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Processo n.º 502/08
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é
recorrente A. e recorridos o Ministério Público, B. e C., a Relatora proferiu a
seguinte decisão sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorridos o Ministério
Público, B. e C., foi interposto recurso, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1,
alínea b) da CRP e do artigo 70º, n.º 1, alínea b) da LTC, do acórdão proferido
pelo Tribunal da Relação do Porto, em 19 de Dezembro de 2007 (fls. 6464 a 6504),
devidamente complementado pelo acórdão proferido pelo mesmo Tribunal, em 05 de
Março de 2008, relativamente a arguição de nulidade e pedido de aclaração (fls.
6530 a 6536) para que seja apreciada a constitucionalidade das seguintes
interpretações normativas:
i) “art 187, nº 1 do C P Penal, na redacção anterior à lei
48/2007 de 29/8, interpretado no sentido de que a decisão judicial de
autorização de escutas telefónicas se pode basear tão só numa simples suspeita
de factos ilícitos ocorridos dois anos antes da autorização judicial e apenas
pelo simples facto de a pessoa objecto das escutas se manter no exercício da
mesma actividade (desportiva) na qual teriam ocorrido aqueles factos e sem mais
elementos que permitissem concluir que tal suspeita se mantinha nesses dois
últimos anos” (fls. 6545);
ii) “art.s 187, nº 1 C P Penal e 189 do mesmo diploma, ambos na
redacção anterior à Lei 48/2007, na interpretação segundo a qual a falta de
fundamentação do despacho que autoriza as escutas telefónicas, não indicando,
nem expressa, nem tacitamente ou por remissão, os fundamentos de facto e de
direito exigidos por aquele normativo no segmento «houver razões para crer que a
diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para
a prova» consubstancia apenas []uma mera irregularidade” (fls. 6545);
iii) “artigos 187, nº 1 e 188, nº 1 do C P Penal, na versão
anterior à Lei 48/2007, no sentido de que (…) a imediação a que alude o art 188
e os princípios da necessidade e subsidiariedade das escutas telefónicas se
compaginam e compatibilizam com a possibilidade de o Juiz prorrogar por períodos
de 60 (ou de 30) dias a autorização das escutas, quando faltavam ainda vários
dias para o termo do prazo anterior e sem que previamente tomasse conhecimento
do resultado de grande parte das escutas já levadas a cabo no período anterior e
na sua disponibilidade” (fls. 6546);
iv) “artigos 187, nº 1 e 188, nº 1 do C P Penal, na versão
anterior à Lei 48/2007, no sentido de que (…) a prorrogação das escutas
telefónicas se poderia basear apenas no facto de as anteriores terem permitido
obter excelentes resultados e não na necessidade das novas escutas, ou seja, no
«grande interesse» destas, tendo em vista o apuramento de quaisquer elementos em
falta” (fls. 6546)
v) “artigos 187, nº 1 e 188, nº 1 do C P Penal, na versão
anterior à Lei 48/2007, no sentido de que (…) a exigência legal da imediação
ficaria satisfeita com o controlo e tomada de conhecimento pelo juiz mais de um
mês depois de as escutas telefónicas terem sido gravadas e seleccionadas pela
PJ, sendo que essas gravação e selecção haviam já ocorrido, em alguns casos,
semanas (ou até mais de um mês) após a intercepção” (fls. 6546);
vi) “artigos 187, nº 1 e 188, nº 1 do C P Penal, na versão
anterior à Lei 48/2007, no sentido de que (…) a dita imediação ficaria ainda
satisfeita, mantendo-se a entidade policial ininterruptamente a gravar e a
seleccionar as escutas relevantes, durante largos períodos de tempo próximos ou
superiores a um mês, sem as colocar na disponibilidade da JIC” (fls. 6546).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr.
fls. 6547), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não
vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito
legal, pelo que, tratando-se de um recurso interposto com base na al. b) do nº 1
do artigo 70º LTC, se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os
pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº
2, da LTC.
Se o Relator constatar que não foram preenchidos algum ou alguns desses
pressupostos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme
resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Quanto à primeira interpretação normativa reputada de inconstitucional pelo
recorrente, deve notar-se que aquele nem sequer suscitou tal questão em sede de
alegações de recurso, tendo-se limitado a afirmar a ilegalidade de decisão que
viesse a autorizar a realização de intercepção de chamadas telefónicas com base
numa mera suspeita de prática de actos ilícitos há mais de dois anos:
“7. Não é legalmente admissível, por violação dos princípios da suspeita fundada
da prática de um crime de catálogo, da subsidiariedade, da proporcionalidade e
da adequação inerentes à utilização de escutas telefónicas, determinar-se a
realização destas a partir de suspeitas ocorridas dois anos antes, apenas porque
entretanto o suspeito se tenha mantido no exercício do mesmo cargo desportivo.”
(fls. 6467)
Do modo como o recorrente configurou as suas alegações de recurso para o
Tribunal da Relação do Porto decorre que aquele nunca reputou de
inconstitucional qualquer interpretação normativa resultante do artigo 187º, n.º
1 do CPP, na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, antes tendo-se limitado a
afirmar a ilegalidade da referida decisão, por má aplicação do Direito
infra-constitucional.
Aliás, ciente disso, o recorrente, em sede de pedido de “aclaração”, tentou
corrigir a falta, tendo vindo peticionar ao tribunal ora recorrido que
apreciasse a “questão da inconstitucionalidade da interpretação que ele próprio
sufragou (no sentido de que bastava para se determinar a realização de escutas,
que houvesse suspeitas dois anos antes da prolação do respectivo despacho
judicial e que a pessoa sujeita a escutas se mantivesse no exercício da mesma
actividade desportiva” (fls. 6525). Ou seja, tendo-se apercebido de que não
havia formulado de modo processualmente adequado uma questão de
inconstitucionalidade normativa, o recorrente lançou mão do expediente
processual da aclaração de acórdão, de modo a contornar essa omissão.
Sucede, porém, que tal estratégia processual não pode ser considerada como
suscitação prévia e adequada de uma questão de inconstitucionalidade normativa,
de modo a que o tribunal recorrido dela pudesse conhecer, conforme determinado
pelo n.º 2 do artigo 72º da LTC. Em sede de aclaração, o tribunal recorrido
apenas pode explicitar o sentido fundamentador da decisão proferida, não lhe
sendo lícito conhecer de questões novas que lhe tenham sido colocadas só após a
prolação da decisão a aclarar. Como tal, por força do n.º 2 do artigo 72º da
LTC, este Tribunal não pode conhecer do objecto do recurso, quanto à primeira
interpretação normativa do artigo 187º, n.º 1 do CPP, na redacção anterior à Lei
n.º 48/2007.
Acresce ainda que, mesmo que assim não fosse – o que apenas por necessidade de
exaustão dos fundamentos de não conhecimento se pondera –, sempre se diria que a
decisão recorrida não aplicou efectivamente o artigo 187º, n.º 1 do CPP, no
sentido reputado de inconstitucional pelo recorrente. É que, em momento algum, a
decisão afirma que o único motivo que justificou a autorização da intercepção
telefónica foi a “simples suspeita de factos ilícitos ocorridos dois anos antes
da autorização judicial”, conforme pretende fazer crer o recorrente (fls. 6542).
Analisado o acórdão que apreciou o pedido de aclaração entretanto formulado pelo
recorrente, constata-se que a decisão recorrida – tal como complementada pelo
acórdão de 05 de Março de 2008 – afirma textualmente que “este foi um dos
fundamentos, entre outros…” (fls. 6535). Deste modo, conclui-se que a decisão
recorrida não conferiu ao n.º 1 do artigo 187º do CPP, na redacção anterior à
Lei n.º 48/2007, o primeiro sentido interpretativo reputado de inconstitucional
pelo ora recorrente. Como tal, também por força do artigo 79º-C da LTC, sempre
se tornaria legalmente inadmissível a tomada de conhecimento do objecto do
presente recurso.
4. Quanto à segunda interpretação normativa reputada de inconstitucional,
importa igualmente notar que ela não corresponde à que foi efectivamente
adoptada pela decisão recorrida. Nestes autos, o recorrente pretende que seja
julgada a inconstitucionalidade de uma interpretação normativa do n.º 1 do
artigo 187º do CPP, na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, nos termos da qual
“a falta de fundamentação do despacho que autoriza as escutas telefónicas, não
indicando, nem expressa, nem tacitamente ou por remissão, os fundamentos de
facto e de direito exigidos (…), consubstancia apenas uma mera irregularidade”
(fls. 6542). Contudo, afigura-se incontornável que a decisão recorrida nunca
considerou verificada a falta de fundamentação do despacho que autorizou as
intercepções telefónicas. Pelo contrário, a decisão recorrida, complementada
pelo acórdão que indeferiu a aclaração, considerou mesmo que:
“(…) no caso, dada a natureza das suspeitas processualmente documentadas,
resultantes da conjugação, nos termos referidos, entre o processado anterior, o
teor da promoção do MP que introduziu o processo ao JIC e o consequente despacho
deste, é processualmente admissível o raciocínio de que se verificavam então
fortes razões para crer que das escutas telefónicas poderiam advir não só
importantes acrescentos em termos de prova como, também, que elas contribuiriam,
desse modo, para a disjuntiva descoberta da verdade. (…)” (fls. 6482 e 6483)
Com efeito, entendendo nós que é suficiente a fundamentação do despacho em
causa, torna-se manifesto que o direito constitucional à inviolabilidade do
sigilo dos meios de telecomunicação privada sofre uma compressão plenamente
justificada, no confronto com o dever do Estado de averiguar a conduta dos – e
punir os – autores de determinados tipos de crime (…).” (fls. 6484 e 6485)
Outra solução não se afigura senão reconhecer que a decisão recorrida sufragou o
entendimento do juiz de instrução, no sentido de que o despacho que autorizou as
intercepções telefónicas se encontrava devidamente fundamentado, designadamente,
por remissão para a fundamentação constante da promoção pelo Ministério Público.
É certo que a decisão recorrida envereda, depois – mas a mero título subsidiário
–, por considerar que, mesmo que houvesse falta de fundamentação de facto e de
direito, a lei processual penal só cominaria tal omissão com o desvalor da
irregularidade, não sendo assim nulo o despacho que autorizou as intercepções
telefónicas. Contudo, essa não é, de modo flagrantemente manifesto, a “ratio
decidendi” da decisão recorrida. Aquela argumentação, segundo a qual apenas se
verificaria a nulidade da prova obtida através de intercepções telefónicas “se
não houver despacho judicial a autorizá-las – o que não é o caso (…) –, e se em
concreto não se verificarem os requisitos legais para a sua autorização,
execução e acompanhamento judicial (o que também não é o caso, pelo menos quanto
à questão da autorização judicial (…)” (fls. 6482) é apenas aduzida a título de
argumento subsidiário, de modo a reforçar a justeza da decisão recorrida.
Independentemente de saber se a eventual falta de fundamentação geraria nulidade
ou irregularidade dos actos de inquérito dependentes do despacho (então) em
crise, certo é que a decisão recorrida tornou inútil um possível juízo de
inconstitucionalidade daquela interpretação normativa, concluindo que o despacho
que autorizou as intercepções telefónicas se encontrava devidamente
fundamentado. Questão essa que não cabe a este Tribunal apreciar ou rever,
atentas as suas funções constitucionalmente fixadas.
Assim, por não ter sido efectivamente aplicada pela decisão recorrida, não é
legalmente admissível conhecer do objecto do presente recurso, quanto à segunda
interpretação normativa reputada de inconstitucional pelo recorrente.
5. Importa agora aferir do objecto do recurso quanto à alegada
inconstitucionalidade da interpretação normativa extraída dos “artigos 187, nº 1
e 188, nº 1 do C P Penal, na versão anterior à Lei 48/2007, no sentido de que
(…) a imediação a que alude o art 188 e os princípios da necessidade e
subsidiariedade das escutas telefónicas se compaginam e compatibilizam com a
possibilidade de o Juiz prorrogar por períodos de 60 (ou de 30) dias a
autorização das escutas, quando faltavam ainda vários dias para o termo do prazo
anterior e sem que previamente tomasse conhecimento do resultado de grande parte
das escutas já levadas a cabo no período anterior e na sua disponibilidade”
(fls. 6546).
Mais uma vez, verifica-se que esta interpretação não constituiu a “ratio
decidendi” acolhida pelo tribunal recorrido. Pelo contrário, a decisão recorrida
considerou antes que a juíza de instrução manteve um acompanhamento próximo e
permanente das transcrições das gravações telefónicas, não tendo sido dado como
demonstrado que aquela não tivesse tomado “conhecimento do resultado de grande
parte das escutas”. O que a decisão recorrida entende é que, apesar de não ter
procedido à audição de todas as sessões efectivamente escutadas, atenta a
dimensão excepcional do número de sessões de gravação (cerca de 16.096 sessões,
apenas quanto a um dos alvos do ora recorrido, conforme se comprova em fls. 6280
a 6285), a juíza de instrução detinha um conhecimento profundo sobre o teor das
gravações telefónicas relevantes para efeitos de decisão sobre a prorrogação da
autorização para intercepções telefónicas. Neste sentido, vejam-se os seguintes
extractos da decisão recorrida:
“(…) apesar da Meretíssima Juíza de Instrução ter prorrogado prazos de
intercepção na ocasião em que ainda não mandara transcrever todas as sessões que
lhe haviam sido no mesmo momento apresentadas, o certo é que o resultado das
sessões anteriormente escutadas permitia-lhe ter fortes razões para crer que
continuava a haver grande interesse para a descoberta da verdade ou para prova
na continuação da intercepção do telefone a que dizia respeito a prorrogação
(…) o que a data dos despachos, em que a M.ma JIC manda transcrever as passagens
relevantes, revela é que foi nessa data que concluiu a análise de todas as
gravações que lhe foram apresentadas, o que significa que nos dias situados
entre a apresentação de tais autos de gravação e CD´s e a prolação de tais
despachos (e não apenas nas datas dos despachos) a M.ma Juíza foi analisando e
seleccionando as passagens relevantes, tomando ao longo desses dias, e não
apenas no último dia em que proferiu o despacho, conhecimento das gravações
apresentadas, tarefa que só concluiu quando datou e assinou os despachos em que
mandou transcrever aquelas que entendeu relevantes para a prova.
(…) Com efeito, mesmo sem conhecimento da totalidade das gravações, a M.ma Juíza
possuía um conhecimento das mesmas que, mesmo sendo parcial, lhe possibilitava a
formulação de um juízo de manutenção do interesse na continuação das
intercepções. (…) o volume e a complexidade do material sujeito à apreciação da
M.ma JIC era de tal monta que justifica que os despachos de prorrogação do prazo
das escutas fossem proferidos sem que ela tivesse tido oportunidade de se
inteirar da globalidade das escutas levadas à sua presença” (fls. 6491 a 6493).
Pelo exposto, torna-se evidente que a decisão recorrida não aplicou
efectivamente a interpretação normativa reputada de inconstitucional pelo
recorrente. Ao invés, por detrás da decisão recorrida ressoa mesmo o
entendimento já expresso pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, no
sentido de que um acompanhamento contínuo, pelo juiz de instrução, dos autos de
transcrição de gravações telefónicas não equivale a uma audição ou leitura
integral de todas as sessões de gravação, sendo compatível com a Lei Fundamental
uma interpretação normativa que se baste com um controlo jurisdicional próximo e
contínuo, de molde a diminuir o risco de lesão dos direitos, liberdades e
garantias dos intervenientes nas chamadas interceptadas e a fazer cessar a
respectiva lesão, sempre que necessário. Neste sentido, vejam-se os seguintes
acórdãos proferidos anteriormente por este Tribunal:
“Com isto, não se quer significar que toda a operação de escuta tenha de ser
materialmente realizada pelo juiz. Contrariamente a tal visão maximalista, do
que aqui se trata é, tão só, de assegurar um acompanhamento continuo e próximo
temporal e materialmente da fonte (imediato, na terminologia legal),
acompanhamento esse que comporte a possibilidade real de em função do decurso da
escuta ser mantida ou alterada a decisão que a determinou.” (Acórdão n.º 407/97,
disponível in www.tribunalconstitucional.pt);
“A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem sustentado que a especial
danosidade social da intromissão nas comunicações implicava, não apenas um
controlo judicial do desencadear da operação, mas um acompanhamento judicial da
própria execução da operação, o qual deve ser contínuo e próximo temporal e
materialmente da fonte, mas que não implica necessariamente 'que toda a operação
de escuta tenha de ser materialmente executada pelo juiz', como uma 'visão
maximalista' exigiria.
(…)
Não é constitucionalmente imposto que o único modo pelo qual o juiz pode
exercitar a sua função de acompanhamento da operação de intercepção de
telecomunicações seja o da audição, pelo próprio, da integralidade das gravações
efectuadas ou sequer das passagens indicadas como relevantes pelo órgão de
polícia criminal, bastando que, com base nas menções ao conteúdo das gravações,
com possibilidade real de acesso directo às gravações, o juiz emita juízo
autónomo sobre essa relevância, juízo que sempre será susceptível de contradição
pelas pessoas escutadas quando lhes for facultado o exame do auto de
transcrição.” (Acórdão n.º 426/05, disponível in www.tribunalconstitucional.pt)
Visto ser evidente que a decisão recorrida não aplicou efectivamente uma
interpretação normativa que implicasse a dispensa, sem mais, da audição da
maioria das gravações telefónicas, antes da tomada de decisão sobre a
prorrogação da autorização das intercepções telefónicas, por força do artigo
79º-C da LTC, mais não resta que negar o conhecimento ao objecto do presente
recurso quanto a esta terceira interpretação normativa reputada de
inconstitucional pelo recorrente
6. Atente-se agora na questão relativa à alegada inconstitucionalidade da
interpretação normativa extraída dos “artigos 187, nº 1 e 188, nº 1 do C P
Penal, na versão anterior à Lei 48/2007, no sentido de que (…) a prorrogação das
escutas telefónicas se poderia basear apenas no facto de as anteriores terem
permitido obter excelentes resultados e não na necessidade das novas escutas, ou
seja, no «grande interesse» destas, tendo em vista o apuramento de quaisquer
elementos em falta” (fls. 6546).
Conforme já supra demonstrado, não é rigoroso afirmar-se que a decisão recorrida
autorizou a prorrogação das escutas exclusivamente fundada na eficácia para a
obtenção de prova revelada pelas anteriores intercepções telefónicas. Em sede de
apreciação de pedido de aclaração, o tribunal “a quo” afirma expressamente ser:
“(…) inexacto afirmar, como o parece fazer o recorrente, que o fundamento da
prorrogação haja sido exclusivamente «o manancial de informação resultante das
intercepções aos números de telefone ali d[i]scriminados»; este foi um dos
fundamentos, entre outros…” (fls. 6535, com sublinhado nosso).
Para além disso, logo no despacho do juiz de instrução, posteriormente
transcrito e acolhido pela decisão ora recorrida, se afirmava textualmente
preenchido o requisito da necessidade da realização de novas intercepções
telefónicas:
“(…) ao ouvir as sessões telefónicas referentes a uns facilmente se concluía que
havia fortíssimas razões para crer que a prorrogação das intercepções de uns e
outros telefones era necessária para os efeitos a que alude a parte final do n.º
1 do art. 187º do CPP.” (fls. 6491)
Em suma, afigura-se evidente que a decisão recorrida não aplicou efectivamente a
interpretação normativa reputada de inconstitucional, visto que considerou que a
prorrogação de autorização de intercepções telefónicas deveria fundar-se sempre
na demonstração da necessidade daquelas e não exclusivamente no interesse
probatório que aquelas poderiam assegurar. Razão pela qual, ao abrigo do artigo
79º-C da LTC, não pode este Tribunal conhecer do objecto do recurso, quanto a
esta quarta interpretação normativa.
7. Por fim, quanto às interpretações dos artigos 187º, n.º 1 e 188º, n.º 1 do
CPP, na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, segundo as quais “a exigência legal
da imediação ficaria satisfeita com o controlo e tomada de conhecimento pelo
juiz mais de um mês depois de as escutas telefónicas terem sido gravadas e
seleccionadas pela PJ, sendo que essas gravação e selecção haviam já ocorrido,
em alguns casos, semanas (ou até mais de um mês) após a intercepção” e “a dita
imediação ficaria satisfeita, mantendo-se a entidade policial ininterruptamente
a gravar e a seleccionar as escutas relevantes, durante largos períodos de tempo
próximos ou superiores a um mês, sem as colocar na disponibilidade do JIC”, é
forçoso concluir que a decisão recorrida não as aplicou. Ao invés, a decisão
recorrida frisa bem a necessidade de acompanhamento próximo por parte do juiz de
instrução, tendo antes considerado que, no caso concreto em apreciação nos autos
recorridos, “mediou um prazo mínimo de 9 dias e um máximo de 36 dias entre a
data do auto referente à intercepção e a da sua apresentação à JIC (no caso do
alvo 1A596) sendo esses prazos de 2, 9 e 15 dias, no que se refere ao alvo
1C160.” (fls. 6049 e 6050), prazos esses que, atenta a complexidade do inquérito
e a pluralidade de alvos sob intercepção telefónica, assegurariam um efectivo e
próximo acompanhamento por parte do juiz de instrução.
Assim:
i) Em primeiro lugar, a decisão recorrida nunca se refere
exclusivamente a prazos superiores a um mês, sendo que apenas no prazo mais
dilatado se verificou a mediação de 36 dias entre a intercepção e a sua
apresentação à juíza de instrução. Daqui resulta que, pelo menos, quanto a todas
as intercepções com prazos que não o de 36 dias, a decisão recorrida não aplicou
a interpretação normativa reputada de inconstitucional pelo recorrente;
ii) Em segundo lugar, acresce ainda que a decisão recorrida
nunca propugnou o entendimento simplista de que seria aceitável, sem mais, que o
prazo entre a intercepção e a sua apresentação à juíza de instrução fosse
superior a 30 dias, tendo antes entendido que apenas atenta a especial
complexidade do inquérito e o elevando número de alvos de escuta aquele prazo
seria admissível.
Assim, por não terem sido efectivamente aplicadas pela decisão recorrida,
conforme determinado pelo artigo 79º-C da LTC, também não é legalmente possível
tomar conhecimento do objecto do presente recurso, quanto às quinta e sexta
interpretações normativas supra identificadas.
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82,
de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de
Fevereiro, decide-se não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7
UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de
Outubro.»
2. Inconformado com esta decisão, vem o recorrente reclamar, para a conferência,
contra a não admissão do recurso, nestes precisos termos:
«Como emerge quer das alegações de recurso interposto para o Tribunal da Relação
do Porto, quer do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, o
recorrente (…) suscitou duas questões de inconstitucionalidade:
A primeira emergente da circunstância de a mesma decisão se basear em factos
ilícitos alegadamente ocorridos dois anos antes da prolação do mesmo
A segunda questão atinente à falta de fundamentação desse despacho
Sobre a primeira dessas questões de inconstitucionalidade o recorrente
conforma-se com a douta decisão proferida.
(…)
Todavia, quanto à segunda dessas alegadas inconstitucionalidades, o recorrente
inconformado com essa douta decisão, invoca o seguinte:
O despacho da JIC mereceu dois reparos, por parte do recorrente, ambos com
fundamento em inconstitucionalidade:
Um porque, no processo, inexistiam motivos de facto que justificassem a
autorização de escutas, pois que apenas constavam dos autos factos ocorridos
dois anos antes e que, como tal, pelos motivos então invocados e que
prescindimos de repetir, jamais poderiam justificar as escutas
A outra, de contornos diversos, prendia-se com a circunstância de — ainda que
esses factos reais pudessem existir — a decisão em causa deveria a eles se
referir, ou expressa ou, no mínimo, tacitamente.
Ora, sobre esta questão, não foram invocados pelo Tribunal da Relação do Porto
quaisquer outros fundamentos que não a caracterização do vício como simples
irregularidade.
Anote-se, desde logo, que basta a simples leitura do despacho judicial em causa
para justificar uma tal conclusão:
Com efeito, do seu teor nem expressa, nem tacitamente por remissão, se justifica
a realização das escutas, para além da referência ao chamado “crime de
catálogo”.
Por conseguinte, a falta de fundamentação a que temos vindo a fazer referência
reporta-se à norma do art 187, n° 1 C P Penal, na redacção então vigente, e
apenas no segmento “houver razões para crer que a diligência se revelará de
grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova”.
E — correndo o risco de repetir o já dito — a circunstância de existirem
eventuais motivos de facto que pudessem preencher esse requisito não prejudica
esta questão da inconstitucionalidade:
Se outros motivos existissem para além dos factos alegadamente ilícitos
verificados dois anos antes — e ao que se diz no douto acórdão recorrido,
existiriam - tal circunstância retirava a condição de “ratio decidendi” à
inconstitucionalidade invocada pelo recorrente, emergente da circunstância de as
escutas se basearem em factos ocorridos dois anos antes, mas não teria idêntico
efeito em relação ao outro vício de inconstitucionalidade ora em análise:
Ainda que esses factos pudessem existir, o despacho em causa
nem expressa, nem tacitamente ou por remissão os invocou!
(…)
De tudo isto pensamos ser de concluir que relativamente ao despacho da JIC o
Tribunal da Relação do Porto considerou e decidiu que:
a) à data da sua prolacção existiam outros fundamentos de facto, para
além da suspeita, ocorrida dois anos antes, de prática de factos ilícitos e
esses fundamentos justificavam a autorização de escutas pelo que o direito
constitucional à inviolabilidade do sigilo dos meios de telecomunicação privada
“sofreu uma compressão justificada”
b) a falta de invocação, no despacho de fundamentos para autorização de
escutas (independentemente de esses fundamentos existirem ou não efectivamente)
constituía mera irregularidade, pois que o art° 379, nº 1 a) não lhe é aplicável
e a nulidade de prova emergente de escutas telefónicas apenas ocorre por
violação dos requisitos a que alude o art 187, nº 1 do C P Penal
Acrescente-se que o pedido de aclaração nada de novo trouxe sobre esta questão
concreta, na medida em que apenas á primeira daquelas questões.
Com efeito, como dele consta, na parte que interessa à decisão desta reclamação,
o recorrente afirmou:
Ora, pese embora este Tribunal se ter pronunciado sobre este tema, (fls 19) nada
disse sobre a invocada e expressamente alegada questão da inconstitucionalidade
da interpretação que ele próprio sufragou (no sentido de que bastava para se
determinar a realização de escutas, que houvessem suspeitas dois anos antes da
prolacção do respectivo despacho judicial e que a pessoa sujeita a escutas se
mantivesse no exercício da mesma actividade desportiva), por violação dos
princípios da subsidariedade, da proporcionalidade e da adequação inerentes à
utilização de escutas telefónicas e por conseguinte, do disposto nos arts 18, nº
2, 26, nº 1, 32, nºs 1 e 8, 34, nºs 1 e 4 da C R Portuguesa
O segundo ponto objecto da presente reclamação prende-se com a seguinte
inconstitucionalidade
A interpretação, sufragada pelo Tribunal “a quo” dos artigos 126, nº 3, 122, nº
1, 187, nº 1 e 188, nº 1 do C P Penal no sentido de que: A imediação a que alude
o art 188, nº 1 C P Penal e os princípios da necessidade e subsidariedade das
escutas telefónicas se compaginam e compatibilizam com a possibilidade de o Juiz
prorrogar por períodos de 60 (ou 30) dias a autorização das escutas, quando
faltavam ainda vários dias para o termo do prazo anterior e sem que previamente
tomasse conhecimento do resultado de grande parte das escutas já levadas a cabo
no período anterior ( 49 dias, 57 dias e 75 dias) e na sua disponibilidade,
sempre seria inconstitucional por violar o disposto nos art°s 18, nº 2, 26, nº
1, 32, nºs 1 e 8, 34, nºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.
Ou seja, o Tribunal recorrido considerou, ainda que de modo implícito, mas nem
por isso menos claro, que os princípios da necessidade e subsidariedade das
escutas telefónicas não eram violados mesmo que a Ex.ma JIC prorrogasse por
períodos de 60 dias as escutas telefónicas sem que, antes disso, embora
dispusesse de vários dias para tal, tomasse contacto com o resultado de 60 dias
de escutas!
Ainda que sob o pretexto da complexidade do processo!
Dito de outro modo, o Tribunal recorrido interpretou o art 188, nº 1 do C P
Penal como admitindo a prorrogação de escutas por 60 dias sem que, antes disso,
o Juiz tomasse contacto com um acervo probatório correspondente a iguais 60 dias
de escutas!
(…)
É esta a segunda invocada inconstitucionalidade que o recorrente pretende seja
objecto de conhecimento e decisão, por parte d’Este Tribunal
Termos em que deve ser revogada a decisão objecto da presente reclamação,
conhecendo-se das questões de inconstitucionalidade acima invocadas.» (fls. 6583
a 6591)
3. Notificado da reclamação, o Representante do Ministério Público junto deste
Tribunal pronunciou-se no seguinte sentido:
«1º
A presente reclamação é, a nosso ver, improcedente.
2º
Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da douta
decisão reclamada, no que respeita à evidente inverificação dos pressupostos do
recurso interposto.» (fls. 6595)
4. Notificados da reclamação, os demais recorridos deixaram expirar
o prazo para resposta, sem que viessem aos juntos pronunciar-se.
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
5. Nenhum dos argumentos invocados pelo reclamante se afigura apto a colocar em
crise o sentido da decisão sumária já proferida nos presentes autos. Conforme
exaustivamente demonstrado pela referida decisão sumária, as interpretações
normativas cuja constitucionalidade o recorrente pretendia ver apreciada por
este Tribunal não foram efectivamente aplicadas pela decisão recorrida, pelo
que, por força do artigo 79º-C da LTC, não podem ser alvo de conhecimento por
este Tribunal.
Em primeiro lugar, a reclamação em nada abala a conclusão de que não foi
efectivamente aplicada qualquer interpretação segundo a qual os “art.s 187, nº 1
C P Penal e 189 do mesmo diploma, ambos na redacção anterior à Lei 48/2007,
[autorizariam que] a falta de fundamentação do despacho que autoriza as escutas
telefónicas, não indicando, nem expressa, nem tacitamente ou por remissão, os
fundamentos de facto e de direito exigidos por aquele normativo no segmento
«houver razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a
descoberta da verdade ou para a prova» consubstancia apenas uma mera
irregularidade”. Pelo contrário, a decisão recorrida frisa que o despacho que
autoriza as intercepções telefónicas se encontra devidamente fundamentado.
Em segundo lugar, a decisão recorrida também nunca acolhe as diversas
interpretações normativas reputadas de inconstitucionais pelo recorrente,
relativamente aos “artigos 187, nº 1 e 188, nº 1 do C P Penal, na versão
anterior à Lei 48/2007”. Pelo contrário, a decisão recorrida:
i) Frisa que a juiz de instrução assegurou um
acompanhamento contínuo e diligente dos procedimentos de intercepção de chamadas
telefónicas;
ii) Conclui que a prorrogação de autorizações de
intercepções telefónicas não se fundou exclusivamente no interesse probatório
que aqueles permitiam assegurar, mas igualmente na demonstração da necessidade
das mesmas para a descoberta da verdade material, face à impossibilidade de
recurso a outros meios de prova;
iii) Nunca se refere exclusivamente a prazos superiores a
um mês, sendo que apenas no prazo mais dilatado se verificou a mediação de 36
dias entre a intercepção e a sua apresentação à juíza de instrução;
iv) Não se limitou a considerar, tal como pretende o
recorrente, de modo excessivamente simplificador, que o prazo entre a
intercepção e a sua apresentação à juíza de instrução pudesse ser superior a 30
dias, tendo antes entendido que apenas a especial complexidade do inquérito e o
elevando número de alvos de escuta justificaria, no caso concreto, aquele prazo.
Daqui decorre que a decisão recorrida não aplicou efectivamente as diversas
interpretações normativas que o ora reclamante pretendia ver apreciadas por este
Tribunal. Assim, não subsiste fundamento para alteração da decisão reclamada.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 29 de Setembro de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão