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Processo n.º 5/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82,
de 15 de Novembro (LTC) da sentença do TAF de Coimbra que, concedendo provimento
a recurso interposto por A. de despacho proferido pelo Director de Finanças de
Coimbra, desaplicou, com fundamento em inconstitucionalidade, a norma constante
dos “artigos 75.º, nº 2, alínea d), e 89.º-A, nºs. 1,2, alínea b), 3 e 4 da Lei
Geral Tributária, interpretados em termos de considerar excluída a presunção de
veracidade da declaração de IRS do contribuinte quando o rendimento declarado se
afaste significativamente, para menos, sem razões justificativas, dos padrões
indicados pela manifestação de fortuna evidenciada (no caso, a fruição de
viatura automóvel), cabendo-lhe ónus de provar que correspondem à realidade os
rendimentos declarados e de que é outra a fonte das manifestações de fortuna
evidenciados, sob cominação de, não fazendo tal prova, se considerar esse valor
como rendimento tributável, a enquadrar na categoria G.”
2. Após alegações do Ministério Público e do recorrido, o relator proferiu o
seguinte despacho:
“É razoavelmente sustentável que não deva conhecer-se do objecto do recurso
pelas seguintes razões:
A sentença recorrida assenta em fundamentos de duas ordens:
- de mera interpretação e aplicação do direito ordinário, conduzindo a um juízo
de não verificação dos pressupostos invocados pelo despacho contenciosamente
impugnado para determinação do rendimento colectável pelo método de avaliação
indirecta;
- de inconstitucionalidade das normas de que a Administração se socorreu para
proceder a tal determinação ( em dimensão que, neste momento, não interessa
recortar de modo mais preciso).
Sucede que os fundamentos da primeira ordem são idóneos para suportar
autonomamente a decisão de invalidade do acto administrativo impugnado, de tal
modo que, ainda que o recurso de constitucionalidade viesse a obter total
provimento, sempre a decisão do tribunal a quo se manteria intocada. Autonomia
e suficiência que, aliás, está traduzida na estrutura da sentença pelo separador
discursivo “claro que tudo isto sem prejuízo das questões de
(in)constitucionalidade que a norma do artigo 89.º-A da LGT levanta nomeadamente
em sede de violação do princípio da capacidade contributiva que próprio
recorrente invoca”.
Com efeito, o que está em causa é a determinação dos rendimentos tributáveis em
IRS, relativamente aos anos de 2003 e 2004, pelo método de avaliação indirecta,
na sequência de uma inspecção tributária que concluiu que o ora recorrido
evidenciava manifestações de fortuna – fruir de um 'Aston Martin' adquirido, em
2003, por uma sociedade de que é sócio maioritário, pelo preço de €49 900, a que
acresceu Imposto Automóvel do montante de €7.650, 12 – sem correspondência com a
declaração de IRS apresentada. A base legal a que a Administração Fiscal lançou
mão para proceder à avaliação indirecta da matéria colectável foi o artigo
89.º-A da Lei Geral Tributária. Este preceito habilita a Administração a
proceder à avaliação indirecta da matéria colectável quando o contribuinte
declare rendimentos que mostrem uma desproporção superior a 50% em relação ao
'rendimento padrão' resultante da tabela de 'manifestações de fortuna' constante
no n.º 4 desse artigo 89.º-A da LGT. Entre os bens elencados nessa Tabela
figuram os automóveis ligeiros de passageiros de valor igual ou superior a
49.879,79 euros. E para o efeito relevam, além dos bens adquiridos pelo sujeito
passivo (alínea a) do n.º 2), aqueles de que o mesmo frua quando 'adquiridos,
nesse ano ou nos três anos anteriores, por sociedade na qual detenham, directa
ou indirectamente, participação maioritária'.
A sentença recorrida entendeu que, relativamente a qualquer desses períodos, o
despacho de fixação do rendimento colectável por métodos indirectos era
inválido, face a este regime legal, em síntese, pelo seguinte:
- Quanto aos rendimentos de 2004, porque nesse ano “o contribuinte não
exteriorizou qualquer manifestação de fortuna, estando a AT a tributar por um
facto aquisitivo que não respeita a esse ano e que já considerou relativamente
ao ano em que ocorreu (2003), uma vez que “a lei, na alínea b) do artigo 89.ºA
da LGT, fala nos ‘bens que frua no ano em causa’, ou seja no ano da aquisição e
nos três anteriores”;
- Quanto ao ano de 2003, por considerar que não deveria ser considerado na
determinação do valor do veículo o montante pago a título de IA, do que resulta
não se atingir o valor que o n.º 4 do artigo 89.º-A considera relevante como
“manifestação de fortuna” indiciadora do “rendimento padrão” que permite a
intervenção da Administração Fiscal (o valor da aquisição de veículo seria de
49.879,79 euros e o valor relevante é de 49.900,00 euros).
Estes fundamentos – cujo acerto não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar e
que, aliás, está questionado no recurso interposto pela Fazenda Pública para o
Tribunal Central Administrativo – ficariam imunes à reformulação da sentença
recorrida em conformidade com eventual juízo de não desconformidade com a
Constituição das normas em apreciação no presente recurso. Na lógica da
sentença, ainda que o regime jurídico submetido a apreciação do Tribunal
Constitucional seja constitucionalmente impoluto, nunca se verificariam (nessa
interpretação) os pressupostos nele estabelecidos para que a Administração possa
proceder à avaliação indirecta do rendimento colectável em IRS.
Assim, atendendo à natureza instrumental do recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade, parece dever concluir-se pelo não conhecimento do objecto
do recurso, pelo que determino a notificação das partes para se pronunciarem,
querendo, sobre esta questão em prazo simultâneo de 10 dias.”
3. Nenhuma das partes se pronunciou sobre a questão obstativa ao
conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade suscitada pelo
despacho transcrito.
Como nesse despacho se refere, ainda que o recurso de constitucionalidade
obtivesse provimento sempre se manteria – na lógica de fundamentação da sentença
recorrida – a decisão de anulação do despacho contenciosamente impugnado, por
não se verificar a hipótese de aplicação da norma invocada pela Administração
para passar à determinação dos rendimentos tributáveis em IRS por avaliação
indirecta.
Posto isto, constatada a existência de fundamentos alternativos, isto é, de
pluralidade de fundamentos, um dos quais estranho ao objecto do recurso e por si
só suficiente para assegurar o sentido da decisão recorrida ainda que esta
viesse a ser revogada na parte respeitante à questão da inconstitucionalidade,
não deve conhecer-se do objecto do recurso.
A tanto não obsta a circunstância de se tratar de recurso
obrigatório, interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º e do n.º
3 do artigo 72.º da LTC, nem de a decisão se encontrar pendente de recurso
ordinário.
Reconhece-se que, na sua grande maioria, as decisões de não conhecimento do
recurso de constitucionalidade por existência de fundamentos alternativos na
decisão recorrida surgem em recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º
1 do artigo 70.º da LTC, nos quais, por força da regra da prévia exaustão dos
recursos ordinários, a decisão recorrida para o Tribunal Constitucional coincide
com a decisão final da causa na ordem jurisdicional respectiva, e, por isso, o
eventual provimento do recurso de constitucionalidade se apresenta como
insusceptível de afectar, mais do que o sentido da decisão recorrida, o
desfecho da causa. Mas também assim tem vindo a ser maioritariamente decidido
em recursos interpostos, como o presente, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC (Em sentidos divergentes, acórdão n.º 113/2006 e acórdão n.º
256/2004, ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, Cfr. também, a
jurisprudência citada por Victor Calvete, “Interesse e Relevância da Questão de
Constitucionalidade e Utilidade do Recurso de Constitucionalidade - Quatro Faces
de uma mesma Moeda”, Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da
Costa, 404).
Com efeito, se a sentença vier a ser confirmada quanto ao fundamento
que consiste na interpretação e aplicação do direito ordinário, nunca a
apreciação da questão de constitucionalidade se revestirá de interesse para a
decisão da causa. E se, nesse aspecto, a sentença vier a ser revogada terá,
então, de ser enfrentada a questão de constitucionalidade das normas aplicadas e
bem pode suceder que o tribunal superior não confirme o juízo de
inconstitucionalidade.
Aliás, em casos semelhantes pode mesmo sustentar-se que, apesar da afirmação de
inconstitucionalidade, enquanto se mantiver o fundamento alternativo adoptado na
sentença, não existe efectiva desaplicação da norma em causa. A não verificação
do efeito jurídico previsto na norma (aqui, a habilitação da Administração para
recorrer a métodos indirectos de determinação da matéria colectável) não resulta
da sua insusceptibilidade de produzi-lo por não respeitar a Constituição, mas de
não ocorrerem os respectivos pressupostos. Assim, a vontade do legislador
precipitada na norma não pode dizer-se objectivamente afastada pelo juiz por
desconformidade à Constituição, pelo que o entendimento de que não deve
conhecer-se do recurso também não conflitua com as razões que levaram a
Constituição (artigo 280.º, n.º 3, da CRP) e a lei (artigo 72.º, n.º 3, da LTC)
a configurar o recurso como obrigatório para o Ministério Público.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam em não conhecer do objecto do presente
recurso.
Sem custas.
Lisboa, 29/07/2008
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão