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Processo n.º 361/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. foi condenado, por sentença de 19 de Abril de 2007 do
Tribunal Judicial da Comarca de Ovar, como autor de um crime de abuso de
confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 24.º, n.ºs
1 e 5, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA),
aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 20‑A/90, de 15 de Janeiro, na redacção do
Decreto‑Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão,
suspensa pelo período de 3 anos, com a obrigação de o arguido pagar, durante o
período da suspensão, ao Estado Português a quantia de € 35 333,33.
Desta sentença interpôs o arguido recurso para o
Tribunal da Relação do Porto, suscitando na respectiva motivação, para além do
mais (prescrição do procedimento criminal, errado enquadramento legal dos factos
praticados, violação dos artigos 40.º e 70.º do Código Penal e verificação de
circunstâncias que imporiam a atenuação especial da pena), questões relativas:
(i) à nulidade da decisão por violação do artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal;
(ii) à nulidade da decisão por da acusação não constarem factos suficientes para
condenar o arguido e por violação do princípio do acusatório, por a condenação
ter sido proferida com base em factos não compreendidos naquela peça processual
e ocorridos após a sua prolação; e (iii) à violação do princípio da legalidade –
com base em argumentação sintetizada nas seguintes conclusões:
“1.ª – Foi o recorrente condenado como autor de um crime de abuso de
confiança fiscal na forma continuada, em pena de prisão de um ano e seis meses,
suspensa na sua execução, e subordinada à condição do pagamento da quantia de €
35 333,33.
2.ª – Sucede, no entanto, que não só deveria o arguido ser absolvido
da prática de tal crime, como também enferma a douta sentença em recurso de
nulidade insanável.
3.ª – De facto, a 1 de Janeiro de 2007 entrou em vigor a Lei n.º
53‑A/2006, de 29 de Dezembro, que veio introduzir alterações ao RGIT.
4.ª – A alteração em causa incidiu sobre o n.º 4 do artigo 105.º do
invocado diploma legal, através do acrescento de uma nova alínea b).
5.ª – Confrontando o regime legal resultante da invocada alteração
com o regime legal anterior, constata‑se então que, para que se verifique a
ocorrência de um crime de abuso de confiança fiscal é sempre necessário que
ocorra uma notificação para que o agente, em trinta dias, proceda ao pagamento
da prestação tributária em falta, acrescida dos juros e eventual coima.
6.ª – Tal alteração consubstancia uma verdadeira despenalização dos
factos que, face à anterior lei, constituía crime de abuso de confiança fiscal.
7.ª – Na verdade, no regime anteriormente vigente, o tipo de ilícito
reconduzia‑se a uma mora qualificada no tempo, sendo a mora simples punida como
contra‑ordenação, ilícito de menor gravidade.
8.ª – Presentemente, o legislador aditou uma circunstância que, por
referir‑se ao agente, encontra‑se no cerne da conduta proibida.
9.ª – Com efeito, na nova lei, impõe‑se agora que o agente não
entregue à Administração Tributária, total ou parcialmente, prestação
tributária, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigada a
entregar, pelo prazo superior a 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega
da prestação e desde que não tenha procedido ao pagamento da prestação
comunicada à Administração Tributária, através da correspondente declaração,
acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30
dias após notificação para o efeito.
10.ª – E, deste modo, o legislador até agora criminalizava uma mora
qualificada relativamente a um objecto material do crime, o imposto, atendendo
aos fins deste. Actualmente, pretende estabelecer como crime uma mora específica
e um contexto relacional qualificado.
11.ª – Ora, de acordo com o artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal, o
facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se
uma lei nova o eliminar do número de infracções.
12.ª – Assim, ao não determinar a extinção do procedimento criminal,
e, ao invés, ao ter condenado o aqui recorrente em pena de prisão, violou a
douta sentença o disposto no referido artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal.
Sem conceder,
13.ª – Mesmo que se não entenda que ocorreu despenalização dos
factos imputados ao recorrente, o que é certo é que nunca a douta sentença ora
em recurso deveria ter condenado o arguido, enfermando a mesma de nulidade.
14.ª – Assim, mesmo que se entenda que a nova alteração veio, não
configurar despenalização, mas sim acrescentar uma nova condição de
punibilidade, o que é certo é que da acusação não constavam factos suficientes
para que, mesmo que provada, viesse o procedimento criminal a terminar, tal como
terminou, na condenação do arguido aqui recorrente.
15.ª – De facto, não obstante não ter ocorrido qualquer alteração ao
conteúdo da acusação, nos termos do disposto no artigo 358.º do Código de
Processo Penal, o que é certo é que, já após a realização da audiência de
julgamento, o tribunal notificou o arguido para efectuar o pagamento dos
tributos em causa, acrescido da respectiva coima e encargos legais, sendo que,
após tal notificação, e após ter ultrapassado o prazo sem que o pagamento se
verificasse, veio a douta sentença a incluir tais factos e assim veio a
condenar o recorrente.
16.ª – Ora, a inclusão destes factos, que no fundo traduzem os
factos consubstanciadores das novas condições de punibilidade, viola a lei,
consubstanciando nulidade.
17.ª – Na verdade, de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 311.º
do Código de Processo Penal, a acusação considerar‑se‑á infundamentada quando
não contenha a narração dos factos ou quando os factos não constituírem crime.
18.ª – Por outro lado, e de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo
379.º do Código de Processo Penal, a sentença será considerada nula quando
condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia ou quando
o tribunal conheça ou se pronuncie sobre questões de que não podia tomar
conhecimento.
19.ª – Ora, conforme decorre do exposto, o tribunal, de facto,
conheceu de factos não constantes da douta acusação, e concretamente avaliou e
ponderou a falta de pagamento dos tributos por parte do arguido, no prazo de
trinta dias.
20.ª – Com efeito, face à lei actual, os prazos que ora são
consignados fazem parte integral do ilícito penal do crime de abuso de confiança
fiscal, pois que para que se verifique o crime de abuso de confiança fiscal é
sempre necessário, para além do decurso do prazo legal da entrega da prestação,
existir o não pagamento na sequência de uma notificação para que o agente, em
trinta dias, proceda ao pagamento da prestação comunicada à Administração
Fiscal, acrescida de juros e do valor da coima aplicável.
21.ª – Ora, se as novas condições de punibilidade respeitantes ao
tipo de ilícito em causa se não encontram na acusação, não pode o Tribunal
substituir‑se ao Ministério Público, ou à Administração Fiscal, aditando os
elementos em falta.
22.ª – Consequentemente, não só, no caso em apreço, a acusação se
demonstrava infundada, como também o tribunal se pronunciou sobre factos não
constantes na mesmíssima acusação.
23.ª – Como tal, enferma a douta sentença de nulidade de acordo com
o preceituado nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP.
24.ª – Por outro lado, viola ainda a douta sentença o princípio do
acusatório, já que tal sentença condenatória foi proferida com base na falta de
pagamento dos tributos no prazo de trinta dias após notificação efectuada pelo
Tribunal, sendo que, não só tais factos se não compreendiam na acusação, como,
inclusivamente, são factos posteriores à prolação de tal acusação e mesmo, até,
da audiência de julgamento.
25.ª – Para além de violar o princípio do acusatório, violou também
a sentença em causa o princípio da legalidade.
26.ª – Com efeito, ao substituir‑se o Tribunal ao Ministério
Público, e deste modo à Administração Fiscal, notificando o ora recorrente para
efectuar o pagamento dos tributos e demais acréscimos, ofendeu os ditames
constitucionais consagrados nos artigos 202.º e 219.º da Constituição da
República Portuguesa, incorrendo deste modo em interpretação inconstitucional
do preceito legal resultante da nova redacção introduzida pelo artigo 95.º da
Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro, ao n.º 4 do art. 105.º do RGIT.”
Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12 de
Dezembro de 2007, foi concedido parcial provimento ao recurso, ficando o
recorrente condenado, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na
forma continuada, previsto e punível pelo artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral
das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho
(cujo regime foi considerado mais favorável para o arguido que o constante do
artigo 24.º, n.ºs 1 e 5, do RJIFNA), na pena de 14 meses de prisão, com
suspensão da sua execução pelo período de 14 meses, subordinada à condição de o
arguido pagar ao Estado a quantia de € 35 333,33 durante o período de suspensão.
Relativamente às questões suscitadas nas conclusões da motivação atrás
transcritas, expendeu o referido acórdão:
“II – Nulidade da decisão recorrida por violação do artigo 2.º, n.º
2, do Código Penal.
O arguido imputa à decisão recorrida a violação do artigo 2.º, n.º
2, do Código Penal, isto porque com a entrada em vigor da Lei n.º 53‑A/2006, de
29 de Dezembro, ocorreu uma verdadeira despenalização dos factos que, face à lei
anterior, integravam o tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal.
O artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias contém a
previsão do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal. Nos termos do seu
n.º 1, «quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente,
prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente
obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360
dias».
E dispõe o actual n.º 4: «Os factos descritos nos números anteriores
só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo
legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração
tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos
juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após
notificação para o efeito».
Foi este n.º 4 que viu a sua redacção alterada pela Lei n.º
53‑A/2006, de 29 de Dezembro. Antes desta alteração a norma dispunha que «os
factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido
mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação».
Como todos sabemos, esta alteração tem gerado muita polémica,
centrando‑se a discussão à volta da questão de saber se a nova lei
despenalizou, ou não, os anteriores comportamentos enquadráveis naquele tipo
legal de crime, ou se a previsão da alínea b) constitui, tão‑só, uma nova
condição de punibilidade.
Não obstante a grande valia do entendimento contrário, a verdade é
que entendemos que a nova lei não despenalizou as condutas que, face à lei
antiga, constituíam crime de abuso de confiança fiscal.
Usando as palavras do acórdão do STJ, de 21 de Março de 2007,
processo 06P4079, diremos que «na descrição do artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a
construção do tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal define uma
conduta que consiste na simples não entrega à administração fiscal de uma
prestação tributária que o agente deduziu nos termos da lei como substituto
tributário, e que estava, também nos termos da lei, obrigado a entregar em
determinado prazo. (…) A conduta prevista no tipo traduz‑se, pois, em uma
omissão pura, (…) esgota‑se no não cumprimento de um dever. (…) Sendo uma
infracção omissiva pura, consuma‑se com a não entrega, dolosa, nos termos e no
prazo da entrega fixado para cada prestação – artigo 5.º, n.º 2, do RGIT. Os
factos descritos no artigo 105.º, n.ºs 1 a 3, do mesmo diploma, só são, porém,
puníveis – dispõe o n.º 4 desse preceito – se tiverem decorrido mais de 90 dias
sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação (alínea a)), ou ‘se a
prestação comunicada à administração tributária através da correspondente
declaração não for paga, acrescida dos respectivos juros e do valor da coima
aplicável, no prazo de 30 dias após comunicação para o efeito’ (alínea b)). (…)
As condições de que depende, no caso, a punibilidade da conduta (‘os factos […]
só são puníveis’) constituem, pela natureza com que se apresentam na estrutura
da norma, e pela função e finalidades a que, aí, estão determinadas, elementos
que não integram a tipicidade, a ilicitude ou a culpa, mas que se ligam apenas,
por circunstâncias adjacentes à natureza relevantemente funcionalista da
infracção, à finalidade da pena, diminuindo a intensidade ou eliminando as
necessidades da punição. (…) Os elementos que não fazem parte do tipo, da
ilicitude ou da culpa, isto é, que não integram nem contendem com a dignidade
penal do facto, mas apenas com a admissibilidade do procedimento ou com a
(des)necessidade circunstancial da punição, constituem ou pressupostos
processuais ou condições objectivas de punibilidade. Com efeito, em determinados
casos, para que possa ter lugar o efeito sancionador, atende‑se a outros
elementos para além daqueles que integram o ilícito que configura o tipo. Por
vezes, essas inserções ocasionais da lei entre a prática do facto ilícito e a
sanção concreta inscrevem‑se no direito material, hipótese em que se fala de
condições objectivas ou externas de punibilidade; noutros casos, constituem
parte do direito processual e denominam‑se pressupostos processuais. As
condições objectivas de punibilidade são aqueles elementos situados fora da
definição do crime, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção
antijurídica tenha consequências penais. Apesar de integrarem uma componente
global do acontecer, e da situação em que a acção incide, não são, não obstante,
parte desta acção. (…) São elementos situados fora do tipo, cuja presença
constitui um pressuposto da actuação das consequências penais de uma acção
típica e antijurídica; sendo componentes globais da situação sobre que incide a
acção, não são, porém, propriamente parte da acção. (…) Não fazendo parte da
acção, integram, todavia, o complexo facto‑condições de que depende a aplicação
de uma sanção penal (a punição), mas estão fora do perímetro de delimitação da
infracção penal enquanto categoria autónoma de tipo de ilícito e de culpa (…).»
Assim sendo, não tem sentido convocar o contributo do artigo 2.º,
n.º 2, do Código Penal (vide ainda o acórdão deste Tribunal, de 10 de Outubro de
2007, processo 0713172).
Improcedem, pois, as conclusões 1.ª a 12.ª
III – Nulidade da decisão porque da acusação não constam factos
suficientes para condenar e violação do princípio do acusatório porque esta foi
proferida com base em factos não compreendidos naquela peça processual e
ocorridos após a sua prolação.
O arguido alega, ainda, que mesmo entendendo‑se que não ocorreu
despenalização, a verdade é que a acusação não contém factos suficientes para a
condenação. A consideração de factos ocorridos após a sua prolação, e mesmo após
o julgamento, para condenar viola a lei e consubstancia nulidade: as novas
condições de punibilidade respeitantes ao tipo de ilícito em causa não se
encontram na acusação, pelo que não podia o tribunal conhecê‑las.
Nos termos do n.º 5 do artigo 32.º da Constituição da República
Portuguesa, «o processo penal terá estrutura acusatória, estando a audiência de
julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao
princípio do contraditório».
Com o princípio do acusatório o processo equivale, como diz Germano
Marques da Silva, a um duelo judiciário entre a acusação e a defesa e onde o
juiz, numa situação de supremacia e equidistância, disciplina a actuação «das
partes», não podendo intervir nos autos nem extravasar o conteúdo da acusação
(Curso de Processo Penal, vol. I, 4.ª edição, pág. 58 e segs.).
A lei de autorização de revisão do CPP – Lei n.º 43/86, de 26 de
Setembro – referia que a autorização concedida visava a parificação do
posicionamento jurídico da acusação e da defesa e incrementação da igualdade
material de «armas» no processo. No entanto, ao mesmo tempo que dizia que o
processo penal devia apontar para a máxima acusatoriedade, acrescentava que
esta seria temperada com o princípio da investigação judicial. Portanto,
princípio do acusatório temperado pelo princípio do inquisitório, tudo em nome
da verdade material.
Em obediência àquele preceito constitucional, o poder de cognição do
julgador é delimitado pelos factos que constam da acusação: «o objecto do
processo penal é, pois, essencialmente, o objecto da acusação, sendo este que,
por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (actividade
cognitória) e a extensão do caso julgado (actividade decisória), ao que se chama
de vinculação temática do tribunal, nele se consubstanciando os princípios da
identidade (o objecto do processo deve manter‑se o mesmo desde a acusação até ao
trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade (o objecto do
processo deve ser conhecido e julgado pelo tribunal na sua totalidade, é
indivisível) e da consunção (o objecto do processo deve considerar‑se
irrepetivelmente decidido na sua totalidade)» – acórdão do Tribunal da Relação
do Porto, de 3 de Outubro de 2007, recurso penal n.º 3707/07.
Tudo quanto expusemos vale relativamente aos elementos do tipo.
Mas, para além dos elementos do tipo, para que um determinado facto
seja punido pelo direito penal terão que se verificar, também, as condições
objectivas de punibilidade. Como dissemos já, estas, apesar de terem uma
relação directa com o facto, estão fora dele: não pertencem nem ao tipo legal
nem à culpa.
O tipo legal, no caso em análise, está plasmado no n.º 1 do artigo
105.º do RGIT e consubstancia‑se na não entrega à Administração Tributária de
prestação tributária, deduzida nos termos da lei, e que estava legalmente
obrigado a entregar. Quanto ao n.º 4, aqui introduzem‑se limites à punição nos
casos em que os elementos do tipo se verificam, o que já acontecia
anteriormente, com a anterior redacção do n.º 4 desta norma.
No caso em análise, estamos, portanto, perante uma condição
objectiva de punibilidade, cujo accionamento está na disponibilidade do agente,
e que, não integrando o tipo, não tem, por isso, que integrar a acusação.
Face ao exposto, conclui‑se que a decisão recorrida não padece das
nulidades apontadas, improcedendo as conclusões 13.ª a 24.ª
IV – Violação do princípio da legalidade.
O arguido imputa à decisão recorrida a violação do princípio da
legalidade. Alega, para tanto, que o juiz, ao notificar para pagar os tributos
devidos e demais acréscimos, em substituição ao Ministério Público e à
Administração Fiscal, ofendeu os ditames constitucionais consagrados nos artigos
202.º e 219.º da Constituição da Republica Portuguesa, incorrendo deste modo em
interpretação inconstitucional do preceito legal resultante da nova redacção
introduzida pelo artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro, ao n.º 4
do artigo 105.º do RGIT.
Em direito penal, o princípio da legalidade é retratado,
essencialmente e por regra, pelo princípio nullum crimen, nulla poena sine lege,
ou seja, pelo princípio segundo o qual não há crime nem sanção sem que uma lei
preexistente qualifique determinado comportamento como tal e preveja a
respectiva punição.
Do mesmo princípio decorrem outras consequências, quais sejam, por
exemplo, a proibição da interpretação extensiva das normas penais
incriminadoras, a proibição de integração de lacunas por analogia, a imposição
de efeitos retroactivos às leis penais mais favoráveis, a proibição de uma dupla
condenação pelo mesmo facto.
No entanto, o arguido invocou aquele princípio num sentido bem
diferente.
Não obstante, vejamos se lhe assiste razão.
O arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso de
confiança fiscal na forma continuada.
Estatui o artigo 105.º do RGIT, que prevê e pune o crime em questão,
que:
«1 – Quem não entregar à administração tributária, total ou
parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava
legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou
multa até 360 dias.
2 – Para os efeitos do disposto no número anterior, considera‑se
também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como
aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos
em que a lei o preveja.
3 – É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação
deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 – Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de
entrega da prestação:
b) A prestação comunicada à administração tributária através da
correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do
valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
(…).»
Como já se referiu, esta alteração convoca um problema de sucessão
de leis no tempo, havendo que aplicar a nova lei aos casos pendentes, porquanto
com esta pode o arguido eximir‑se à condenação.
A questão que aqui se põe é a de saber qual a entidade competente
para ordenar aquela notificação.
Nos termos do n.º 1 do artigo 105.º pratica um crime de abuso de
confiança «quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente,
prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente
obrigado a entregar …».
No entanto, anteriormente estes factos descritos só eram puníveis se
tivessem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da
prestação.
Até aqui tudo claro.
Vejamos, agora, a situação face à nova redacção da lei.
Tal como antes, pratica um crime de abuso de confiança fiscal «quem
não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação
tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a
entregar …» (n.º 1).
No entanto, estes factos só serão puníveis se «tiverem decorrido
mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação» (n.º 4,
alínea a)) e se «a prestação comunicada à administração tributária através da
correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do
valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito»
(n.º 4, alínea b)).
O funcionamento desta nova causa de exclusão depende de elementos
concretos, a apurar com recurso a diligências complementares: há que apurar os
juros devidos, dar a conhecer ao agente o montante global da quantia a pagar e
aguardar o prazo de pagamento. A manutenção da punição dos factos descritos no
n.º 1 depende da persistência do não pagamento, feita aquela notificação e
decorrido este prazo.
Havendo pagamento, extingue‑se o procedimento criminal. É esta,
manifestamente, a intenção da lei.
Refere o relatório do Orçamento Geral do Estado para 2007 que a
falta de entrega da prestação tributária pode estar associada ao incumprimento
declarativo ou decorrer, tão‑só, da falta de pagamento do imposto liquidado na
referida declaração. No primeiro caso, existe clara intenção de ocultar os
factos tributários à Administração Fiscal. Já no segundo não sucede o mesmo. Daí
a introdução de tratamentos diferenciados para cada uma destas situações, não
devendo «ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido
as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em prazo a
conceder, evitando-se assim a ‘proliferação’ de inquéritos por crime de abuso de
confiança fiscal que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do
Ministério Público na sequência do pagamento do imposto».
O que a lei pretendeu, pois, foi dar mais uma oportunidade aos
devedores.
Caso paguem, o problema termina. E termina ou na alçada da
autoridade administrativa, ou na alçada do Ministério Público, se aquela já
tiver comunicado o caso, ou termina na alçada do tribunal, caso já tenha sido
proferida acusação.
Não fixando a lei a competência para proceder à notificação,
significa que a concede a qualquer das entidades acima mencionadas: parece‑nos
que esta será a melhor leitura a fazer da lei. Quando assim não é, por exemplo
no caso previsto no n.º 6 daquela norma, a lei refere‑o expressamente.
Portanto, a notificação para os termos do n.º 4 do artigo 105.º será
feita, em cada caso, pela entidade que detiver o processo quando a questão se
coloque.
Aqui, como o processo já estava no tribunal, aquela notificação foi
validamente feita por este. A decisão de notificar não colide com nenhuma norma
legal, nem com princípios imanentes ao sistema, nomeadamente o da separação de
poderes.
Em casos como o dos autos, entendemos não ser razoável que o
processo regrida até à autoridade administrativa para que esta dê cumprimento
àquela norma.
Afinal, o que esta notificação significa «é que os arguidos têm o
prazo de 30 dias para junto da Administração Fiscal regularizarem o pagamento a
que alude a norma do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, comprovando‑o,
depois, nos autos, se estes já estiverem em fase judicial. Isto nada tem a ver
com a entidade competente para determinar a notificação, que será a que, em cada
caso, superintender no processo (autoridade fiscal, Ministério Público, juiz de
instrução ou juiz de julgamento)» – acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães,
de 18 de Junho de 2007, processo n.º 983/07 (no mesmo sentido vide, entre
outros, os acórdãos do STJ, de 21 de Fevereiro de 2007, processo n.º 06P4097, e
deste Tribunal, de 11 de Julho de 2007 e de 24 de Outubro de 2007, processos
n.ºs 0713147 e 0713235).
Assim, não tem fundamento a pretensão exposta pelo recorrente: a
decisão recorrida não extravasou a competência da entidade que a proferiu, pois
que se limitou determinar a notificação dos arguidos nos exactos termos
constantes da lei.
Portanto, a notificação efectuada pelo tribunal para os termos do
n.º 4 do artigo 105.º do RGIT apenas significa que o agente tem 30 dias para
regularizar a sua situação tributária.
Recebida a notificação e caso pretenda pagar, o que o devedor terá
que fazer é dirigir‑se à autoridade administrativa credora, indagar junto desta
sobre o montante global da dívida e proceder ao pagamento no prazo determinado
na lei.
Naturalmente que não é o tribunal que vai fornecer aqueles
elementos. Mas estes também não são fornecidos pela entidade administrativa
através da notificação para os termos do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT. O
montante da dívida integra, também, os juros de mora e o montante dos juros
depende do dia em que a dívida for paga. Parece‑nos, assim, que apenas aquando
do pagamento é que o arguido terá conhecimento do montante exacto a pagar.
Pelo exposto, improcedem as conclusões 25.ª e 26.ª”
É contra este acórdão que, pelo arguido, vem interposto
o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), tendo por objecto a questão da
inconstitucionalidade, por violação dos “princípios constitucionais da
legalidade e da separação dos poderes, ofendendo, assim, os ditames
constitucionais consagrados nos artigos 202.º e 219.º da Constituição da
República Portuguesa”, da interpretação do artigo 105.º do RGIT, na redacção
dada pelo artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro, que teria sido
aplicada no acórdão recorrido, “consubstanciada na substituição por parte do
tribunal de 1.ª instância em relação às atribuições da Administração Fiscal e do
Ministério Público”.
Neste Tribunal, o recorrente apresentou alegações,
formulando a final as seguintes conclusões:
“Foi o recorrente condenado, em 1.ª instância, pela prática de um
crime continuado de abuso de confiança fiscal.
Por não se conformar com o teor da douta sentença proferida em 1.ª
instância, recorreu o aqui também recorrente para o Tribunal da Relação do
Porto, suscitando, em tal sede, a errada e inconstitucional interpretação do
disposto no artigo 105.º do RGIT, interpretação essa que viola os princípios
constitucionais de legalidade e da separação dos poderes, ofendendo, deste
modo, os ditames constitucionais consagrados nos artigos 202.º e 219.º da CRP.
Não obstante a invocação de tal inconstitucionalidade, o que é certo
é que manteve o douto Tribunal da Relação do Porto a condenação do recorrente,
não obstante ter procedido a uma redução da pena de prisão aplicada.
Ora, as razões invocadas em sede de recurso para o Tribunal da
Relação mantêm‑se, após a prolação do consequente acórdão.
Assim, havia sido o recorrente acusado da prática de um crime de
abuso de confiança fiscal, na forma continuada, punido então pelo artigo 24.º do
RJIFNA, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 20‑A/90, de 15 de Janeiro, na redacção que
lhe foi introduzida pelo Decreto‑Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, e que
posteriormente veio a ser punido nos termos do artigo 105.º do RGIT, aprovado
pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.
Os referidos regimes legais, e particularmente o invocado artigo
105.º do RGIT, foram objecto de alteração legislativa decorrente da entrada em
vigor da Lei do Orçamento para o ano de 2007.
Assim, por força de tal diploma legal, o normativo em causa foi
objecto de alteração através do aditamento de novas alíneas.
Concretamente, com a entrada em vigor da Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de
Dezembro, o n.º 4 do dito artigo 105.º do RGIT passou a ter a seguinte nova
redacção:
«Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de
entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da
correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do
valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.»
Ora, quer na douta sentença proferida em 1.ª instância, quer no
douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, foram incluídos factos e
circunstâncias, não constantes da acusação, que vieram a resultar em decisões
que ferem princípios constitucionais.
Na verdade, e mesmo que se entendesse que a alteração legislativa
sub judice não configurou uma verdadeira despenalização, mas sim um aditamento
de novas condições de punibilidade, o que é certo é que da acusação não
constavam tais condições de punibilidade, ou, melhor dizendo, os factos que
preenchiam tais condições de punibilidade.
No entanto, não tendo ocorrido qualquer alteração à douta acusação,
o que é certo é que, na douta decisão de 1.ª instância, veio consignado que o
arguido, embora notificado para tal, não veio liquidar o tributo, com
acréscimos, e coima, no prazo de trinta dias consignados na nova lei.
Ora, a inclusão destas últimas circunstâncias na douta decisão, que,
em síntese, traduzem os factos consubstanciadores das novas condições de
punibilidade aditadas pela lei, viola desde logo os princípios da
irretroactividade, da legalidade e da independência, vazados na nossa Lei
Fundamental.
De facto, de acordo com os artigos 202.º, 203.º e 219.º, entre
outros, da CRP, os tribunais exercem os seus poderes de forma independente,
estando apenas sujeitos à lei.
No caso em apreço nos autos, não obstante ter entrado em vigor a
nova lei, o que é certo é que não foi promovida qualquer alteração ou aditamento
à acusação.
Por outro lado, nem a Administração Tributária, nem o Ministério
Publico, promoveu a notificação do aqui recorrente para que, no âmbito da nova
lei, e no cumprimento do prazo de trinta dias aí consignado, procedesse o mesmo
à entrega dos valores tributários em apreço.
Contrariamente, tal notificação foi efectuada já após a audiência de
julgamento, pelo Meritíssimo Juiz de Direito de 1.ª Instância, em notória
violação dos princípios constitucionais da legalidade, da independência e da
separação de poderes.
Deste modo, o tribunal de 1.ª instância, ao substituir‑se ao
Ministério Público e à Administração Fiscal, na notificação a que alude o n.º 4,
alínea b), do artigo 105.º do RGIT, incorreu em interpretação inconstitucional
deste último referido normativo, violando, assim, os princípios da legalidade e
da separação de poderes, consignados no artigo 2.º da CRP, bem como o disposto
nos já invocados artigos 202.º, 203.º e 219.º da referida Lei Fundamental.
Por outro lado, de acordo com o disposto nos artigos 262.º, 263.º,
264.º, 267.º e 283.º, todos do Código de Processo Penal, compete ao Ministério
Publico, não só a realização e a condução do inquérito, como também a
formulação da acusação, em caso de constatação da prática de ilícito criminal,
passível do respectivo procedimento.
Por outro lado, compete ao tribunal julgar os factos constantes da
acusação, com independência e imparcialidade.
Ora, ao ter incluído na douta sentença factos que não constavam da
douta acusação, e que consubstanciavam as novas condições de punibilidade
previstas na lei, e ao ter o julgador efectuado ele mesmo a notificação aludida
pelo artigo 105.º, n.º 4, do RGIT, fez o mesmo inconstitucional interpretação
dos preceitos constantes do Código de Processo Penal, atrás referido, violando
assim o princípio da separação de poderes consagrado constitucionalmente.
Sem conceder, violou, quer a douta decisão de 1.ª instância, quer a
douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, o princípio constitucional da
proibição da retroactividade da lei penal.
Com efeito, a partir da entrada em vigor do artigo 105.º, n.º 4, do
RGI, na sua nova redacção, a punibilidade de facto criminoso passou a depender,
para além de terem decorrido mais de noventa dias sobre o termo do prazo legal
da entrega da prestação, de a prestação comunicada [à administração]
tributária, através da correspondente declaração, não ser paga, acrescida dos
juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após
notificação para o efeito.
Assim, o facto criminoso só é [punível], se verificadas essas duas
condições.
Com efeito, nalguns tipos de crime, tal como o que está em causa nos
presentes autos, impõe‑se a verificação de outras circunstâncias além da culpa
por uma actuação típica e ilícita, para que haja punibilidade, e, noutros casos,
a concorrência de determinadas circunstâncias exclui essa mesma punibilidade.
Estes elementos adicionais ou excepcionais são incluídos em sede
sistemática própria, que configura uma categoria de teoria geral do crime.
Nesta dita categoria inserem‑se, pois, uma série de elementos ou
pressupostos que o legislador por razões diversas exige, para fundamentar ou
excluir a imposição de uma pena.
Consequentemente, ter‑se‑á de concluir que na categoria da
punibilidade incluem‑se, assim, os pressupostos adicionais que a fundamentam e
os pressupostos que a excluem.
Em síntese, poder‑se‑á dizer, então, que as condições objectivas de
punibilidade são circunstâncias que devem adicionar‑se à acção ilícita para que
se gere a punibilidade.
Ora, no caso em apreço nos autos, ou seja, no caso previsto
actualmente no n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, a punibilidade da acção criminosa
está subordinada à ocorrência de duas condições cumulativas.
Ora, se assim é, também estas duas condições como condições
objectivas de punibilidade se encontram subordinadas ao princípio da
legalidade, e ao princípio da proibição da retroactividade desfavorável ao
agente, e como tal ao abrigo do princípio vazado no artigo 29.º da CRP.
No caso em apreço, com a alteração legislativa que se vem de
invocar, é forçoso concluir‑se que, a partir de 1 de Janeiro de 2007, a
punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal reclama a verificação dos
dois referidos pressupostos consignados na invocada lei.
Ora, como a notificação para pagamento em 30 dias não tinha ainda
ocorrido aquando da prolação da douta acusação, a aplicação da lei nova, por
imperativo constitucional, sempre terá como consequência a determinação da
descriminalização da conduta ilícita que era imputada ao recorrente.
Por isso, e por se tratar, no caso sub judice, da aplicação do n.º 2
do artigo 2.º do Código Penal, proceder‑se, nos presentes autos, à notificação
do aqui recorrente para efectuar o pagamento dos tributos em causa não mais
traduz do que uma aplicação retroactiva da lei, proibida pela lei
constitucional.
E assim, pelos fundamentos expostos, enferma, quer a douta decisão
proferida em 1.ª instância, quer o douto acórdão proferido pelo Tribunal da
Relação do Porto, de errónea e inconstitucional interpretação do artigo 105.º,
n.º 4, do RGIT, bem como dos preceitos penais e processuais atrás referidos,
interpretação essa que viola princípios consagrados na Constituição da
República Portuguesa, e concretamente os princípios da independência, da
legalidade, da proibição de retroactividade da lei penal e da separação de
poderes, impondo-se pois a sua revogação e reforma para os devidos e legais
efeitos, baixando os autos ao tribunal recorrido para que este revogue a
decisão, de acordo com o juízo inconstitucional que vier a ser proferido.”
O representante do Ministério Público neste Tribunal
contra‑alegou, concluindo:
“1. Não é inconstitucional a interpretação normativa do artigo 105.º
do Regime Geral das Infracções Tributárias levada a cabo pela decisão recorrida,
relativa à nova condição de punibilidade constante da alínea b) do n.º 4 do
preceito, cuja redacção lhe foi introduzida pelo artigo 95.º da Lei n.º
53‑A/2006, de 29 de Dezembro.
2. Termos em não deverá proceder o presente recurso.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Na definição (inalterada) do n.º 1 do artigo 105.º
do RGIT, comete o crime de abuso de confiança fiscal quem não entrega à
Administração Tributária, total ou parcialmente, prestação tributária (com a
extensão que a este conceito é dada nos subsequentes n.ºs 2 e 3) deduzida nos
termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar. Na redacção
originária do n.º 4 deste preceito, os factos descritos nos números anteriores
só eram puníveis se tivessem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo
legal de entrega da prestação. O artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de
Dezembro (Orçamento do Estado para 2007), alterou a redacção desse n.º 4 do
artigo 105.º da RGIT, convertendo a condição que constava do corpo desse número
em alínea a), e inserindo uma nova alínea b), nos termos da qual os referidos
factos também só seriam puníveis se “a prestação comunicada à administração
tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos
juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após
notificação para o efeito”.
A introdução desta nova “condição” suscitou divergências
doutrinais e jurisprudenciais, tendo, na sequência destas últimas, sido
interposto recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, que veio
a ser decidido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008, de 9 de
Abril de 2008 (Diário da República, I Série, n.º 94, de 15 de Maio de 2008, p.
2672), que fixou a jurisprudência nos seguintes termos:
“A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT,
na redacção introduzida pela Lei n.º 53‑A/2006, configura uma nova condição
objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código
Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em
consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve
o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo
(alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT).”
Esse acórdão de uniformização de jurisprudência começa
por assinalar que, na sequência da apontada alteração de redacção do n.º 4 do
artigo 105.º do RGIT, surgiram fundamentalmente duas linhas de orientação
relativamente à sua interpretação: para uns a inovação consistiu na criação de
uma nova condição de punibilidade; para outros, ela acarretou uma
despenalização. A primeira orientação – uniformemente adoptada, desde o início,
pelo STJ – considera que à anterior condição de punibilidade, agora plasmada na
alínea a), foi aditada, na alínea b), uma nova condição, mas com a manutenção do
recorte do tipo legal de crime: não obstante a alteração do regime punitivo, o
crime de abuso de confiança fiscal consuma‑se com a omissão de entrega, no
vencimento do prazo legal, da prestação tributária, nada tendo sido alterado em
sede de tipicidade; porém, há que ressalvar a aplicabilidade do disposto no
artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, uma vez que o regime actualmente em vigor é
mais favorável para o agente, quer sob o prisma da extinção da punibilidade
pelo pagamento, quer na óptica da punibilidade da conduta (como categoria que
acresce à tipicidade, à ilicitude e à culpabilidade). Diversamente, a segunda
orientação – defendida por aqueles para quem, no regime anteriormente vigente, o
tipo de ilícito se reconduzia a uma mora qualificada no tempo (90 dias), sendo
a mora simples punida como contra‑ordenação, ilícito de menor gravidade –
entende que o legislador aditou agora, com a referida alteração legal, uma
circunstância que, por referir‑se ao agente e não constituindo assim um aliud na
punibilidade, se encontra no cerne da conduta proibida: existe algo de novo no
recorte operativo do comportamento proibido violador do bem jurídico património
fiscal e que se traduz precisamente no facto de a Administração Fiscal entrar em
directo confronto com o eventual agente do crime, pelo que, enquanto
anteriormente o legislador criminalizava uma mora qualificada relativamente a um
objecto material do crime, o imposto, atendendo aos fins deste, agora pretendeu
estabelecer como crime uma mora específica e num contexto relacional qualificado
– concluindo, consequentemente, pela despenalização.
O citado acórdão uniformizador de jurisprudência
consagrou aquela primeira linha de orientação, que, aliás, já fora a adoptada no
acórdão ora recorrido. E em ambos se invoca o Relatório do Orçamento Geral de
Estado para 2007, no qual o legislador justifica a introdução de distinção
entre, por um lado, os casos em que a falta de entrega da prestação tributária
está associada ao incumprimento da obrigação de apresentar a declaração de
liquidação ou pagamento do imposto e, por outro lado, os casos de não entrega
do imposto que foi tempestivamente declarado, entendendo o legislador que no
primeiro grupo há uma maior gravidade decorrente da “intenção de ocultação dos
factos tributários à Administração Fiscal”, postura esta que já não se
verificaria nas situações em que a “dívida” é participada à Administração
Fiscal, isto é, nas situações em que há o reconhecimento da dívida tributária,
ainda que não acompanhado do necessário pagamento. Estando em causa condutas
diferentes, portadoras de distintos desvalores de acção e a projectar‑se sobre
o património do Fisco com assimétrica danosidade social, elas merecerão, de
acordo com o citado Relatório, “ser valoradas criminalmente de forma
diferente”. E acrescenta‑se: “neste sentido, não deve ser criminalizada a
conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido as suas obrigações
declarativas, regularizem a situação tributária em prazo a conceder,
evitando‑se a «proliferação» de inquéritos por crime de abuso de confiança
fiscal que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do Ministério
Público na sequência do pagamento do imposto”.
A consideração destes elementos teleológico e histórico
conduziram a que no citado acórdão uniformizador de jurisprudência se concluísse
que – perante uma vontade do legislador que, claramente, assume o propósito de
manutenção do recorte do ilícito típico, mas o conjuga com a possibilidade de o
agente, nos casos em que tenha havido declaração da prestação não acompanhada do
pagamento, se eximir da punição pela efectivação do pagamento no novo prazo
concedido – nem a letra nem o espírito da lei permitiam a afirmação de que a
conduta, que se traduz numa omissão pura, se encontrava descriminalizada. A
alteração legal produzida, repercutindo‑se na punibilidade da omissão, é,
todavia, algo que é exógeno ao tipo de ilícito, devendo ser qualificada como
condição objectiva de punibilidade, que deve ser equacionada na medida em que
configure um regime concretamente mais favorável para o agente. Constata, assim,
o referido acórdão uniformizador de jurisprudência, que, tendo sido “intenção
publicitada do legislador, expressa de forma inequívoca na letra da lei, o
objectivo de conceder uma última possibilidade de o agente evitar a punição da
sua conduta omissiva”, “a nova lei é mais favorável para o agente pois que lhe
proporciona a possibilidade de, por acto dependente exclusivamente da sua
vontade, preencher uma condição que provoca o afastamento da punição por
desnecessidade de aplicação de uma pena”, pelo que “a conclusão da aplicação da
lei nova é iniludível face ao artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal”.
2.2. Delineado o quadro de fundo de que emerge a
problemática subjacente ao presente recurso, cumpre, antes de mais, precisar que
resulta inequivocamente do requerimento de interposição de recurso para o
Tribunal Constitucional que a única questão de inconstitucionalidade aí
identificada como integrando o seu objecto se reporta à interpretação do artigo
105.º do RGIT, na redacção dada pelo artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, que teria
sido aplicada no acórdão recorrido, “consubstanciada na substituição por parte
do tribunal de 1.ª instância em relação às atribuições da Administração Fiscal e
do Ministério Público” e que, segundo o recorrente, desrespeitaria os
“princípios constitucionais da legalidade e da separação dos poderes,
ofendendo, assim, os ditames constitucionais consagrados nos artigos 202.º e
219.º da Constituição da República Portuguesa”.
Aliás, fora essa a única questão de
inconstitucionalidade normativa adequadamente suscitada pelo recorrente na
motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação (cf. conclusão 26.ª,
atrás transcrita).
Assim sendo, não podem integrar o objecto do presente
recurso outras questões de inconstitucionalidade não arguidas perante o tribunal
recorrido e nem sequer mencionadas no requerimento de interposição de recurso,
que o recorrente veio suscitar, pela primeira vez, nas alegações apresentadas
neste Tribunal, como, designadamente, a reportada à pretensa violação dos
“princípios da proibição da retroactividade da lei penal, da legalidade e da
independência”, derivada da consideração, na sentença, de factos não constantes
da acusação. Questão esta que, aliás, nos termos em que é colocada, carece de
natureza normativa por se reportar directamente à referida decisão judicial, em
si mesma considerada.
Constitui, assim, objecto do presente recurso, a questão
da inconstitucionalidade, por violação dos princípios da legalidade e da
separação de poderes, consagrados nos artigos 202.º e 219.º da CRP, da
interpretação do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção dada pelo artigo
95.º da Lei n.º 53‑A/2006, no sentido de que pode o tribunal de julgamento
determinar a notificação aí prevista.
Os invocados artigos 202.º e 219.º da CRP respeitam,
respectivamente, à definição da função jurisdicional e das funções e estatuto
do Ministério Público. O primeiro preceito define os tribunais como os órgãos
de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo,
incumbindo‑lhes, nessa função, assegurar a defesa dos direitos e interesses
legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade
democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados. O segundo
comete ao Ministério Público a representação do Estado e a defesa dos interesses
que a lei determinar, bem como a participação na execução da política criminal
definida pelos órgãos de soberania, o exercício da acção penal orientada pelo
princípio da legalidade e a defesa da legalidade democrática.
O critério adoptado no acórdão recorrido de que
competente para determinar a notificação prevista na alínea b) do n.º 4 do
artigo 105.º do RGIT é a entidade titular do procedimento ou do processo
(Administração, Ministério Público, tribunal de instrução criminal ou tribunal
do julgamento), consoante a fase em que ele se encontre quando surge a
necessidade de proceder a essa notificação, em nada colide com os preceitos
constitucionais citados, nem mesmo com o princípio da separação de poderes, na
perspectiva da constituição de uma reserva da Administração.
Quando o Ministério Público, na fase do inquérito,
determina essa notificação, ele visa, não a prossecução da tarefa de cobrança de
receitas típica da Administração Tributária, mas o apuramento, que lhe incumbe
enquanto titular da acção penal, da verificação dos requisitos que o habilitem a
tomar uma decisão de acusação ou de não acusação. Similarmente, quando o juiz
de instrução ou o juiz do julgamento determina idêntica notificação, ambos se
limitam a praticar um acto instrumental necessário à comprovação da existência,
ou não, de uma condição de punibilidade, que determinará a opção entre pronúncia
ou não pronúncia e entre condenação ou absolvição (ou arquivamento). Isto é: em
todas essas hipóteses, a determinação da notificação pelo Ministério Público ou
por magistrados judiciais insere‑se perfeitamente dentro das atribuições
constitucionais dessas magistraturas (exercício da acção penal e administração
da justiça, respectivamente), sem qualquer invasão da reserva da Administração,
nem, consequentemente, com violação do princípio da separação de poderes,
invocado pelo recorrente (quanto à alegada violação do “princípio da
legalidade”, torna‑se impossível proceder à sua apreciação, dada a absoluta
falta de substanciação das razões por que o recorrente entende ocorrer tal
violação, sendo, aliás, incerto o sentido que ele pretende atribuir a tal
princípio, neste contexto).
Improcedem, assim, na totalidade, as alegações do
recorrente.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do
artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias,
aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção dada pelo artigo 95.º
da Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro, interpretado no sentido de que pode o
tribunal de julgamento determinar a notificação aí prevista; e,
consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 31 de Julho de 2008.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos