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Processo nº 672/08
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos em que são recorrentes A. e B. e recorrido o Ministério
Público, foi interposto recurso de acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de
Évora, em 25 de Março de 2008 (fls. 52 a 132), posteriormente complementado pela
decisão proferida pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, em 16 de Julho
de 2008 (fls. 137 a 139), que indeferiu reclamação de despacho de rejeição de
recurso interposto em relação ao acórdão proferido, para apreciação da
constitucionalidade “da norma contida no art.º 169º, n.º 1 do Código Penal na
parte em que ao incriminar o fomento, facilitismo e favorecimento da
prostituição de pessoa livre e auto-determinada, está a esquartejar os
princípios da subsidiariedade do Direito Penal, firmado no art.º 18º, n.º 2 da
C.R.P. (…), bem como os direitos à livre expressão da sexualidade, à vida
privada, liberdade de consciência, liberdade de escolha da profissão e direito
ao trabalho, previstos nos art.º 26º, n.º 1, 27º, n.º 1, 41º, n.º 1, 47º, n.º 1
e 58º, n.º 1 da C.R.P.” (fls. 144).
2. Notificados para tal pela Relatora, os recorrentes produziram alegações das
quais constam as seguintes conclusões:
“1. A questão da constitucionalidade do art.°
169°, nº 1 do C.P. tem dividido a jurisprudência resultando na prática, apesar
de condutas factualmente equivalentes, em procedimentos e sanções criminais
muito diferentes;
2. Pelo que entendemos, face à fragilidade da matéria em discussão e das
suas eventuais consequências, que colocam certamente em causa a segurança e
certeza do Direito, merecer ser discutida nas mais altas instancias,
3. Deste modo, a inconstitucionalidade do art.° 169°, n.º 1 invocada
pelos Recorrentes subjaz na descriminalização do aproveitamento da prostituta,
em respeito pela sua liberdade de escolha e livre resolução de fazer deste o seu
modo de vida;
4. Porquanto, a actuação dos Recorrentes mais não foi que respeitar e
proteger a decisão destas mulheres em praticarem um acto livre e não penalizado
em Portugal — a prostituição;
5. Ou seja, a auto-determinação da livre expressão da sexualidade,
liberdade de consciência e liberdade de escolha, os quais são direitos
constitucionalmente consagrados — art.° 26°, n.º 1, art.° 47°, n.º 1 e art.°
48°, n.º 1 da CRP;
6. Deste modo, nunca se poderá afirmar que o que se pretende punir no
art.° 169°, n.º 1 do C.P. é o aproveitamento da carência alheia que se traduz na
protecção por meios penais contra a necessidade de utilizar a sexualidade como
modo de subsistência, protecção directamente fundada na dignidade humana;
7. Uma vez que, a escolha do modo de vida por si desejado e pretendido,
de forma consciente e voluntária, nasce unicamente da livre resolução destas
mulheres, que dominam completamente o processo decisório, sem qualquer
interferência dos Recorrentes;
8. O que desde já afasta qualquer processo de vitimização e
aproveitamento alheio;
9. Mais acresce que, com a redacção que foi dada pela Lei 65/98, de 2 de
Setembro, se alterou claramente a estrutura típica do crime de lenocínio,
eliminando-se a exigência típica da “exploração de uma situação de abandono ou
necessidade”;
10. Com a supressão daquele requisito o legislador inverteu claramente a
constante evolução legislativa, em matéria de crimes sexuais, que se traduzem
num padrão de intervenção mínima do Direito Penal, ramo este que mais
directamente afecta o Direito à Liberdade — art.° 27, n.º 1 e 2 da CRP;
11. E, como bem refere, no Ac 396/07 do TC o voto de vencido da Ilustre
Conselheira Dr.ª Maria João Antunes”... Com a eliminação daquela exigência o
legislador incrimina comportamentos para além dos que ofendem o bem jurídico da
liberdade sexual, relativamente aos quais não pode ser afirmada a necessidade de
restrição do Direito de liberdade, enquanto necessariamente implicado na punição
(art.° 18°, n.º 2 e art.° 270, n.º 1 e 2 da CRP)...”;
12. Na medida em que apenas se justifica a punição de certos
comportamentos no direito penal numa lógica de estrita necessidade das
restrições de direitos e interesses que decorrem da aplicação de penas públicas;
13. Logo, o art.° 169°, n. 1 do C.P ao punir criminalmente quem se
aproveita da prostituição, quando esta decisão cabe exclusivamente à prostituta
de forma livre, consciente e voluntária, extravasa o seu âmbito e mitiga o campo
de aplicação e livre disposição de direito iminentemente pessoais.
14. Face a tudo o exposto, e em respeito pela liberdade de escolha e
autodeterminação, deve ser declarado inconstitucional o art.° 169° do C.P. por
violar direitos iminentemente pessoais e constitucionalmente protegidos, art.
26°, n.º 1, 27°, n.º 1, 41°, n.º 1, 47°, n.º 1 e 58°, n.º 1, da CRP conjugados
com os arts.° 18, n.º 2, art.° 270, nºs 1 e 2 da CRP” (fls. 165 a 167)
3. Por sua vez, o Ministério Público apresentou as seguintes conclusões nas
contra-alegações:
«1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.
Inconformado com o decidido pelo Tribunal da Relação de Évora, os arguidos A. e
B. interpuseram o presente recurso de constitucionalidade circunscrito à
apreciação da conformidade à Lei Fundamental da norma do artigo 169° do Código
Penal, que prevê e pune o crime de lenocínio.
Esta norma resultante da redacção da Lei n° 59/2007, de 4 de Setembro, no que
aos actos de prostituição diz respeito, é idêntica à anterior versão do Código,
como emerge do correspondente artigo 170°.
Sobre a norma resultante deste artigo 170º, já o Tribunal Constitucional
abundantemente se pronunciou e sempre no sentido de considerar não ser
inconstitucionalmente proibida a incriminação do lenocínio — cf. Acórdãos nº
144/04, 196/04, 303/04, 170/06, 396/07, 522/07 e 591/07 (disponíveis em
www.Tribunaleonstitucional.pt).
Esta jurisprudência é perfeitamente transponível para a apreciação da
conformidade constitucional da norma que é objecto deste recurso, tendo
inclusivamente em conta os vários parâmetros invocados pelos recorrentes, razão
pela qual para ela se remete.
2. Conclusão
Nesta conformidade e face ao exposto, conclui-se:
1. Não é inconstitucional a norma do artigo 169°, do Código Penal, na actual
redacção.
2. Termos em que não deverá proceder o presente recurso.»
4. Durante a fase de elaboração do projecto de acórdão, a Relatora
verificou que o momento processual em que o recorrente suscita a questão de
inconstitucionalidade ocorreu em sede de alegações de recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça, que viria a ser rejeitado por legalmente inadmissível,
através de acórdão proferido em 11 de Julho de 2008. Como tal, em cumprimento do
n.º 1 do 704º do CPC, aplicável ex vi artigo 69º da LTC, a Relatora ordenou a
notificação do recorrente para que aquele viesse aos autos pronunciar-se sobre a
eventualidade de não conhecimento do objecto do recurso.
Em 02 de Outubro de 2008, os recorrentes vieram pronunciar-se nos
seguintes termos:
“1°
Embora dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça, a reclamação foi oferecida no
Tribunal da Relação de Évora, antes do trânsito em julgado do Acórdão proferido,
na qual foi suscitada a questão da inconstitucionalidade e admitida por este
mesmo Tribunal.
2°
Deste modo, é nosso entendimento que estão satisfeitos os pressupostos
constantes do art. 72°, n.º 2 da Lei 28/82, de 15 de Novembro
TERMOS EM QUE,
DEVE O OBJECTO DO RECURSO, POR A QUESTÃO DA INCONSTITUCIONALIDADE TER SIDO
SUSCITADA DE MODO PROCESSUALMENTE ADEQUADO, APRECIADO” (fls. 174)
Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
5. A título preliminar, importa notar que os recorrentes invocam a
inconstitucionalidade do artigo 169º, n.º 1, do Código Penal (na redacção
conferida pela Lei n.º 59/2007). Contudo, de toda a sua intervenção nos autos
resulta que aquele se refere à norma efectivamente aplicada pela decisão
recorrida (fls. 134), em função da data da prática dos factos, ou seja, o
(então) artigo 170º, n.º 1, do Código Penal (na redacção anterior à Lei n.º
59/2007). Assim, por ser manifesto que os recorrentes pretendem ver sindicada a
norma constante do tipo penal que pune o lenocínio, aplicada pela decisão
recorrida segundo a sua redacção anterior à Lei n.º 59/2007, será dessa mesma
norma que este Tribunal apreciará a possibilidade de conhecimento.
6. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do Tribunal da Relação de
Évora (cfr. fls. 152), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa
decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do
mesmo preceito legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos
todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A
e 76º, nº 2, da LTC.
Aliás, deve notar-se que o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça considerou
não deter competência legal para decidir sobre a admissão ou rejeição do
recurso, por entender que a alegada inconstitucionalidade do artigo 170º, n.º 1,
do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, vinha imputada à
decisão do Tribunal da Relação de Évora e não à sua decisão relativa à
reclamação, que não aplicou efectivamente aquela norma.
7. Na verdade, importa frisar que são os próprios recorrentes que especificam
apenas pretender recorrer do “Acórdão da Relação proferido nos autos” (fls.
144). Significa isto que a decisão proferida pelo Presidente do Supremo Tribunal
de Justiça, relativa à reclamação do despacho de não admissão do recurso não foi
colocada em crise nos presentes autos.
Ora, conforme admitido pelos recorrentes, a alegada inconstitucionalidade da
norma constante do n.º 1 do artigo 170º do Código Penal apenas foi suscitada em
sede de alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, não o tendo
sido feito quer perante o tribunal criminal de primeira instância, quer perante
o Tribunal da Relação de Évora. O recurso interposto para o Supremo Tribunal de
Justiça foi considerado como legalmente inadmissível, por força da interpretação
adoptada quanto à alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do CPP. Note-se, aliás, que
os recorrentes nunca colocaram em crise a constitucionalidade da norma extraída
deste mesmo preceito legal.
Assim, as alegações de recurso para aquele Tribunal não podem deixar de ser
consideradas como “meio processual inidóneo” para suscitar a
inconstitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 170º do Código
Penal, na medida em que aquela nunca ocorreu perante o Tribunal da Relação de
Évora. À luz do n.º 2 do artigo 72º da LTC, a suscitação de qualquer
inconstitucionalidade deve ter lugar até a um momento processual em que o
tribunal recorrido pudesse alterar a sua decisão. Sucede que, por força do
artigo 380º do CPP, o Tribunal da Relação de Évora já não podia corrigir,
oficiosamente ou a pedido, o acórdão entretanto proferido.
Acresce ainda que as alegações de recurso de constitucionalidade apresentadas
perante este Tribunal demonstram que os recorrentes conheciam a jurisprudência
anterior do Tribunal Constitucional, tendo mesmo citado em seu favor um voto
vencido de uma Conselheira junto deste Tribunal (Acórdão n.º 396/07). Daqui
decorre que seria objectivamente exigível aos recorrentes que tivessem colocado
a questão de inconstitucionalidade normativa perante o Tribunal da Relação de
Évora que proferiu a decisão recorrida e não apenas perante o Supremo Tribunal
de Justiça, mediante interposição de um recurso legalmente inadmissível.
Por todas estas razões, conclui-se que os recorrentes não suscitaram de modo
processualmente adequado a questão de inconstitucionalidade normativa perante o
tribunal recorrido, tornando-se legalmente impossível conhecer do objecto do
presente recurso, por força do n.º 2 do artigo 72º da LTC.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, decide-se não conhecer do objecto do presente
recurso.
Custas devidas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 12 UC´s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 9 de Outubro de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Gil Galvão