Imprimir acórdão
Processo nº 523/08
2.ª secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do
art.º 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão, da
decisão sumária proferida pelo relator, no Tribunal Constitucional, que decidiu
não tomar conhecimento do recurso.
2 – A decisão sumária reclamada tem o seguinte teor:
«1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, na sua actual versão (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de
Coimbra, de 7 de Maio de 2008, que negou provimento ao recurso interposto da
sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca do Fundão (2.º Juízo) que o
condenou pela prática, como autor material, de um crime de caça ilegal, p. e p.
pelas disposições conjugadas dos artigos 78.º. n.º 1, 82.º, n.º 2, e 104.º,
todos do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18 de Agosto, 6.º, n.º 1, alínea c), e
30.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, pretendendo a
apreciação da constitucionalidade da norma constante dos “artigos 78.º. n.º 1,
82.º, n.º 2, e 104.º, todos do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18 de Agosto, 6.º,
n.º 1, alínea c), e 30.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, na
interpretação e aplicação conjugadas (…) segundo a qual a mera detenção de um
meio ilegal de caça (“chamariz”) é penalmente sancionada pela norma que sanciona
o exercício de caça por processos e meios não autorizados, por entender que tais
preceitos, nessa interpretação e aplicação, violam o disposto no artigo 29.º,
n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”, questão esta que suscitou nas
conclusões do recurso para o tribunal a quo.
2 – O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido.
Resulta, porém, do n.º 3 do art.º 76.º da LTC que esta decisão não
vincula o Tribunal Constitucional.
E porque se verifica uma situação que se enquadra na hipótese
recortada no n.º 1 do art.º 78.º-A da mesma LTC, passa a decidir-se
imediatamente.
3 - O objecto do recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 280º da Constituição
e na alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da LTC, disposição esta que se limita a
reproduzir o comando constitucional, é a questão de inconstitucionalidade de
norma(s) de que a decisão recorrida faça efectiva aplicação.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de
constitucionalidade que é exigido pela natureza instrumental (e incidental) do
recurso de constitucionalidade tal como o mesmo se encontra desenhado no nosso
sistema constitucional, de controlo difuso da constitucionalidade de normas
jurídicas pelos vários tribunais, bem como pela natureza da própria função
jurisdicional constitucional (cf. José Manuel M. Cardoso da Costa, A jurisdição
constitucional em Portugal, 3.ª edição revista, 2007, pp. 31 e ss., e, entre
outros, os Acórdãos n.º 352/94, publicado no Diário da República II Série, de 6
de Setembro de 1994, n.º 560/94, publicado no mesmo jornal oficial, de 10 de
Janeiro de 1995 e, ainda na mesma linha de pensamento, o Acórdão n.º 155/95,
publicado no Diário da República II Série, de 20 de Junho de 1995, e, aceitando
os termos dos arestos acabados de citar, o Acórdão n.º 192/2000, publicado no
mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de 2000).
4 – Constata-se, porém, que o que o recorrente verdadeiramente
controverte é a correcção da actividade hermenêutica levada a cabo pelo acórdão
recorrido na pesquisa e fixação do sentido normativo que é transportado pelos
artigos 78.º. n.º 1, 82.º, n.º 2, e 104.º, todos do Decreto-Lei n.º 202/2004, de
18 de Agosto, 6.º, n.º 1, alínea c), e 30.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 173/99, de
21 de Setembro, para resolver a questão de saber se o exercício da actividade
venatória de caça [aos tordos] com a munição e detenção de “chamariz” que,
funcionando por pilhas”, tem por efeito atrair espécies cinegéticas, constitui
crime de caça ilegal em face do disposto em tais preceitos.
Na verdade, nas alegações de recurso para o tribunal a quo, o
recorrente sustentou que a detenção do aparelho em causa, sendo embora “proibida
nos termos dos artigos 78.º. n.º 1, 82.º, n.º 2, e 104.º, todos do Decreto-Lei
n.º 202/2004, de 18 de Agosto, não constitui comportamento típico integrador do
crime de caça ilegal de que o mesmo vem acusado, nos termos das disposições
conjugadas dos artigos 78.º. n.º 1, 82.º, n.º 2, e 104.º, todos do Decreto-Lei
n.º 202/2004, de 18 de Agosto, 6.º, n.º 1, alínea c), e 30.º, n.º 1, ambos da
Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro”, e que uma solução contrária só poderia advir
da integração de uma verdadeira lacuna, com recurso à analogia, que é proibida
em direito penal, e violando o princípio da legalidade penal consagrado no art.º
29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Rematando o seu discurso alegatório, concluiu ele do seguinte jeito:
«1 — Vem o presente recurso interposto da sentença que condenou o arguido “pela
prática, como autor material, de um crime de caça ilegal, p. e p. pelas
disposições conjugadas dos artigos 78°, nº 1, 82°, nº 2 e 104° todos do
Decreto-Lei nº 202/2004, de 18 de Agosto, e al. c) do nº 1, do artigo 6° e 30°,
nº 1, todos da Lei 173/99, de 21 de Setembro, a uma pena de 70 (setenta) dias de
multa, à taxa diária de e 5,00, o que perfaz um total de 350,00 ê (trezentos e
cinquenta euros).”.
2 — Não se conforma o arguido com a referida decisão por entender que inexiste
fundamento legal para a sua condenação,
3 — Atenta a matéria dada como provada, concretamente, que “o arguido
transportava dentro do bolso do seu casaco um aparelho sem marca de cor verde
camuflado, funcionando este por meio de uma pilha de 9v, tendo como função
atrair espécies cinegéticas…”, vulgo “chamariz” (ponto 2) e que apenas “exercia
a caça aos tordos com uma arma semi-automática municiada com 3 cartuchos
carregados de chumbo” (ponto 1) — sublinhamos.
4 — É verdade que a detenção do aparelho em causa (“chamariz”) é proibida nos
termos do artigo 78°, nº 1, 82°, nº 2 e 104°, todos do Decreto-Lei nº 202/2004,
de 18 de Agosto (que regulamenta a Lei de Bases Gerais da Caça).
5 — Todavia, tal comportamento não constitui comportamento típico integrador do
crime de caça ilegal de que o mesmo vem acusado, nos termos das disposições
conjugadas dos artigos 78°, nº 1, 82°, nº 2 e 104°, todos do Decreto-Lei nº
202/2004, de 18 de Agosto e dos artigos 6°, nº 1, c) e 30°, nº 1, todos da Lei
nº 173/99, de 21 de Setembro. Com efeito,
6 — O artigo 6°, nº 1, alínea c) da Lei da Caça não descreve como facto punível
a mera detenção de meio de caça ilegal, mas apenas o exercício da caça por
processos e meios proibidos.
7 — Pelo que o respectivo dispositivo penal sancionador (artigo 30°, nº 1 da Lei
da Caça) é inaplicável ao comportamento do arguido — mera detenção de meio
proibido de caça.
8 — Porque inexiste qualquer norma penal sancionadora do referido comportamento
do arguido — pese embora a sua proibição — o mesmo não constitui crime.
9 — Existe, pois, uma verdadeira lacuna incriminadora quanto ao comportamento de
mera detenção de “chamariz”, declarado proibido pelo artigo 82°, nº 2 do
Decreto-Lei nº 202/2004, de 18 de Agosto, susceptível de integração apenas
através de lei penal.
10 — Sendo manifestamente inadmissível, nos termos do artigo 1°, nº 3 do Código
Penal, a condenação do arguido com fundamento em aplicação analógica dos artigos
6°, nº 1, alínea c) e 30º, nº 1 da Lei da Caça ao comportamento do arguido.
11 — A sentença recorrida ao aplicar norma jurídica inaplicável ao caso (artigos
6°, nº 1, alínea c) e 30°, nº 1 da Lei da Caça), inexistindo qualquer outra
norma jurídica que declare como crime o comportamento do arguido dado como
provado, violou o princípio da legalidade penal previsto no artigo 1º, nº 1 do
Código Penal e no artigo 29°, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
12 — Os artigos 78°, nº 1, 82°, nº 2 e 104°, todos do Decreto-Lei nº 202/2004,
de 18 de Agosto e os artigos 6°, nº 1, c) e 30°, nº 1, todos da Lei nº 173/99,
de 21 de Setembro, na interpretação e aplicação conjugada feita pela sentença
recorrida ao caso sub judice, segundo a qual a mera detenção de um meio ilegal
de caça (“chamariz”), é penalmente sancionada pela norma legal que proíbe a caça
por processos e meios não autorizados, são inconstitucionais por violação do
artigo 29°, no 1 da Constituição da república Portuguesa que determina que
“ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que
declare punível a acção ou omissão... “, e como tal deverão ser julgados.».
5 – A essa questão a Relação respondeu discorrendo do seguinte
modo:
«3.1. No caso em apreço, esta Relação tem poderes de cognição restritos à
matéria de direito.
Com efeito, sabendo-se que são as conclusões extraídas pelo recorrente da
respectiva motivação que delimitam o âmbito do recurso (artigo 412.°, n.º 1, do
CPP), lendo-se as ofertadas pelo arguido, decorre que ele coloca como única
questão decidenda a de indagarmos se a mera detenção do “chamariz” em causa é
conduta insusceptível de sancionamento penal, pese embora o seu carácter
(reconhecida e assumidamente) proibido.
Tal não precludiria, no entanto, o conhecimento, mesmo oficioso, dos vícios
enumerados nas diversas alíneas do artigo 410. °, nº 2, do CPP, mas apenas caso
eles resultassem do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as
regras da experiência comum (Acórdão nº 7/95, do Supremo Tribunal de Justiça,
publicado no Diário da República, Iª Série-A, de 28 de Dezembro de 1995, em
interpretação obrigatória). Hipótese que, contudo, se não vislumbra subsistir no
caso sub judice.
3.2. A ponderação acerca da (in) validade da argumentação oposta pelo recorrente
à condenação proferida pelo Tribunal a quo impõe uma curta e prévia enunciação
sobre dois dos princípios essenciais enformadores do direito penal, quais sejam
o da tipicidade e o da legalidade.
O primeiro, implica que a lei especifique suficientemente os factos que
constituem o tipo legal de crime (ou que constituem os seus pressupostos) e que
efectue a necessária conexão entre o crime e o tipo de pena que lhe corresponde
(Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, 4.ª edição,
Coimbra, pág. 495). A tipicidade impede, por conseguinte, que o legislador
utilize fórmulas vagas na descrição dos tipos legais de crime, ou preveja penas
indefinidas ou com uma moldura penal de tal modo ampla que torne indeterminável
a pena a aplicar em concreto. É um princípio que constitui, essencialmente, uma
garantia de certeza e de segurança na determinação das condutas humanas que
relevam do direito criminal (Lopes Rocha, A função de garantia da lei penal e a
técnica legislativa, in Legislação - Cadernos de Ciência e Legislação, n.º 6,
Janeiro-Março de 1993, pág. 25).
O seu desiderato prende-se com o conhecimento pelo destinatário do comportamento
proibido ou imposto (Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Vol. 1,
Lisboa, 1997, pág. 220). O que sucede, por exemplo, no caso em que a referência
(ou remissão, inclusive) para outros instrumentos ou expressões tornam os
regimes vigentes mais acessíveis a esses destinatários das normas, atenta a sua
proximidade empírica em relação aos sujeitos a que dizem respeito, que os
conhecem mais facilmente do que as próprias normas incriminadoras (Teresa
Beleza/Frederico de Lacerda Pinto (O regime legal do erro e as normas penais em
branco, Coimbra, 1999, pág. 40).
O segundo, determina a existência de uma reserva de lei da Assembleia da
República quanto à definição dos crimes, penas, medidas de segurança e
respectivos pressupostos, matéria em que o Governo apenas pode legislar mediante
autorização legislativa daquela [artigo 165.°, n.º 1, alínea c), da CRPJ, e
implica ainda a proibição de intervenção normativa dos regulamentos em termos de
não poder a lei cometer-lhes essa competência (Gomes Canotilho e Vital Moreira,
ob. cit., pág. 494).
De par com a ideia expressa relativamente à tipicidade de que a tónica deve
incidir na necessidade de garantir que a interpretação e aplicação das normas
penais se processe com garantias de certeza e determinabilidade, também no que
concerne a este segundo princípio tal reserva se deve confinar ao núcleo
essencial de conexão entre a conduta proibida e a pena que lhe corresponde, de
molde a poder dizer-se que é a lei que regula, em termos suficientemente
compreensíveis, o tipo legal de crime e a moldura penal aplicável (cfr.
Figueiredo Dias, Para uma dogmática do direito penal secundário, Revista de
Legislação e Jurisprudência, ano 117.°, 1984- 1985, nºs 3718-3719, págs. 47/8).
3.3. Com relevo para a dilucidação do caso presente, urge coligir os normativos
decorrentes, desde logo, do diploma que estabeleceu mormente os princípios
gerais da actividade venatória. Assim:
“1 - Tendo em vista a conservação da fauna e, em especial, das espécies
cinegéticas, é proibido:
(…)
c) Caçar... por processos e meios não autorizados ou indevidamente utilizados;
(...).“ [artigo 6.°, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro] “1
– A caça só pode ser exercida pelos processos e meios permitidos.” [artigo 26.°,
n.º 1, da dita Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro]
“1 — A infracção ao disposto no n.º 1 do artigo 6.° do presente diploma é punida
com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 100 dias.”
[artigo 30.°, n.º 1, ainda da mesma Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro]
Implementando e desenvolvendo tais princípios, foi publicado o DL n.º
227-B/2000, de 15 de Setembro, em cujos artigos 74.°, nº 1, alínea c) e 78.°,
nºs 1 e 2 se preceituava, respectivamente:
“1 — No exercício da caça e dentro dos limites definidos nos artigos seguintes,
apenas são permitidos os seguintes meios:
(...)
c) Negaças e chamarizes;
(...).“
“1 — Só é permitido utilizar (...) chamarizes na caça aos patos, à raposa e ao
sacarabos.
2 - Durante o exercício venatório, é proibida a utilização ou a detenção de
aparelhos que emitam ultra-sons e ainda dos que, funcionando por bateria ou
pilhas, tenham por efeito atrair as espécies cinegéticas, (...).“
Elencava seguidamente tal regime regulamentar no seu artigo 128.° os factos que
cometidos em contrário do legalmente estabelecido, haveriam de considerar-se
como constituindo contra-ordenações, neles se não incluindo, verifica-se, o
exercício venatório aos tordos com recurso a aparelho similar ao dos autos.
Antes se entendia já então que uma tal actividade instituía o agente na prática
do crime previsto, conjugadamente, nos mencionados artigos 6. °, nº 1, alínea c)
e 30. °, nº 1 (Lei da Caça e Regulamento, de Luís Alberto Lança, Anotados,
Almedina, pág. 90).
Este regime regulamentar foi, entretanto, revogado e substituído pelo DL n.º
202/04, de 18 de Agosto [seu artigo 170.°, alínea a)] e depois alvo, por seu
turno, de algumas alterações introduzidas através do DL n.º 201/05, de 24 de
Novembro, em termos que as redacções coevas dos normativos ora relevantes se
mostram os seguintes:
“1 — O uso das negaças e chamarizes só é permitida nos termos definidos nos
artigos 92.° a 106.° do presente diploma para cada uma das espécies cinegéticas.
2 Durante o exercício venatório, é proibida a utilização ou a detenção de
aparelhos que emitam ultra-sons e ainda dos que, funcionando por bateria ou
pilhas, tenham por efeito atrair as espécies cinegéticas, (...).“ [artigos 82.°,
nºs 1 e 2]
Nos indicados artigos 92. ° a 106. ° nada se excepciona relativamente ao
exercício da caça de tordos.
Por outro lado, no seu artigo 123.°, estatui-se:
“1 — Constitui infracção de caça todo o facto punível que seja praticado com
violação das normas legais em matéria de caça.
2 — As infracções de caça são crimes ou contra-ordenações.”
Estas, por fim, mostram-se elencadas no subsequente artigo 137.°, delas não
sobressaindo que a conduta delitiva como a em causa aí se mostre prevenida.
Ora, e todo o regime citado considerado no que concerne às questionadas
tipicidade e legalidade resulta, inequivocamente, que o exercício da actividade
venatória aos tordos com recurso ao mencionado “chamariz” se traduz, assim, na
prática de um crime previsto e punido pelos citados artigos 6.°, nº 1, alínea c)
e 30.°, nº 1.
Com efeito, através de lei expressa emanada pelo competente órgão legislativo,
definiu-se por forma clara e precisa aos seus destinatários (vulgares
caçadores), os termos em que se mostra (criminalmente) proibida e sancionada a
actividade venatória aos tordos com recurso a meio de caça similar ao dos autos.
Aliás, se dúvidas subsistissem, bastava atentarmos na circunstância de ser o
próprio arguido a reconhecer e assumir que a utilização do “chamariz” na caça
aos tordos se mostra meio proibido para a mesma.
Sucede, em rectas contas, que o recorrente se limita a, através de um raciocínio
sofista, pretender extrair da matéria de facto provada uma conclusão que vai de
par com a argumentação jurídica que ensaia defender: a de que apenas exercitava
a caça com recurso à arma semi-automática, que não também àquele primeiro
instrumento.
Esta tentativa está votada, porém, ao malogro.
Ao munir-se do “chamariz” e iniciar a actividade venatória (facto, relembra-se,
que ele não controverte, minimamente), o arguido consumou o crime pelo qual veio
condenado. Na verdade, nessa altura conclui a realização do facto típico
descrito na lei. Isto independentemente de, na realidade, se encontrar a
utilizar o dito instrumento no momento em que foi surpreendido pelas autoridades
fiscalizadoras. A simples detenção do “chamariz” ab initio equipara, pode
dizer-se, o ilícito em causa ao que se designa por crime exaurido, isto é,
àquele em que praticado o primeiro acto, já se mostram produzidos os seus
efeitos finais.
Nesta perspectiva, a sentença recorrida procedeu a um adequado enquadramento
jurídico-penal da factualidade provada, pelo que urge manter-se.».
6 – Decorre, assim, do exposto que o que o recorrente
verdadeiramente sindica constitucionalmente é a correcção, no plano do direito
infraconstitucional, do resultado do juízo de interpretação das disposições
legais que estão em causa, que foi levado a cabo pelo tribunal recorrido,
sustentando, sem qualquer razão, que o mesmo foi conseguido por via analógica e
como método de integração de uma lacuna de direito legislado.
Ora, o certo é que em ponto algum da decisão recorrida esta afirma
chegar a essa solução normativa por essa via ou tão pouco se vislumbra do seu
percurso lógico-discursivo que esse foi o método usado para determinar a norma
aplicada.
Estamos, desde modo, perante uma simples discussão sobre a correcção
do resultado interpretativo a que aportou o tribunal a quo.
Todavia, como tem notado a maioria da jurisprudência deste Tribunal
(cf., a título de exemplo, os Acórdãos nºs 196/2003, 197/2003 e 674/99, todos
disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), essa questão não constitui uma
questão de constitucionalidade normativa que possa ser conhecida no recurso de
fiscalização concreta de constitucionalidade, tal como este se encontra
recortado no nosso sistema, de fiscalização de normas jurídicas.
Neste caso, o princípio da legalidade penal (ou fiscal), conquanto
traduzindo uma garantia fundamental dos cidadãos contra os “lapsos” ou
“inabilidade” do legislador na conformação das condutas penalmente censuráveis,
apenas opera como mero limite constitucional à admissibilidade do resultado
interpretativo a que se chegou no processo de interpretação, obrigando o
intérprete a excluir aqueles resultados que não tenham na letra da lei um mínimo
de correspondência verbal.
Assim, sendo sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o
Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não
sendo admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do
recurso de amparo espanhol, sindiquem sub species constitutionis a concreta
aplicação do direito efectuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar
ao acto de “aplicação” judicial a violação dos parâmetros
jurídico-constitucionais, temos de concluir pelo não conhecimento do recurso.
7 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide não tomar conhecimento do recurso e condenar o recorrente nas custas,
fixando a taxa de justiça em 7 UCs.».
3 – Fundamentando a sua reclamação, o reclamante argumenta do
seguinte jeito:
«A., recorrente no processo à margem identificado, notificado da decisão
sumária, proferida nos termos do nº 1 do artigo 78°-A da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, que entendeu não conhecer
do recurso interposto, vem ao abrigo do nº 3 do mesmo artigo RECLAMAR PARA A
CONFERÊNCIA, o que faz nos termos seguintes:
Da admissibilidade do recurso
1 - Nos termos do artigo 280°, nº 1, alínea b), da Constituição da República
Portuguesa e do artigo 70°, nº 1, alínea b), da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional “Cabe recurso para o
Tribunal Constitucional das decisões dos Tribunais que apliquem norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo” – sublinhamos.
2 - Conforme resulta claramente do requerimento de interposição de recurso para
o Tribunal Constitucional, o que o recorrente pretende é a apreciação da
conformidade constitucional dos artigos 78°, nº 1, 82°, nº 2 e 104°, todos do
Decreto-Lei nº 202/2004, de 18 de Agosto, e dos artigos 6°, nº 1, alínea e), e
30°, nº 1, todos da Lei nº 173/99, de 21 de Setembro, na interpretação e
aplicação conjugadas efectuadas pelo Tribunal de Primeira Instância e
confirmadas pelo Tribunal da Relação de Coimbra, com o artigo 29°, nº 1, da
Constituição da República Portuguesa.
3 - No fundo, em causa está saber se as referidas normas, na interpretação e
aplicação feitas pelo Tribunal a quo, no sentido de que a mera detenção de um
meio ilegal de caça (“chamariz”) é penalmente sancionada pela norma que sanciona
expressamente apenas o exercício da caça por processos e meios não autorizados,
violam ou não o artigo 29°, nº 1 da CRP.
4 - A inconstitucionalidade das referidas normas foi suscitada durante o
processo, concretamente, a fls. 8 e na conclusão 12 das alegações do recurso
interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra a 14/2/2008.
5 - EM SUMA, o recurso interposto pretende ver sindicada a
(in)constitucionalidade das normas aplicadas pelo Tribunal recorrido,
oportunamente invocada no processo, pelo que o mesmo deve ser conhecido por esse
Venerando Tribunal, o que se requer.
Da decisão sumária de não conhecimento do recurso
6 - Refere a decisão sumária recorrida a fls. 2 e 3 que:
“o que o recorrente verdadeiramente controverte é a correcção da actividade
hermenêutica levada a cabo pelo acórdão recorrido na pesquisa e fixação do
sentido normativo que é transportado pelos artigos 78º, nº 1, 82º, n°2 e 104º,
todos do Decreto-Lei nº 202/2004, de 18 de Agosto, e dos artigos 6º, nº 1,
alínea c) e 30º, nº 1, todos da Lei n ° 173/99, de 21 de Setembro, para resolver
a questão de saber se o exercício da actividade venatória de caça [aos tordos]
com a munição e detenção de “chamariz” que, funcionando por pilhas, tem por
efeito atrair espécies cinegéticas, constitui crime de caça ilegal em face do
disposto em tais preceitos.”- sublinhamos.
7 — Acrescentando a fls. 7 e 8 da decisão proferida que:
“...o que o recorrente verdadeiramente sindica constitucionalmente é a
correcção, no plano do direito infraconstitucional, do resultado do juízo de
interpretação das disposições legais que estão em causa, que foi levado a cabo
pelo tribunal recorrido, sustentando, sem qualquer razão, que o mesmo foi
conseguido por via analógica e como método de integração de uma lacuna de
direito legislado.
Ora, o certo é que em ponto algum da decisão recorrida esta afirma chegar a essa
solução normativa por essa via ou tão pouco se vislumbra do seu percurso
lógico-discursivo que esse foi o método usado para determinar a norma aplicada.
Estamos, deste modo, perante uma simples discussão sobre a correcção do
resultado interpretativo a que aportou o tribunal a quo.
Neste caso, o princípio da legalidade penal (ou fiscal), conquanto traduzindo
uma garantia fundamental dos cidadãos contra os “lapsos” ou “inabilidade” do
legislador na conformação das condutas penalmente censuráveis, apenas opera como
mero limite constitucional à admissibilidade do resultado interpretativo a que
se chegou no processo de interpretação, obrigando o intérprete a excluir aqueles
resultados que não tenham na letra da lei um mínimo de correspondência verbal.”
- sublinhamos.
Da invocada inconstitucionalidade
8 - Salvo o devido respeito pela opinião contrária expressa pelo Exmo. Senhor
Dr. Juiz Conselheiro Relator, que é muito, o que o recorrente invoca é que as
normas aplicadas pelo Tribunal recorrido, na interpretação por ele efectuada,
são inconstitucionais por violação do artigo 29°, nº 1, da Constituição da
República Portuguesa, que consagra o princípio da legalidade penal.
9 - Com efeito, o comportamento do arguido (detenção de “chamariz”, que é um
meio proibido de caça) não é expressamente declarado punível pelos artigos 78°,
nº 1, 82°, nº 2 e 104°, todos do Decreto-Lei nº 202/2004, de 18 de Agosto, e 6°,
nº 1, alínea c) e 30º, nº 1, todos da Lei nº 173/99, de 21 de Setembro, que
apenas sanciona penalmente o exercício da caça mediante meios proibidos de caça.
10 - A subsunção do comportamento do arguido aos referidos normativos, e
consequente condenação pelo crime de caça ilegal, resultou de integração
analógica dos referidos normativos pelo Tribunal a quo, em violação do artigo
29°, nº 1, da CRP.
11 - Apropriando-nos da expressão do Exmo. Senhor Dr. Juiz-Relator, diremos que
o “resultado interpretativo [a que chegou o Tribunal a quo] não tem na letra da
lei um mínimo de correspondência verbal”
Senão, vejamos:
12 - É matéria assente que o arguido detinha um meio proibido de caça
(“chamariz”) (ponto 2 da matéria de facto) mas exerceu a caça apenas com uma
arma semiautomática (ponto 1 da matéria de facto).
13 - O Tribunal recorrido condenou o recorrente pelo crime de caça ilegal com
fundamento na mera detenção por aquele de um “chamariz” por aplicação conjugada
dos artigos 78°, nº 1, 82°, nº 2 e 104°, todos do Decreto-Lei nº 202/2004, de
18/8, e dos artigos 6°, nº 1, alínea c) e 30°, nº 1, todos da Lei nº 173/99, de
21/9.
14 - É manifesto que a norma sancionatória prevista no artigo 30°, nº 1
conjugado com o artigo 6°, nº 1, alínea c), ambos da Lei da Caça, não contempla
na sua letra como facto punível a mera DETENÇÃO de meio de caça ilegal, mas
apenas O EXERCÍCIO da caça por meios de caça proibidos.
15 - E isso mesmo é reconhecido pelo Tribunal recorrido que justificou a
subsunção do comportamento do arguido na previsão normativa dos artigos 6°, nº
1, alínea c) e 30°, nº 1 da Lei da Caça por analogia, nos seguintes termos (fls.
10 do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra):
“Ao munir-se do “chamariz” e iniciar a actividade venatória (facto, relembra-se,
que ele não controverte, minimamente), o arguido consumou o crime pelo qual veio
condenado. Na verdade, nessa altura conclui a realização do facto típico
descrito na lei. Isto independentemente de, na realidade se encontrar a utilizar
o dito instrumento no momento em que foi surpreendido pelas autoridades
fiscalizadoras. A simples detenção do “chamariz” ab initio EQUIPARA, pode
dizer-se, o ilícito em causa ao que se designa por crime exaurido, isto é,
àquele em que é praticado o primeiro acto, já se mostram produzidos os seus
efeitos finais.”- sublinhamos.
16 - Deter um meio proibido de caça e exercer a caça com meio proibido de caça
configuram comportamentos substancialmente distintos.
17 - Isso mesmo resulta do significado linguístico corrente das duas expressões.
Com efeito, deter é “ter em seu poder “, “conservar”, enquanto exercer é “pôr em
acção”, “levar a efeito”, “fazer uso de”, “utilizar”.
18 - A decisão do Tribunal a quo ao equiparar (SIC! - a expressão é a que consta
do Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra) a mera
detenção de um meio proibido de caça ao exercício da caça com meios proibidos de
caça – único comportamento declarado punível pelos artigos 6°, nº 1, alínea c) e
30º, nº 1 da Lei da Caça – procede manifestamente à integração analógica, vedada
em direito penal, por força do artigo 29°, nº 1 da CRP que determina que
“Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que
declare PUNÍVEL a acção ou omissão...”“ – sublinhamos.
19 - EM SUMA, o recorrente não se limita a ‘urna simples discussão sobre a
correcção do resultado interpretativo a que aportou o tribunal a quo”, antes
invoca correctamente a inconstitucionalidade dos artigos 78°, nº 1, 82°, nº 2 e
104°, todos do Decreto-Lei nº 202/2004, de 18/8, e dos artigos 6°, nº 1, alínea
c), e 30°, nº 1, todos da Lei nº 173/99, de 21/9, na interpretação e aplicação
conjugadas efectuadas pelo Tribunal da Relação de Coimbra, por violação do
artigo 29°, nº 1, da CRP.
20 - TERMOS EM QUE, deverá a presente reclamação ser deferida e, em
consequência, a Conferência decidir conhecer do objecto do recurso e o Exmo.
Senhor Dr. Juiz Relator mandar notificar o recorrente para apresentar alegações
nos termos do artigo 78°-A, nº 5 da Lei de Organização, Funcionamento e Processo
do Tribunal Constitucional.».
4 – Respondendo à reclamação, o Procurador-Geral Adjunto neste
Tribunal afirmou:
«1º
A presente reclamação é, a nosso ver, manifestamente improcedente.
2º
Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos de decisão
reclamada, no que toca à inidoneidade do objecto normativo do recurso
interposto, face, nomeadamente, ao entendimento que tem prevalecido no Plenário
deste Tribunal Constitucional.».
B – Fundamentação
5 – Para quem siga a argumentação da decisão sumária reclamada, a
reclamação é, logo, de indeferir.
Mas mesmo quem defenda o entendimento sufragado no Acórdão n.º
183/08, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, chegará à mesma conclusão.
Na verdade, disse-se aí:
«[…]
4. A delimitação do objecto do processo
[…]
Sabe-se que a Constituição não acolheu um sistema de recurso de
amparo ou de queixa constitucional mas sim um sistema de fiscalização normativa
da constitucionalidade, que impede que o Tribunal conheça de actos (não
normativos) dos poderes públicos que sejam directamente lesivos de direitos
fundamentais, constitucionalmente tutelados. Nessa medida, não pode também o
Tribunal conhecer da eventual inconstitucionalidade de decisões judiciais em si
mesmas tomadas.
Mantém-se exemplar, a este propósito, a explicação do Acórdão n.º
674/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 25 de Fevereiro de 2000)
que foi recentemente transcrito no já citado Acórdão n.º 524/07 e que aqui se
repete:
[…] mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente
para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se
ter procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma
operação equivalente, designadamente a uma interpretação ‘baseada em raciocínios
analógicos’, o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional
possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos
tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade.[…]
[…] Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a
controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou
fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos
recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em
matéria penal (ou fiscal). E, em boa verdade, por identidade lógica de
raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se
confrontar com a necessidade de sindicar toda a actividade interpretativa das
leis a que necessariamente se dedicam os tribunais – designadamente os tribunais
supremos de cada uma das respectivas ordens –, uma vez que seria sempre possível
atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu
‘sentido natural’ (e qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação
do princípio da separação de poderes, porque mero produto de criação judicial,
em contradição com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma
tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa
reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detectar cumulativamente,
nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica.
Ora, um tal entendimento – alargando de tal forma o âmbito de
competência do Tribunal Constitucional – deve ser repudiado, porque conflituaria
com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra
desenhado na Lei Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a
restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de
inconstitucionalidade normativa.
Tudo isto é verdade e terá de se manter como boa jurisprudência.
De facto, como se disse, não vigora entre nós um sistema de recurso
de amparo ou de queixa constitucional, existindo, sim, um sistema de
fiscalização normativa da constitucionalidade que não permite que o Tribunal
conheça do mérito constitucional do acto casuístico de subsunção de um
pormenorizado conjunto de factos concretos na previsão abstracta de uma certa
norma legal.
Contudo, o problema que agora se coloca − que é o de saber se não
haverá porventura uma violação do princípio da legalidade criminal quando se
considera que a declaração de contumácia constituía uma causa de suspensão da
prescrição à luz do artigo 119.º n.º 1 do Código Penal de 1982 e do artigo
336.º, n.º 1 do Código de Processo Penal de 1987 − tem uma especificidade que
não poderá ser negligenciada.
Esta especificidade do problema poderá ser explicada partindo de uma
distinção metodológica relativa ao referente da norma legal.
As normas podem referir-se (i) a factos concretos cujo
circunstancialismo envolvente será sempre inabarcável, podem também referir-se
(ii) a realidades típicas não configuradas pelo legislador e podem, ainda,
referir-se (iii) a meras categorias normativas fixadas por lei (sobre o
“referente” da linguagem jurídica como realidade autonomamente constituída no
domínio do direito e que não se identifica necessariamente com a realidade em si
mesma, Castanheira Neves, O actual problema metodológico da interpretação
jurídica, Coimbra 2003, p. 251-268).
Esta diferença é processualmente relevante.
Se no primeiro caso é líquido que a determinação do referente da
norma (factos concretos) está fora do domínio de actividade do Tribunal
Constitucional, já o mesmo não se poderá dizer, com igual certeza, no segundo
caso em que o referente são factos típicos com um elevado grau de abstracção e,
menos ainda, no terceira hipótese em que o referente sejam categorias legais.
O sistema português de fiscalização da constitucionalidade inclui a
possibilidade de apreciar a validade daquilo que geralmente se designam como
interpretações normativas, admitindo o artigo 80º, nº 3, da Lei do Tribunal
Constitucional a possibilidade de “o juízo de constitucionalidade sobre a norma
que a decisão tiver aplicado, ou a que tiver recusado aplicação, se fundar em
determinada interpretação dessa mesma norma”.
O controlo de constitucionalidade das “interpretações normativas”,
assim admitido, não atribui, porém, ao Tribunal a competência que ele não pode
ter, desde logo face ao disposto no artigo 221º da Constituição. Um “tribunal ao
qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza
jurídico-constitucional” não pode, evidentemente, transformar-se em instância
revisora do modo como os demais tribunais interpretam e aplicam o direito
infra-constitucional, substituindo-se-lhes na tarefa (que exclusivamente lhes
pertence) de subsunção de certos factos a certo tipo de determinação legal. Tal
em caso algum poderá ocorrer; tal não ocorre seguramente no caso agora sub
judice.
Com efeito, e ao invés do que sucede quando se pergunta se
determinado conjunto de factos concretos é ou não susceptível de subsunção num
determinado tipo legal, quando se pergunta se a declaração de contumácia é ou
não susceptível de integrar o universo das causas legais de suspensão da
prescrição, não se está a determinar se uma expressão legal é ou não susceptível
de ter como referente um determinado conjunto de factos concretos, mas sim um
acto processual legalmente definido de forma geral e abstracta. O referente é
pois, em primeira linha, o conteúdo geral e abstracto de uma norma legal e não
um conjunto de factos concretos ou típicos.
Não se pergunta se um determina facto concreto com todo o seu
circunstancialismo se pode incluir no âmbito da norma. A esta pergunta não pode
o Tribunal Constitucional responder.
Não se coloca aqui, sequer, a questão de saber se um determinado
facto típico dotado já de um grau médio de abstracção está abrangido pelo âmbito
de uma norma − que era o que sucederia, por exemplo, se se perguntasse se a
“energia eléctrica” se pode considerar uma “coisa móvel” ou se o “ácido” se
poderá considerar uma “arma” para efeitos de um determinado tipo de crime
(veja-se Figueiredo Dias, Direito penal. Parte geral, Tomo I: Questões
Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, 2ª ed. Coimbra 2007, p. 188 s.).
Pergunta-se, sim, se um acto processual normativamente inventariado
em termos gerais e abstractos pela lei – a “declaração de contumácia” – é, ou
não, passível de ser assimilado pelos conceitos utilizados pelo texto do artigo
119.º na versão originária de 1982 e, em especial, se ela se poderá configurar
como um “caso de suspensão da prescrição especialmente previsto na lei” ou como
uma hipótese de “falta de autorização legal para continuar o procedimento”.
Trata-se apenas de saber se − em abstracto − será possível incluir o
conteúdo normativo constante de uma norma – o artigo 336.º do Código de Processo
Penal – no conteúdo normativo constante de outra norma – o artigo 119.º, n.º 1,
do Código Penal, na versão originária de 1982.
Assim, os argumentos fundamentais invocados para não conhecer das
eventuais violações do princípio da legalidade não valem para este caso em que o
possível referente da norma é uma outra norma geral e abstractamente fixada por
lei.
Note-se que, a este respeito, é indiferente entender (como fez o
Supremo Tribunal de Justiça no Assento n.º 10/2000) que se trata de uma
interpretação da norma legal do artigo 119.º do Código Penal ou pelo contrário
de uma norma implícita (conjecturada porventura segundo o método previsto no
artigo 10.º, n.º 3, do Código Civil) como parece decorrer do já referido acórdão
do Tribunal Constitucional n.º 110/07.
De facto, mantém-se válido o que se explicou no Acórdão n.º 205/99,
a respeito da questão de saber se violava ou não o princípio da legalidade
considerar a declaração de contumácia como uma causa de interrupção da
prescrição para efeitos do artigo 120.º, n.º 1, alínea a) do CP:
Questão afim da anterior é a de saber se o objecto do recurso é
efectivamente o artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal ou antes uma
norma construída pelo julgador através de um processo de integração de lacuna
por analogia, nos termos do artigo 10.º, nºs 1 e 2, do Código Civil. Note-se,
porém, que em ambos os casos estaremos confrontados com uma norma cuja
conformidade à Constituição é sindicável perante o Tribunal Constitucional. Na
primeira hipótese, concluir-se-á que a aplicação analógica ainda constitui uma
actividade interpretativa, em sentido amplo, dando como resultado uma certa
dimensão normativa que pode contrariar normas ou princípios constitucionais. Na
segunda hipótese, estará em causa uma norma não escrita igualmente susceptível
de afrontar a Constituição quer quanto ao seu conteúdo quer quanto à sua génese
(a circunstância de ser obtida mediante uma aplicação analógica vedada pelo
artigo 29.º, nºs 1 e 3, da Constituição feri-la-á de inconstitucionalidade
material).
Todavia, esta questão acaba por ser de cunho puramente teorético na
medida em que estará sempre em causa a questão de saber se é compatível com a
Constituição a norma que determina a interrupção da prescrição obtida a partir
do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal. E, independentemente de
estar em causa uma interpretação extensiva ou aplicação analógica desta norma
legal, o que se pergunta é se a norma, dimensão, sentido ou interpretação
obtidos contrariam ou não, na sua génese, o princípio da legalidade e, em
concreto, a exigência de lex certa que lhe é ínsita.”
Nos acórdãos nºs 412/2003 e 110/2007, o Tribunal Constitucional
entendeu que, para que houvesse um objecto apto à apreciação da
constitucionalidade, bastaria que se estivesse perante um critério normativo,
dotado de elevada abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a
propósito de uma pluralidade de situações concretas.
Seria pois necessário que a questão se colocasse com um grau
suficiente de generalidade e abstracção, de tal modo que se pudesse dizer que se
trataria de uma interpretação normativa que não dependeria do circunstancialismo
concreto dos factos.
Se admitimos que este critério possa gerar dúvidas no que respeita a
realidades típicas sem previsão legal, já o mesmo não se poderá dizer quando
está em causa uma figura processual abstracta normativamente prevista como é o
caso da declaração de contumácia.
Nestes termos, está o Tribunal Constitucional habilitado a tomar
conhecimento da questão da constitucionalidade que aqui se coloca quer o objecto
do processo seja entendido como uma interpretação normativa do artigo 119.º do
Código Penal de 1982, quer seja entendido como norma extraída das disposições
conjugadas do artigo 119.º, nº 1, do Código Penal e do artigo 336.º, nº 1, do
Código de Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo
a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de
contumácia (sobre o problema das “normas implícitas” como objecto idóneo de
fiscalização da constitucionalidade, Rui Medeiros, “A Força expansiva do
conceito de norma no sistema português de fiscalização concentrada da
constitucionalidade”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando Marques
Guedes, Lisboa, 2004, p. 187 ss., esp., p. 193 s., onde se “recoloca” o problema
da fiscalização do cumprimento do princípio da legalidade criminal por parte do
Tribunal Constitucional).».
Ora, também à luz da doutrina defendida neste acórdão, é de concluir
que a questão colocada pelo recorrente não é uma questão de constitucionalidade
normativa.
Na verdade, no caso em apreço não estamos perante qualquer questão
de saber se determinadas “categorias normativas fixadas” ou construídas por lei
(referentes normativos), consubstanciadas num critério de decisão determinado
com abstracção e generalidade em face do sistema jurídico-penal, respeitam ou
não o sentido verbal de normas estruturadas segundo o princípio da legalidade
penal, consagrado no art.º 29.º, n.º 1, do Código Penal, mas antes perante a
questão de saber se determinadas realidades empíricas ou factos jurídicos
concretos preenchem cabem ou não na hipótese delineada abstractamente pela norma
penal.
Do que se trata é apenas de saber se a detenção, no acto venatório
da caça, de um concreto aparelho, apto a funcionar mecanicamente como chamariz
de tordos integra ou não o crime previsto e punido pelos artigos 6.°, nº 1,
alínea c) e 30.°, nº 1, da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro.
Ora, a resposta exige apenas uma actividade hermenêutica tendente a
determinar se a detenção [material] por parte do recorrente do concreto
“chamariz”, durante o exercício do acto venatório da caça, detenção essa
proibida e tida como tal até pelo recorrente, cabe ou não no âmbito da hipótese
factual, recortada abstractamente, dos preceitos que configuram como crime de
caça ilegal a prática do venatório “por processos e meios proibidos” [na lei].
Em rigor, o que está em causa é apenas a questão de saber se
determinadas realidades fácticas cabem ou não dentro de outras realidades que,
na sua base, apelam a elementos fácticos {“processos e meios [fácticos]
proibidos”}, mas foram convertidas pelo legislador, na construção da norma, em
referentes jurídicos.
Essa é uma questão cuja resposta se obtém através das regras
próprias da interpretação do direito, no plano infraconstitucional, não
constituindo qualquer questão de constitucionalidade normativa para a qual o
Tribunal Constitucional seja competente.
A actividade demandada, no recurso, é simplesmente de reexame da
correcção da utilização das regras hermenêuticas adequadas e do resultado a que
se chegou na actividade jurídico-determinativa do direito aplicável.
Assim sendo, não pode o Tribunal Constitucional conhecer do recurso.
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação e condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa
de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 31 de Julho de 2008
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos