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Processo nº 592/08
Plenário
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
O pedido
O Representante da República para a Região Autónoma da Madeira veio requerer, ao
abrigo dos nºs 2 e 3 do artigo 278º da Constituição da República Portuguesa
[CRP] e dos artigos 57º e seguintes da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro
[LTC], que o Tribunal Constitucional, em processo de fiscalização preventiva,
aprecie a eventual inconstitucionalidade das normas contidas no artigo 2°, n.º
1, e no artigo 5º do Decreto que “Adapta à Região Autónoma da Madeira a Lei n.º
37/2007, de 14 de Agosto, que aprova normas para a protecção dos cidadãos da
exposição involuntária ao fumo do tabaco e medidas de redução da procura
relacionadas com a dependência e a cessação do seu consumo”, aprovado pela
Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, em 18 de Junho de 2008,
para vigorar como decreto legislativo regional.
O pedido de fiscalização preventiva deu entrada na secretaria do Tribunal
Constitucional, em 9 de Julho de 2008, e foi admitido na mesma data.
O objecto do pedido
As normas do decreto que “Adapta à Região Autónoma da Madeira a Lei n.º
37/2007(…)”, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira sub juditio
dispõem o seguinte:
“Artigo 2.º
Estabelecimentos de restauração ou de bebidas
1 – Nos estabelecimentos de restauração ou de bebidas, com área destinada ao
público inferior a cem metros quadrados, o proprietário pode optar por
estabelecer a permissão ou a proibição de fumar desde que sinalize tal opção com
a afixação do respectivo dístico.
(…)”
“Artigo 5°
Patrocínio de eventos
As proibições constantes dos n°s 1 e 2 do artigo 18° da Lei nº 37/2007, de 14 de
Agosto, poderão ser excepcionalmente levantadas aquando da realização de provas
desportivas e outros eventos de prestígio internacional e de relevante interesse
regional, como tal reconhecidas, em cada caso, por Resolução do Conselho do
Governo Regional.”
O decreto que “Adapta à Região Autónoma da Madeira a Lei n.º 37/2007(…)”, da
Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, foi aprovado ao abrigo da
alínea a) do n.º 1 do artigo 227º e do n.º 1 do artigo 232º da CRP e das alíneas
r) e t) do artigo 40º e do n.º 1 do artigo 41º do Estatuto
Político-Administrativo da Madeira.
Os fundamentos do pedido
O Representante da República pretende que o Tribunal Constitucional aprecie, a
título preventivo, a eventual inconstitucionalidade das “normas contidas no n.º
1 do artigo 2.º e no artigo 5.º do decreto em apreço, que por ultrapassarem o
âmbito da competência legislativa da Assembleia Legislativa, violando as normas
dos artigos 165.º, n.º 1, alínea b), 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1,
todas da Constituição, se encontram feridas do vício de inconstitucionalidade
orgânica e, porque desrespeitam ainda o artigo 13.º da Constituição, padecem
também de inconstitucionalidade material, sofrendo ainda a norma contida no n.º
1 do artigo 2.º de inconstitucionalidade formal, por violação da alínea d) do
n.º 5 do artigo 54.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º da Constituição”.
Resumidamente, o Representante da República na Região Autónoma da Madeira
considera que as normas consagradas no n.º 1 do artigo 2º e no artigo 5º do
decreto sob apreciação versam sobre matéria que constitui reserva relativa da
competência da Assembleia da República, na medida em que afectariam o direito à
protecção da saúde na sua dimensão negativa – ou seja, de proibição de condutas
externas que o coloquem em causa –, permitindo assim que aquela vertente do
direito em causa beneficiasse do regime aplicável aos direitos, liberdades e
garantias, por analogia (artigos 17º e 165º, n.º 1, alínea b), da CRP). Além
disso, o n.º 1 do artigo 2º do decreto em apreciação visaria ainda regular, de
um lado, o conflito entre o direito ao trabalho em condições de higiene,
segurança e saúde (artigo 59º, n.º 1, alínea c), da CRP), o direito dos
consumidores à protecção da saúde (artigo 60º, n.º 1, da CRP) e o direito a um
ambiente sadio (artigo 66º, n.º 1, da CRP) e, de outro lado, a liberdade geral
de actuação dos cidadãos fumadores e a liberdade de desenvolver uma actividade
comercial por parte dos proprietários dos estabelecimentos de restauração ou de
bebidas, permitindo ao proprietário destes estabelecimentos resolver o conflito
entre aqueles direitos ou estas liberdades. Por sua vez, o artigo 5.º do mesmo
decreto procuraria regular o conflito que se verifica, de um lado, entre o
direito à saúde (artigo 64º, n.º 1, da CRP) e o direito a um ambiente sadio
(artigo 66º, n.º 1, da CRP) e, de outro lado, a liberdade de iniciativa
económica privada e o direito de informar das empresas do sector do tabaco.
Enquanto os primeiros justificam a limitação ao estímulo ao consumo de produtos
nocivos para a saúde, já os segundos justificam o levantamento excepcional das
restrições à publicidade. Deste modo, a Assembleia Legislativa da Região
Autónoma da Madeira não poderia ter legislado ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do
artigo 227º, da CRP, só o podendo ter feito mediante eventual autorização
legislativa da Assembleia da República, em cumprimento da alínea b) do n.º 1 do
artigo 227º da CRP.
Para além disso, entende ainda o Representante da República que, mesmo que se
admitisse que a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira goza dos
poderes para legislar sobre tal matéria, sempre seria necessário que a normação
a adoptar não colocasse em causa a unidade legislativa do ordenamento jurídico
nacional, sem que tal tratamento diferenciado pudesse ser alicerçado em
especificidades regionais que justificassem tal opção, o que não acontece no
caso concreto. Tal acarretaria a inconstitucionalidade material dos artigos do
diploma colocados em crise, por violação do artigo 13º da CRP.
Por último, o Representante da República entende ainda que, considerando que o
n.º 1 do artigo 2º do decreto em apreço afecta as condições de higiene e saúde
no trabalho dos indivíduos que exercem a sua profissão em estabelecimentos de
restauração ou de bebida, seria imposto que o órgão autor da norma tivesse
assegurado a prévia audição das comissões de trabalhadores do sector e das
associações sindicais, conforme imposto pela alínea d) do n.º 5 do artigo 54º e
pela alínea a) do n.º 2 do artigo 56º, ambos da CRP. Tal preterição de audição
configuraria assim uma inconstitucionalidade formal.
A resposta do autor da norma
Notificado, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 54º da LTC, o
Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira veio
apresentar resposta, em 14 de Julho de 2008, esgrimindo os seguintes argumentos,
aqui resumidamente apresentados:
i) As normas constantes dos artigos 2º, n.º 1, e 5º do
decreto que “Adapta à Região Autónoma da Madeira a Lei nº 37/2007 (…)” não
padecem de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, na
medida em que o regime de autonomia regional permite a fixação de regimes
“especiais ou excepcionais”, neste caso, directamente fundados num interesse de
protecção do turismo que “não deixa de ser uma das mais evidentes razões de ser
da autonomia regional madeirense e cujas receitas são em grande medida
viabilizadas por contratos de publicidade” (§ 15 da resposta);
ii) As normas constantes dos artigos 2º, n.º 1, e 5º do
decreto que “Adapta à Região Autónoma da Madeira a Lei nº 37/2007 (…)” não
padecem de inconstitucionalidade material, por restrição desproporcionada do
direito à saúde, na medida em que visam resolver uma situação de colisão de
direitos fundamentais, salvaguardando o núcleo essencial do direito à saúde e de
outros direitos que contendem com aquele, designadamente, o direito fundamental
ao livre desenvolvimento da personalidade dos fumadores e o direito à livre
iniciativa privada (§§ 21 e 24 da resposta);
iii) As normas constantes dos artigos 2º, n.º 1, e 5º do
decreto que “Adapta à Região Autónoma da Madeira a Lei nº 37/2007 (…)” não
padecem de inconstitucionalidade orgânica, na medida em que os direitos
fundamentais à saúde, ao ambiente sadio e dos consumidores apenas são
configuráveis como direitos sociais, económicos e culturais, nem sequer podendo
ser qualificados como direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias, ao
contrário do que sucede com os direitos de livre iniciativa privada e de
propriedade privada (§§ 30, 31 e 34 da resposta);
iv) As normas constantes dos artigos 2º, n.º 1, e 5º do
decreto que “Adapta à Região Autónoma da Madeira a Lei nº 37/2007 (…)” não
padecem de inconstitucionalidade orgânica, na medida em que existe interesse
regional, decorrente da previsão da competência legislativa pela alínea t) do
artigo 40º do Estatuto, não se tratando ainda de matéria da competência
legislativa reservada de qualquer órgão de soberania (§§ 38 e 39 da resposta);
v) A norma constante do artigos 2º, n.º 1, do decreto
que “Adapta à Região Autónoma da Madeira a Lei nº 37/2007 (…)” não padece de
inconstitucionalidade formal, na medida em que a normação em causa não pode ser
qualificada como “legislação do trabalho”, não sendo assim constitucionalmente
exigida a prévia audição das comissões de trabalhadores e das associações
sindicais.
O memorando
Elaborado e discutido o memorando a que se refere o artigo 58.º, n.º 2, da LTC,
em que a Relatora ficou parcialmente vencida, cumpre agora decidir de acordo com
a orientação que o Tribunal fixou.
II – FUNDAMENTAÇÃO
6. O primeiro fundamento de inconstitucionalidade das normas extraídas dos
artigos 2º, nº 1, e 5º do decreto em apreço invocado pelo requerente é a
violação da reserva relativa de competência da Assembleia da República e,
consequentemente, a ausência de competência legislativa da Assembleia
Legislativa da Região Autónoma da Madeira [artigos 165º, nº 1, alínea b); 227º,
nº 1, alínea a), e 228º, nº 1, da Constituição] para legislar sobre a matéria
constante daquelas normas.
Tratando-se de duas normas que, embora contidas no mesmo diploma, poderão ser
susceptíveis de convocar diferentes parâmetros de aferição da
constitucionalidade, entende este Tribunal que se deve proceder à sua apreciação
em separado.
Antes, porém, importa esclarecer qual o contexto jurídico em que surgem a Lei nº
37/2007, de 14 de Agosto, e o mencionado decreto, com o intuito de permitir uma
melhor compreensão da questão jurídico-constitucional em apreço.
7. No ordenamento jurídico português, as bases gerais de prevenção e combate ao
tabagismo foram originariamente fixadas pela Lei n.º 22/82, de 17 de Agosto, que
viria a ser regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 226/83, de 27 de Maio. O referido
diploma legal foi sucessivamente alterado, designadamente, em virtude da
necessidade de transposição de directivas da União Europeia, até à sua revogação
por força do artigo 30º da Lei n.º 37/2007, de 14 de Agosto.
No plano internacional, o Estado português encontra-se vinculado à Convenção
Quadro da Organização Mundial de Saúde para o Controlo do Tabaco, adoptada em
Genebra em 21 de Maio de 2003, na sequência da aprovação da mesma pelo Decreto
n.º 25-A/2005, de 8 de Novembro, do Conselho de Ministros e da posterior
assinatura pelo Presidente da República. A referida Convenção Quadro já se
encontrava em vigor, para os demais Estados signatários, nos termos do seu
artigo 36º, n.º 1, desde 27 de Fevereiro de 2005, ou seja, 90 dias após o
depósito do 40º instrumento de vinculação internacional (conforme informação
oficial disponibilizada no sítio electrónico da Organização Mundial de Saúde,
acessível in http://www.who.int/fctc/en/index.html).
O preâmbulo do Decreto n.º 25-A/2005, de 8 de Novembro, diz o seguinte:
“Considerando que a propagação da epidemia do tabagismo constitui um problema
mundial com sérias consequências de saúde pública, sociais, económicas e
ambientais, causadas pelo aumento a nível mundial do consumo e da produção de
cigarros e outros produtos originários do tabaco, em particular nos países em
vias de desenvolvimento”. No preâmbulo da Convenção afirma-se: “Reconhecendo,
igualmente, que os cigarros e outros produtos que contêm tabaco são produtos
altamente sofisticados, que visam criar e manter a dependência, que muitos dos
compostos que contêm o fumo que produzem são farmacologicamente activos,
tóxicos, transgénicos e cancerígenos e que a dependência do tabaco é objecto de
classificação própria, como perturbação, dentro das grandes classificações
mundiais das doenças” e no seu artigo 8º, n.º 1, “As partes reconhecem estar
cientificamente provado, de forma inequívoca, que a exposição ao fumo do tabaco
provoca doenças, incapacidade e morte”.
No plano europeu, vigoram a Recomendação do Conselho da União Europeia, de 2 de
Dezembro de 2002, relativa à prevenção do fumo e às iniciativas para reforço do
controlo do tabaco, e a Directiva n.º 2003/33/CE, do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 26 de Maio de 2003, relativa à aproximação das disposições
legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros em matéria de
publicidade e de patrocínio dos produtos do tabaco [esta directiva foi
antecedida pelas Directivas n.º 89/622/CEE, do Conselho, de 13 de Novembro de
1989, n.º 90/239/CEE, do Conselho, de 17 de Maio de 1990, e n.º 2001/37/CE, do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de Junho de 2001, transpostas para o
ordenamento jurídico português, respectivamente, pelo Decreto-Lei n.º 200/91, de
29 de Maio, pela Portaria n.º 821/91, de 12 de Agosto, e pelo Decreto-Lei n.º
25/2003, de 4 de Fevereiro].
A Directiva n.º 2003/33/CE foi transposta para o ordenamento jurídico português
pelo Decreto-Lei n.º 14/2006, de 20 de Janeiro, o qual foi revogado pelo artigo
30º, alínea o), da Lei nº 37/2007, de 14 de Agosto.
Com vista a dar plena execução a estes compromissos internacionais, e, em
especial, à Convenção Quadro supra mencionada, o XVII Governo Constitucional
apresentou à Assembleia da República, em 5 de Março de 2007, a Proposta de Lei
n.º 119/X. Sobre a referida iniciativa legislativa foram ouvidos os órgãos de
governo próprio das regiões autónomas, que enviaram à Assembleia da República os
seguintes pareceres: i) Parecer da Comissão Permanente da Assembleia Legislativa
da Região Autónoma da Madeira (publicado in «Diário da Assembleia da República»,
II Série-A, n.º 59/X/2, de 9 de Março de 2007); ii) Parecer do Governo Regional
dos Açores (publicado in «Diário da Assembleia da República», II Série-A, n.º
61/X/2, de 30 de Março de 2007); iii) Parecer da Comissão de Assuntos Sociais da
Assembleia Legislativa dos Açores (publicado in «Diário da Assembleia da
República», II Série-A, n.º 65/X/2, de 12 de Abril de 2007); iv) Parecer da
Secretaria Regional dos Assuntos Sociais da Região Autónoma dos Açores
(publicado in «Diário da Assembleia da República», II Série-A, n.º 76/X/2, de 9
de Maio de 2007).
No que releva para estes autos, o Parecer do Governo Regional dos Açores já
questionava a relação inter-normativa entre lei de âmbito nacional e lei de
âmbito regional, sugerindo o seguinte:
“- Considerando que, pelo n.º 2 do artigo 228.º da Constituição, a legislação
nacional aplica-se à Região Autónoma dos Açores até haver normativo regional que
a afaste;
- Considerando que a matéria em causa não é reservada aos órgãos de soberania, a
não ser na definição das suas bases – conforme conjugação do artigo 112.º, n.º
4, e artigos 164.º, 165º, 227º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1, da
Constituição;
- Considerando que a proposta de redacção para o n.º 1 do artigo 29.º da
proposta de lei não deixa clara a existência das competências legislativas
concorrenciais das regiões autónomas nesta matéria;
Nestes termos, sugere-se a seguinte proposta de alteração:
“Artigo 29.º
Regiões autónomas
1 – Sem prejuízo das respectivas competências político-administrativas,
constitucional e estatutariamente consagradas, as Regiões Autónomas dos Açores e
da Madeira exercem as competências previstas na presente lei através dos
organismos definidos pelos órgãos de governo próprio.
2 – (…).”
A versão final da Lei n.º 37/2007, de 14 de Agosto, viria a manter intacta a
redacção originária do artigo 29º da Proposta de Lei n.º 119/X, do Governo da
República, que entrou em vigor nos seguintes termos:
“Artigo 29º
Regiões autónomas
1 – As Regiões Autónomas exercem as competências previstas na presente lei
através dos organismos definidos pelos órgãos de governo próprio.
(…)”
Em execução da referida norma, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos
Açores viria a aprovar o Decreto Legislativo Regional n.º 15/2008/A, de 11 de
Junho, que executa na Região Autónoma dos Açores o disposto na Convenção Quadro
da Organização Mundial de Saúde para o Controlo do Tabaco, ao abrigo da alínea
a) do n.º 1 do artigo 227º da Constituição da República e da alínea c) do n.º 1
do artigo 31º do respectivo Estatuto Político-Administrativo. Para além de criar
um sistema regional de informação e educação para a prevenção e controlo do
tabagismo, o referido decreto legislativo regional confere execução ao artigo
29º da Lei n.º 37/2007, através da fixação, no artigo 9º do referido diploma
regional, das entidades competentes para proceder à fiscalização do cumprimento
dos deveres legais resultantes da lei de âmbito nacional.
Por sua vez, no caso da Região Autónoma da Madeira, a respectiva Assembleia
Legislativa optou por aprovar o decreto que “Adapta à Região Autónoma da Madeira
a Lei n.º 37/2007(…)”, o qual, a pretexto de dar execução ao artigo 29º, nº 1,
da Lei, estabelece um “regime específico aplicável aos estabelecimentos de
restauração e similares, às embarcações de transporte marítimo de passageiros
inter-ilhas, aos casinos situados na Região Autónoma da Madeira, bem como ao
patrocínio de eventos”.
Esclarecido o contexto em que surgem as normas em apreciação, passemos então à
apreciação da inconstitucionalidade do artigo 2º, nº 1, do decreto que “Adapta à
Região Autónoma da Madeira a Lei n.º 37/2007(…)”.
A) A NORMA CONTIDA NO ARTIGO 2º, Nº 1, DO DECRETO
8. O artigo 2º, nº 1, do decreto em apreciação estabelece que “nos
estabelecimentos de restauração ou de bebidas, com área destinada ao público
inferior a cem metros quadrados, o proprietário pode optar por estabelecer a
permissão ou a proibição de fumar desde que sinalize tal opção com a afixação do
respectivo dístico”. Por sua vez, o artigo 5º, nº 6, da Lei nº 37/2007, de 14 de
Agosto, que aprova normas para a protecção de cidadãos da exposição involuntária
ao fumo do tabaco e medidas de redução da procura relacionadas com a dependência
e a cessação do seu consumo, determina que “nos locais mencionados na alínea q)
do nº 1 do artigo anterior (ou seja, nos “estabelecimentos de restauração ou de
bebidas, incluindo os que possuam salas ou espaços destinados a dança”), com
área destinada ao público inferior a 100 m2, o proprietário pode optar por
estabelecer a permissão de fumar desde que obedeça aos requisitos mencionados
nas alíneas a), b) e c) do nº 5”. Esses requisitos são os seguintes:
a) Estejam devidamente sinalizadas, com afixação de dísticos em
locais visíveis, nos termos do disposto no artigo 6º;
b) Sejam separadas fisicamente das restantes instalações, ou
disponham de dispositivos de ventilação, ou qualquer outro, desde que autónomo,
que evite que o fumo se espalhe às áreas contíguas;
c) Seja garantida a ventilação directa para o exterior através
de sistema de extracção de ar que proteja dos efeitos do fumo os trabalhadores e
os clientes não fumadores.
Daqui resulta que o âmbito de aplicação das duas normas coincide na parte em que
ambas se referem à proibição de fumar nos estabelecimentos de restauração ou de
bebidas, com área destinada ao público inferior a cem metros quadrados, mas
diverge relativamente aos requisitos exigidos para levantar essa proibição.
Enquanto o artigo 2º, nº 1, do decreto em apreciação faz depender esse
levantamento apenas da opção do proprietário, desde que o sinalize com um
dístico, o nº 6 do artigo 5º da Lei nº 37/2007, de 14 de Agosto, para além dessa
sinalização, impõe ainda a separação física das restantes instalações, ou a
existência de dispositivos de ventilação, ou de qualquer outro, desde que
autónomo, que evite que o fumo se espalhe às áreas contíguas e mesmo que seja
garantida a ventilação directa para o exterior através de sistema de extracção
de ar que proteja dos efeitos do fumo os trabalhadores e os clientes não
fumadores.
Sublinhe-se que, atendendo às normas constitucionais que o próprio decreto sub
juditio invoca como base jurídica para a sua aprovação – artigos 227º, nº 1,
alínea a) e 232º, nº 1, da CRP – tratou-se do exercício de uma competência
legislativa primária. Além disso, de um ponto de vista material, o artigo 2º, nº
1, do decreto sub juditio também não se limita a dar execução à norma do artigo
29º, n.º 1, da Lei n.º 37/2007, de 14 de Agosto, antes prevê um regime jurídico,
em alguns aspectos, distinto – e até contrário – às disposições legais em vigor,
sendo, por isso mesmo, inovador.
Trata-se, pois, do exercício de uma competência legislativa primária por parte
da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, pelo que para aferir da
conformidade ou desconformidade constitucional do artigo 2º, nº 1, do decreto em
apreciação, há que convocar as normas constitucionais em vigor relativas ao
exercício do poder legislativo por parte das regiões autónomas.
O direito constitucional regional sofreu profundas alterações na revisão
constitucional de 2004, que não têm sido ignoradas pela jurisprudência deste
Tribunal.
Com efeito, nos Acórdãos nºs 246/2005, de 10 de Maio, 258/2006, de 18 de Abril,
e 258/2007, de 17 de Abril, o Tribunal teve oportunidade de salientar que, entre
as alterações introduzidas na revisão constitucional de 2004, se devem contar a
simplificação dos parâmetros em que o poder legislativo regional se pode
exercer, o que tem como consequência o alargamento dos poderes legislativos das
regiões autónomas. Mais ainda, o Tribunal verificou o desaparecimento da
categoria de leis gerais da República, bem como da submissão dos diplomas
regionais aos seus princípios fundamentais (antigo n.º 5 do artigo 112.º da
Constituição), e ainda a eliminação da necessidade de existência de interesse
específico regional na matéria regulada pelas regiões, enquanto pressuposto ou
requisito do exercício da competência legislativa destas últimas (veja-se o n.º
4 do artigo 112.º da CRP, na sua actual redacção).
Além disso, desta jurisprudência do Tribunal decorre ainda que o exercício do
poder legislativo das regiões autónomas se continua a enquadrar pelos
fundamentos da autonomia das regiões consagrados no artigo 225.º da CRP e que
deve, em face do disposto no n.º 4 do artigo 112º, na alínea a) do n.º 1 do
artigo 227º e no artigo 228º, nº 1, da Constituição, respeitar cumulativamente
três requisitos: i) restringir-se ao âmbito regional; ii) estarem em causa as
matérias enunciadas no respectivo estatuto político‑administrativo; iii) as
matérias não estarem reservadas à competência dos órgãos de soberania.
No caso em apreço, não se levantam dúvidas quanto ao preenchimento do requisito
da enunciação das matérias em causa no Estatuto Político-Administrativo da
Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei n.° 13/91, de 5 de Junho, alterada
pela Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto, e pela Lei n.º 12/2000, de 21 de Junho, o
qual nas alíneas m), r), t) e oo) do artigo 40° determina:
“Artigo 40º
Matérias de interesse específico
Para efeitos de definição dos poderes legislativos ou de iniciativa legislativa
da Região, bem como dos motivos de consulta obrigatória pelos órgãos de
soberania, nos termos do n.º 2 do artigo 229.º da Constituição, constituem
matérias de interesse específico, designadamente:
(…)
m) Saúde e segurança social;
(…)
r) Espectáculos e divertimentos públicos;
(…)
t) Turismo e hotelaria;
(…)
oo) Defesa do ambiente e equilíbrio
ecológico;
(…)”
Já assim não é relativamente ao requisito do respeito da competência reservada
dos órgãos de soberania, o qual foi expressamente posto em crise pelo
requerente, pelo que é por ele que vamos começar.
9. Antes de mais, deve notar-se que quer a Lei nº 37/2007, de 14 de Agosto, quer
o decreto em apreço visam proteger a saúde das pessoas, em geral, e dos
trabalhadores, em particular.
Se dúvidas houvesse quanto a isso bastaria atentar no objecto da Lei n.º
37/2007, de 14 de Agosto, que é o estabelecimento de “normas tendentes à
prevenção do tabagismo (…) de modo a contribuir para a diminuição dos riscos ou
efeitos negativos que o uso do tabaco acarreta para a saúde dos indivíduos”
(artigo 1º). Procedendo o decreto em apreciação à adaptação à Região Autónoma da
Madeira desta Lei não pode deixar de comungar daquele objecto.
Como afirma Jorge Miranda, referindo-se à Lei nº 37/2007, “esta lei culmina,
pois, um já longo processo de defesa da saúde pública, desde logo por declarar
como princípio ou objectivo geral “estabelecer limitações ao consumo de tabaco
em recintos fechados destinados à utilização colectiva de forma a garantir a
protecção de exposição involuntária ao fumo do tabaco (artigo 3º)” (Jorge
Miranda, “Lei do tabaco e princípio da igualdade”, O Direito, 2008, p. 505).
Assim, a norma do artigo 2º, nº 1, do decreto, ao prever regras relativas à
permissão ou proibição de fumar em estabelecimentos de restauração ou de bebidas
com área inferior a 100 m2, também não pode deixar de visar proteger o bem
jurídico saúde das pessoas em geral e dos trabalhadores desses estabelecimentos,
em especial.
A Constituição refere-se à protecção da saúde em vários preceitos do Título III
relativo aos “Direitos e deveres económicos, sociais e culturais” da Parte I que
incide sobre “Direitos e deveres fundamentais” (vejam-se, por exemplo, o direito
à protecção da saúde e o dever de a defender e promover – artigo 64.º da CRP; o
direito dos consumidores à protecção da saúde - artigo 60.º, nº 1, da
Constituição; o direito dos trabalhadores à prestação do trabalho em condições
de higiene, segurança e saúde” – artigo 59.º, n.º 1, alínea c), da Lei
Fundamental).
A protecção do bem jurídico saúde está, pois, constitucionalmente consagrada a
vários títulos.
Porém, inserindo-se o direito à protecção da saúde no Título III da Parte I da
Constituição relativo aos direitos económicos, sociais e culturais, terá de se
averiguar se ele extravasa de uma dimensão positiva (de direito prestacional),
para, em certos casos, assumir uma dimensão negativa de proibição de condutas de
terceiros lesivas do bem jurídico saúde.
A doutrina tem vindo a realçar o desdobramento do direito fundamental à
protecção da saúde consagrado no artigo 64º da CRP numa vertente positiva –
direito a prestações do Estado – e numa vertente negativa – direito subjectivo a
que o Estado e terceiros se abstenham de prejudicar o bem jurídico “saúde” –
(neste sentido, ver Jorge Pereira da Silva, “Dever de Legislar e Protecção
Jurisdicional contra Omissões Legislativas”, 2003, Lisboa, p. 40; Donatella
Morana, “La Salute nella Costituzione Italiana – Profili Sistematici”, 2002,
Milano, em especial, pp. 36 a 61; Carla Amado Gomes, “Defesa da Saúde vs.
Liberdade Individual”, 1999, Lisboa, pp. 10 e 11; J. M. Sérvulo Correia,
“Introdução ao Direito da Saúde”, in «Direito da Saúde e Bioética», 1991,
Lisboa, p. 48).
Essa vertente negativa do direito à protecção da saúde está bem patente quando
este direito se interliga ou conexiona com outros princípios e direitos
fundamentais, tais como o princípio da dignidade da pessoa humana, o direito à
vida e o direito à integridade pessoal (neste sentido, Rui Medeiros, in Jorge
Miranda / Rui Medeiros “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, cit, pp. 653).
Também Gomes Canotilho e Vital Moreira traçam uma distinção entre a dimensão
negativa e a dimensão positiva do direito fundamental à saúde, em anotação ao
artigo 64º da Constituição:
“I. Tal como muitos outros «direitos económicos, sociais e
culturais», também o direito à protecção da saúde comporta duas vertentes: uma,
de natureza negativa, que consiste no direito a exigir do Estado (ou de
terceiros) que se abstenham de qualquer acto que prejudique a saúde; outra, de
natureza positiva, que significa o direito às medidas e prestações estaduais
visando a prevenção das doenças e o tratamento delas. No primeiro caso, está-se
no domínio dos direitos de defesa tradicionais, compartilhando das
correspondentes características e regime jurídico; no segundo caso, trata-se de
um direito social propriamente dito, revestindo a correspondente configuração
constitucional.” (in Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4ª ed.,
Volume I, Coimbra, 2007, p. 825).
Ora, tendo o Estado Português aderido à Convenção Quadro da Organização Mundial
de Saúde para o Controlo do Tabaco, adoptada em Genebra em 21 de Maio de 2003,
reconheceu, de forma inequívoca, estar cientificamente comprovado que a
exposição ao fumo do tabaco “provoca doenças, incapacidades e morte” (cfr.
artigo 8º da referida Convenção Quadro, atrás citado, o qual vigora na ordem
jurídica portuguesa, por força do n.º 2 do artigo 8º da CRP). Daqui decorre que
as partes contratantes daquela Convenção Quadro – incluindo Portugal –
reconhecem que o tabaco é causa directa de doenças, incapacidade e morte, pelo
que o bem jurídico protegido pelas normas que visam evitar os malefícios do
tabaco não pode deixar de ser, para além da saúde, também a integridade física
das pessoas.
Quer dizer, o bem jurídico protegido pela norma do artigo 2º, nº 1, do decreto
situa-se numa zona de sobreposição do direito à saúde com o direito à
integridade física.
Assim sendo, a dimensão negativa do direito à protecção da saúde será afectado
pela norma do artigo 2º, nº 1, do decreto em apreço, na parte em que se sobrepõe
ao direito à integridade física, uma vez que esta norma permite, em função de
uma opção a tomar pelo proprietário dos estabelecimentos de restauração e de
bebidas, levantar a proibição de fumar em recintos com determinadas dimensões
contida no artigo 5º da Lei nº 37/2007, permitindo que as pessoas (consumidores
e trabalhadores desses estabelecimentos) fiquem sujeitas à exposição ao fumo do
tabaco.
Sendo o direito à integridade moral e física das pessoas inviolável (artigo 25º
da CRP), vale não apenas contra o Estado mas contra qualquer pessoa. O direito à
integridade física e moral consiste, antes de mais, num direito a não ser
agredido ou ofendido, no corpo ou no espírito, por meios físicos ou morais
(Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa
Anotada”, cit., p. 454).
Admitindo a ligação da vertente negativa do direito à saúde à esfera normativa
de protecção do artigo 25º da CRP, Rui Medeiros afirma que o direito fundamental
à protecção da saúde exige do Estado-prestador a adopção de condutas activas no
sentido da sua promoção, da prevenção e do combate à doença (in Jorge Miranda /
Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, cit, pp. 653 e 654),.
Independentemente da posição que se tomar quanto à integração da dimensão
negativa do direito à protecção da saúde na reserva de competência da Assembleia
da República constante da alínea b) do nº 1 do artigo 165º CRP, o direito à
integridade física faz parte dos direitos, liberdades e garantias, pelo que se
integra, indubitavelmente, nessa reserva.
Nestes termos, ao legislar sobre a exposição dos indivíduos – consumidores em
geral e trabalhadores em particular – ao fumo do tabaco, a norma do artigo 2º,
nº 1, do decreto é susceptível de afectar a vertente negativa do direito à
protecção da saúde na parte em que ela se sobrepõe ao direito à integridade
física.
Em suma, a norma constante do n.º 1 do artigo 2º do Decreto que “Adapta à Região
Autónoma da Madeira a Lei n.º 37/2007(…)” porque versa sobre direitos,
liberdades e garantias está ferida de inconstitucionalidade, por violação dos
artigos 165º, n.º 1, alínea b), e 227º, n.º 1, alínea a), ambos da CRP.
Tendo chegado a esta conclusão, fica prejudicada a apreciação dos restantes
fundamentos de inconstitucionalidade da norma invocados pelo requerente.
B) AS NORMAS CONTIDAS NO ARTIGO 5º DO DECRETO
10. Sustenta ainda o requerente que é inconstitucional o regime
fixado pelo artigo 5º do decreto da Assembleia Legislativa, que – recorde-se –
dispõe do seguinte modo:
“As proibições constantes dos nºs 1 e 2 do artigo 18º da Lei nº 37/2007, de 14
de Agosto, poderão ser excepcionalmente levantadas aquando da realização de
provas desportivas e outros eventos de prestígio internacional e de relevante
interesse regional, como tal reconhecidas, em cada caso, por Resolução do
Conselho do Governo Regional.”
Os nºs 1 e 2 do artigo 18º da Lei nº 37/2007, para os quais remete a
disposição agora em juízo, têm por seu turno o seguinte teor:
“1 – É proibida qualquer forma de contributo público ou privado, nomeadamente
por parte de empresas cuja actividade seja o fabrico, a distribuição ou a venda
de produtos do tabaco, destinado a um evento, uma actividade, um indivíduo, uma
obra áudio-visual, um programa radiofónico ou televisivo, que vise, ou tenha por
efeito directo ou indirecto, a promoção de um produto de tabaco ou do seu
consumo.
2 – É proibido o patrocínio de eventos ou actividades por empresas do sector do
tabaco que envolvam ou se realizem em vários Estados membros ou que tenham
quaisquer efeitos transfronteiriços.”
Alega o requerente que a disposição contida no decreto da Assembleia
Legislativa, que permite que sejam «excepcionalmente levantadas» as «proibições
constantes» da Lei da Assembleia da República, ofende a Constituição por duas
ordens de razões.
Antes do mais, por razões orgânicas. Entende com efeito o Representante da
República que, ao estatuir como estatuiu, a Assembleia da região invadiu a
esfera de competência que é constitucionalmente reservada aos órgãos de
soberania – maxime à Assembleia da República – por a «matéria» em causa na
regulação incidir sobre direitos que, no seu entender, não podem deixar de ter a
estrutura própria dos direitos, liberdades e garantias. Assim sendo, conclui, a
competência para a regulação do seu modo de exercício pertenceria sempre ao
legislador nacional (parlamentar ou governamental, este último mediante
autorização) mas nunca ao legislador regional, por imposição das disposições
conjugadas dos artigos 165º, nº 1, alínea b), e 227º, nº 1, alíneas a) e b), da
Constituição.
Sustenta de seguida o requerente que a disposição sob juízo é ainda
inconstitucional por razões materiais: ao pretender estabelecer, para a região,
um regime relativo ao «patrocínio» de «eventos» por parte de empresas oriundas
do «sector do tabaco» diverso do que vigora, por força da Lei da República, para
o todo do território nacional, o legislador da região – segundo o requerente –
estaria a introduzir diferenças de tratamento entre as pessoas que, sendo
infundadas, lesariam a proibição do arbítrio e da discriminação contidas nos nºs
1 e 2 do artigo 13º da CRP.
Analisar-se-á separadamente cada uma destas «razões».
11. A alegação do requerente, segundo a qual seria antes do mais organicamente
inconstitucional a disciplina contida no artigo 5º do decreto, assenta, como já
se viu, num postulado essencial: a «matéria» aqui regulada tem incidência em
direitos fundamentais que não podem deixar de ter a estrutura própria dos
direitos, liberdades e garantias. Assim sendo, a competência para a sua
regulação estará reservada à Assembleia da República (artigo 165º, nº 1, alínea
b), da CRP) com exclusão da esfera competencial das Assembleias Legislativas das
regiões (artigos 227º, nº 1, alíneas a) e b), da CRP).
No pedido são enunciados os direitos sobre os quais, conforme se pretende, teria
incidência a disciplina contida no artigo 5º do decreto. Seriam eles antes do
mais o direito à protecção da saúde, consagrado no artigo 64º da CRP, e ainda o
«direito a um ambiente sadio dos cidadãos em geral» e dos «consumidores» em
particular, decorrentes dos artigos 66º e 60º da Constituição: sustenta-se com
efeito (ponto 21 do pedido) que as proibições a que se refere o artigo 5º do
decreto, relativas ao patrocínio de eventos por parte das empresas oriundas do
sector do tabaco, não pretenderiam mais do que resolver questões de «colisão»
entre estes mesmos direitos e outros, como a «liberdade de iniciativa económica
privada» das empresas do sector do tabaco e o seu «direito de informar»; e que,
avultando nesta «compatibilização entre os diversos valores constitucionais em
jogo» a dimensão negativa do direito à saúde e do direito ao ambiente (ponto 24
do pedido), estar-se-ia aqui perante limites ou restrições a direitos que
comungariam, nos termos do artigo 17º da Constituição, das características dos
direitos, liberdades e garantias (ibidem), pelo que tal dimensão restritiva só
poderia vir a ser decidida, ou por lei da Assembleia da República, ou por
decreto-lei autorizado.
Não se vê, porém, como sustentar semelhante alegação.
É certo que se não pode excluir que os direitos que, como aqueles que o
requerente agora invoca, vão insertos no Título III da Parte I da Constituição,
tenham uma dimensão negativa ou defensiva, que imponha antes de mais ao Estado
(e também aos privados), de forma análoga à dos direitos, liberdades e
garantias, obrigações de non facere. Como acabou de se ver quanto ao disposto no
artigo 2º, nº 1, do decreto, tal será sem dúvida verdade quanto ao direito à
protecção da saúde, consagrado no artigo 64º da CRP: a natureza do bem jurídico
aqui protegido é tal que, em contadas situações, tornar-se-á evidente a sua
contiguidade com bens protegidos por clássicos direitos de defesa. Nada permite
excluir o direito ao ambiente deste universo de direitos que, embora
sistematicamente insertos no domínio dos direitos a prestações, contenham em si
mesmos, na sua complexidade estrutural, dimensões activas, negativas ou
defensivas, decorrendo destas últimas – para o Estado e para os privados –
obrigações de não fazer, análogas às que correspondem à titularidade de
direitos, liberdades e garantias. Contudo, certo é também que, sendo tudo isto
verdade em tese geral, no caso, a «dimensão negativa» dos direitos não pode
verificar-se.
As proibições do patrocínio de eventos (por parte de empresas tabaqueiras),
sobre as quais incide a «excepção» prevista pelo artigo 5º do decreto, são
medidas que se inscrevem na prossecução de políticas públicas destinadas a
garantir a diminuição da procura e do consumo dos produtos de tabaco. A
justificação final da prossecução de tais políticas poderá seguramente
encontrar-se na necessidade de realização daqueles bens jurídicos que são
protegidos pelos direitos consagrados nos artigos 64º e 66º da Constituição; no
entanto, sendo elas medidas escolhidas pelo legislador para a realização desses
mesmos bens – e destinadas antes do mais a operar sobre o mercado, diminuindo a
procura e o consumo de produtos lesivos dos valores «saúde» e «ambiente» –,
seguro parece que a sua adopção corresponderá muito mais ao cumprimento das
prestações positivas, ou obrigações de «facere», a que estão obrigados os
poderes públicos para a realização dos direitos a prestações que são os direitos
sociais, do que a quaisquer formas de garantia do cumprimento de direitos de
defesa face a eventuais agressões externas.
Assim sendo, não estará agora em causa, na regulação sob juízo, qualquer
dimensão negativa de direitos fundamentais que, só por si, seja capaz de fundar
a analogia face a direitos, liberdades e garantias. Não procede assim a alegação
do requerente, segundo a qual seria organicamente inconstitucional o conteúdo
normativo do artigo 5º do decreto, por incidir ele sobre «matérias» reservadas à
competência dos órgãos de soberania, em virtude do disposto nos termos
conjugados dos artigos 165º, nº 1, alínea b), e 227º, nº 1, alíneas a) e b), da
Constituição.
12. Na verdade, as «matérias» sobre as quais incide a disciplina em juízo não
podem deixar de ser aquelas mesmas que são invocadas pelo decreto da Assembleia
Legislativa: as constantes das alíneas t) e r) do artigo 40º do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (respectivamente,
espectáculos e divertimentos públicos e turismo e hotelaria), bem como as
constantes das alíneas m) e oo) do mesmo artigo (saúde e defesa do ambiente).
Quer isto dizer que, para além de não estarem reservadas à competência dos
órgãos de soberania, tais «matérias» correspondem ao enunciado no Estatuto
Político-Administrativo da região, o que perfaz – como muito bem se sabe – um
outro requisito da competência legislativa regional, nos termos do artigo 227º,
nº 1, alínea a), da CRP. Finalmente, nenhuma razão substancial há para que se
considere que a disciplina contida no artigo 5º do decreto não tem (ou excede) o
«âmbito regional», ao contrário do que impõe também a norma constitucional atrás
referida.
Tal é, desde logo, verdade para a «primeira parte» dessa mesma disciplina, que
permite que sejam «excepcionalmente levantadas», nas condições aí previstas, «as
proibições constantes» do nº 1 do artigo 18º da Lei nº 37/2007.
Como já se viu, o nº 1 do artigo 18º proíbe «qualquer forma de contributo
público ou privado» a eventos ou expressões comunicacionais que visem, directa
ou indirectamente, «a promoção de um produto de tabaco ou do seu consumo». Está
aqui consagrada, portanto, uma proibição geral de actividades promotoras (dos
produtos e do seu consumo) que, conforme é afirmado pelo artigo 1º da Lei nº
37/2007, foi fixada pelo legislador nacional em «execução» do disposto na
Convenção Quadro da Organização Mundial de Saúde para o Controlo do Tabaco,
aprovada pelo Decreto nº 25-A/2005. Com efeito, e nos termos do artigo 13º da
Convenção, «[a]s partes reconhecem que a proibição global da publicidade, da
promoção e do patrocínio reduzirá o consumo dos produtos do tabaco». Foi pois,
em conformidade com este «reconhecimento», que o legislador nacional consagrou,
no nº 1 do artigo 18º, a proibição geral de actividades promotoras; e é
justamente uma tal «proibição geral» que o legislador regional pretende poder
«excepcionalmente levantar», nas condições previstas no artigo 5º do decreto da
Assembleia. Coloca-se, por isso, a questão de saber se o ‘facto’ de a norma
regional agora sob juízo incidir finalmente sobre «matérias» que recaem no
âmbito temático de uma Convenção Quadro, já «executada» em certo sentido pelo
legislador nacional, pode ou deve ter alguma repercussão no juízo relativo à sua
(in)constitucionalidade orgânica. Dado já se ter verificado que tais «matérias»
se não encontram reservadas à competência dos órgãos de soberania e são enquanto
tal enunciadas no Estatuto da região, o único problema restante – e atinente
ainda à interpretação das normas constitucionais definidoras da competência
legislativa regional – será o relativo à interpretação do requisito competencial
do «âmbito regional». Será que, pelo ‘facto’ atrás referido, se deve entender
que a norma agora em juízo excede tal «âmbito»?
Não pode deixar de ser negativa a resposta a esta questão, e isto por um duplo
fundamento.
A Constituição não impede, hoje, a diferença de regimes estabelecidos por lei da
República, por um lado, e lei regional, por outro, desde que tais regimes sejam
fixados pelos órgãos das regiões em conformidade com as normas constitucionais
que lhes conferem competências legislativas. Uma vez que a revisão
constitucional de 2004 eliminou o princípio da prevalência da lei geral da
República sobre as leis regionais – no âmbito de aplicação que ainda lhe restava
– nem outra conclusão se afigura possível. Assim sendo, não faz sentido
interpretar as normas constitucionais de competência de tal forma que, com a
interpretação, se «reedite» justamente aquilo que a revisão constitucional
pretendeu eliminar. Ora, tal ocorreria inevitavelmente, se se entendesse que,
pelos motivos atrás referidos, a normação regional teria excedido no caso o
requisito competencial do «âmbito regional».
Argumentar-se-á porventura, em contrário, que tal «âmbito» terá sido
«naturalmente» excedido, a partir do momento em que tenha a região legislado em
contradição, não com o sentido de uma lei da República, mas com o sentido de uma
obrigação internacional assumida pelo Estado português. Note-se, porém, que o
problema, in casu, se não coloca. O artigo 13º da Convenção Quadro – que, como
já se disse, foi a «fonte» do artigo 18º, nº 1, da Lei nº 37/2007 – não deixa de
conferir às partes signatárias (que reconhecem que a proibição global do
patrocínio reduzirá o consumo dos produtos do tabaco) uma ampla margem de
conformação no modo de cumprimento interno das obrigações assumidas por força do
«reconhecimento». Face a essa ampla margem de conformação, o modo de cumprimento
adoptado pelo legislador nacional através do artigo 18º, nº 1, da Lei nº 37/2007
não era o único (jusinternacionalmente) possível.
13. Da mesma ampla margem de conformação não goza o legislador regional quanto à
segunda parte da norma contida no artigo 5º do decreto. Aí se determina, com
efeito, a possibilidade de «levantamento excepcional» das proibições de
actividades promocionais [dos produtos do tabaco] fixadas no nº 2 do artigo 18º
da Lei nº 37/2007. O nº 2, ao proibir o «patrocínio de eventos (…) que envolvam
ou se realizem em vários Estados membros ou que tenham um efeito
transfronteiriço», não faz no entanto mais do que replicar, na ordem interna, a
proibição por seu turno fixada pelo artigo 5º da Directiva 2003/33/CE do
Parlamento Europeu e do Conselho, que determina, no nº 1:
“É proibido o patrocínio de eventos (…) que envolvam ou se realizem em vários
Estados-Membros, ou que tenham quaisquer outros efeitos transfronteiriços.”
É pois esta proibição absoluta – que exprime claramente uma obrigação
juscomunitária, assumida pelo Estado português – que o legislador regional
pretende poder ser «excepcionalmente levantada» em território da região, quanto
ao patrocínio de eventos que envolvam ou se realizem em vários Estados-Membros
ou tenham efeitos transfronteiriços. Sendo certo que, como já claramente se viu,
estão preenchidos in casu todos os restantes requisitos competenciais do
exercício do poder legislativo regional, o único problema que, nesta sede, resta
resolver é o de saber se, havendo contradição entre o teor da norma regional e o
teor de uma obrigação juscomunitária assumida pelo Estado português, tal deve
repercutir-se no juízo relativo à (in)constitucionalidade orgânica da referida
norma, de forma a que se entenda que, ao não cumprir a referida obrigação, o
legislador regional excede o âmbito necessariamente «regional» da sua
competência legislativa.
Mais uma vez, porém, a resposta é negativa.
É claro hoje – face à revisão constitucional de 2004 – que não é reservada ao
legislador nacional a competência para transpor actos jurídicos da União. Nos
termos do artigo 227º, nº 1, alínea x), são também competentes neste domínio os
poderes legislativos regionais, desde que as «matérias» dos actos da União a
transpor sejam ainda as mesmas sobre as quais as Assembleias Legislativas podem
legislar: é isto mesmo que decorre da leitura conjugada dos artigos 227º, nº 1,
alínea x), in fine, e 112º, nºs 4 e 8.
Ora, a existência de uma directiva comunitária que imponha obrigações de
actuação nacional num certo sentido não pode ser em si mesma um facto
justificativo da alteração das normas constitucionais relativas à distribuição
de competências entre Estado e regiões. E essas regras são agora claras. Posto
que o poder de transpor directivas não é um poder reservado do Estado, podendo
as regiões exercê-lo no mesmo âmbito de «matérias» em que podem,
constitucionalmente, legislar, se, nesse mesmo âmbito – e no exercício das suas
competências legislativas – a região emitir normas de conteúdo contrário ao
disposto numa directiva, tal não pode ser entendido como uma forma de excesso do
«âmbito regional» – ou como uma forma de inclusão num «âmbito nacional»
necessário – porque foi justamente essa inclusão que o legislador de revisão não
quis. Se o tivesse querido, teria reservado ao poder do Estado (ao legislador
nacional) o poder de transpor actos da União. Não o fez.
É certo que, com a atribuição aos poderes regionais do poder de transposição, se
abre potencialmente um conflito entre dois princípios constitucionais: o
princípio da pluralidade dos poderes (regionais e estaduais) de transposição de
directivas, por um lado, e o princípio contido no nº 5 do artigo 7º. Tal
conflito, porém, não pode ser resolvido através da alteração do sistema
constitucional de repartição de competências entre órgãos de soberania e órgãos
das regiões.
Note-se, aliás, que tal conflito não põe em causa a unidade da ordem jurídica
nacional intencionada pelos actos comunitários em questão, uma vez que os
diplomas nacionais ou regionais que os contrariem não podem ser aplicados na
ordem interna portuguesa, por força disposto no artigo 8º, nº 4, da Constituição
(também ele resultante da revisão constitucional de 2004).
É certo que tal não afasta de todo o risco de violação das obrigações
internacionais ou comunitárias do Estado português, no caso por acto normativo
das regiões autónomas. Mas tal risco, que um entendimento adequado do princípio
da cooperação entre o Estado e as Regiões subjacente ao texto constitucional
poderá minimizar, só poderá ser resolvido em definitivo por outras formas que
apenas ao legislador constituinte cabe escolher.
14. Relativamente à alegação do requerente de que a subsistência de soluções
normativas diferentes, a este propósito, na ordem jurídica nacional, violaria o
princípio da igualdade (artigo 13º da Constituição), basta referir que o mesmo
princípio não actua como parâmetro de soluções normativas consagradas em
diferentes sistemas legislativos, de base regional e de base nacional.
Na verdade, ele vincula o legislador regional no exercício das suas competências
próprias, mas não o subordina, no exercício dessas competências, às soluções
encontradas no plano nacional. Diferente entendimento corresponderia, aliás, à
negação da própria ideia de autonomia constitucionalmente garantida.
15. Por tudo o exposto, deve considerar-se que o artigo 5º do decreto em
apreciação não se encontra ferido de desconformidade constitucional.
III – DECISÃO
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma
constante do n.º 1 do artigo 2º do Decreto que “Adapta à Região Autónoma da
Madeira a Lei n.º 37/2007, de 14 de Agosto, que aprova normas para a protecção
dos cidadãos da exposição involuntária ao fumo do tabaco e medidas de redução da
procura relacionadas com a dependência e a cessação do seu consumo”, aprovado
pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, em 18 de Junho de
2008, para vigorar como decreto legislativo regional, por violação dos artigos
165º, n.º 1, alínea b), e 227º, n.º 1, alínea a), ambos da Constituição da
República Portuguesa;
b) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade da norma
constante do artigo 5º do mesmo decreto.
Lisboa, 4 de Agosto de 2008
Ana Maria Guerra Martins (vencida quanto à alínea b), conforma declaração
junta).
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, quanto à alínea b), em parte, conforme
declaração junta).
Mário José de Araújo Torres (vencido quanto à alínea b) da decisão, pelos
fundamentos constantes da declaração de voto junta).
Benjamim Rodrigues (vencido quanto à alínea a) da decisão conforme declaração
anexa).
Carlos Fernandes Cadilha (com declaração de voto quanto à decisão da alínea a) e
com voto de vencido quanto à decisão da alínea b)).
Maria Lúcia Amaral (vencida quanto à alínea a) da decisão, conforme declaração
de voto junta).
Maria João Antunes (vencida quanto à alínea a) da decisão, conforme declaração
de voto junta).
Carlos Pamplona de Oliveira (vencido quanto à alínea a) da decisão, conforme
declaração em anexo).
Gil Galvão (vencido, em parte, quanto à alínea b) da decisão, conforme
declaração junta).
Vítor Gomes (vencido quanto à alínea a) da decisão, conforme declaração anexa).
José Borges Soeiro (vencido, quanto à alínea b), face à declaração de voto que
junto).
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei pela inconstitucionalidade da norma do artigo 5º do decreto em apreço, no
essencial, pelas razões apresentadas no memorando, que elaborei como relatora, e
que aqui retomo.
A Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira actuou no exercício de
uma competência legislativa primária, uma vez que o preceito admite que as
proibições das normas constantes do artigo 18º, nºs 1 e 2, da Lei nº 37/2007, de
14 de Agosto, poderão ser excepcionalmente levantadas aquando da realização de
provas desportivas e outros eventos de prestígio internacional e de relevante
interesse regional, como tal reconhecidas, em cada caso, por Resolução do
Conselho do Governo Regional. Ou seja, trata-se de um preceito inovador e
contrário à lei da Assembleia da República, pelo que foi adoptado no exercício
de uma competência legislativa primária pela Assembleia Legislativa da Região
Autónoma da Madeira. Assim sendo, há que averiguar se os requisitos
constitucionalmente exigidos nos artigos 112º, nº 4, 227º, n.º 1, alínea a) e
228º, nº 1, identificados no nº 8 do acórdão, que se dão aqui por reproduzidos,
se podem considerar preenchidos.
Em meu entender, o requisito do “âmbito regional” não está preenchido.
A norma do artigo 18º, nº 1, da Lei nº 37/2007, tal como se diz no acórdão, foi
adoptada em execução da norma do artigo 13º da Convenção Quadro, mas, em meu
entender, o preceito não confere ao Estado uma tão ampla margem de conformação
que lhe permita depois de ter adoptado uma legislação nacional no sentido da
proibição do patrocínio, vir posteriormente adoptar excepções a essa proibição.
Basta ver que o nº 2 do artigo 13º da Convenção Quadro estabelece, sem margem
para dúvidas, que “no respeito pela sua constituição e pelos princípios
constitucionais, cada Parte determinará a proibição global de toda a
publicidade, promoção e patrocínio do tabaco” e que os números subsequentes do
preceito se destinam aos Estados que tenham especiais problemas na aplicação da
proibição, não a Estados que, tendo adoptado a proibição, revelaram estar em
condições de cumprir integralmente a Convenção Quadro, e mais tarde pretendem
diminuir o âmbito de protecção das normas que adoptaram.
Por seu turno, a norma do artigo 18º, nº 2, da Lei nº 37/2007 reproduz o artigo
5º, nº 1, da Directiva nº 2003/33/CE do Parlamento Europeu e do Conselho,
mencionada no acórdão, a qual não deixa qualquer margem de manobra ao Estado.
Assim, a norma do artigo 5º do decreto em apreço contraria frontalmente as
normas do artigo 18º, nºs 1 e 2, da Lei nº 37/2007, de 14 de Agosto, o que, após
a revisão constitucional de 2004, não seria, por si só, desconforme com a
Constituição, dado que, como já se referiu no texto do acórdão, com aquela
revisão desapareceu do artigo 112º, nº 5, da CRP o requisito do “respeito pelos
princípios fundamentais das leis gerais da República”. Ou seja, deixou de se
exigir ao poder legislativo regional a conformação com as “leis gerais da
República”.
Porém, como este Tribunal disse no Acórdão nº 258/2007, de 17 de Abril, o
requisito “âmbito regional” não pode ser lido apenas no sentido de âmbito
meramente territorial, uma vez que há matérias que reclamam um tratamento
unitário e nacional, as quais se encontram subtraídas ao poder legislativo das
Regiões Autónomas.
Além disso, o requisito “âmbito regional” pressupõe a existência de espaço
normativo em aberto na ordem jurídica, no qual seja possível a actuação do poder
legislativo regional. Ora, esse espaço pode não existir, por ser exigível o
tratamento unitário da matéria.
No caso sub judice, o Estado Português que se vinculou internacionalmente a
respeitar tanto a Convenção Quadro (artigo 8º, nº 2, da CRP) como as directivas
comunitárias (artigo 8º, nºs 3 e 4, da CRP) executou as suas obrigações
internacionais e comunitárias, preenchendo todo o espaço normativo deixado em
aberto, através da Lei nº 37/2007, pelo que o poder legislativo regional poderá
vir a não ter objecto.
Se em relação à Convenção Quadro ainda se poderia conceder – embora não se
aceite – à tese da maioria (isto se se admitisse a tese da ampla liberdade de
conformação), já no que toca à parte do artigo 5º do decreto que contraria o
artigo 18º, nº 2, da Lei nº 37/2007, uma vez que este reproduz na ordem jurídica
interna as normas de uma directiva da Comunidade Europeia, essa posição se
afigura dificilmente defensável.
Com efeito, não há dúvida que a norma da directiva não deixa qualquer margem de
manobra aos Estados-Membros e também é ponto assente que ela vincula o Estado
Português, nos termos do artigo 8º, n.º 4 da CRP (também ele introduzido na
revisão constitucional de 2004). Se assim é, o Estado Português tem
necessariamente de introduzir – e introduziu – norma (ou normas) com aquele
conteúdo, não podendo escolher entre vários conteúdos aquele que lhe parecer
mais razoável, adequado ou oportuno.
Assim sendo, a norma (ou normas) que se exige do Estado português, tendo em
conta os compromissos internacionais que assumiu, tem (ou têm) um conteúdo
totalmente vinculado. Ora, se assim é, o tratamento da matéria não pode deixar
de ser unitário e nacional.
Deve notar-se que, com esta afirmação não se pretende, de modo algum, pôr em
causa a competência das regiões autónomas para a transposição das directivas
comunitárias. Pelo contrário. Ela decorre expressamente do artigo 227º, nº 1,
x), que remete para o artigo 112º, n.ºs 4 e 8, da CRP. É certo que a
Constituição admite a transposição de directivas por parte das regiões
autónomas. Aliás, do ponto de vista constitucional, em regra, nada obsta a que
essa transposição se efectue, em moldes diferentes, nas regiões autónomas e no
Continente, desde que se respeitem os requisitos impostos constitucionalmente ao
poder legislativo das regiões. Mas é precisamente um desses requisitos que aqui
não se verifica – o “âmbito regional”.
O que está aqui em causa é, portanto, a questão de apreciar se respeita o
requisito do “âmbito regional” uma norma da Assembleia Legislativa da Região
Autónoma que vai incidir sobre matéria em relação à qual a Região Autónoma não
tem qualquer espaço de actuação por esta exigir necessariamente do Estado
Português um só e único tratamento – a reprodução das normas da directiva.
Estando o Estado Português vinculado internacionalmente, quer quanto ao
resultado, quer quanto aos meios, essa reprodução naturalmente terá de ser
unitária.
Em suma, o artigo 5º do decreto em apreço não respeita o requisito do “âmbito
regional”, quer na parte em que excepciona a aplicação do artigo 18º, nº 1, da
Lei nº 37/2007, quer quando contraria o artigo 18º, nº 2, da mesma Lei, pelo
que, no meu entender, viola o disposto no artigo 227º, nº 1, alínea a) e no
artigo 112º, nº 4, da CRP.
Tendo chegado a esta conclusão, fica prejudicada a apreciação dos restantes
fundamentos de inconstitucionalidade da norma invocados pelo requerente e
apreciados no acórdão.
Ana Maria Guerra Martins
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, em parte, a alínea b) da decisão, pois pronunciei-me no sentido
da inconstitucionalidade da norma do artigo 5.º do Decreto Legislativo em
apreciação, no segmento em que admite que poderá ser excepcionalmente levantada
a proibição constante do artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 37/2007, de 14 de
Agosto, aquando da realização das provas desportivas e de outros eventos aí
previstos.
Tomei essa posição porque entendo que, ao assim legislar, o legislador regional
ultrapassou o âmbito regional da sua competência.
Ponto de partida desta conclusão é o facto de a norma afastada – o n.º 2 do
artigo 18.º da Lei n.º 37/2007, de 14 de Agosto − acolher a proibição constante
do artigo 5.º, n.º 1, da directiva 2003/33/CE do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 26 de Maio de 2003 (J.O. 20.6.2003, L 152/16), formulada nos
seguintes termos:
«É proibido o patrocínio de eventos ou actividades que envolvam ou se realizem
em vários Estados-Membros, ou que tenham quaisquer outros efeitos
transfronteiriços».
Como se vê, estamos perante uma proibição absoluta, expressa em termos rígidos,
que não admitem variáveis ou atenuações de sentido. O que há a transpor para a
ordem jurídica nacional não é um standard mínimo, um objectivo programático
finalisticamente alcançável por uma pluralidade alternativa de meios a
seleccionar pelos vários legisladores dos Estados membros, mas um conteúdo
normativo predeterminado e de sentido único, a vigorar unitariamente em todo o
território da União Europeia.
Por isso mesmo, o n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 37/2007 (como já antes o
Decreto-Lei n.º 14/2006, de 20 de Janeiro), limitou-se a praticamente reproduzir
o disposto na directiva.
Ora, o preceituado no artigo 5.º do decreto legislativo regional coloca-se
claramente no campo de previsão da norma comunitária. Ao referir as “provas
desportivas e outros eventos de prestígio internacional” como uma das categorias
de acontecimentos em relação aos quais a proibição de patrocínio pode ser
levantada, a norma sindicada abrange também (ou sobretudo) o tipo de actividades
em que o patrocínio é absolutamente proibido, pela determinação comunitária.
Mesmo pondo de lado a confrontação eventualmente conflituante desta eficácia
“externa”, para fora do território da Região, com o elemento denotativo
puramente geográfico do conceito de “âmbito regional”, é meu juízo que este
parâmetro aferidor da competência regional é, nestas circunstâncias, violado,
pelas razões que passo a expor.
Não se duvida que inexiste (a partir da revisão de 2004) uma reserva do
legislador nacional para a transposição de directivas. Mas a competência do
legislador regional, nesta matéria, deve ser exercitada, como expressamente
relembra a alínea x) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP, “nos termos do artigo
112.º”, cujo n.º 4 enquadra o âmbito dessa competência.
Ora, não é constitucionalmente admissível que, em desrespeito do princípio da
cooperação (artigo 229.º), o legislador regional faça uso dessa competência em
termos de, quebrando o princípio da unidade do Estado, acarretar o
incumprimento, pelo Estado português, de um obrigação internacionalmente
assumida e já cumprida. Não cabe nos poderes legislativos das regiões autónomas
estabelecer desvios regulativos à ordem jurídica nacional, quando tal (como, in
casu, acontece) importa o rompimento, pelo Estado, de um compromisso resultante
da sua integração no espaço jurídico-político de uma entidade supra-nacional.
Sendo o teor do artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 37/2007 o único
(jusinternacionalmente) possível – o que não acontece, note-se, com o do n.º 1,
e daí o juízo de constitucionalidade, a que dei o meu acordo, da norma
sindicada, na parte em que dele se afasta −, sem qualquer espaço de livre
conformação, ele requer necessariamente uma aplicação uniforme em todo o âmbito
do Estado.
Esta ideia reguladora, a que convictamente adiro, pode acolher-se, sem esforço,
entre as implicações do conceito de “âmbito regional”. Atribuo a este conceito
uma eficácia puramente negativa, não o conotando com a presença necessária
(sujeita a valoração casuística) de um factor que dê prevalência à afirmação do
poder legislativo regional sobre o nacional (pelo que à posição aqui expressa de
modo algum poderá ser apontado criticamente o “reeditar” de critérios eliminados
pela revisão de 2004). O princípio, hoje vigente, é o do concurso de
competências, em áreas não especialmente reservadas aos órgãos de soberania.
Mas esse princípio não pode levar à admissibilidade de uma ordenação regional
desviante de uma proibição vinculante de toda a ordem jurídica nacional,
“forçando” o Estado português ao incumprimento da obrigação de consagrar essa
proibição em todo o território e em toda a jurisdição nacional. Reconhecer a
competência legislativa regional é reconhecer o poder das assembleias
legislativas de, em resultado da livre apreciação do que mais convém à
respectiva região, emanarem legislação não coincidente com a aplicável no
restante território nacional.
Ora, no caso em apreço, pelas razões apontadas, esse poder não existe. Ao
admitir o levantamento, em certas circunstâncias, da proibição estabelecida no
n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 37/2007, a Assembleia Legislativa da Região
Autónoma da Madeira está a exceder o âmbito regional da sua competência
legislativa porque está a consagrar legislativamente uma solução que contraria o
conteúdo necessário, em todo o espaço jurídico nacional, do direito vigente na
matéria. Nessa medida, na medida em que projecta efeitos para fora da esfera de
domínio e de jurisdição dos poderes institucionais da Região, afectando a
posição do Estado, o artigo 5.º em apreciação coloca-se fora do “âmbito
regional” de competência legislativa do parlamento madeirense.
Conclusão que não tem a ver directamente com a relação entre a Região e as
instâncias comunitárias, mas com a articulação de poderes legislativos entre ela
e o Estado. Só no plano endosistémico da ordem jurídica portuguesa o “âmbito
regional” opera como “válvula de segurança” da repartição de competências
legislativas, só nesse plano fazendo sentido, evidentemente, a decisão de
inconstitucionalidade que defendo.
Joaquim de Sousa Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei no sentido da pronúncia pela inconstitucionalidade
da norma do artigo 5.º do Decreto em apreciação, por violação da alínea a) do
n.º 1 do artigo 227.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Continuo firmemente convicto da correcção do critério
adoptado no Acórdão n.º 258/2007 para definição do conceito de “âmbito
regional”, como requisito positivo da competência legislativa regional.
Trata‑se, na verdade, de um conceito que não se esgota numa dimensão
territorial, inerente à natureza de “pessoas colectivas territoriais” que o
corpo do n.º 1 do artigo 227.º da CRP associa às Regiões Autónomas, mas reclama
também uma dimensão material, que atenda aos fundamentos (as características
geográficas, económicas, sociais e culturais dos arquipélagos dos Açores e da
Madeira e as históricas aspirações autonomistas das populações insulares), fins
(a participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico‑social, a
promoção e defesa dos interesses regionais e o reforço da unidade nacional e dos
laços de solidariedade entre todos os portugueses) e limites (a não afectação da
integridade da soberania do Estado e o respeito do quadro constitucional) que o
artigo 225.º da CRP estabelece para a autonomia regional. Este entendimento – a
que permaneço fiel – implica que a intervenção legislativa regional só é
legítima se suportada pelos referidos fundamentos, fins e limites da autonomia.
Ora, o precedente acórdão, na parte relativa ao artigo
5.º do Decreto sindicado, não aponta uma única razão (positiva) no sentido de se
dever dar por verificado o respeito do aludido requisito – requisito positivo –
da competência legislativa regional, tudo se passando como se, para aceitar esta
competência, bastasse a conjunção do requisito positivo de estar em causa
matéria enunciada no respectivo Estatuto Político‑Administrativo e do requisito
negativo de não se tratar de matéria reservada aos órgãos de soberania.
Acresce que não posso acompanhar a argumentação
desenvolvida nessa parte do acórdão no esforço de demonstrar a não
incompatibilidade do reconhecimento do “âmbito regional” a uma intervenção
legislativa regional que incida sobre matéria em que, ou com alguma liberdade
de conformação (na parte em que está em causa a permissão de desrespeitar o n.º
1 do artigo 18.º da Lei n.º 37/2007, de 14 de Agosto, que “executa” o artigo
13.º da Convenção Quadro da Organização Mundial de Saúde para o Controlo do
Tabaco, adoptada em Genebra em 21 de Maio de 2003), ou em termos estritamente
vinculados (na parte em que está em causa a permissão de desrespeitar o n.º 2 do
dito artigo 18.º, que “replica” o artigo 5.º da Directiva 2003/33/CE, do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Maio de 2003), o Estado Português
estava internacional ou comunitariamente obrigado a legislar num determinado
sentido ou com um estrito conteúdo, respectivamente.
Com efeito, é desde logo questionável o respeito do
confinamento territorial regional da parte do artigo 5.º do Decreto que permite
a violação do n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 37/2007, norma esta que tem
justamente por pressuposto necessário estarem em causa “eventos ou actividades
(…) que envolvam ou se realizem em vários Estados membros ou que tenham
quaisquer efeitos transfronteiriços” [Sobre a (in)admissibilidade de
intervenções legislativas regionais que, tendo por origem uma realidade situada
no território da Região (no caso, a extinção de uma empresa pública regional),
têm, no entanto, efeitos extra‑regionais (no caso, a extinção da instância das
acções contra essa empresa pendentes em quaisquer tribunais, independentemente
da sua localização), cf. João Lizardo (“Existe eficácia extraterritorial para a
legislação oriunda das Regiões Autónomas”, Revista do Ministério Público, ano
24.º, n.º 93, Janeiro‑Março 2003, pp. 121‑128)].
Depois – e determinantemente – tenho por seguro que a
dimensão material do requisito do “âmbito regional” não consente a intervenção
do legislador regional em matérias que, por força de compromissos externos,
jusinternacionais ou juscomunitários, assumidos pelo Estado Português, reclamam
uma intervenção unitária do legislador nacional. Nem se diga – como o faz a
parte do precedente acórdão de que me afasto – que se o legislador da revisão
constitucional tivesse querido obstar à intervenção do legislador regional em
situações como a presente o teria dito e não o fez. É que, salvo o devido
respeito por entendimento contrário, o legislador constitucional quis isso e
disse‑o, quando, por remissão do n.º 8 para o n.º 4 do artigo 112.º, convocado
pela alínea x) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP, reiterou a exigência de os
decretos legislativos regionais que transponham actos jurídicos da União
Europeia se circunscreverem ao “âmbito regional”, quer territorial, quer
materialmente, o que, no presente caso, pelas razões expostas, não ocorre, em
nenhuma das dimensões.
Mário José de Araújo Torres
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 – Votei vencido quanto ao julgamento de inconstitucionalidade
constante da alínea a) da decisão.
Entendo, na verdade, que a matéria regulada no art. 2.º, n.º 1, do
Decreto legislativo regional, aqui em causa, não é abrangida pela reserva de
competência da Assembleia da República [art.º 165.º, n.º 1, alínea b)], mas
cabe, antes, na competência concorrente das assembleias legislativas das regiões
autónomas [art.º 227.º, n.º 1, alínea a)], da Assembleia da República [art.
161.º, alínea c)] e do Governo nacional [art.º 198.º, n.º 1, alínea a)], todos
da CRP.
Não contesto que o direito à protecção da saúde possa assumir, em
algumas “contadas” situações, uma dimensão negativa própria dos direitos
fundamentais clássicos, como quando aconteça uma situação de sobreposição
imediata dos valores que protege com o quadro de valores do direito fundamental
à integridade física (art.º 25.º da CRP).
Tal só acontecerá, porém, quando esse direito, por si só, ou
conjugadamente com o direito de inviolabilidade da integridade física, conceda à
pessoa o poder ou a faculdade de exigir do Estado ou de terceiros que se
abstenham de qualquer acto que prejudique a sua saúde ou viole a sua integridade
física.
Serão situações em que o direito tem por função primária a defesa da
autonomia pessoal no âmbito material da protecção da saúde ou de defesa da sua
integridade física e que correspondam a postulações directas do princípio da
dignidade humana.
Estaremos, então, perante um “conteúdo nuclear, ao qual se há-de
reconhecer uma especial força jurídica, pela sua referência imediata à ideia da
dignidade humana, fundamento de todo o catálogo dos direitos fundamentais” (José
Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de
1976, 2.ª edição, p. 370), núcleo esse que comunga, pela sua natureza, do regime
constitucionalmente estabelecido para os direitos fundamentais e para o qual
vale o princípio da reserva parlamentar.
2 – Não é esse, porém, o caso. O direito constitucional à protecção
da saúde, que a norma em causa (art.º 2.º, n.º 1, do Decreto) intenciona
proteger, surge aqui, antes, na veste de um direito social propriamente dito,
concretizando-se num puro direito a prestações fácticas e jurídicas, adequadas
para a protecção da saúde, num “direito a acções do Estado” a tomar no quadro da
prossecução das políticas adequadas para proteger a saúde.
Dispondo que “nos estabelecimentos de restauração e de bebidas, com
área destinada ao público inferior a cem metros quadrados, o proprietário pode
optar por estabelecer a permissão ou a proibição de fumar desde que sinalize tal
opção com a afixação do respectivo dístico” o preceito não está a (re)afirmar o
dever do Estado ou dos privados de se absterem de ofender o direito de protecção
de saúde das pessoas ou a sua integridade física (como se fora uma interpretação
ou concretização de um direito fundamental), mas a prover, na prossecução de
políticas tidas por adequadas, com certos bens (jurídicos e materiais) para a
protecção da saúde, traduzindo-se, no caso, essa provisão de bens numa previsão
normativa de uma proibição de fumar nos estabelecimentos de restauração e de
bebidas, com área destinada ao público inferior a cem metros quadrados quando o
respectivo proprietário sinalize essa proibição com a afixação do respectivo
dístico em local bem visível (prestação material), a partir do exterior do
estabelecimento (cf. n.º 2 do art.º 2.º do Decreto legislativo regional).
A circunstância de a proibição de fumar, nos estabelecimentos de
restauração e de bebidas, com área destinada ao público inferior a cem metros
quadrados, estar sujeita a condicionalismos diferentes na Região Autónoma da
Madeira relativamente ao que se passa no território continental, porquanto,
aqui, a permissão de fumar está ainda dependente, a mais, da instalação de
outros instrumentos materiais (separação física das restantes instalações ou
disposição de dispositivo de ventilação, ou de qualquer outro, desde que
autónomo, que evite que o fumo se espalhe às áreas contíguas e seja garantida a
ventilação directa para o exterior através de sistema de extracção de ar que
proteja dos efeitos do fumo os trabalhadores e clientes não fumadores – n.ºs 6 e
5, alíneas b) e c), do art.º 5.º da Lei n.º 37/2007), só quer dizer que o
legislador competente realizou uma ponderação diferente, no domínio da sua
discricionariedade normativo-constitutiva, sobre as políticas adequadas a levar
a cabo, no plano material, para se desonerar do dever constitucional de
protecção da saúde.
Não se descortina como é que uma diferente opção política sobre o
grau possível de realização material do direito social de protecção da saúde,
que subjaz às diferenças de regimes (diferenças essas que radicam na
circunstância de o legislador regional pretender remeter a opção de não fumar,
mais para a liberdade geral e decisão dos cidadãos de não entrarem nos
estabelecimentos onde seja permitido fumar e para a liberdade de opção do
proprietário do estabelecimento quanto à permissão ou proibição de fumar nos
estabelecimentos de restauração e bebidas, do que para a conformação das
instalações materiais nos termos previstos na Lei n.º 37/2007), possa ser vista
como consubstanciando um dever de abstenção do Estado ou dos privados necessária
para que não saia directamente ofendido o direito constitucional de protecção da
saúde e da inviolabilidade da integridade física.
A nosso ver, a tese que fez maioria converteu, infundadamente, uma
norma ordinária de provisão de bens, funcionalizada para a realização do
direito fundamental de protecção à saúde, numa norma atentatória – por não se
ter abstido do facere nela externado – do direito constitucional de protecção à
saúde (art.º 64.º, n.º 1, da CRP) e do direito fundamental à integridade
pessoal (art.º 25.º da CRP) sem a qual o âmbito de protecção constitucional dos
respectivos valores estaria suficientemente salvaguardado, mas tendo passado,
por via dela, a estar ofendido.
O dever do legislador ordinário de proceder à provisão fáctica e
jurídica, no cumprimento da norma constitucional impositiva de legiferação que
vincula o Estado ao dever de proteger a saúde, através dos tipos de medidas que
foram tomadas pelo legislador nacional (Lei n.º 37/2007) ou pelo legislador
regional ou de outras, adequadas para tal efeito, constitui, pois, um simples
modo de prestação [que, admitimos, poderia passar até pela instituição de uma
proibição absoluta] e não de imposição de abstenção que seja contra-face de um
direito fundamental de defesa do cidadão oponível ao Estado e aos outros
cidadãos.
Ora, cabe inelutavelmente na competência regional realizar também o
direito fundamental social da saúde [art.º 40.º, al. m), do EPARAM], através da
provisão de bens jurídicos e fácticos, bem podendo fazê-lo em termos diferentes
do legislador nacional.
Benjamim Rodrigues
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei a decisão da alínea a) com fundamento diverso daquele que obteve
vencimento, com base na seguinte ordem de considerações.
Na linha do entendimento sufragado pelo Tribunal Constitucional, a reserva de
competência legislativa da Assembleia da República definida no artigo 165º, n.º
1, alínea b), da Constituição, para além das intervenções legislativas que se
refiram a direitos, liberdades e garantias dos Títulos I e II da Parte I, apenas
abrange, por força da interpretação conjugada dessa norma com a do artigo 17º,
todas as outras que contendam com o núcleo essencial dos direitos análogos (aí
se incluindo os direitos sociais como o direito à protecção da saúde),
relativamente aos quais se verifiquem as mesmas razões de ordem material que
justificam a reserva parlamentar no tocante a direitos, liberdades e garantias
(cfr. acórdão n.º 491/2002). Não é esse, no entanto, o caso quando o que está em
causa, através da legislação que estabelece limitações ao consumo do tabaco, é
apenas uma forma indirecta de protecção do direito à saúde e, ainda mais
remotamente, do direito à integridade física
Não basta que a Convenção Quadro da Organização Mundial de Saúde para o Controlo
do Tabaco tenha enunciado enfaticamente o reconhecimento pelos Estados
signatários de que a «exposição ao fumo tabaco provoca doenças, incapacidade e
morte» (artigo 8º, n.º 1), para que se deva extrair a conclusão de que existe,
no âmbito aplicativo da Convenção, uma interligação entre o direito à protecção
da saúde e o direito à integridade pessoal, a ponto de poder afirmar-se que
qualquer medida legislativa destinada a implementar, no direito interno, os
princípios e obrigações resultantes da Convenção é, ela própria, incidente sobre
direitos, liberdades e garantias ou dirigida à protecção do conteúdo essencial
ou de um conteúdo mínimo directamente aplicável do direito à saúde consagrado no
artigo 64º, n.º 1, da Constituição.
Nestes termos, afasto-me da fundamentação preconizada no texto do acórdão e
perfilho idêntica solução, no sentido da inconstitucionalidade orgânica do
artigo 2º, n.º 1, do decreto, mas por violação do artigo 227º, n.º 1, alínea a),
interpretado conjugadamente com o artigo 112º, n.º 4, da Constituição, por
considerar que extravasa o âmbito regional, e, como tal, não integra a
competência concorrencial da Assembleia Legislativa Regional, a adopção de
medidas legislativas a que o Estado Português se encontra unitariamente
vinculado por efeito de um instrumento internacional que não deixa qualquer
margem de livre conformação ao legislador regional, no âmbito da sua execução
interna, quanto ao seu conteúdo ou extensão.
Tanto que entendo que não é aplicável no ordenamento jurídico nacional o
estabelecido no artigo 8º, n.º 2, da Convenção quanto interpretado no sentido de
permitir uma adaptação casuística das regras convencionais segundo critérios de
direito interno de competência legislativa concorrencial.
2. Voto vencido quanto à alínea b) da decisão com base um argumento paralelo que
se afigura ser também aplicável quando esteja em causa a transposição de
directivas comunitárias.
Não tem projecção na região autónoma, em termos de permitir o exercício de um
poder legislativo de incidência especial, no respectivo âmbito geográfico, a
directiva comunitária que não deixa qualquer margem de livre escolha quanto às
soluções normativas que possam ser adoptadas pelo Estado membro na transposição
para o seu direito interno.
Não se trata aqui de remeter para o domínio implícito da reserva de competência
dos órgãos de soberania, nem de repristinar o primitivo conceito de «interesse
específico», mas unicamente de fazer notar que o âmbito regional na sua
componente material – que pressupõe uma projecção de um dado aspecto de
regulação jurídica no âmbito geográfico da região – não pode incluir as matérias
cujo desenvolvimento legislativo se basta com a intervenção do legislador
nacional, como é o caso em que a transposição de uma directiva comunitária
aplicável em todo o território nacional não confere ao legislador regional um
qualquer poder de apreciação que lhe permita interagir mediante a definição de
um regime jurídico diferenciado.
A questão que se coloca quando a região tenha tomado a iniciativa de transpor
uma directiva comunitária de sentido único e de alcance unitário é a de
inconstitucionalidade, por violação das disposições conjugadas dos artigos 112º,
n.º 4, e 227º, n.º 1, alínea x), da Constituição.
Quaisquer outras implicações que a transposição deficiente de uma directiva,
nessa circunstância, possa suscitar – tais como a possibilidade de desaplicação
da norma regional, pelos tribunais, por contradição com o direito comunitário, a
efectivação de responsabilidade civil extracontratual da região por ilícito
legislativo, a sujeição do Estado Português a acção de incumprimento perante as
instâncias comunitárias – correspondem a meros efeitos colaterais da emanação da
norma que, como tal, não colidem com o juízo de inconstitucionalidade orgânica,
que decorre do não preenchimento de um requisito de que depende o exercício da
competência legislativa regional.
A compatibilização operada no exercício de competências legislativas comuns, em
matéria de transposição de actos jurídicos da União Europeia para a ordem
jurídica interna, através da introdução do requisito do âmbito regional (como
resulta do disposto nos artigos 112º, n.ºs 4 e 8, e 227º, n.º 1, alínea x), da
Lei Fundamental), é, de resto, o remédio constitucional que visa evitar que o
Estado Português incorra em situação de incumprimento do direito comunitário em
relação a uma norma comunitária de integração homogénea que tenha já sido
objecto de adequada transposição interna pelo legislador nacional. Tanto mais
que, em caso de incumprimento estadual decorrente de uma indevida intervenção
legislativa de um órgão regional, não pode o Estado membro invocar «disposições,
práticas ou situações da sua ordem interna» para justificar o desrespeito das
obrigações impostas pelo direito da Comunidade.
Qualquer outra acepção permitiria atribuir competência legislativa concorrencial
às regiões autónomas em todas a matérias que se encontrassem elencadas nos seus
estatutos político-administrativos e não intercedessem com a reserva de
competência dos órgãos de soberania, desde que tivessem repercussão no
respectivo espaço territorial, significando reduzir a expressão âmbito regional,
introduzida na revisão constitucional de 2004, a um conceito inútil e vazio de
sentido, que não mais representaria de que o óbvio reconhecimento de que as
regiões não podem legislar para fora dos respectivos limites territoriais.
No caso vertente, o artigo 5º do decreto em apreciação, ao estabelecer excepções
à proibição do «patrocínio de eventos e actividades que envolvam ou se realizem
em vários Estados membros, ou que tenham quaisquer outros efeitos
transfronteiriços», que consta do artigo 18º, n.º 2, da Lei n.º 37/2007, de 14
de Agosto (que reproduz o estabelecido no artigo 5º, n.º 2, da Directiva
2003/33/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Maio), está a regular
matéria que se encontrava já exaurida pela transposição da directiva
(primeiramente efectuada pelo artigo 6º-A do Decreto-Lei n.º 14/2006, de 20 de
Janeiro e agora retomada no referido artigo 18º da Lei n.º 37/2007), que não tem
qualquer especial incidência no território da região autónoma, nem constitui
domínio de confluência normativa, e que, por conseguinte, não integra o âmbito
regional.
E repare-se, uma vez mais, que não se pretende aqui retomar o princípio da
competência implícita do legislador nacional, nem dar relevo ao facto de o
diploma regional contrariar a directiva comunitária e o direito interno
entretanto constituído, mas unicamente reconhecer a inexistência de um requisito
do exercício da competência legislativa concorrencial da região, traduzido na
exigência de que a legislação a emitir incida sobre matéria de âmbito regional,
considerada a sua vertente substancial.
A mesma ordem de considerações não vale – ou não vale integralmente – para a
disposição do artigo 5º do decreto, na parte em que levanta a proibição de
publicidade ao tabaco a que se refere o n.º 1 do artigo 18º da Lei n.º 37/2007.
Por um lado, a correspondente norma da directiva comunitária apresenta um
limitado conteúdo proibitivo (artigo 4º), nada impedindo que o legislador
regional pudesse dispor em termos menos impositivos no que se refere ao
patrocínio de actividades não directamente abrangidas pela disposição
comunitária. Por outro, nesse domínio, também a Convenção Quadro confere alguma
margem de conformação às Partes signatárias, recomendando medidas mínimas que
incluem apenas algumas formas de limitação da publicidade do tabaco (artigo
13º), o que não afasta, pelo menos, em termos peremptórios, que a região possa
instituir no seu espaço territorial alguma modelação na implementação de medidas
de execução da Convenção.
Parece claro, em todo o caso, que a norma do artigo 5º do decreto enferma do
vício de inconstitucionalidade precedentemente apontado no ponto de coincidência
entre as formas de publicidade que são proibidas pela directiva comunitária e
pelo direito interno entretanto constituído (artigos 6º-A, n.º 3, do Decreto-Lei
n.º 14/2006, e 18º, n.º 1, da Lei n.º 37/2007), visto que, nesse plano, pelas
razões já antes explanadas, inexiste o requisito do âmbito regional.
Carlos Alberto Fernandes Cadilha
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida quanto à alínea a) da decisão, que se pronuncia pela
inconstitucionalidade da norma constante do nº 1 do artigo 2º do decreto da
Assembleia Regional.
Admito – como o parece fazer, quanto a este ponto, o acórdão – que o conceito
«integridade física» seja, como os de «arte», «ciência», «religião» e outros, um
conceito eminentemente aberto, susceptível de adquirir significados novos que
acompanhem as alterações que, a seu propósito, se venham a instalar em
concepções sociais dominantes. Como é evidente, o âmbito de protecção das normas
constitucionais relativas a direitos será assim – e não poderá deixar de ser –
um âmbito evolutivamente variável, capaz de integrar o que de novo e diferente
se vai sabendo sobre a «parcela» de vida a que aquele âmbito se reporta. Sendo o
conceito «integridade física» um conceito (apenas) normativo, admito ainda que o
que de novo e diferente se venha a seu propósito a saber seja veiculado pelo
conteúdo de convenções internacionais de que seja signatário o Estado Português.
Parece-me, contudo, difícil admitir que, por causa disso, as políticas públicas
antitabágicas se tenham transmutado (em todos os seus aspectos) em normas de
protecção do bem jurídico «integridade física» contra lesões ou ameaças de lesão
por parte de terceiros. E é justamente essa «transmutação» – ou a verificação
dela – que está subjacente, neste ponto, à decisão do Tribunal: ao integrar a
norma sob juízo na reserva de competência da Assembleia da República, por dizer
ela «respeito» ao direito à integridade física na sua valência contra terceiros,
o acórdão parte do princípio segundo o qual o artigo 2º, nº 1 do decreto da
Assembleia contém normas (devidas?) de protecção desse bem jurídico particular
que é o bem tutelado pelo artigo 25º da Constituição, ainda que na sua
«contiguidade» com a «dimensão negativa» do direito à saúde. Parece-me ser esta
uma conclusão manifestamente excessiva, que nenhuma ‘verdade’, científica ou
jurídica sobre o que seja hoje a integridade física permite retirar. Por esse
motivo – e porque entendo que se encontram preenchidos os restantes requisitos
do poder legislativo regional – dissenti da decisão: a meu ver, não é
inconstitucional a norma do nº 1 do artigo 2º do decreto.
Maria Lúcia Amaral
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não votei a decisão no sentido de o Tribunal se pronunciar pela
inconstitucionalidade da norma constante do nº 1 do artigo 2º do decreto que
“Adapta à Região Autónoma da Madeira a Lei nº 37/2007, de 14 de Agosto, que
aprova normas para a protecção dos cidadãos da exposição involuntária ao fumo do
tabaco e medidas de redução da procura relacionadas com a dependência e a
cessação do seu consumo”.
No essencial, por não acompanhar o entendimento em que se funda o juízo de
inconstitucionalidade: “o bem jurídico protegido pela norma do artigo 2º, nº 1,
do decreto situa-se numa zona de sobreposição do direito à saúde com o direito à
integridade física”. A norma em causa visa proteger a saúde pública – e não o
bem jurídico individual da integridade física –, não envolvendo qualquer
dimensão negativa de direitos fundamentais que justifique a aplicação do regime
dos direitos, liberdades e garantias.
Maria João Antunes
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanho o julgamento de inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo
2º do Decreto regional em análise – alínea a) da decisão –, por discordar da
qualificação da norma como violadora do direito à integridade física; tal
qualificação, aliás, levaria a entender que o Governo da República não dispõe de
competência legislativa própria para editar este tipo de disposições legais, o
que, salvo o devido respeito, me parece difícil de aceitar. Acresce que, não
sendo feita a análise do teor da norma, designadamente por comparação com a
correspondente disposição da Lei n.º 37/2007, fica-se sem se saber por que razão
a inovação legislativa interfere com o aludido direito à integridade física.
Por outro lado, afigura-se-me que tal norma não pode ser qualificada como
'legislação do trabalho' [não visa disciplinar relações jurídicas laborais, nem
impor regras quanto segurança, higiene e saúde no trabalho], razão pela qual
entendo que não enferma do vício de forma apontado no pedido.
Entendo, finalmente, e essencialmente pelas razões invocadas no acórdão quanto à
não desconformidade constitucional da norma do artigo 5º, que a norma n.º 1 do
artigo 2º do diploma não viola materialmente a Constituição e que cabe na
competência legislativa da Assembleia Legislativa Regional.
Em suma, pronunciei-me também pela não inconstitucionalidade desta norma.
Carlos Pamplona de Oliveira
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei parcialmente vencido quanto à alínea b) da decisão, na medida em que se
não pronunciou pela inconstitucionalidade da segunda parte da norma constante do
artigo 5º do decreto legislativo regional em causa, que se refere à
possibilidade de levantamento da proibição contida no n.º 2 do artigo 18º da Lei
n.º 37/2007, de 14 de Agosto. Fi-lo, no essencial, pelas razões que, muito
sumariamente, passo a expor:
1. Desde logo, há que constatar que, no segmento da norma aqui em apreciação,
está em causa, em última instância, o cumprimento de uma obrigação
internacionalmente contraída pelo Estado Português, a qual, tal como foi
assumida, não deixa qualquer margem de manobra ao legislador a nível interno. Ou
seja, estamos perante uma proibição absoluta, assumida pelos órgãos competentes
do Estado soberano, que vinculando a República Portuguesa, exige uma normação
necessariamente unitária na sua concretização no espaço nacional, nomeadamente
porque pré-determinada.
2. Ora, se nem sequer aos órgãos de soberania nacionais é permitida qualquer
margem de manobra, afigura-se-me dificilmente sustentável afirmar a
possibilidade de as regiões autónomas legislarem nessas matérias respeitando a
exigência contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 227º da Constituição. Isto é,
de o fazerem apenas no “âmbito regional”, tal como este foi entendido no acórdão
n.º 258/2007 deste Tribunal.
3. Tal constatação, nada tem, obviamente, que ver com quaisquer reedições de
conceitos constitucionalmente ultrapassados como sejam os de “leis gerais da
República” ou de “matérias de interesse específico”. Nem tão-pouco com quaisquer
limitações às competências constitucionalmente atribuídas às regiões autónomas,
nomeadamente, para transpor, no âmbito regional, directivas comunitárias.
Trata-se, apenas, de constatar, como acabou de se fazer no Acórdão n.º 402/2008,
que, do ponto de vista constitucional, há questões da República, “que não se
compadece[m] com a regionalização do seu tratamento normativo”, pois “estão em
causa valores e interesses que reclamam um acolhimento universal e uma
conformação unitária em todo o âmbito nacional [...], sem deixar margem a
configurações desviantes particularizadoras”. É o caso, nomeadamente, no meu
entender, do cumprimento de obrigações internacionais assumidas pelo Estado
Português, nos limitados casos em que delas decorra que não exista qualquer
margem de manobra para o legislador interno. Na verdade, a não ser assim,
estar-se-ia a afirmar a possibilidade de as regiões autónomas legislarem,
independentemente do conteúdo de tal legislação, de tal modo que essa sua
legislação tivesse (ou pudesse ter) incidência - ou interferisse (ou pudesse
interferir) - com as actividades e competências do legislador nacional, sem que
isso acarretasse, necessariamente, um excesso relativamente à exigência
constitucional da limitação daquela legislação ao âmbito regional. Ora tal não
se me afigura conforme ao disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 227º da
Constituição.
4. E nem se diga que tal solução não foi querida pelo legislador da revisão,
porque, “se o tivesse querido, teria reservado ao poder do Estado (ao legislador
nacional) o poder de transpor actos da União”. É que, como decorre da alínea x)
do n.º 1 do artigo 227º da Constituição, tal transposição deve ser feita nos
termos do artigo 112º, isto é, sempre com respeito da exigência do “âmbito
regional”. Nem tão-pouco se subentenda que, não existindo margem de manobra nem
para o legislador nacional nem para o regional, seria indiferente que o
cumprimento (ou o eventual incumprimento) das obrigações internacionais
assumidas pelo Estado soberano fosse realizado por um ou por outro, como o seria
se tal margem existisse. É que, como não pode ser olvidado, sempre existe uma
incomensurável diferença entre órgãos de soberania e aqueles que o não são.
5. Finalmente, ao contrário do que decorre da posição que fez maioria, não se me
afigura que possa ser entendido que a Constituição da República Portuguesa se
terá alheado ou desinteressado, ao repartir as competências entre o Estado e as
regiões autónomas, da questão do eventual “risco de violação das obrigações
internacionais ou comunitárias do Estado português, no caso por acto normativo
das regiões autónomas”. Nem me parece que se possa afirmar que tal problema “só
poderá ser resolvido em definitivo por outras formas que apenas ao legislador
constituinte cabe escolher”. É que, no meu entendimento, a limitação
constitucional do poder legislativo das regiões autónomas ao “âmbito regional”
desempenha também, necessária e precisamente, essa função de salvaguarda, ao
menos nos limitados casos enunciados no n.º 1 supra.
6. Neste contexto, pronunciei-me no sentido de considerar inconstitucional a
segunda parte do artigo 5º do decreto legislativo regional em causa, na medida
em que se refere à possibilidade de levantamento da proibição contida no n.º 2
do artigo 18º da Lei n.º 37/2007, de 14 de Agosto, por violação do disposto na
alínea a) do n.º 1 do artigo 227º da Constituição da República Portuguesa.
Gil Galvão
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanho o acórdão na parte em que considera que a matéria da
norma do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto em apreciação se insere na reserva de
competência da Assembleia da República prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo
165.º da Constituição.
Efectivamente, só o pressuposto (o juízo positivo) de que a matéria abrangida
pela norma em causa se situa na zona de intercepção ou no domínio normativo
comum dos direitos fundamentais à protecção da saúde (artigo 64.º da CRP) e à
integridade física (artigo 25.º, n.º 1, da CRP) poderia justificar a sua
inclusão no regime competencial dos direitos, liberdades e garantias, com o
inerente limite negativo à competência legislativa das regiões autónomas
(artigos 165.º, n.º 1, alínea b) e 227.º, n.º 1, alínea a), da CRP). Ora, desde
logo, não compartilho dessa certeza a que a maioria adere. A afirmação enfática
de que, no estado dos conhecimentos científicos actuais (n.º 2 do artigo 8.º da
Convenção Quadro a Organização Mundial de Saúde para o Controlo do Tabaco), a
exposição ao fumo de tabaco provoca “doenças, incapacidades e morte” situa tais
consequências no plano da probabilidade estatística, não do efeito sobre cada
uma das pessoas sujeitas (voluntária ou involuntariamente) ao fumo do tabaco.
Justifica a adopção de activas políticas antitabágicas, no âmbito da chamada
“vertente positiva”do direito fundamental de protecção da saúde, mas não
predetermina constitucionalmente o seu conteúdo em termos de configurar um
clássico “direito de defesa” ou um direito a “prestações jurídicas” necessárias
do Estado, ordenadas a impedir, suspender ou eliminar intromissões ou ofensas a
esse direito fundamental individual por tais actos, actividades ou situações.
Concretamente, para que a normação relativa às condições de que tem de ser
dotados os estabelecimentos de restauração e bebidas, para que aí seja permitido
fumar, se inserisse no dever de protecção do Estado contra condutas de terceiros
(os fumadores e os donos dos estabelecimentos, estes sobretudo na vertente dos
seus deveres agravados na relação com os trabalhadores) susceptíveis de lesar o
direito à integridade física das pessoas, constitucionalmente inviolável, seria
necessário ultrapassar o juízo probabilístico geral para afirmar que a ausência
desses cuidados ou restrições é causalmente adequada para gerar uma lesão
directa (i. e., à ofensa, embora não imediata e ainda que numa exigência de
demonstração do nexo causal temperada pelo princípio da precaução mas, em todo o
caso, violação susceptível de justificar juridicamente uma reacção ou pretensão
individual defensiva) da integridade física de cada pessoa (involuntariamente)
exposta ao fumo do tabaco. O que, sem entrar nas pressuposições fácticas e nos
juízos de prognose do legislador, me parece francamente excessivo.
Vítor Gomes
DECLARAÇÃO DE VOTO
Fiquei vencido, no que se refere ao artigo 5º por considerar que tal dispositivo
contraria o normativo do artigo 18º nº 2 da Lei nº 37/2007, de 14 de Agosto.
Ao legislar desta feição, em meu entendimento, a Assembleia Legislativa da
Madeira não preencheu o requisito “âmbito regional”, constante do artigo 227º nº
1, alínea a) da CRP.
Este conceito pressupõe a existência de espaço normativo em aberto na ordem
jurídica. Se esse espaço não existir, por se impor tratamento unitário da
matéria, não se revela adequado que o poder legislativo regional venha a ter
lugar, por ausência de qualquer margem de conformação.
Sendo certo que as regiões autónomas detêm competência para a transposição de
directivas comunitárias (artigos 227º nº 1, alínea x) e 112º nºs 4 e 8 da CRP),
a verdade é que, na situação em apreço, ao Estado Português foi exigido um só e
único tratamento na transposição da directiva em causa.
Assim, verifica-se o não preenchimento do aludido requisito do “âmbito
regional”, por o órgão legisferante da respectiva região autónoma não ter espaço
de actuação por se tratar de matéria que impunha ao Estado um tratamento
unitário, o que, aliás, fez previamente, em momento julgado oportuno.
Já, no que se refere à revogação do nº 1 do mencionado artigo 18º da Lei nº
37/2007, de 14 de Agosto, havendo, desta feita, espaço normativo e, sendo a
matéria de “âmbito regional”, por enunciada no Estatuto Político-Administrativo
da Madeira (artigo 40º, alíneas m), r), t) e oo) ), não se encontrando tal
matéria reservada á competência dos órgãos de soberania, não vemos que, a
actuação legislativa, nesta parte, padeça de censura.
Assim, pronunciava-me pela inconstitucionalidade orgânica do artigo 5º do
decreto, na parte em que revogou o nº 2 do artigo 18º da Lei nº 37/2007, de 14
de Agosto, por violação dos artigos 227º, nº 1, alínea a) e 112º nº 4, ambos da
CRP.
J. Borges Soeiro