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Processo nº 393/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do
art.º 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC) da
decisão sumária proferida pelo relator, no Tribunal Constitucional, que decidiu,
conhecendo do recurso interposto da decisão prolatada pelo Supremo Tribunal de
Justiça, de 2 de Abril de 2008, julgar inconstitucional a norma extraída da
conjugação dos artigos 41.º, n.º 4, do Decreto‑Lei n.º 184/89, de 2 de Junho,
44.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, e 13.º dos Estatutos
do Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária (ICERR),
aprovados pelo Decreto‑Lei n.º 237/99, de 25 de Junho, interpretados no sentido
de permitirem a contratação de pessoal sujeito ao regime jurídico do contrato
individual de trabalho, designadamente na parte em que permite a conversão de
contratos de trabalho a termo em contratos sem termo, sem imposição de
procedimento de recrutamento e selecção dos candidatos à contratação que garanta
o acesso em condições de liberdade e igualdade, e não conhecer do recurso de
constitucionalidade na parte restante.
2 – Fundamentando a sua reclamação, a reclamante esgrimiu do
seguinte jeito:
«A., recorrente nos autos supra identificados em que é recorrido o INSTIUTO DAS
ESTRADAS DE PORTUGAL, notificada do douto despacho proferido pelo Exmo. Juiz
Conselheiro Relator que decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso
interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LCT (78º - A, nº 1 da
LCT), vem, nos termos do disposto no nº 3 do mesmo artigo 78º - A da LCT,
reclamar para a conferência, nos termos e com os fundamentos seguintes:
A recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do
disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LCT, pretendendo ver apreciada a
inconstitucionalidade do artigo 41°, n°4 do Decreto Lei nº 184/89, artigo 44º nº
1 do Decreto-Lei nº 427/89 e artigo 13º dos Estatutos do ICERR aprovados pelo
Decreto-Lei nº 237/99, de 25 de Junho, com a interpretação que foi dada no douto
acórdão recorrido, no sentido de que tais normas impõem que a contratação da A.
pelo R. estava sujeita a procedimento administrativo de recrutamento e selecção
que assegurasse a liberdade e igualdade de acesso, bem como, que a inexistência
de prova quanto à prévia existência de tal procedimento consubstancia a
invalidade da conversão do contrato a termo celebrado em contrato sem termo, por
falta de suporte normativo para tal conversão e que tal facto reveste natureza
constitutiva e cujo ónus de prova cabe à A..
Tal interpretação viola claramente, não só o princípio da igualdade previsto no
artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, mas também o princípio da
garantia da segurança no emprego postulada no artigo 53º do mesmo diploma
constitucional.
Alegou ainda a recorrente que a questão da inconstitucionalidade foi suscitada
nos autos nas alegações apresentadas no recurso de revista (conclusões 45 e 48).
E também a inconstitucionalidade da interpretação plasmada do douto acórdão
recorrido do disposto nos artigos 342º e 516º no sentido de que o ónus da prova
incumbe à Autora por violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13º
da CRP, mas também do princípio a garantia da segurança no emprego postulada no
artigo 53º do diploma constitucional e do direito ao trabalho, previsto no
artigo 58º da CRP.
Por douto despacho sumário proferido nos autos pelo Exmo. Juiz Conselheiro
Relator foi decidido não tomar conhecimento do objecto do recurso, uma vez que
não foi suscitada a questão da inconstitucionalidade.
Contudo, entende a recorrente que devem ser apreciadas as questões de
inconstitucionalidade suscitadas.
Com efeito, a recorrente não suscitou a inconstitucionalidade normativa contida
nos artigos em causa na interpretação referida.
Contudo, não podia a Autora suscitar qualquer inconstitucionalidade
relativamente aos referidos artigos do Código Civil, pela simples razão de que,
até à douta decisão do STJ, a contratação da Autora sempre se alicerçou na
aplicação do disposto no artigo 13º dos Estatutos do ICERR, aprovados pelo
Decreto-Lei nº 237/99, de 25 de Junho, ao abrigo do qual aos trabalhadores do
Instituto se aplica o regime do contrato individual de trabalho, sem o prévio
procedimento administrativo de recrutamento e selecção de candidatos.
Ou seja, uma lei do seu País ao abrigo da qual foi contratada e sobre a qual
nenhuma dúvida de constitucionalidade havia sido suscitada, designadamente por
falta do já referido procedimento.
A Autora, ora recorrente, confiou na legalidade e também constitucionalidade do
artigo 13º dos Estatutos do ICERR e nele não podia deixar de confiar.
Pelo que nenhuma prova tinha que fazer para afastar um vício – a ausência do
prévio procedimento administrativo de recrutamento e selecção de candidatos –
com que não contava, nem podia contar.
Ou seja, a Autora, ora recorrente não pode, nem é obrigada a contar com a
surpresa de uma norma de um diploma legal ao abrigo do qual foi contratada venha
a sofrer de tal vício e, consequentemente, que lhe incumbia a prova da
existência desse prévio procedimento por força da aplicação dos artigos 280°, nº
1, 294° e artigo 342º nº 1 todos do Código Civil.
Logo, não podia a Autora previamente suscitar a sua inconstitucionalidade dessas
normas
De modo que, só quando este vício é suscitado – o que apenas aconteceu com o
acórdão proferido pelo STJ – pode a recorrente a ele reagir.
Pelo que, devem ser apreciadas as questões de inconstitucionalidade suscitadas.
Acresce ainda que o Supremo Tribunal de Justiça baseou-se, efectivamente, na
inexistência de prova quanto à prévia existência do procedimento administrativo
de recrutamento e selecção e quanto à natureza constitutiva ou elemento
constitutivo do direito alegado pela Autora.
Na verdade, o STJ decide que da factualidade provada não pode minimamente
resultar que houve um procedimento tal que actuasse por forma a assegurar à
generalidade dos cidadãos a formulação de candidatura para desempenho das
funções para que a Autora foi contratada e que a alegação e prova da observância
de procedimento administrativo de recrutamento e selecção que assegurasse a
liberdade e igualdade de acesso à função pública reveste natureza constitutiva,
cujo ónus de prova cabia à Autora nos termos do nº 1 do artigo 342º do Código
Civil.
Ou seja, o STJ aplicou uma norma jurídica que a Autora, face à interpretação
dada, considera inconstitucional e cuja constitucionalidade pretende ver
apreciada pelo Tribunal.
Termos em que e nos mais de direito, deve ser dado provimento à presente
reclamação e proferida decisão que determine o conhecimento do objecto do
recurso, seguindo-se os demais termos legais até final».
3 – O recorrido não contra-alegou.
4 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
«1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, do despacho do
relator, no Supremo Tribunal de Justiça, proferido ao abrigo das disposições
combinadas dos arts. 705.º, 701.º, n.º 2, 700.º, n.º 1, alínea g), e 726.º,
todos do Código de Processo Civil (CPC), que negou a revista interposta de
acórdão da Relação de Coimbra que julgara improcedente a acção interposta contra
o Instituto de Estradas de Portugal, em que a mesma pedia que o R. fosse
condenado a reconhecer que o contrato de trabalho a termo, os contratos de
prestação de serviços e o contrato de trabalho temporário que celebrou com o R.
se tratam de um verdadeiro contrato de trabalho sem termo, que é trabalhadora do
R., sem qualquer termo desde 4 de Março de 2002, que era nulo o seu
despedimento, a reintegrar a autora no seu posto de trabalho, sem prejuízo da
sua categoria e antiguidade, sem prejuízo de optar pela indemnização prevista na
lei e a pagar à autora os salários e subsídios que se vencerem desde a data do
despedimento e até ao trânsito em julgado da sentença, acrescidos de juros.
2 – A recorrente recorre ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1
do art.º. 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC),
pretendendo a apreciação da constitucionalidade “das normas conjugadas dos arts.
44.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Setembro, 41.º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 185/89, de 2 de Junho, e art.º 13.º, n.º 1, dos Estatutos do
ICERR, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 237/99, de 25 de Junho, na interpretação
segundo a qual seria permitida a contratação de pessoal desse instituto sujeita
ao regime jurídico do contrato individual do trabalho, designadamente na parte
em que permitem a conversão dos contratos de trabalho a termo em contratos sem
termo, sem imposição de recrutamento e selecção de candidatos à contratação que
garanta o acesso em condições de igualdade, por violação do artigo 47.º, n.º 2,
da Constituição, mas também dos artigos 13.º e 53.º do diploma fundamental”,
cuja recusa de aplicação viu no acórdão ora recorrido.
3 – A recorrente recorre, ainda, ao abrigo do disposto na alínea b)
do n.º 1 do art.º. 70.º da LTC, pretendendo ver apreciada:
i) a “inconstitucionalidade do art.º. 41.º, n.º 4 do Decreto-Lei
n.º 184/89, 44.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 427/89 e 13.º dos Estatutos do
ICERR, com a interpretação que foi dada no douto acórdão recorrido, no sentido
de que tais normas impõem que a contratação da A. pelo R. estava sujeita a
procedimento administrativo de recrutamento e selecção que assegurasse a
liberdade e igualdade de acesso, bem como, que a inexistência de prova quanto à
prévia existência de tal procedimento consubstancie a invalidade da conversão do
contrato de trabalho a termo celebrado sem termo, por falta de suporte normativo
para tal conversão e que tal facto reveste natureza constitutiva e cujo ónus de
prova cabe à A.”, por violação “não só do princípio da igualdade previsto no
art.º. 13.º da Constituição da República Portuguesa, mas também [d]o princípio
da garantia da segurança no emprego postulada no art.º. 53.º do mesmo diploma
fundamental”;
ii) a “inconstitucionalidade da interpretação plasmada do acórdão
recorrido do disposto nos arts. 342.º do Código Civil e 516.º do CPC, no sentido
de que o ónus da prova incumbe à Autora, por violação do princípio da igualdade
previsto no art. 13.º da CRP, mas também do princípio da garantia da segurança
no emprego postulada no art. 53.º do diploma constitucional e do direito ao
trabalho, previsto no art. 58.º da CRP”.
4 – O recurso foi admitido pelo tribunal a quo. Tal decisão não
vincula, porém, o Tribunal Constitucional, como se estabelece no n.º 3 do art.º
76.º da LTC. E porque se configura uma situação em que a questão decidir ou é
simples, por já ter sido objecto de anteriores decisões do tribunal, ou não se
verificam pressupostos específicos do recurso de constitucionalidade, passa a
decidir-se imediatamente, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 78.º-A da LTC.
5 – Questão idêntica à colocada no presente recurso, sob o ponto 2,
supra – e que se mostra definida como thema decidendum no despacho do relator do
Supremo Tribunal de Justiça, ora recorrido, a fls. 22 dessa decisão – foi já
objecto de decisão neste Tribunal e nesta Secção, no Acórdão n.º 409/07, de
11.07.2007 (publicado no Diário da República, II Série, de 28.08.2007), no qual
se decidiu «Julgar inconstitucional, por violação do artigo 47.º, n.º 2, da
Constituição da República Portuguesa, a norma extraída da conjugação dos artigos
41.º, n.º 4, do Decreto Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, 44.º, n.º 1, do Decreto
Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, e 13.º dos Estatutos do Instituto para a
Conservação e Exploração da Rede Rodoviária (ICERR), aprovados pelo Decreto Lei
n.º 237/99, de 25 de Junho, interpretados no sentido de permitirem a contratação
de pessoal sujeito ao regime jurídico do contrato individual de trabalho,
designadamente na parte em que permite a conversão de contratos de trabalho a
termo em contratos sem termo, sem imposição de procedimento de recrutamento e
selecção dos candidatos à contratação que garanta o acesso em condições de
liberdade e igualdade».
Por outro lado, pelo menos, nas Decisões Sumárias nºs 584/07 e
46/08, da 2ª Secção do Tribunal Constitucional, seguiu-se o mesmo entendimento,
acolhendo-se a fundamentação daquele acórdão.
Não existindo razões para não continuar a sufragar essa
fundamentação, atenta a sua bondade, de novo aqui se acolhe a mesma.
6 – No que importa aos recursos de constitucionalidade acima
precisados sob o ponto 3/i) e ii), interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1
do art.º. 70.º da LTC, constata-se que o Tribunal Constitucional não poderá
tomar conhecimento deles, por falta de pressupostos específicos.
6.1 – Para poder conhecer-se deste tipo de recursos, torna-se
necessário, a mais do esgotamento dos recursos ordinários, que a norma impugnada
tenha sido aplicada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido e que a sua
inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo.
Na verdade, em face do disposto no art.º. 280.º, n.º 1, alínea b),
da Constituição, e 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, constitui pressuposto do
recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade que o seu objecto seja
constituído por normas jurídicas que violem preceitos ou princípios
constitucionais, não podendo sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a
decisão judicial em sim própria, mesmo quando nesta se faça aplicação directa de
preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correcção, no
plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma
chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente
determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto
(correcção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos
para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de
normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da
Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub
species constitutionis, a concreta aplicação do direito efectuada pelos demais
tribunais, em termos de se assacar ao acto judicial de “aplicação” a violação
(directa) dos parâmetros jurídico-constitucionais (cf. José Manuel M. Cardoso da
Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, 3.ª edição revista e
actualizada, 2007, pp. 31 e ss.).
Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o
mérito do julgamento efectuado in concreto pelo tribunal a quo.
A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a
correcção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade
constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida, cabendo ao
recorrente, como se disse, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º, o ónus de suscitar o problema de constitucionalidade
normativa num momento anterior ao da interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional [cf. Acórdão n.º 199/88, publicado no Diário da República II
Série, de 28 de Março de 1989; Acórdão n.º 618/98, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, remetendo para jurisprudência anterior (por
exemplo, os Acórdãos nºs 178/95 – publicado no Diário da República II Série, de
21 de Junho de 1995 -, 521/95 e 1026/9, inéditos e o Acórdão n.º 269/94,
publicado no Diário da República II Série, de 18 de Junho de 1994)].
Daí dizer-se, pois, que a “violação dos preceitos constitucionais”,
imputada directamente ao acto de concreta aplicação do direito, e não aos
preceitos legais aplicados pelas instâncias, não densifica nem traduz um
problema de constitucionalidade normativa susceptível de ser apreciado por este
Tribunal.
De facto, uma coisa é reportar a inconstitucionalidade à concreta
decisão considerada como resultado de um momento de aplicação dos preceitos
legais – a isso se reconduzindo as situações em que “embora sob a capa formal da
invocação da inconstitucionalidade de certo preceito legal tal como foi aplicado
pela decisão recorrida – o que realmente se pretende controverter é a concreta e
casuística valoração pelo julgador das múltiplas e específicas circunstâncias do
caso sub judicio (…); [designadamente] a adequação e correcção do juízo de
valoração das provas e fixação da matéria de facto provada na sentença (…) ou a
estrita qualificação jurídica dos factos relevantes para a aplicação do direito
[…];” (cf. CARLOS LOPES DO REGO, «O objecto idóneo dos recursos de fiscalização
concreta de constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo
Tribunal Constitucional», in Jurisprudência Constitucional, 3, p. 8) –, outra,
radicalmente diferente, é imputar à norma esse vício, identificando e isolando o
critério jurídico que aquela aplicação projecta, como momento normativo, numa
dada factualidade.
Por outro lado, deve referir-se, ainda, que decorre dos referidos
preceitos que a questão de inconstitucionalidade tenha de ser suscitada em
termos adequados, claros e perceptíveis, durante o processo, de modo que o
tribunal a quo ainda possa conhecer dela antes de esgotado o poder jurisdicional
do juiz sobre tal matéria e que desse ónus de suscitar adequadamente a questão
de inconstitucionalidade em termos do tribunal a quo ficar obrigado ao seu
conhecimento decorre a exigência de se dever confrontar a norma sindicanda com
os parâmetros constitucionais que se têm por violados, só assim se
possibilitando uma razoável intervenção dos tribunais no domínio da fiscalização
da constitucionalidade dos actos normativos.
É evidente a razão de ser deste entendimento: o que se visa é que o
tribunal recorrido seja colocado perante a questão da validade da norma que
convoca como fundamento da decisão recorrida e que o Tribunal Constitucional,
que conhece da questão por via de recurso, não assuma uma posição de
substituição à instância recorrida, de conhecimento da questão de
constitucionalidade fora da via de recurso.
6.2 – Ora, examinando as conclusões do recurso para o tribunal a
quo, constata-se que a recorrente não colocou nele a questão de
constitucionalidade tal como esta vem recortada no ponto 3/i).
Na verdade, o que a recorrente sindica, na conclusão 45.ª das suas
alegações, é a constitucionalidade da decisão judicial em si própria, por
violação do princípio da igualdade, previsto no art.º. 13.º da Constituição, no
caso de a decisão proferenda vir a concluir pela nulidade do contrato de
trabalho da recorrente, na medida em que tal solução seria diferente da que,
perante igual quadro normativo, fora antes adoptada em acordos celebrados pelo
R. no Tribunal de Trabalho de Coimbra ou, em relação a dois trabalhadores, por
força de decisões judiciais proferidas pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Temos, portanto, que a recorrente sindica aí a constitucionalidade
da decisão recorrida.
Ora, já se viu que essa questão não pode ser objecto do recurso de
fiscalização concreta de constitucionalidade normativa, definido no nosso
sistema jurídico.
Mas ainda que se entenda que, nas alegações do recurso para o
tribunal a quo, se recortara a questão de constitucionalidade, identificada no
ponto 3/i), sempre se teria de concluir que no critério normativo então
enunciado a recorrente não incluiu, e correspondentemente, não suscitou
adequadamente a respectiva questão de constitucionalidade, o segmento integrante
da norma cuja constitucionalidade agora pretende ver apreciada: “bem como, que a
inexistência de prova quanto à prévia existência de tal procedimento
consubstancie a invalidade da conversão do contrato a termo certo, por falta de
suporte normativo para tal conversão e que tal facto reveste natureza
constitutiva e cujo ónus de prova cabe à A.”.
A adição de novos elementos constitutivos do critério normativo,
respeitem eles à conformação normativa da hipótese ou à definição da estatuição,
envolvem a existência de uma nova norma.
Também, por esta razão não se poderia tomar conhecimento do recurso.
Mas independentemente do que vai dito, constata-se, por fim, que a
decisão recorrida não fez aplicação – ou seja não constituiu sua ratio decidendi
– do critério normativo, tal qual, aí, o mesmo se acha enunciado.
Na verdade, decorre dos pontos 3 e 4 da decisão ora recorrida que
esta fez decorrer a nulidade do contrato de trabalho da invalidade
constitucional (nulidade) da lei ordinária aplicada, na medida em que esta lei
não cumpria “o desiderato constitucional vertido no n.º 2 do art.º. 47.º da Lei
Fundamental”, e não da “inexistência de prova quanto à prévia existência de tal
procedimento”.
Para dar resposta à questão de constitucionalidade, a decisão
recorrida não se baseou, no caso concreto, em qualquer entendimento da
inexistência de prova quanto à prévia existência do procedimento administrativo
de recrutamento e selecção ou quanto à sua natureza constitutiva ou como
elemento constitutivo do direito alegado pela autora, cujo ónus de prova lhe
coubesse, mas antes num concreto juízo aplicativo fáctico-jurídico traduzido na
subsunção da concreta factualidade provada nos autos às exigências do quadro
jurídico constitucional antes recortado.
6.3 – Finalmente, também não pode conhecer-se da questão de
constitucionalidade supra definida no ponto 3/ii).
Na realidade, sobre os aspectos que vão para além da questão de
constitucionalidade apreciada anteriormente (ponto 3 da decisão recorrida), ou
seja, não consumidos na mesma (e que a decisão recorrida aprecia do mesmo modo,
dizendo “[…] aqui se incluindo a parte respeitante à adução, agora feita na
alegação de revista da autora, quando esgrime com a circunstância de que houve
um procedimento de recrutamento e selecção que era adequado a respeitar os
ditames postulados pelo n.º 2 do artigo 47.º da Constituição”), e nessa medida
coenvolvidos no juízo de inconstitucionalidade acabado de confirmar, a decisão
ora recorrida firmou o seguinte juízo aplicativo fáctico-jurídico, de tipo
subsuntivo: “Efectivamente, da factualidade provada [cfr., supra, items 2), 3, e
5 de I 3.] não pode, minimamente, resultar que houve um procedimento tal que
actuasse por forma a assegurar à generalidade dos cidadãos – abrindo-lhes a
necessária oportunidade em condições de igualdade e liberdade – a formulação de
«candidatura» para o desempenho das funções para que a autora foi contratada
(quer inicialmente, por via do contrato de trabalho a termo, quer por via dos
denominados «contratos de prestação de serviço»).
Não podendo este juízo, em si próprio, enquanto elemento
consubstanciante não de uma norma jurídica mas tão só de uma decisão judicial,
ser objecto de recurso de constitucionalidade, por no nosso sistema
constitucional não se achar consagrado o regime do recurso de amparo ou de
queixa constitucional, impõe-se concluir pela impossibilidade do conhecimento do
recurso relativamente a tais normas.
7 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 47.º, n.º 2, da
Constituição da República Portuguesa, a norma extraída da conjugação dos artigos
41.º, n.º 4, do Decreto‑Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, 44.º, n.º 1, do
Decreto‑Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, e 13.º dos Estatutos do Instituto para
a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária (ICERR,), aprovados pelo
Decreto‑Lei n.º 237/99, de 25 de Junho, interpretados no sentido de permitirem a
contratação de pessoal sujeito ao regime jurídico do contrato individual de
trabalho, designadamente na parte em que permite a conversão de contratos de
trabalho a termo em contratos sem termo, sem imposição de procedimento de
recrutamento e selecção dos candidatos à contratação que garanta o acesso em
condições de liberdade e igualdade, e, em consequência, negar provimento a essa
parte do recurso.
b) Não tomar conhecimento dos demais recursos de constitucionalidade
a que alude o ponto 3/i) e ii), supra.
c) Condenar a recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 7
Ucs., sem prejuízo do gozo do regime de apoio judiciário de que beneficia.».
B – Fundamentação
5 – Como resulta da argumentação desferida contra a decisão
reclamada, a reclamante não refuta quer o julgamento de inconstitucionalidade
nela efectuado, quer a correcção dos fundamentos aduzidos para o não
conhecimento das restantes questões de inconstitucionalidade, sendo que a
decisão de não conhecimento com base na não satisfação do ónus de suscitação das
questões de inconstitucionalidade foi efectuada apenas a título subsidiário e
partindo do pressuposto, anteriormente negado, de que o objecto do recurso
apontado nos itens 3/i e 3/ii da decisão sumária seria constituído por normas
jurídicas e não pela decisão judicial em si própria.
O que, em rectas contas, a reclamante sustenta é, apenas, que não
podia contar com a “surpresa de uma norma de um diploma legal ao abrigo da qual
foi contratada [refere-se ao art.º 13.º dos Estatutos do ICERR aprovados pelo
Decreto-Lei n.º 237/99, de 25 de Junho] venha a sofrer de tal vício e,
consequentemente, que lhe incumbia a prova da existência desse prévio
procedimento por força da aplicação dos artigos 280.º, n.º 1, 294.º e artigo
342.º, n.º 1, todos do Código Civil”.
Decorre desta alegação que a reclamante não teria disposto de
“oportunidade processual” para suscitar a questão antes de esgotado o poder
jurisdicional do tribunal a quo, por não poder antever a possibilidade de
aplicação das normas em causa (utilização imprevisível das normas).
Atenta a sua bondade, são, pois, de manter os fundamentos em que se
abonou a decisão reclamada.
Mas a reclamação, também, não procede quanto à argumentação que
aduz.
No que importa ao ónus de atempada e adequada suscitação da questão
de constitucionalidade, cumpre referir que constitui jurisprudência pacífica do
Tribunal Constitucional a de que o recorrente apenas se encontra dispensado do
cumprimento do ónus de suscitação da questão de constitucionalidade normativa
nos casos tidos como “anómalos” ou “excepcionais” (cfr., a título de exemplo, os
Acórdãos nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 5º vol., pp. 497 e 663 e no Diário da República II
Série de 28 de Maio de 1994), como aqueles em que o recorrente não desfrutou da
oportunidade de questionar a validade constitucional da norma aplicada, ou,
dispondo dela, veio a ser confrontado com uma norma ou interpretação normativa
de todo “insólita” e “imprevisível”, sobre a qual seria desrazoável e inadequado
exigir ao interessado um prévio juízo de prognose relativo à sua aplicação, em
termos de se antecipar ao proferimento da decisão, suscitando a questão de
constitucionalidade (cf., entre muitos, os Acórdãos nºs 120/04 e 595/05,
disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, e a jurisprudência neles
mencionada).
Todavia, tal não é o caso dos autos.
Na verdade, à data (8 de Fevereiro de 2008), em que a recorrente
apresentou as suas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ)
do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que concedera provimento ao recurso
de apelação interposta pelo ora recorrido, já era conhecida a jurisprudência
deste Tribunal constante do referido Acórdão n.º 409/07, dado que este é de
11/07/2007 e foi publicado no Diário da República, II Série, de 28.08.2007,
jurisprudência esta no sentido da inconstitucionalidade da norma extraída da
conjugação dos artigos 41.º, n.º 4, do Decreto‑Lei n.º 184/89, de 2 de Junho,
44.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, e 13.º dos Estatutos
do Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária (ICERR,),
aprovados pelo Decreto‑Lei n.º 237/99, de 25 de Junho, sendo que a semelhante
questão de constitucionalidade já antes havia sido, também, colocada
relativamente a normas com aparentado conteúdo prescritivo e havia sido
resolvida do mesmo modo (cf. Ac. N.º 406/03, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
Por outro lado, e nos próprios termos da reclamante nas alegações de
recurso para o STJ (p. 4), o Tribunal da Relação de Coimbra decidira que “o
contrato de trabalho estabelecido entre a Autora, ora recorrente, e o Réu, ora
recorrido, é nulo, tendo em conta o disposto no art. 286.º do Código Civil, por
considerar insuficiente para a demonstração de adequado procedimento concursório
os factos provados, na medida em que este pressupõe a publicação da existência
das vagas, de modo a permitir a candidatura de todos os eventuais interessados,
complexo factual que não foi alegado (nem o contrário, decidindo o Tribunal da
Relação de Coimbra que tal complexo factual incumbia à Autora, por força do
disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil e que não estando demonstrado o
adequado procedimento concursório, a dúvida resolve-se contra o trabalhador”.
Perante estas circunstâncias não se afigura desrazoável ou
inadequado exigir-se da reclamante um prévio juízo de prognose quanto à
possibilidade de aplicação das normas que agora pretende questionar
constitucionalmente e de questionar a sua validade fundamental, na medida em que
solução ditada pela Relação, e que a recorrente controverteu no recurso para o
STJ, assentou quer na razão da necessidade de existência de um procedimento de
recrutamento e de selecção de candidatos, em concurso, quer no fundamento da
inexistência de prova da sua satisfação.
Deste modo, o bloco normativo integrado pelas normas que a
reclamante agora pretende questionar constitucionalmente não poderia deixar de
ser antevisto como correspondendo a uma das várias soluções plausíveis da
questão de direito, recortada em torno de tais elementos.
Como repetidamente tem dito o Tribunal Constitucional, as partes têm
um dever de prudência técnica na antevisão do direito plausível de ser aplicado,
decorrente do facto de o mandato forense ser exercido por modo profissional e
dos princípios da autonomia e da auto-responsabilidade processuais, não estando,
por outro lado, ao encararem ou equacionarem, na defesa das suas posições, a
aplicação das normas, elas dispensadas de entrar em linha de conta com o facto
de estas poderem ser entendidas segundo sentidos divergentes e de os considerar
na defesa das suas posições, aí prevenindo a possibilidade da (in)validade da
norma em face da lei fundamental.
Assim sendo, pode concluir-se que a recorrente não podia ter-se por dispensada
do ónus de suscitar as questões de constitucionalidade que agora coloca ao
Tribunal Constitucional.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir
a reclamação e condenar a reclamante nas custas, fixando a taxa de justiça em 20
Ucs.
Lisboa, 31 de Julho de 2008
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos