensu o que veio a dizer
nas conclusões;
7. Não é constitucionalmente admissível (tal como o Tribunal
Constitucional já repetidamente afirmou), por violar o disposto no artigo 32.º
e no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, uma interpretação normativa do
artigo 412.º, n.º 2, alínea b), n.º 3, alínea b), e n.º 4, do CPP que permita a
rejeição do recurso (sob o pretexto de o mesmo ser manifestamente improcedente)
sem prévia possibilidade de aperfeiçoamento da peça processual, pelo facto de
alegadamente as conclusões extravasarem o disposto nas motivações stricto sensu,
apenas constando nas conclusões as menções obrigatórias impostas pelo artigo
412.º do CPP;
8. Como refere Faria Costa, o próprio Código de Processo Penal
impele‑nos para uma compreensão «amiga» do direito ao recurso do arguido, para
um entendimento tão amplo quanto possível da possibilidade de exercício daquele
direito.
Termos em que deve ser julgada inconstitucional a interpretação
normativa do artigo 412.º, n.º 2, alínea b), n.º 3, alínea b), e n.º 4, do CPP
efectuada pelo Tribunal a quo, que esteve na base da rejeição do recurso (sob o
pretexto de o mesmo ser manifestamente improcedente) sem prévia possibilidade de
aperfeiçoamento da peça processual, pelo facto de alegadamente as conclusões
extravasarem o disposto nas motivações stricto sensu, apenas constando nas
conclusões as menções obrigatórias impostas pelo artigo 412.º do CPP.”
O representante do Ministério Público neste Tribunal
contra‑alegou, concluindo:
“1. Relativamente ao recurso interposto ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, a questão de
inconstitucionalidade não foi suscitada de modo processualmente adequado, não
podendo a decisão recorrida integrar, para o efeito, características de anomalia
ou surpresa, de modo a, excepcionalmente, ser a recorrente dispensado do
cumprimento daquele ónus.
2. Quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, ocorre falta de identidade entre
o critério normativo aplicado como ratio decidendi na decisão recorrida e os
critérios normativos julgados não conformes à Lei Fundamental através dos
Acórdãos do Tribunal Constitucional aludidos pela recorrente.
3. Na ausência dos pressupostos processuais assinalados não deverá
conhecer‑se, em ambos os casos, do objecto dos recursos.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Cumpre, antes de mais, apreciar a admissibilidade
do presente recurso, quer na perspectiva da previsão da alínea b), quer na da
alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Como resulta do precedente relatório, o critério
normativo efectivamente aplicado pelo tribunal recorrido foi o de que deve ser
rejeitado – sem formulação de convite para correcção das deficiências – o
recurso penal versando sobre matéria de direito e matéria de facto se as
especificações exigidas pela alínea b) do n.º 2 e da alínea b) do n.º 3, esta
conjugada com o n.º 4, do artigo 412.º do CPP não constarem do teor da
motivação (stricto sensu), embora constem das conclusões da motivação.
Na base desta decisão esteve o entendimento, extraído do
n.º 1 do mesmo artigo 412.º, de que as “conclusões”, por definição, são um
resumo dos fundamentos do recurso que foram explanados ao longo da motivação
(stricto sensu), pelo que “tudo o que constar das conclusões tem que estar
contido na motivação stricto sensu, ou seja, tudo o que a lei impõe que conste
naquelas tem também que constar nesta”.
2.1.1. A admissibilidade do recurso previsto na alínea
g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC pressupõe a identidade entre o critério
normativo anteriormente julgado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional e
o critério normativo aplicado na decisão recorrida, não bastando que, perante
juízos de inconstitucionalidade de critérios normativos não idênticos, ainda
que próximos, o recorrente entenda que argumentos de identidade (ou mesmo de
maioria) de razão reclamariam a emissão de juízo similar relativamente ao
critério aplicado na decisão recorrida.
Ora, no presente caso, não existe a necessária
identidade entre o critério normativo aplicado na decisão recorrida, acima
enunciado, e as interpretações normativas julgadas inconstitucionais nos
Acórdãos invocados pela recorrente (Acórdãos n.ºs 401/2001 e 320/2002), que,
respectivamente, julgaram e declararam, com força obrigatória geral,
inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, a “norma
constante do artigo 412.º, n.º 2, do CPP, interpretado no sentido de que a falta
de indicação, nas conclusões da motivação, das menções contidas nas alíneas a),
b) e c) desse preceito, tem como efeito a rejeição liminar do recurso do
arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal
deficiência”. É que, para além de essas decisões não abarcarem as normas dos
n.ºs 3 e 4 do mesmo preceito, em causa no presente recurso, não fazia parte da
dimensão normativa julgada (e declarada) inconstitucional o elemento relativo à
ausência no teor da motivação das referências deficientemente feitas nas
conclusões, enquanto na decisão recorrida, ao invés, o que foi determinante para
a rejeição do recurso foi justamente a deficiência no teor da motivação, já que
expressamente se reconheceu não padecerem as conclusões de qualquer deficiência
formal.
É assim, inadmissível o presente recurso, enquanto
interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
2.1.2. Mas o recurso já surge como admissível, enquanto
interposto ao abrigo da alínea b) do mesmo preceito, apesar de a recorrente não
haver suscitado, perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão
impugnada, a questão de inconstitucionalidade que pretende ver apreciada.
É que, como este Tribunal tem afirmado, o apontado
requisito deve ter‑se por dispensado quer quando o recorrente “se tenha visto
confrontado com a surpresa da aplicação de todo imprevisível e insólita de certa
norma, ou de uma determinada interpretação dela, na decisão recorrida, que lhe
não fosse exigível contestar antecipadamente”, quer quando “não tenha tido
oportunidade processual de suscitar a questão de constitucionalidade antes de
proferida a decisão recorrida” (José Manuel M. Cardoso da Costa, A Jurisdição
Constitucional em Portugal, 3.ª edição, Coimbra, 2007, pp. 77‑78, nota 99, com
citação dos mais relevantes Acórdãos sobre essa temática).
Ora, no presente caso, deve entender‑se que não era
exigível que a recorrente suscitasse a questão de inconstitucionalidade em causa
quando apresentou a motivação do seu recurso, pois a questão só surgiu
justamente com a apresentação, nos termos em que foi feita, dessa motivação e do
subsequente entendimento, que veio a ser acolhido no acórdão recorrido, de que
os termos dessa apresentação determinavam a rejeição do recurso, por, embora se
reconhecesse que as conclusões respeitavam os requisitos formais dos n.ºs 2, 3 e
4 do artigo 412.º do CPP, as mesmas não terem correspondência no teor da
motivação stricto sensu. Seria, de facto, dificilmente compreensível que não se
conhecesse do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º
da LTC com o fundamento da falta de prévia suscitação da questão de
inconstitucionalidade, exigindo‑se que esta suscitação tivesse lugar no próprio
acto que fez surgir tal questão.
2.2. A questão que constitui objecto do presente recurso
apresenta contornos diferenciados relativamente às que foram objecto de
anteriores decisões deste Tribunal relativamente à temática dos requisitos
formais da motivação dos recursos penais e que se podem agrupar em três grandes
grupos – um, relativo a deficiente cumprimento, nas conclusões da motivação, dos
requisitos legalmente impostos nos n.ºs 1, 2, 3 e 4 do artigo 412.º do CPP;
outro, reportado a situações em que essas deficiências ocorriam cumulativamente
nas conclusões e no próprio teor da motivação; e o terceiro, especificamente
versando sobre o cumprimento do ónus de especificação dos recursos retidos em
cujo conhecimento o recorrente mantinha interesse, exigido pelo n.º 5 do mesmo
artigo 412.º –, enquanto no presente caso a deficiência não radica nas
conclusões – que o acórdão recorrido reputou formalmente correctas –, mas
apenas na motivação stricto sensu.
2.2.1. Quanto ao primeiro grupo de situações, o Tribunal
Constitucional julgou inconstitucionais, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da
CRP:
– a interpretação normativa dos artigos 411.º, n.º 3,
412.º, n.º 1, e 420.º do CPP, “segundo a qual deve ser liminarmente rejeitado o
recurso do arguido cuja motivação não contenha conclusões, sem previamente se
lhe facultar o suprimento dessa omissão” (Acórdãos n.ºs 323/2003 e 428/2003
[este reportando a interpretação normativa aos artigos 412.º, n.º 1, 414.º, n.º
2, e 420.º, n.º 1, do CPP] e Decisão Sumária n.º 244/2004);
– a norma constante dos artigos 412.º, n.º 1, e 420.º,
n.º 1, do CPP, “quando interpretados no sentido de a falta de concisão das
conclusões da motivação implicar a imediata rejeição do recurso, sem que
previamente seja feito o convite ao recorrente para suprir tal deficiência”
(Acórdãos n.ºs 193/97, 43/99, 417/99, 43/2000 e 337/2000, tendo este último
declarado, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma);
– a norma constante dos artigos 59.º, n.º 3, e 63.º, n.º
1, do Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, “quando interpretados no sentido
de a falta de indicação das razões do pedido nas conclusões da motivação levar à
rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido [contra a decisão
administrativa que o sancionou por prática de contra‑ordenação], sem que tenha
havido prévio convite para proceder a tal indicação” (Acórdão n.º 303/99) e “na
dimensão interpretativa segundo a qual a falta de formulação de conclusões na
motivação do recurso, por via do qual se intenta impugnar a decisão da
autoridade administrativa que aplicou uma coima, implica a rejeição do recurso,
sem que o recorrente seja previamente convidado a efectuar tal formulação”
(Acórdãos n.ºs 319/99, 509/2000, 590/2000 e 265/2001, tendo este último
declarado, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma, por
violação do n.º 10 do artigo 32.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, da
CRP);
– a norma constante do artigo 412.º, n.º 2, do CPP
[menções exigidas nas conclusões da motivação de recurso que verse matéria de
direito], “interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões
da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem
como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja
facultada a oportunidade de suprir tal deficiência” (Acórdãos n.ºs 288/2000,
388/2001, 401/2001, 192/2002 e 320/2002, tendo este último declarado, com força
obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma, declaração de que foi feita
aplicação no Acórdão n.º 524/2003 e nas Decisões Sumárias n.ºs 9/2003, 13/2003,
85/2003, 23/2004 e 281/2006);
– as normas dos artigos 412.º, n.ºs 1 e 2, e 420.º do
CPP, “na interpretação segundo a qual o deficiente cumprimento dos ónus
previstos no primeiro daqueles artigos ou a falta de concisão das conclusões da
motivação do recurso levam à rejeição do recurso sem que seja dada oportunidade
aos recorrentes para suprir essas deficiências” (Acórdão n.º 487/2004);
– a norma extraída dos artigos 412.º, n.ºs 1 e 2, alínea
b), 420.º, n.º 1, 438.º, n.º 2, e 448.º do CPP, em conjugação com o Assento n.º
9/2000, “quando interpretada no sentido de que a falta de indicação, no
requerimento de interposição do recurso extraordinário para fixação de
jurisprudência apresentado pelo arguido no processo, do sentido em que deve
fixar‑se a jurisprudência cuja fixação é pretendida leva à rejeição imediata de
tal recurso, sem que previamente lhe seja feito convite para aperfeiçoar o
requerimento, suprindo a respectiva deficiência” (Decisão Sumária n.º
404/2004);
– a norma do artigo 412.º, n.º 3, do CPP [menções
exigidas nas conclusões da motivação de recurso em que se impugne a decisão
proferida sobre a matéria de facto], “quando interpretada no sentido de que a
falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções
contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito o não conhecimento da
impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso do arguido nessa
parte, sem que ao mesmo seja facultada oportunidade de suprir tal deficiência”
(Acórdãos n.ºs 529/2003 e 357/2006 [este em caso em que apenas estava em causa o
deficiente cumprimento da menção prevista na alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º
do CPP]); e
– a norma dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP,
“interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da
motivação do recurso em que o arguido impugne a decisão sobre a matéria de
facto, das menções contidas na alínea a), b) e c) daquele n.º 3, [as duas
últimas] pela forma prevista no n.º 4, tem como efeito o não conhecimento
daquela matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente
seja facultada oportunidade de suprir tal deficiência” (Acórdãos n.ºs 322/2004 e
405/2004).
2.2.2. Diversamente, no segundo grupo de situações, em
que a deficiência ocorre simultaneamente no teor da motivação (stricto sensu) e
nas subsequentes conclusões, este Tribunal tem emitido juízos de não
inconstitucionalidade, tendo por base a consideração de que se é admissível a
correcção das conclusões no sentido de as harmonizar com o teor da motivação, já
é inadmissível permitir o suprimento das deficiências das conclusões com o
aditamento de alusões sem suporte na precedente motivação. Fê‑lo no Acórdão n.º
259/2002, que não julgou inconstitucional que a falta de indicação, nas
conclusões da motivação do recurso em que se impugne a decisão sobre a matéria
de facto, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 e no n.º 4 do
artigo 412.º do CPP tenha como efeito o não conhecimento daquela matéria e a
improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada
oportunidade de suprir o vício dessa falta de indicação, “se também da
motivação do recurso não constar tal indicação”. Esta orientação foi reiterada
no Acórdão n.º 140/2004, que “não julg[ou] inconstitucional a norma do artigo
412.º, n.ºs 3, alínea b), e 4, do CPP, interpretada no sentido de que a falta,
na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da
especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a
improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de
suprir tais deficiências”. No mesmo sentido viriam a decidir os Acórdãos n.ºs
488/2004 e 342/2006 e as Decisões Sumárias n.ºs 58/2005, 274/2006 e 88/2008.
2.2.3. Um tratamento especial têm merecido as questões
suscitadas a propósito do incumprimento ou do deficiente cumprimento da
exigência, formulada no n.º 5 do artigo 412.º do CPP, de, havendo recursos
retidos, o recorrente especificar, nas conclusões da motivação do recurso que
determina a subida desses recursos, quais os que mantêm interesse.
Assim:
– o Acórdão n.º 191/2003 julgou inconstitucional, por
violação das disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.º 4,
parte final, da CRP, a norma do artigo 412.º, n.º 5, do CPP, “interpretado no
sentido de que é insuficiente para cumprir o ónus de especificação ali
consignado a referência a ‘todos’ os recursos, nas conclusões da motivação,
sempre que no texto desta tenha sido feita a sua identificação individualizada
e seriada” [neste Acórdão, o Tribunal Constitucional entendeu maioritariamente
não conhecer autonomamente, por considerar não suscitada, a questão da
inconstitucionalidade da norma em causa interpretada no sentido de atribuir
efeito irremediavelmente preclusivo ao incumprimento ou deficiente
cumprimento do aludido ónus, sem que ao recorrente fosse facultada
oportunidade processual de suprir o vício detectado, registando‑se que quer o
representante do Ministério Público neste Tribunal, quer o Juiz Conselheiro que
votou pelo conhecimento dessa dimensão normativa se manifestaram no sentido de
que a reputariam inconstitucional];
– o Acórdão n.º 724/2004 julgou inconstitucional, com
o mesmo fundamento, o mesmo preceito, “interpretado no sentido de que a
exigência da especificação dos recursos retidos em que o recorrente mantém
interesse, constante do preceito, também é obrigatório, sob pena de preclusão
do seu conhecimento, nos casos em que o despacho de admissão do recurso
interlocutório é proferido depois da própria apresentação da motivação do
recurso interposto da decisão final do processo”;
– o Acórdão n.º 381/2006 julgou inconstitucional, por
violação das disposições conjugadas dos artigos. 32.º, n.º 1, e 20.º, n.º 4,
parte final, da CRP, o n.º 5 do artigo 412.º do CPP, quer “interpretado no
sentido de que a exigência da especificação dos recursos retidos em que o
recorrente mantém interesse, constante do preceito, também é obrigatória, sob
pena de preclusão do seu conhecimento, nos casos em que o despacho de admissão
do recurso interlocutório é proferido depois da própria apresentação da
motivação do recurso interposto da decisão final do processo”, quer “na
interpretação que permita ao tribunal ad quem, considerando não ser suficiente
para o cumprimento do ónus previsto nesse preceito a referência nas conclusões
ao recurso interlocutório retido e a que o mesmo subirá a final, a liminar
rejeição desse recurso, entretanto já admitido, sem que seja formulado ao
recorrente um convite para explicitar se mantém interesse no seu conhecimento”;
– o Acórdão n.º 476/2006 não julgou inconstitucional a
norma do artigo 412.º, n.º 5, do CPP, quando interpretada no sentido de que “o
recorrido está obrigado a manifestar nos autos em que recursos retidos está
interessado, não se tendo os mesmos tornado inúteis, quando a matéria
questionada no recurso interlocutório, não obstante tal impugnação, é utilizada
para fundamentar alteração na matéria de facto” [tendo sido esta última a
formulação utilizada pelo recorrente no requerimento de interposição de recurso
para o Tribunal Constitucional, entendeu‑se, face à proibição da ampliação ou
modificação, em sede de alegações, do objecto do recurso definido nesse
requerimento, não ser possível considerar, “por implicarem dimensões do n.º 5
do artigo 412.º do Código de Processo Penal que não foram impugnadas pelo
recorrente quando o recurso foi interposto (…) o aditamento que, na conclusão
2.ª das mesmas alegações, acrescenta a necessidade do convite para que o mesmo
indique se mantém interesse nos recursos retidos”; isto é: foi expressamente
excluída do âmbito do recurso sobre que recaiu esse acórdão a dimensão normativa
especificamente ligada à necessidade (ou dispensabilidade) de convite para
explicitação da manutenção do interesse no conhecimento dos recursos retidos];
e, por último,
– o Acórdão n.º 215/2007 que julgou inconstitucional,
por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, a norma do artigo 412.º, n.º 5, do
CPP, “interpretado no sentido de que a omissão da indicação, pelo arguido
recorrente, nas conclusões da motivação do recurso que determina a subida de
recurso retido, de que mantém interesse no conhecimento deste recurso, equivale
à desistência do mesmo, sem que previamente seja convidado a suprir essa
eventual deficiência”.
2.3. Como se referiu neste Acórdão n.º 215/2007, da
jurisprudência do Tribunal Constitucional relativamente a situações em que o
não cumprimento, ou o cumprimento defeituoso, de certos ónus processuais pelo
arguido é susceptível de implicar a perda definitiva de direitos ou a
preclusão irremediável de faculdades processuais, questionando‑se se, nesses
casos, não se imporá a prévia formulação de convite ao arguido para suprimento
da deficiência, ressalta o entendimento de que, em geral, e tendo por parâmetro
o direito a um processo equitativo, “não beneficia de tutela constitucional um
genérico, irrestrito e ilimitado «direito» das partes à obtenção de um
sistemático convite ao aperfeiçoamento de todas e quaisquer deficiências dos
actos por elas praticados em juízo”, sendo certo que “o convite – que não tem
que ser sucessivamente renovado ou reiterado – só tem sentido e justificação
quando as deficiências notadas forem estritamente «formais» ou de natureza
secundária” e que “não será constitucionalmente exigível nos casos em que a
deficiência formal se deva a um «erro manifestamente indesculpável do
recorrente»” (Carlos Lopes do Rego, “O direito de acesso aos tribunais na
jurisprudência recente do Tribunal Constitucional”, em Estudos em Memória do
Conselheiro Luís Nunes de Almeida, Coimbra, 2007, pp. 846‑847).
Especificamente quanto ao processo criminal, em que é
convocável o parâmetro constitucional do princípio das garantias de defesa,
incluindo expressamente o direito ao recurso, tem‑se considerado ser lícito ao
legislador, na sua regulamentação, impor determinados ónus aos diversos
intervenientes processuais. Mister é, no entanto, que, ao fazê‑lo, o legislador
respeite o princípio da proporcionalidade. Na verdade, a natureza de direito
fundamental que desde sempre o Tribunal Constitucional reconheceu ao direito de
recurso das decisões penais finais (maxime se condenatórias) e que o legislador
constitucional reforçou, ao consagrá-lo explicitamente, na revisão
constitucional de 1997, com o aditamento feito na parte final do n.º 1 do artigo
32.º (“O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o
recurso”), convoca directamente a aplicabilidade do princípio da
proporcionalidade, não apenas para proscrever soluções legais negatórias da
admissibilidade do recurso, mas também como critério aferidor da legitimidade
dos condicionamentos e da tramitação legal dos recursos. E o juízo de
proporcionalidade a emitir neste domínio não pode deixar de tomar em
consideração três vectores essenciais: (i) a justificação da exigência
processual em causa; (ii) a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por
parte do interessado; e (iii) a gravidade das consequências ligadas ao
incumprimento do ónus.
Na jurisprudência precedentemente citada firmou‑se o
entendimento de que, nas situações apreciadas, se justificava a formulação de
convite, antes de se considerar irremediavelmente precludido o conhecimento
dos recursos interpostos, por tal ser a solução que melhor se coaduna com a
ponderação entre o interesse na celeridade própria do processo penal e o
asseguramento das garantias de defesa e do direito de recurso. A concordância
prática entre o valor da celeridade, co‑natural ao processo penal, e a
plenitude das garantias de defesa é possível, com a formulação de convite para,
em prazo curto, ser suprida a deficiência, “sem necessidade de se chegar ao
extremo de fulminar desde logo o recurso, em desproporcionada homenagem ao
valor celeridade, promovido, assim, à custa das garantias de defesa do
arguido”.
2.4. Analisando o caso sub judicio de acordo com os
critérios que, neste domínio, têm sido seguidos pelo Tribunal Constitucional,
impõe‑se a emissão de um juízo de inconstitucionalidade, por patente
desproporcionalidade do critério normativo adoptado no acórdão recorrido.
Saliente‑se que não está em causa a razoabilidade da
exigência das especificações, nas conclusões da motivação de recurso penal,
descritas nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 412.º do CPP. Com efeito, essas
especificações, nas conclusões, a recorrente satisfê‑las plenamente, como o
acórdão recorrido, por diversas vezes, e de forma expressa, reconhece. Trata‑se
de ónus que se justificam no quadro do dever de colaboração das partes com o
tribunal, e que facilitam e, consequentemente, possibilitam que seja mais
célere, como é preocupação saliente do processo penal, o julgamento do recurso
pelo tribunal superior.
O que surge como menos patentemente razoável é a
imposição de uma mera duplicação física das mesmas menções, no teor da motivação
e nas conclusões. Trata‑se de exigência de cujo cumprimento não advém qualquer
benefício ou utilidade relevantes para a actividade do tribunal de recurso: a
vantagem de o poupar a uma reanálise de toda a matéria de facto e de toda a
prova (fazendo incidir a sua atenção apenas nos “concretos pontos de facto” que,
segundo o recorrente, terão sido incorrectamente julgados, limitando a reanálise
da prova às “concretas provas” que, segundo o recorrente, imporiam decisão
diversa da recorrida, e renovando apenas as provas indicadas pelo recorrente)
já foi garantida com a menção dessas especificações (sendo as relativas às
provas, quando elas tenham sido gravadas, feitas por referência aos suportes
técnicos) nas conclusões da motivação.
Trata‑se, aliás, de menções de natureza formal, de
natureza bem distinta dos “fundamentos do recurso”, no sentido de “razões do
pedido” (n.º 1 do artigo 412.º do CPP), isto é, da explanação dos argumentos
desenvolvidos pelo recorrente no sentido de convencer o tribunal de recurso a
revogar ou alterar a decisão recorrida. Se quanto a estes fundamentos
(substanciais) do recurso, que o recorrente terá desenvolvido, com a extensão
que entendeu pertinente (frequentemente com citações doutrinais e
jurisprudenciais), ao longo da motivação, se compreende que, ainda na lógica de
colaboração das partes com o tribunal, que se lhe imponha que os resuma ou
sintetize nas conclusões, já as menções dos n.ºs 3 e 4 (tal como, aliás, a do
n.º 5, relativo à especificação dos recursos retidos que conservam interesse) do
artigo 412.º do CPP são, por natureza, insusceptíveis de “resumo” ou de
“síntese”, pelo que o que o critério normativo seguido pelo acórdão recorrido
acaba por exigir será uma mera duplicação do teor literal dessas menções
(executável mecanicamente por simples operações de “copiar” e “colar”), primeiro
na motivação stricto sensu e depois nas conclusões, sem que daí resulte qualquer
significativa vantagem para a racionalidade da tarefa de julgamento do recurso e
para a celeridade da decisão. Aliás, no presente caso, o acórdão recorrido
começa logo, a partir da sua primeira folha, ao reproduzir as conclusões da
motivação da recorrente, por indicar os “pontos de facto que a arguida considera
incorrectamente julgados e provas que impõem decisão diversa”, com transcrição
das provas gravadas tidas por relevantes para o efeito.
Neste contexto, o critério seguido pelo acórdão
recorrido, pela desrazoabilidade da exigência formulada e pelo efeito drástico
que imediatamente associou ao seu incumprimento, traduzido na negação do
conhecimento do recurso, surge como violadora do princípio da
proporcionalidade, pelo condicionamento injustificado do direito fundamental ao
recurso das decisões penais condenatórias.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º,
n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo
412.º, n.ºs 2, alínea b), 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal,
interpretada no sentido de que a inserção apenas nas conclusões da motivação do
recurso das menções aí referidas determina a imediata rejeição do recurso; e,
consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando a
reformulação da decisão recorrida, na parte impugnada.
Sem custas.
Lisboa, 7 de Outubro de 2008.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos