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Processo n.º 573/08
Plenário
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Presidente da República requereu, em 4 de Julho de 2008, ao abrigo do n.º 1
do artigo 278.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), do n.º 1 do
artigo 51.º e do n.º 1 do artigo 57.º da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC),
que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade das seguintes normas
do Decreto n.º 217/X, da Assembleia da República, de 27 de Junho de 2008, que
“Aprova a terceira revisão do Estatuto Político-Administrativo da Região
Autónoma dos Açores”, recebido na Presidência da República em 3 de Julho de
2007, para ser promulgado como lei:
1) norma constante da primeira parte do n.º 5 do artigo 69.º, com fundamento na
violação da reserva de lei orgânica decorrente da conjugação da alínea j) do
artigo 164.º com o n.º 2 do artigo 166.º e com a alínea b) do artigo 133.º da
Constituição;
2) norma constante da segunda parte do n.º 5 do artigo 69.º, com fundamento em
inconstitucionalidade consequente, derivada da sua relação instrumental com a
norma prevista na primeira parte do mesmo preceito e, ainda, com fundamento em
violação do n.º 2 do artigo 110.º da CRP;
3) norma do n.º 3 do artigo 114.º, com fundamento em violação do princípio da
reserva constitucional da definição das competências dos órgãos de soberania
enunciado no n.º 2 do artigo 110.º da CRP e, subsidiariamente, caso não proceda
a interpretação favorável à violação da reserva de Constituição, com fundamento
em violação da reserva de lei orgânica, decorrente da conjugação da alínea e) do
artigo 164.º com o n.º 2 do artigo 166.º da CRP;
4) norma prevista no n.º 1 do artigo 45.º, com fundamento em violação do n.º 2
do artigo 232.º da CRP, bem como da mesma norma, a título subsidiário, e das
normas constantes do n.º 5 e do n.º 6 do artigo 46.º, com fundamento em violação
da reserva de lei orgânica, nos termos da alínea b) do artigo 164.º, conjugada
com o n.º 2 do artigo 166.º da CRP;
5) norma da alínea c) do n.º 2 do artigo 49.º, com fundamento em violação do n.º
4 do artigo 112.º da CRP, que decorre da inobservância da reserva de competência
dos órgãos de soberania, a qual incorpora a matéria da alínea r) do artigo 164.º
da CRP;
6) norma da alínea i) do n.º 2 do artigo 53.º, com fundamento em violação do n.º
4 do artigo 112.º da CRP, como consequência do desrespeito pela reserva de
competência dos órgãos de soberania que abrange a matéria da alínea v) do n.º 1
do artigo 165.º da CRP;
7) normas previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 61.º, com fundamento
em violação do n.º 4 do artigo 112.º da CRP, como decorrência da sua incursão
indevida na reserva de competência dos órgãos de soberania, a que respeitam as
matérias previstas nas normas dos n.ºs 1, 3 e 4 do artigo 56.º da CRP,
conjugadas com a alínea b) do artigo 165.º da CRP;
8) norma da alínea h) do n.º 2 do artigo 63.º, com fundamento em violação do n.º
4 do artigo 112.º da CRP, como decorrência da violação da reserva de competência
dos órgãos de soberania e, ainda, da violação da alínea a) do n.º 6 do artigo
168.º da CRP, conjugada com o proémio do mesmo preceito;
9) norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 66.º, com fundamento em violação do n.º
4 do artigo 112.º da CRP, em consequência da inobservância da reserva de
competência dos órgãos de soberania que abrange a matéria da alínea u) do artigo
164.º da CRP e, ainda, com fundamento na sua desconformidade com o n.º 4 do
artigo 272.º da CRP;
10) norma do n.º 3 do artigo 47.º, por efeito da violação dos n.ºs 5 e 3 do
artigo 112.º e do n.º 3 do artigo 116.º e, ainda, subsidiariamente, caso não
procedam os fundamentos anteriores, a segunda parte da mesma norma, com
fundamento em violação da reserva de lei orgânica, prevista no n.º 2 do artigo
166.º conjugado com a alínea j) do artigo 164.º da CRP;
11) norma constante do n.º 2 do artigo 67.º, com fundamento em violação da regra
de enumeração estatutária das matérias cometidas à competência legislativa comum
das regiões autónomas prevista no n.º 4 do artigo 112.º e repetida na alínea a)
do n.º 1 do artigo 227.º e no n.º 1 do artigo 228.º da CRP e, ainda, com
fundamento em violação da dimensão material do conceito constitucional de
“âmbito regional” prescrito no n.º 2 do artigo 114.º e do princípio da reserva
constitucional das competências dos órgãos de soberania, enunciado no n.º 2 do
artigo 110.º;
12) norma prevista na última parte do n.º 1 do artigo 44.º, com fundamento na
violação do n.º 7 do artigo 112.º da CRP, do n.º 2 do artigo 266.º da CRP, na
parte em que enuncia o principio da subordinação dos regulamentos
administrativos à lei, e do n.º 5 do artigo 112.º
2. Os fundamentos do pedido são os seguintes:
«1º
As disposições normativas sindicadas constam do decreto da Assembleia da
República que procedeu à terceira revisão do Estatuto Político-Administrativo
dos Açores, adiante designado por Estatuto, importando agrupá-las, por razões
sistemáticas, em cinco ordens de questões que me suscitam dúvidas de
constitucionalidade, a saber:
i) Aprovação de normas estatutárias no domínio da reserva de Constituição e
reserva de lei orgânica;
ii) Definição de matérias de âmbito regional;
iii) Submissão a uma votação por maioria de dois terços dos actos de iniciativa
legislativa regional relativos a normas estatutárias e normas de lei orgânica
relativa à eleição dos deputados à assembleia legislativa da Região;
iv) Introdução de uma cláusula residual atributiva de competência legislativa
regional em matérias não identificadas na Constituição e no Estatuto;
v) Atribuição de forma legislativa a normas regionais que regulamentem as leis
dos órgãos de soberania.
I. Aprovação de normas estatutárias no domínio da reserva de Constituição e
reserva de lei orgânica
2º
A definição das competências dos órgãos de soberania integra, nos termos do nº 2
do artº 110º da CRP, a reserva de Constituição, daqui resultando a regra de que
apenas a Constituição pode determinar a competência dos mesmos órgãos, bem como
os correspondentes limites, excepto se habilitar a lei ordinária a dispor,
também, sobre esta matéria.
3º
Quanto às reservas de lei com valor reforçado, regista-se que assumem essa
natureza legal, tanto os actos legislativos que aprovam os Estatutos Político -
Administrativos das regiões autónomas, como as leis orgânicas.
4º
Os estatutos consistem numa categoria legislativa que assume valor reforçado,
nos termos do critério enunciado na última parte do disposto no nº 3 do artº
112º da Constituição, atenta a relação passiva e activa de respeito que impõem a
outras normas legais, por força das alíneas c) e d) do nº 1 do artº 281º da
Constituição da República.
5º
O valor reforçado das leis orgânicas decorre, por seu lado, do respectivo
processo especial e agravado de produção e revelação legislativa e encontra-se
expressamente reconhecido pela primeira parte do disposto no nº 3 do artº 112º
da CRP.
6º
A circunstância de os Estatutos deverem ser acatados por todos os restantes
actos legislativos, nos termos das alíneas c) e d) do nº 1 do artº 281º da CRP
não alarga essa relação de respeito à regulação, por norma estatutária, de
matérias que excedam o conteúdo da reserva de estatuto, cujo objecto respeita à
organização e funcionamento das instituições regionais.
7º
A delimitação do âmbito e do objecto da reserva de Estatuto encontra-se
densificada pela jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr. Acs. nº 92/92,
635/95 e 283/2007) importando referir que:
a) A mesma jurisprudência inclina-se pela não inconstitucionalidade formal dos
chamados “cavaleiros estatutários” de direito comum (Ac. nº 1/91), ou seja, de
normas constantes dos Estatutos, mas anódinas ao objecto estatutário;
b) A orientação jurisprudencial acabada de referir não poderá deixar de ser
diversa sempre que os referidos “cavaleiros estatutários” passem a incidir sobre
a reserva de outras leis reforçadas pelo procedimento, como é o caso das leis
orgânicas;
c) Isto, porque violará a reserva de lei orgânica, toda a norma constante dos
Estatutos que inove sobre matérias que a Constituição inscreva na reserva da
primeira categoria legal, nos termos da conjugação do nº 2 do artº 166º com o
artº 164º da CRP.
8º
A violação da reserva de lei orgânica por norma constante dos Estatutos fere
esta última de inconstitucionalidade formal, na medida em que a mesma norma não
é produzida, revelada e sujeita aos requisitos próprios do controlo de mérito e
do controlo preventivo de constitucionalidade que a Constituição determina para
as leis orgânicas, merecendo particular destaque o facto de:
a) As normas constantes do Estatuto não assumirem o título formal de lei
orgânica (legenda própria e numeração privativa) que o nº 2 do artº 166º da CRP
impõe para as leis desta natureza;
b) A maioria constitucionalmente estipulada para a aprovação das leis orgânicas
em votação final global (nº 5 do artº 168º da CRP) ser mais exigente do que a
prevista para a votação final global do Estatuto (nº 3 do artº 116º da CRP);
c) A grande maioria das leis orgânicas se encontrar sujeita a uma reserva de
votação na especialidade em Plenário, nos termos do nº 4 do artº 168º da CRP,
imposição que não abrange as normas estatutárias;
d) Em caso de veto político do Presidente da República, a maioria parlamentar de
confirmação susceptível de o superar dever ser, de acordo com os nºs 2 e 3 do
artº 136º da CRP, mais onerosa em relação aos decretos enviados para promulgação
como leis orgânicas (maioria de dois terços dos Deputados presentes, desde que
superior à maioria absoluta dos Deputados efectivos) do que para decretos
destinados a ser promulgados como Estatutos Político-Administrativos (maioria
absoluta dos Deputados em efectividade de funções);
e) Os diplomas que careçam ser promulgados como lei orgânica se encontrarem
sujeitos às especialidades impugnatórias em sede de fiscalização preventiva de
constitucionalidade previstas nos nºs 4, 5 e 7 do artº 278º da CRP,
contrariamente ao que sucede com os decretos que aprovam normas estatutárias.
Ora,
9º
Tal como se observará nas alíneas seguintes e, subsidiariamente, nos números 81º
e 82º deste requerimento, diversas normas contidas no decreto “sub iuditio”
dispõem sobre a reserva de Constituição e de lei orgânica.
A. Limites temporais à marcação de eleições
10º
A primeira parte da disposição normativa do nº 5 do artº 69º do decreto nº 217/X
determina que, em caso de dissolução da assembleia legislativa da Região pelo
Presidente da República, as eleições para o mesmo órgão representativo devem ser
marcadas num prazo máximo de 60 dias.
11º
A norma que prevê o prazo máximo referido no número anterior reproduz o disposto
no nº 2 do artº 17º do Estatuto Político-Administrativo em vigor e propõe-se
complementar a regra enunciada no nº 1 do artº 19º do Decreto Lei nº 267/80, de
8 de Agosto, (Lei eleitoral para a assembleia legislativa da região Autónoma dos
Açores), a qual determina que a marcação de eleições para a assembleia
legislativa da região deve observar a antecedência mínima de 55 dias em caso de
dissolução.
Verifica-se, no entanto, que
12º
A alínea b) do artº 133º da CRP prescreve que a competência do Presidente da
República para a marcação de eleições legislativas regionais se exerce em
“harmonia com a lei eleitoral”, a qual deve revestir de acordo com a alínea j)
do artº 164º, conjugada com o nº 2 do artº 166º da CRP, a forma de lei orgânica.
Por conseguinte,
13º
A fixação de prazos máximos e mínimos à marcação de eleições para os parlamentos
regionais integra a reserva de lei orgânica, pelo que o preceito sindicado, ao
não revestir a forma assinada a esta categoria legal e ao invadir a reserva de
lei orgânica, enferma de inconstitucionalidade formal, pelas razões expostas nos
números 7º e 8º deste requerimento.
Paralelamente,
14º
A regra que, na segunda parte do nº 5 do artº 69º do decreto, determina a sanção
de inexistência jurídica para o decreto do Presidente da República que viole o
prazo máximo para a marcação de eleições, previsto na primeira parte do preceito
resulta ser inconstitucional, a título consequente, dada a sua relação de
instrumentalidade necessária com a norma inconstitucional que fixa o referido
prazo.
Mas,
15º
Mesmo que se entendesse como não procedente o argumento favorável à
inconstitucionalidade consequente a que se fez referência no número anterior, a
norma contida na segunda parte do nº 5 do artº 69º seria sempre inconstitucional
com fundamento na violação do nº 2 do artº 110º da CRP, dado que:
a) A competência dos órgãos de soberania só pode ser definida por acto
legislativo “quando a mesma Constituição directa ou indirectamente autorize a
lei que o faça ou quando ela remeter para lei tal tarefa” (Ac. nº 81/86 do
Tribunal Constitucional);
b) Mesmo que o Presidente da República não observe os prazos constantes da lei
eleitoral relativos à marcação de eleições, em caso de dissolução do parlamento
regional, não pode a mesma lei eleitoral estipular a sanção de inexistência
jurídica para o decreto presidencial que lhe seja desconforme;
c) Isto porque a sanção de inexistência fixada ao decreto presidencial que
incumpra uma lei consiste num condicionamento jurídico constitutivo,
particularmente severo nos seus efeitos, a uma competência constitucional do
Presidente da República, o qual não se encontra previsto ou habilitado pela
própria Lei Fundamental;
d) Não pode, por conseguinte, a lei eleitoral, por manifesta falta de
habilitação constitucional, limitar ou condicionar as competências
constitucionalmente atribuídas aos órgãos de soberania, sob pena de violar o
princípio da “reserva ou exclusividade constitucional” das competências do
Presidente da República, de acordo com o nº 2 do artº 110º da CRP;
e) Se as considerações expostas se aplicam à lei eleitoral a que a alínea b) do
artº 133º da CRP respeita, por maioria de razão se aplicarão à norma sindicada
que dispõe indevidamente sobre matéria eleitoral, por não assumir a forma de lei
orgânica que a Constituição prescreve, violando o mesmo preceito o nº 2 do artº
110º da Lei Fundamental.
B. Audição de órgãos da Região Autónoma dos Açores pelo Presidente da República
previamente à declaração do estado de sítio e estado de emergência na mesma
região
16º
A norma do nº 3 do artº 114º do decreto determina que o Presidente da República
procede obrigatoriamente à audição do presidente da assembleia legislativa e do
presidente do governo da Região Autónoma dos Açores, previamente à declaração do
estado de sítio ou de emergência no território da mesma Região.
17º
Trata-se de uma disposição inovatória, dado que a Constituição da República ao
regular o procedimento relativo à declaração do estado de sítio e de emergência
(artigos 19º, 134º, alínea f) do nº 1 do artº 197º e artº 138º da CRP) não prevê
a audição de órgãos de governo das regiões autónomas.
18º
Deve entender-se que as regras estruturantes do processo de declaração do estado
de sítio e estado de emergência integram a reserva de lei constitucional, já que
é a própria Lei Fundamental que define a competência do Presidente da República
para a declaração dos estados de excepção, que fixa os limites substanciais
dessa competência e que prescreve os trâmites subsequentes relativos à audição
do Governo e à autorização da Assembleia da República.
19º
Se é um facto que a lei ordinária que aprova os regimes do estado de sítio e
estado de emergência (alínea e) do artº 164º da CRP) pode logicamente dispor
sobre a matéria dos estados de excepção, as suas regras apenas devem proceder à
densificação ou “regulamentação” das regras constitucionais que estruturam o
processo correspondente, e nunca integrar as mesmas normas constitucionais.
Sintomaticamente,
20º
A lei em vigor sobre o regime dos estados de sítio e de emergência não prevê
qualquer trâmite de audição de órgãos de governo das regiões ou de quaisquer
outros órgãos constitucionais, por parte do Presidente da República.
21º
Devem, pois, incorporar a reserva de Constituição, na qualidade de normas
estruturantes dos estados de excepção, todas as regras que determinem audições
prévias com carácter obrigatório de órgãos constitucionais por parte do
Presidente da República, na sua qualidade de órgão competente para declarar os
estados de sítio e de emergência, dado que:
i) Os mesmos estados de excepção supõem um processo de tramitação urgente
fundado numa situação de necessidade pública estadual, pelo que qualquer regra
que imponha audições prévias a órgãos constitucionais conforma um limite às
competências do Presidente da República e propicia a desaceleração da marcha do
mesmo processo, pelo que, atenta a essencialidade dos bens jurídicos e
interesses protegidos, deve ser a Constituição e não a lei ordinária a
determinar as audições com carácter obrigatório;
ii) Se a declaração dos estados de excepção consiste num acto típico de
soberania e se na Constituição portuguesa figura expressamente a regra da
audição obrigatória do Governo da República, na qualidade de órgão soberano, por
maioria de razão deveria também constar da Lei Fundamental e de mais nenhuma
outra norma, a introdução de uma regra hipotética que impusesse a audição prévia
de órgãos constitucionais não soberanos, como seria o caso dos presidentes dos
órgãos de governo da Região Autónoma dos Açores;
iii) O instituto dos estados de excepção, independentemente de poder abranger a
totalidade ou parte do território nacional, pressupõe um processo jurídico
unitário quanto à sua decretação, pelo que ofenderia os princípios da unidade,
da solidariedade nacional e da igualdade (artº 6º nº 2 do artº 225º e artº 13º
da CRP) toda a norma legal que propiciasse diferenças na tramitação desse
processo em razão do território, derivadas da circunstância de o Estatuto da
Região Autónoma dos Açores prever a audição obrigatória de órgãos regionais e o
Estatuto da Região Autónoma da Madeira omitir esse trâmite.
22º
Atentos os argumentos expostos no número precedente, verifica-se que a norma
prevista no nº 3 do artº 114º do decreto configura um limite indevido ao
exercício de uma competência constitucional do Presidente da República, violando
o principio da reserva constitucional das competências dos órgãos de soberania,
nos termos do n.º 2 do artº 110º da CRP.
Mas, sem conceder
23º
No caso de vir a proceder uma interpretação diversa da que foi acabada de expor,
no sentido de ser lícito que a lei ordinária possa determinar a obrigatoriedade
da audição dos presidentes de órgãos de governo regional pelo Presidente da
República, no caso de este órgão pretender declarar os estados de excepção
apenas no território das regiões, considera-se que essa imposição legal só
poderia constar de lei orgânica e nunca de lei estatutária.
Isto, porque,
24º
Decorre da conjugação da norma da alínea e) do artº 164º com o nº 2 do artº 166º
da CRP que os regimes legais do estado de sítio e estado de emergência que
“regulamentam” as normas constitucionais aplicáveis incorporam a reserva de lei
orgânica, devendo integrar a mesma reserva todas as disposições complementares
ou adjectivas do processo de declaração desses estados de excepção.
25º
A existirem dúvidas sobre qual a categoria legal que poderia regular o referido
trâmite de audição, o princípio de especialidade da lei consagrada pela
Constituição para reger o estado de sítio e o estado de emergência e a
simultânea inaptidão do Estatuto para vincular os órgãos de soberania em relação
ao exercício das suas competências próprias de natureza unitária, inscreveriam
essa matéria na reserva de lei orgânica.
26º
Nestes termos, deve concluir-se à luz das considerações expressas nos números 7º
e 8º deste requerimento que a norma sindicada, a proceder a segunda
interpretação examinada, incorreria, também, em inconstitucionalidade formal.
C. Referendo regional
27º
As normas previstas no nº 1 do artº 45º, no nº 5 e no nº 6 do artº 46º do
decreto nº 217/X assumem carácter inovatório, em face do disposto no nº 2 do
artº 232º e das correspondentes remissões para o artº 115º da CRP, em matéria de
referendo regional.
28º
Efectivamente:
a) O nº 1 do artº 45º, atribui competência para a iniciativa referendária a um
conjunto de entidades (assembleia legislativa, governo e grupos de cidadãos
eleitores) mas, ao fazê-lo, inova em face do disposto no nº 2 do artº 232º da
CRP, o qual apenas comete essa faculdade à assembleia legislativa da região;
b) O nº 5 do artº 46º densifica os critérios da liberdade e gratuitidade do
direito de iniciativa referendária, determinando que a recolha de assinaturas e
demais actos necessários para a sua efectivação não podem ser dificultados ou
impedidos por qualquer entidade ou sujeitos ao pagamento de impostos ou taxas,
do que resulta a fixação de uma regra garantística sobre as condições de
realização do referendo que não resulta directamente da Constituição;
c) O nº 6 do artº 46º, na sua segunda parte, fixa o número mínimo de cidadãos
eleitores que podem subscrever uma iniciativa referendária popular, disposição
que implica um juízo de mérito sobre os pressupostos da pré-iniciativa
referendária que não decorre de qualquer norma constitucional.
29º
No que em especial diz respeito à norma prevista no nº 1 do artº 45º,
constata-se que a mesma, ao alargar a iniciativa referendária ao governo
regional e aos cidadãos eleitores quando o nº 2 do artº 232º da CRP restringe
essa competência à assembleia legislativa da região, viola este último preceito
da Lei Fundamental;
Verifica-se, por outro lado, que
30º
A disposição normativa da alínea b) do artº 164º da CRP, conjugada com o nº 2 do
artº 166º da CRP, insere o regime do referendo regional na reserva de lei
orgânica.
31º
Sucede, porém, que não foi aprovada, até ao momento da apresentação deste
requerimento, qualquer lei orgânica do referendo regional.
Assim sendo,
32º
Não é constitucionalmente admissível que normas legais constantes de lei
estatutária, como as previstas no nº 1 do artº 45º, no nº 5 e no nº 6 do artº
46º do decreto, estabeleçam regras imediatamente exequíveis em matéria do regime
do referendo regional, inseridos pela Constituição na reserva de lei orgânica,
pelo que as mesmas disposições normativas enfermam de inconstitucionalidade
formal, de acordo com a fundamentação expendida nos números 7º e 8º deste
requerimento.
II. Matérias definidas no Estatuto como de “competência legislativa própria” da
Assembleia legislativa regional
33º
Intentando dar cumprimento ao disposto na alínea a) do nº 1 do artº 227º e no nº
1 do artº 228º da CRP, no sentido da definição dos domínios de “âmbito regional”
sobre os quais deve incidir a competência legislativa de tipo comum da Região
Autónoma dos Açores, as normas dos artigos 49º a 66º do decreto identificam uma
pluralidade de “Matérias de competência legislativa própria” da assembleia
legislativa da mesma Região.
34º
Verifica-se, porém, que, tal como se observará nas alíneas seguintes deste
requerimento, alguns dos referidos domínios materiais não podem integrar a
“competência própria” do órgão parlamentar da região, pela circunstância de se
encontrarem reservados pela Constituição da República aos órgãos de soberania,
reserva essa que se encontra vedada aos poderes legislativos das regiões, nos
termos do nº 4 do artº 112º da CRP.
A. Regime de elaboração e organização do orçamento da Região
35º
A norma da alínea c) do nº 2 do artº 49º do decreto em apreciação atribui à
competência legislativa própria da Região Autónoma dos Açores “O regime de
elaboração e organização do orçamento” da mesma Região.
36º
Sucede, todavia, que a alínea r) do artº 164º da CRP inscreve a matéria relativa
à “elaboração e organização dos orçamentos (…) das regiões autónomas”
(usualmente designada por legislação de enquadramento orçamental) na reserva
absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, pelo que a norma
sindicada resulta ser inconstitucional, por violação do nº 4 do artº 112º da
CRP.
B. Bens do domínio público marítimo do Estado
37º
A alínea i) do nº 2 do artº 53º do decreto impugnado prescreve que a matéria dos
“regimes de licenciamento, no âmbito da utilização privativa dos bens do domínio
público marítimo do Estado” respeita à esfera de competência legislativa própria
da Região.
38º
Verifica-se, contudo, que a matéria do “regime dos bens de domínio público”
encontra-se inserida pela alínea v) do nº 1 do artº 165º da CRP na reserva
relativa de competência legislativa da Assembleia da República, sendo
significativo que, de acordo com a alínea b) do nº 1 do artº 227º da CRP, a
mesma Assembleia se encontre inibida de conceder autorizações legislativas às
regiões autónomas sobre esta matéria.
39º
O domínio material regulado na norma sindicada parece respeitar às condições de
utilização dos bens do domínio público do Estado na Região Autónomas dos Açores,
importando aferir se a correspondente disciplina legal se insere na matéria
reservada, nos termos do número precedente, à Assembleia da República.
40º
Resulta do nº 2 do artº 84º da Constituição da República que, quer o regime
material quer as condições de utilização quer os limites do domínio público do
Estado, regiões autónomas e autarquias locais integram a reserva de lei.
41º
Cumpre, contudo, aferir se no tocante às condições de utilização dos bens do
domínio público do Estado, essa lei se encontra reservada à Assembleia da
República ou se pode ser objecto de regulação pela legislação regional.
42º
Tanto a doutrina de referência, como a jurisprudência do Tribunal Constitucional
(Ac. nº 330/99) coincidem em reconduzir a matéria da definição das condições de
utilização dos bens do domínio público do Estado ao “regime dos bens do domínio
público” equacionado no seu sentido amplo sendo (tal como foi observado supra no
número 39º do presente requerimento) esse mesmo regime incorporado pela alínea
v) do nº 1 do artº 165º da CRP na reserva relativa de competência legislativa da
Assembleia da República.
Pelo que,
43º
A norma sindicada resulta ser inconstitucional, por violação do nº 4 do artº
112º da CRP.
Contudo,
44º
Mesmo que prevalecesse uma interpretação diversa da exposta, nunca as regiões
autónomas poderiam legislar sobre os regimes de licenciamento, no âmbito da
utilização privativa dos bens do domínio público marítimo do Estado” dado que se
trata de uma matéria que, manifestamente, não integra o “âmbito regional”.
45º
De acordo com o sentido geral que emerge de recente jurisprudência do Tribunal
Constitucional (Ac. nº 258/2007) não integram o conceito de “âmbito regional”
matérias cuja disciplina legislativa possa afectar a ordem jurídica nacional,
outras instituições e outras pessoas colectivas, que não as regiões autónomas.
46º
Na situação “sub iuditio”, estando em causa bens do domínio público marítimo do
Estado, toda a lei regional que estabelecesse os regimes de licenciamento para
utilização privativa dos mesmos bens excederia a esfera das questões de especial
configuração regional, para se projectar na área de interesse comum a todos os
cidadãos prosseguida pelo Estado Português, pelo que a norma sindicada seria
inconstitucional com fundamento em excedência do limite do “âmbito regional”
consagrado no nº 4 do artº 112º da CRP.
C. Direitos liberdades e garantias dos trabalhadores
47º
As normas previstas nas alíneas a) e b) do nº 2 do artº 61º do decreto inscrevem
na “competência própria” da assembleia legislativa da Região Autónoma dos
Açores, matérias que vertem sobre os direitos, liberdades e garantias dos
trabalhadores, tendo por fim a sua regulação por acto legislativo regional.
Efectivamente,
48º
Importa observar que a alínea a) do nº 2 do artº 61º do decreto, conjugada com o
nº 1 do mesmo preceito, permite à assembleia legislativa da Região legislar
sobre a “garantia do exercício da actividade sindical na região” matéria que se
inscreve na esfera do nº 1 do artº 56º da CRP e que tange à “garantia do direito
à actividade sindical”.
Por outro lado,
49º
A alínea b) do nº 2 do artº 61º do decreto comete à mesma assembleia a faculdade
de legislar sobre “As relações individuais e colectivas de trabalho” domínio
previsto nos nºs 3 e 4 do artº 56º da CRP que remete para lei respectivamente, a
garantia “do direito de contratação colectiva” pelas associações sindicais e das
regras respeitantes “à legitimidade para a celebração das convenções colectivas
de trabalho, bem como à eficácia das respectivas normas”.
50º
O facto de os direitos e garantias referidos nos números precedentes deste
requerimento integrarem a esfera dos direitos, liberdades e garantias dos
trabalhadores (Capítulo III do Titulo II integrado na Parte I da CRP), insere a
respectiva disciplina legislativa na reserva relativa de competência da
Assembleia da República que abrange todos os preceitos dos Títulos I e II da
Parte I, referentes a direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (alínea b)
do nº 1 do artº 165º da CRP).
Por consequência
51º
As normas sindicadas constantes das alíneas a) e b) do nº 2 do artº 61º do
decreto enfermam de inconstitucionalidade, com fundamento em violação do
disposto no nº 4 do artº 112º da CRP, na medida em que atribuem ao poder
legislativo regional comum domínios reservados à competência legislativa da
Assembleia da República.
D. Disciplina legal da actividade reguladora dos órgãos de comunicação social na
região
52º
A norma da alínea h) do nº 2, conjugada com o nº 1 do artº 63º do decreto nº
217/X comete à assembleia legislativa da Região a competência para legislar em
matéria de “regulação do exercício da actividade dos órgãos de comunicação
social” na região, suscitando objecções em matéria de constitucionalidade.
53º
Em abstracto, as funções de regulação horizontal susceptíveis de incidirem,
constitutivamente, na actividade das empresas de comunicação social implicam o
exercício de um poder independente de supervisão que é susceptível de ser
exercido, em simultâneo, por diversas entidades administrativas independentes,
sempre que as actividades desenvolvidas pelas referidas empresas respeitem ao
objecto específico de supervisão cometido a cada uma dessas autoridades
reguladoras.
Contudo,
54º
Sempre que se encontre em causa a garantia dos direitos fundamentais e dos fins
de interesse público enumerados no nº 1 do artº 39º da CRP, deve a função
reguladora encontrar-se cometida apenas à autoridade administrativa independente
prevista neste mesmo preceito, cuja epígrafe sintomaticamente se reporta à
“regulação da comunicação social”.
55º
Assim, à luz do artº 39º da CRP, a disciplina legal da actividade
constitucionalmente designada como “regulação da comunicação social” supõe:
a) A fixação de critérios reitores do exercício da actividade de uma autoridade
reguladora específica;
b) Que a matéria da “regulação do exercício da actividade dos órgãos de
comunicação social” a nível da Região Autónoma dos Açores, enunciada no n.º 1 do
artº 63º do decreto se enquadra na actividade de “regulação da comunicação
social” prevista no artº 39º da CRP, a qual respeita à salvaguarda de direitos,
liberdade e garantias, sendo, como tal, uma matéria inserida na competência
legislativa reservada da Assembleia da República.
56º
Dir-se-ia, assim, numa primeira leitura, que a norma sindicada seria
inconstitucional por violação do nº 4 do artº 112º da CRP, na medida em que
permitiria que a assembleia legislativa da Região legislasse sobre uma área
material integrada na reserva relativa de competência da Assembleia da
República, de acordo com a alínea b) do nº 1 do artº 165º da CRP.
Contudo,
57º
A norma da alínea a) do nº 6 do artº 168º da CRP determina que o estatuto da
entidade de regulação da comunicação social a que o nº 2 do artº 39º da mesma
Constituição diz respeito, deve ser aprovado por lei da Assembleia da República
votada por maioria de dois terços dos deputados presentes desde que superior à
maioria absoluta dos efectivos, o que significa que a disciplina jurídica da
actividade de regulação em presença se insere, não na reserva relativa, mas na
reserva absoluta de competência do Parlamento da República.
58º
A actividade da entidade reguladora mencionada deve incidir sobre um objecto
unitário, abrangendo todos os órgãos de comunicação social sujeitos à jurisdição
do Estado, independentemente da parcela do território nacional onde tenham a sua
sede ou desenvolvam a sua actividade, tal como resulta implicitamente do
disposto no artº 39º da CRP e, explicitamente, do proémio do artº 6º do Estatuto
da ERC (Entidade Reguladora da Comunicação Social) quando aí é determinado que o
âmbito de actividade desta autoridade abrange “todas as entidades que sob a
jurisdição do Estado Português, prossigam actividades de comunicação social”.
Nestes termos,
59º
A norma da alínea h) do nº 2 do artº 63º do decreto padece de
inconstitucionalidade material por violação do disposto no nº 4 do artº 112º, ao
habilitar um acto legislativo regional a dispor sobre uma matéria que a alínea
a) do nº 6 do artº 168º conjugada com o artº 39º da CRP, integra na reserva
absoluta de competência da Assembleia da República.
Mas, adicionalmente
60º
A mesma norma, ao invadir a reserva específica da lei reforçada prevista na
alínea a) do nº 6 do artº 168º da CRP, padece também de inconstitucionalidade
formal, dado que:
a) Fixa, em abstracto, regras sobre a normação em matéria de regulação da
comunicação social, cujo objecto material se encontra definido no nº 1 do artº
39º e que nos termos do nº 2 do mesmo artigo pressupõe que a actividade
reguladora seja exercida por uma única entidade cujo estatuto deve ser regido
por uma lei da Assembleia da República aprovada na generalidade, especialidade e
em votação final global por maioria de dois terços;
b) A aprovação da norma sindicada pela maioria de dois terços, apenas na fase de
votação na especialidade, mostra-se insuficiente para preencher os requisitos de
votação necessariamente mais exigentes, referidos na alínea anterior deste
requerimento e prescritos pela mencionada alínea a) do nº 6 do artº 168º da CRP,
para a aprovação da lei da entidade reguladora da comunicação social.
E. Segurança pública
61º
A norma da alínea a) do nº 2 do artº 66º do diploma define como matéria “de
competência legislativa própria” da assembleia legislativa da região autónoma
dos Açores, a “manutenção da ordem pública e da segurança de espaços públicos
(…)”.
62º
A disposição normativa referida no número anterior pode enfermar de
inconstitucionalidade, com fundamento em duas ordens de argumentos, a saber:
a) Fixação de regras materiais em matéria de ordem pública e segurança interna
na Região Autónoma dos Açores;
b) Regulação do emprego de forças de segurança, tendo em vista a manutenção da
ordem pública e segurança interna na mesma região.
63º
Cumpre, previamente, clarificar que a actividade relativa à manutenção da
“segurança interna” compreende no seu âmbito a manutenção da “ordem pública”
(cfr. Ac. nº 583/96 do Tribunal Constitucional) e compete ordinariamente às
forças de polícia, nos termos do nº 1 do artº 272º da CRP.
64º
No que respeita ao regime jurídico geral relativo à segurança interna da
República Portuguesa ele envolve, em abstracto:
a) Um regime substantivo susceptível de incorporar regras limitativas ou
restritivas, de alcance variável, aos direitos, liberdades e garantias dos
cidadãos (como por exemplo, os previstos nos artigos 27º, 28º, 34º, 37º, 45º da
CRP);
b) O regime geral “definidor dos fins, princípios, regras básicas e grandes
linhas de regulação” relativas às forças de segurança interna ( Ac. nº 304/2008,
do Tribunal Constitucional).
65º
No que concerne ao regime material da segurança interna, passível de conter
restrições ou limitações a direitos, liberdades e garantias, verifica-se que o
mesmo pertence, por força do nº 2 do artº 18º e da alínea b) do nº 1 do artº
165º da CRP, à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da
República, pelo que a norma sindicada afronta o nº 4 do artº 112º da CRP ao
habilitar a Região a legislar sobre uma matéria posicionada na esfera de
competência de um órgão de soberania, tratando-se, em todo o caso, de uma
questão estranha ao limite do “âmbito regional”.
66º
Quanto ao regime geral das forças de segurança interna, tal como se encontra
definido e delimitado na alínea b) do número 59º deste requerimento, cumpre
destacar que as normas que regem, em termos gerais, a natureza, as funções e o
âmbito territorial de actuação dessas forças de segurança policial inscrevem-se
na reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, de
acordo com a alínea u) do artº 164º da CRP (Cfr. sobre esta questão o Ac. nº
304/2008, do Tribunal Constitucional).
67º
A definição do âmbito territorial das forças de polícia para o cumprimento de
missões de segurança interna deve integrar, deste modo, o regime geral das
forças de segurança, o qual deve observar o princípio constitucional da unidade
de organização das forças de segurança para todo o território nacional (nº 4 do
artº 272º da CRP), sendo sintomático que a Lei de Segurança Interna vigente
disponha, no nº 1 do seu artº 4º, que “a segurança interna desenvolve-se em todo
o espaço sujeito a poderes de jurisdição do Estado Português”.
Por conseguinte
68º
A norma da alínea a) do nº 2 do artº 66º do decreto sindicado encontra-se ferida
de inconstitucionalidade, na medida em que:
a) Ao determinar a existência de um domínio regional relativo ao emprego de
forças de segurança, a definir por decreto legislativo, tendo em vista a
garantia da segurança interna na Região, permite que uma lei regional invada
matéria da reserva absoluta da competência da Assembleia da República, prevista
na alínea u) do artº 164º da CRP, matéria essa que compreende a definição do
“âmbito territorial” de emprego das forças de segurança, violando-se o disposto
no nº 4 do artº 112º da CRP;
b) Ao enumerar uma competência legislativa regional, relativa ao emprego das
forças de segurança no espaço da Região, viola o princípio da unidade de
organização das forças de segurança para todo o território nacional constante do
nº 4 do artº 272º da CRP, o qual determina que a organização de cada uma das
forças de segurança é “única para todo o território nacional”, e de onde a
doutrina de referência retira o reconhecimento de uma “reserva exclusiva de
competência dos órgãos de soberania (…) quanto à sua criação, definição e
tarefas e direcção orgânica, estando (…) portanto, fora da Autonomia regional,
bem como da competência legislativa regional”.
III. Submissão a uma votação por maioria de dois terços dos actos de iniciativa
legislativa regional relativos a normas estatutárias e normas de lei orgânica
respeitante à eleição dos deputados à assembleia legislativa da região.
69º
Resulta do disposto nº 3 do artº 47º do decreto sindicado que os projectos de
estatuto político-administrativo, bem como de lei orgânica relativa à eleição
dos deputados à assembleia legislativa da Região, devem ser aprovados pela
maioria de dois terços dos deputados em efectividade de funções nessa
assembleia.
70º
O preceito em apreciação suscita quatro ordens de objecções, quanto à sua
constitucionalidade.
71º
Considera-se, em primeiro lugar, que as normas do preceito questionado ofendem o
princípio da tipicidade da lei consagrado no nº 5 e no nº 3 do 112º da CRP.
72º
Reza a primeira parte do nº 5 do artº 112º da CRP que “Nenhuma lei pode criar
outras categorias de actos legislativos (…)”, o que significa que:
a) As categorias de actos legislativos são apenas as que se encontram previstas
na Constituição;
b) Decorrendo a noção de categoria legislativa das especialidades prototípicas
inerentes ao regime jurídico que caracteriza um dado acto legislativo,
entende-se que só a Constituição pode regular os trâmites essenciais sobre a
produção das leis que se mostrem susceptíveis de afectar ou moldar esse mesmo
regime;
c) Afectam o regime jurídico de um acto legislativo, trâmites de produção que
aumentem ou reduzam o seu nível de rigidez ou cláusulas que determinem a sua
supra ou infra-ordenação material em relação a outros actos legislativos;
d) A norma impugnada, enviada para promulgação como lei ordinária, ao introduzir
na fase de iniciativa da produção de leis estatutárias bem como de uma lei
orgânica de objecto eleitoral, um trâmite obrigatório radicado na consagração de
uma maioria qualificada para a deliberação pela assembleia legislativa regional
das correspondentes propostas de lei, determina uma alteração no regime
jurídico- constitucional desses actos legislativos, aumentando a sua rigidez ou
força passiva;
e) Ao assim proceder, a norma sindicada permite que o Estatuto
Político-Administrativo dos Açores crie inovatoriamente duas sub-categorias de
actos legislativos na ordem jurídica portuguesa, caracterizadas por um
expressivo agravamento procedimental na sua fase de iniciativa, contrariando o
disposto na primeira parte do nº 5 do artº 112º da CRP.
Complementarmente,
73º
Do enunciado normativo do nº 3 do artº 112º da CRP decorre que são leis com
valor reforçado, apenas as que a Constituição determina como tal, do que resulta
a enunciação do princípio da tipicidade constitucional das leis reforçadas que
é, ele próprio, um critério derivado do princípio da tipicidade da lei.
74º
A norma prevista no nº 4 do artº 47º do decreto, ao introduzir no processo de
tramitação de duas leis com valor reforçado, maiorias de dois terços
respeitantes à sua fase de deliberação:
a) Aumenta, tal como se observou, o grau de rigidez dessas categorias legais,
modelando indevidamente o valor reforçado que a Constituição previamente lhes
atribui e que só ela lhes pode atribuir, ofendendo o princípio da tipicidade
constitucional das leis reforçadas previsto no nº 3 do artº 112º da CRP;
b) A inobservância do princípio da tipicidade da lei, na dimensão acabada de
observar, permitiria a criação de um precedente em favor da possibilidade de
qualquer lei com valor reforçado poder doravante criar outras classes e
subclasses de normas legais reforçadas, convertendo a ordem normativa num
sistema arbitrário, imanejável e vulnerador do princípio da segurança jurídica (
artº 2º da CRP).
75º
Cumpre registar, em segundo lugar, que no processo de formação de actos
legislativos, as maiorias qualificadas constituem um limite ao “critério
democrático de decisão”, o qual consiste na regra da maioria simples.
76º
Daí que o nº 3 do artº 116º da CRP consagre o critério da maioria simples, como
a regra geral que deve presidir às deliberações dos órgãos colegiais, só se
admitindo maiorias mais exigentes quando previstas na própria Constituição.
Por esta razão,
77º
A norma impugnada viola, igualmente, o disposto no nº 3 do artº 116º da CRP,
dado que a Constituição regula exaustivamente no artº 168º as maiorias
qualificadas a que a tramitação dos actos legislativos se encontra sujeita, nele
não figurando qualquer maioria dessa natureza para a fase de iniciativa de leis
de revisão estatutária e de leis orgânicas, as quais consistem em normas cujo
procedimento produtivo se encontra, nos seus passos essenciais, integralmente
constitucionalizado.
78º
Não se diga, por outro lado, que sendo a iniciativa dessas duas categorias
legais reservada à assembleia legislativa da Região, deveria também a fixação da
maioria de deliberação respeitar à mesma assembleia legislativa e não à
Assembleia da República, devendo as regras sobre as maiorias de votação das
referidas propostas de lei figurar no Estatuto (onde se regula a organização dos
órgãos de governo da Região) e não na Constituição.
79º
O entendimento acabado de expor seria improcedente, porque:
a) Teria por objecto duas categorias de leis estaduais que, nessa qualidade,
nunca poderiam ter os elementos do seu processo produtivo modulados em lei
estatutária, cujo objecto constitucional consiste na organização e funcionamento
das instituições da Região Autónoma dos Açores e não na disciplina produtiva dos
actos da competência de órgãos de soberania;
b) Uma maioria de tal modo exigente para a deliberação das propostas de lei em
análise elevaria, ainda mais, o escalão de rigidez desses actos legislativos
hiper-rígidos gerando, à luz do nº 3 do artº 116º da CRP, um vício de excesso ou
abuso de forma, o qual tornaria indevidamente mais difícil a aprovação dos
correspondentes processos de revisão e propiciaria a ocorrência mais frequente
de inconstitucionalidades supervenientes.
80º
Em terceiro lugar, constata-se que a reserva de iniciativa legislativa das
assembleias regionais referente ao Estatuto e à lei relativa à eleição dos
deputados à assembleia legislativa da Região diz unicamente respeito à
iniciativa originária, devendo coexistir com a iniciativa derivada ou
superveniente dos Deputados e grupos parlamentares da Assembleia da República
prevista no nº 2 do artº 224º da CRP.
81º
Sendo certo que a reserva de iniciativa do parlamento regional determina uma
expressiva compressão ou limitação da iniciativa legislativa derivada dos
Deputados e grupos parlamentares da Assembleia da República (a qual só pode ser
exercida na medida em que seja previamente accionada a iniciativa originária)
não é menos certo que:
a) A previsão em lei ordinária de valor estatutário, de uma maioria de dois
terços para a deliberação das propostas de lei referentes aos dois actos
legislativos mencionados, amplia, sem norma constitucional habilitante, os
limites à competência de iniciativa derivada ou superveniente dos mesmos
Deputados e grupos parlamentares que se encontram previstos no nº 2 do artº 224º
da CRP e que integram matéria de reserva de Constituição;
b) A norma sindicada mostra-se, assim, desconforme ao disposto no nº 2 do artº
224º da CRP na sua conjugação com o nº 2 do artº 110º da Lei Fundamental.
82º
Em quarto e último lugar, na circunstância de não virem a ser acolhidas as
soluções interpretativas expostas nos números precedentes deste requerimento,
verificar-se-ia, no que em especial diz respeito à lei que rege a eleição dos
deputados à assembleia regional, a ocorrência de uma inconstitucionalidade
formal, na medida em que:
a) A referida lei integra a reserva de lei orgânica, nos termos do nº 2 do artº
166º conjugada com a alínea j) do artº 164º da CRP;
b) Caso se entenda que as leis reforçadas, ao arrepio do princípio
constitucional da tipicidade da lei, dispõem de aptidão para agravarem o seu
próprio procedimento produtivo, verificar-se-ia que a estipulação da maioria de
dois terços para a deliberação de uma proposta de lei orgânica, como a lei
eleitoral para os deputados regionais, só poderia ser fixada por ela própria e
não por outra categoria legal reforçada, como o Estatuto, cujo processo de
aprovação em votação final global é menos exigente do que o consagrado para as
referidas leis orgânicas (cfr. argumentação exposta nos números 7º e 8º do
presente requerimento);
c) Nestes termos e de acordo com a interpretação exposta, a segunda parte do nº
3 do artº 48º do decreto teria violado também a reserva de lei orgânica.
IV. Cláusula residual atributiva de competência legislativa regional em matérias
não identificadas na Constituição e no Estatuto
83º
O nº 2 do artº 67º do decreto comete à assembleia legislativa da Região Autónoma
dos Açores a faculdade de legislar para o território regional, e em
concretização do princípio da subsidiariedade, sobre matérias não enumeradas no
Estatuto e não reservadas aos órgãos de soberania.
84º
Existem fundadas dúvidas sobre se esta regra, com efeitos relevantes na
arquitectura do modelo português de autonomia regional, não vulnerará a
Constituição da República, nomeadamente, as disposições constantes do nº 4 do
artº 112º da CRP.
Com efeito,
85º
Do preceito constitucional mencionado no número precedente deste requerimento
decorre que, com excepção das competências legislativas directamente invocáveis
a partir da Constituição (como é o caso dos poderes legislativos de carácter
delegado e complementar que se encontram previstos nas alíneas c) e d) do nº 1
do artº 227º da CRP), devem ser definidas no Estatuto todas as matérias de
“âmbito regional” respeitantes ao exercício da competência legislativa comum ou
primária das regiões.
86º
Trata-se, com efeito, do novo modelo de repartição de competências entre as
regiões e os órgãos de soberania decorrente da 6ª Revisão Constitucional, de
2004, confirmando a regra prevista no nº 1 do artº 228º da CRP segundo a qual o
Estatuto fica investido na necessária função de enumerar as matérias não
identificadas na Constituição, sobre as quais podem incidir os poderes
legislativos das regiões.
Verifica-se contudo, que
87º
O nº 2 do artº 67º do decreto, ao invés de ter como objecto a enumeração desses
domínios materiais de “âmbito regional”, tal como a Constituição impõe, consagra
antes uma cláusula habilitante do exercício de poderes legislativos da Região
sobre matérias residuais e indeterminadas do universo concorrencial paralelo
entre os órgãos de soberania e as regiões, cláusula que se estribaria em dois
critérios atributivos de competências regionais: o princípio da subsidiariedade
e o novo critério do “território regional”.
88º
Dado que o preceito sindicado convoca o princípio da “subsidiariedade” como
medida de valor da competência legislativa habilitada pela cláusula residual
poder-se-ia, em tese, sustentar que o mesmo princípio plasmado no nº 1 do artº
6º da CRP habilitaria os poderes legislativos regionais a dispor sobre matérias
do domínio concorrencial, sempre que a Região, como entidade mais próxima dos
cidadãos, demonstrasse ser detentora de uma maior aptidão do que o Estado na
regulação adequada e eficaz de certas matérias.
89º
Considera-se, no entanto, que o princípio da subsidiariedade no ordenamento
jurídico português não constitui um critério atributivo de poderes regionais que
opere em paralelo e ao mesmo nível dos restantes critérios constitucionais de
repartição de competências normativas entre as regiões e os órgãos de soberania,
constituindo antes:
a) Um conceito jurídico indeterminado que se deve mover no respeito dos
critérios estruturantes de repartição de competências legislativas, onde se
integra a regra da enumeração estatutária das competências legislativas
regionais de natureza comum ou primária, prevista no nº 4 do artº 112º e
repetida na alínea a) do nº 1 do artº 227º e no nº 1 do artº 228º da CRP;
b) Um critério supletivo ou “subsidiário” susceptível de permitir a definição de
competências em domínios dilemáticos compreendidos numa determinada matéria da
esfera concorrencial, na qualidade de instituto auxiliar que permite delimitar
dentro da mesma matéria, um “âmbito regional” cometido ao poder normativo do
legislador autonómico e um domínio próprio da esfera de competência
implicitamente reservada aos órgãos de soberania.
90º
Tão pouco o critério espacial do “território da região” permite fundamentar a
consagração da cláusula atributiva de competências residuais.
É que,
91º
A norma constante do nº 2 do artº 67º do decreto impugnado, na parte em que
atribui à Região a faculdade de legislar sobre matérias residuais não
especificadas que ocorram no “território regional”, utiliza um limite positivo
da competência legislativa da região autónoma que não coincide na integralidade
com o conceito jurídico-constitucional de “âmbito regional”, dado que:
a) De acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, o conceito de
“âmbito regional” não se esgota num critério territorial ou geográfico (Ac. nº
258/2007);
b) O critério territorial inerente a esse conceito deve, de acordo com a mesma
jurisprudência, ser completado por um critério material, onde avulta um limite
negativo que impede as leis regionais de afectarem os valores e interesses de
outras instituições ou pessoas colectivas públicas.
92º
A disposição normativa em análise, ao conceder uma habilitação legislativa à
instituição parlamentar da região, fundada num limite cujo conteúdo corresponde,
apenas parcialmente, ao conteúdo do conceito de “âmbito regional”, padece
eventualmente, de inconstitucionalidade, em virtude de violação do disposto no
nº 4 do artº 112º da Constituição, tornando-se inservível para fundamentar a
consagração da cláusula residual.
93º
Poder-se-ia, ainda, sustentar um entendimento favorável à ideia de que a norma
constante do nº 2 do artº 67º do decreto não teria carácter inovatório, dado que
o Estatuto em vigor contém no nº 2 do artº 31º uma cláusula de sentido próximo
ou análogo, pelo que a norma em apreciação nada mais terá feito do que manter,
com poucas variações, o regime precedente.
Verifica-se, no entanto, que
94º
A cláusula “residual” que ainda se encontra em vigor no nº 2 do artº 31º do
Estatuto, e que reveste um sentido próximo da norma sindicada pese algumas
diferenças de redacção e substância, fundava-se até à entrada em vigor da Lei de
Revisão Constitucional de 2004, numa disposição constitucional de idêntico
conteúdo prevista na alínea o) do artº 228º da CRP, a qual:
a) Foi revogada e substituída, no contexto da 6ª Revisão Constitucional, por uma
disposição de sentido inverso, a qual consiste na norma do nº 1 do artº 228º da
CRP;
b) Esta última norma passou a determinar, tal como foi referido no número 87º
deste requerimento, uma obrigação de enumeração estatutária no tocante à
identificação do objecto das matérias integradas na competência regional comum,
consagrada na alínea a) do nº 1 do artº 227º da CRP;
c) A norma do nº 2 do artº 31º do Estatuto em vigor passou a ser
supervenientemente inconstitucional em face da nova redacção dada à norma do nº
1 do artº 228º da CRP e, por conseguinte, a disposição normativa prevista no nº
2 do artº 67º do decreto sindicado, ao incorporar um sentido semelhante de
“cláusula de competências legislativas residuais”, será igualmente
inconstitucional.
95º
Considera-se, em razão do exposto, que:
a) A norma constante do nº 2 do artº 67º do decreto, ao criar uma cláusula
residual atributiva de competência regional em matérias indeterminadas a
identificar casuisticamente pelo legislador regional, carece de lógica
constitucional, pois permite contornar ou esvaziar indevidamente a regra
expressa na alínea f) do nº 6 do artº 168º da CRP, a qual exige que as normas
estatutárias que procedem à enumeração das matérias de âmbito regional sejam
aprovadas na especialidade por maioria de dois terços;
b) Tal como resulta das conclusões tiradas supra nos números 88º e seguintes
deste requerimento, nem o princípio da subsidiariedade nem o novo critério
reducionista do “território regional” logram fundamentar constitucionalmente o
sentido dado à cláusula residual, podendo mesmo arguir-se a
inconstitucionalidade do “critério territorial” constante da norma impugnada,
por desconformidade parcial com o conteúdo necessário do conceito de âmbito
regional, previsto no nº 4 do artº 112º da CRP;
c) A norma impugnada resulta ser inconstitucional com fundamento em violação do
comando ínsito no nº 4 do artº 112º, e reiteradamente repetido no nº 1 do artº
228º e na alínea a) do nº 1 do artº 227º da CRP, dado que ofende o principio da
enumeração necessária no Estatuto das matérias sobre as quais pode ser exercida
a competência legislativa regional comum, na medida em que permite à assembleia
legislativa da Região dispor sobre matérias indeterminadas não previstas nem na
Constituição nem em normas estatutárias;
d) A mesma disposição fere, igualmente, a Constituição ao atribuir à Região, sem
fundamento constitucional, poderes legislativos sobre matérias indeterminadas
cujo exercício diminui a extensão e o âmbito das competências potencialmente
reservadas aos órgãos de soberania no domínio concorrencial paralelo, violando o
nº 2 do artº 110º da CRP que determina que a definição da competência dos órgãos
soberanos constitui reserva da Constituição, não podendo ser diminuída por lei
carente de habilitação constitucional para o efeito.
V. Atribuição de forma legislativa a normas regionais que regulamentem as leis
dos órgãos de soberania
96º
A norma constante da última parte do nº 1 do artº 44º do decreto em apreciação
atribui forma de decreto legislativo regional aos actos previstos no artº 41º do
mesmo diploma, ou seja, aos actos da assembleia legislativa da Região que
procedam à regulamentação das leis e decretos-leis emanados dos órgãos de
soberania que não reservem para o Governo da República o respectivo poder
regulamentar.
97º
A norma sindicada não assume natureza inovatória, na medida em que corresponde
ao disposto no nº 1 do artº 34º do Estatuto em vigor, facto que não obsta à sua
impugnação dado ter sido objecto de renumeração e de alterações de redacção.
98º
Entende-se, em primeiro lugar, que a norma impugnada é inconstitucional por
violação do disposto no nº 7 do artº 112º e do nº 2 do artº 266º da
Constituição, na medida em que:
a) A norma do nº 7 do artº 112º da CRP determina que todos os diplomas aprovados
sob a forma regulamentar devam invocar a lei que regulamentam, decorrendo também
da conjugação dessa disposição com o nº 2 do artº 266º (CRP), o princípio
segundo o qual os regulamentos administrativos devem conformidade à lei;
b) O preceito sindicado, ao atribuir forma de lei a um acto regulamentar
regional que concretize e desenvolva leis dos órgãos de soberania, permite que
essa norma autonómica se exima à obrigação constitucional de invocação de lei
habilitante bem como à obrigatoriedade de respeitar a lei que regulamenta,
subtraindo assim do âmbito do controlo jurisdicional de constitucionalidade e de
legalidade administrativa, eventuais violações, derrogações indevidas e
adaptações abusivas de normas legais da República por parte de regulamentos
administrativos regionais;
c) Ao impor a forma de lei aos regulamentos regionais vocacionados para a
concretização e desenvolvimento de leis da República, a norma questionada viola
a obrigação constitucional de invocação de lei habilitante e o princípio da
subordinação dos regulamentos administrativos ao império da legalidade.
99º
Em segundo lugar, estima-se que a norma prevista na última parte do nº 1 do artº
44º viola, igualmente, o princípio da tipicidade da lei, constante do nº 5 do
artº 112º da CRP, dado que:
a) De acordo com o exposto no número anterior deste requerimento, essa norma
cria um tipo híbrido de acto legislativo, caracterizado pela sua forma legal e
conteúdo necessariamente administrativo, cujo regime jurídico se caracteriza
pela dispensa indevida da observância das regras constitucionais sobre o primado
da lei habilitante e da obrigação de invocação expressa dessa mesma lei;
b) Esse tipo compósito de lei regional dotado de uma produtividade jurídica
específica na relação com outros actos legislativos, redunda na criação de uma
nova categoria legal feita ao arrepio da Constituição, violando objectivamente a
primeira parte do nº 5 do artº 112º da CRP, que, no contexto do princípio da
tipicidade da lei, proíbe a lei ordinária de criar novas categorias
legislativas.»
3. O requerimento deu entrada neste Tribunal no dia 4 de Julho de 2008 e o
pedido foi admitido na mesma data.
4. Notificado para o efeito previsto no artigo 54.º da LTC, o Presidente da
Assembleia da República veio apresentar resposta na qual oferece o merecimento
dos autos.
5. Elaborado o memorando a que alude o artigo 58.º, n.º 2, da LTC, e fixada a
orientação do Tribunal, importa decidir conforme dispõe o artigo 59.º da mesma
Lei.
II – Fundamentação
6. O pedido coloca doze questões ao Tribunal, que se passam a
apreciar pela ordem apresentada e separadamente, com excepção das duas
primeiras, que são tratadas conjuntamente.
A) A primeira e a segunda partes do n.º 5 do artigo 69.º do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pelo Decreto n.º
217/X
7. O artigo 69.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos
Açores (adiante designado por “Estatuto” ou EPARAA), na redacção dada pelo
Decreto n.º 217/X, dispõe o seguinte:
«Artigo 69.º
Dissolução da Assembleia
1 − A Assembleia Legislativa pode ser dissolvida pelo Presidente da República,
ouvidos o Conselho de Estado e os partidos nela representados.
2 − A Assembleia Legislativa não pode ser dissolvida nos seis meses posteriores
à sua eleição ou durante a vigência do estado de sítio ou do estado de
emergência em território da Região.
3 − A inobservância do disposto no número anterior determina a inexistência
jurídica do decreto de dissolução.
4 − A dissolução da Assembleia Legislativa não prejudica a subsistência do
mandato dos Deputados, nem da competência da Comissão Permanente, até à primeira
reunião da Assembleia após as subsequentes eleições.
5 − Em caso de dissolução da Assembleia Legislativa, as eleições têm lugar no
prazo máximo de 60 dias, sob pena de inexistência jurídica daquele acto.
6 − No caso de dissolução, a Assembleia Legislativa então eleita inicia nova
legislatura cuja duração será inicialmente acrescida do tempo necessário para se
completar o período correspondente à sessão legislativa em curso à data da
eleição.»
Estão em causa, quer a primeira, quer a segunda parte do n.º 5 desta norma.
Quanto à primeira parte, fixa um prazo máximo de 60 dias para a realização das
eleições, subsequentes à dissolução, pelo Presidente da República, da Assembleia
Legislativa. A norma reproduz o artigo 17.º, n.º 2, do EPARAA em vigor (aprovado
pela Lei n.º 39/80, de 5 de Agosto, e sucessivamente alterado pela Lei n.º 9/87,
de 26 de Março, e pela Lei n.º 61/98, de 27 de Agosto).
No pedido, suscita-se a inconstitucionalidade formal da norma, essencialmente
porque se considera que a fixação de um prazo máximo à marcação de eleições é
matéria que excede a reserva de Estatuto (o âmbito e objecto próprio do
Estatuto), caindo no âmbito necessário de uma lei orgânica. Tal resultará dos
termos conjugados do artigo 133.º, alínea b), com os dos artigos 166.º, n.º 2, e
164.º, alínea j), da CRP: o primeiro determina que a competência do Presidente
da República, nesta matéria, se exerce “de harmonia com a lei eleitoral”,
concluindo-se dos segundos que esta lei deve revestir a forma de lei orgânica.
Deste modo, a inclusão no Estatuto de uma disposição fixando um prazo máximo
eleitoral traduziria uma violação desta reserva de lei orgânica.
Assim sendo, estaríamos perante uma inconstitucionalidade formal, por vício de
procedimento, uma vez que, não revestindo a norma sindicada a forma de lei
orgânica, não se sujeita aos requisitos próprios de identificação, aprovação,
controlo de mérito e controlo preventivo de constitucionalidade que a
Constituição determina para as leis orgânicas, requisitos não coincidentes com
os previstos para a lei que aprova os estatutos das regiões autónomas.
Quanto à segunda parte do artigo 69.º, n.º 5, do Estatuto, comina com a sanção
de inexistência jurídica o decreto do Presidente da República que desrespeite o
prazo máximo fixado na primeira parte.
Considera o pedido que esta segunda parte estaria ferida de
inconstitucionalidade subsequente, dada a sua relação de instrumentalidade
necessária com a norma inconstitucional que fixa o referido prazo.
E mesmo que assim se não entenda (ou, acrescentamos nós, em caso de emissão de
um juízo de não inconstitucionalidade, quanto à norma de fixação de prazo
máximo), seria de apontar à norma da segunda parte um fundamento autónomo de
inconstitucionalidade, consistente no desrespeito pela reserva de Constituição
constante do n.º 2 do artigo 110.º Está em causa uma competência do Presidente
da República (alínea b) do artigo 133.º), competência que, nos termos genéricos
daquela norma, é a definida pela Constituição. A sanção de inexistência traduz
um “condicionamento jurídico constitutivo, particularmente severo nos seus
efeitos” a uma competência constitucional do Presidente da República, o qual não
se encontra previsto ou habilitado pela própria Lei Fundamental. Daí que, mesmo
que o Presidente não observe tal prazo, não podem a lei eleitoral e, por maioria
de razão, o Estatuto (que indevidamente dispõe sobre matéria eleitoral),
estabelecer a referida sanção.
8. Esta a alegação e os fundamentos que a sustentam.
Diga-se, desde já, que eles passam inteiramente ao lado de um elemento
fundamental para a apreciação de ambas as questões de constitucionalidade
postas. Referimo-nos à circunstância de que, contrariamente ao afirmado no
pedido (em nota de rodapé ao ponto 15.º), existe na Constituição uma norma
paralela, consagrando o regime que se pretende vazar no n.º 5 do artigo 69.º do
Estatuto.
De facto, no n.º 6 do artigo 113.º, a Constituição estabelece:
«No acto de dissolução de órgãos colegiais baseados no sufrágio directo tem de
ser marcada a data das novas eleições, que se realizarão nos sessenta dias
seguintes e pela lei eleitoral vigente ao tempo da dissolução, sob pena de
inexistência jurídica daquele acto».
Como se vê, ambos os pontos do regime prescrito na norma estatutária – a saber,
fixação de um prazo máximo de sessenta dias para a marcação das novas eleições;
inexistência jurídica do decreto que infrinja esse termo – estão expressamente
contemplados na norma constitucional. O que esta, quanto a esses pontos (pondo
de lado a exigência de estabilidade da lei eleitoral vigente ao tempo da
dissolução), contém a mais é a explícita indicação de que a marcação da data de
novas eleições deve constar do acto de dissolução, isto é, a qualificação dessa
marcação como elemento essencial do acto de dissolução.
Se tudo quanto a norma estatutária dispõe já consta de um preceito
constitucional, a conclusão a tirar só pode ser a de que aquela norma em nada
inova, nada acrescenta ao que a Constituição já estabelece. Do ponto de vista da
produção normativa, ela é inócua, pois não há nada que decorra dela que já não
constasse da Constituição.
Só não seria assim se pudesse ser afirmado fundadamente que o n.º 6 do artigo
113.º da Constituição é inaplicável às eleições nas regiões autónomas. Mas tal
interpretação falsearia o alcance do preceito, carecendo de qualquer
justificação. Como a sua própria epígrafe exprime, o referido artigo define
“princípios gerais de direito eleitoral” [itálico nosso], isto é, princípios que
regem todas as eleições para a designação dos titulares dos órgãos electivos do
poder político. É esclarecedor (se necessário fosse) que o n.º 1 do artigo
113.º, ao mesmo tempo que qualifica predicativamente o sufrágio eleitoral,
referencia-o a todo o universo da organização política, tanto aos órgãos da
soberania, como aos das regiões autónomas e do poder local – no que não pode
deixar de ser visto como definindo o âmbito aplicativo de todo o regime
eleitoral nele fixado.
E o alcance geral destes princípios é de justificação tão evidente que chega a
ser posta a hipótese da sua eficácia irradiante (pelo menos de alguns deles)
para «eleições não políticas que se realizam tanto no domínio do Direito
administrativo como no do Direito Civil» (cfr. a colocação e o tratamento da
questão por JORGE MIRANDA, in JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição
Portuguesa Anotada, II, Coimbra, 2006, 289-290).
Em face deste dado constitucional, perde inteiramente sentido e razão de ser a
alegação de que a vinculação do Presidente da República a um limite temporal
máximo e a consequente sanção para o seu incumprimento representam um
“condicionamento constitutivo” da sua competência, ferida de ilegitimidade
constitucional. A verdade é que esse condicionamento tem como fonte normativa a
própria Constituição, nela radicando directamente a sua força cogente.
E a reprodutiva enunciação desse conteúdo normativo em preceito estatutário em
nada altera, como é evidente, a valência constitucional que lhe é dada pelo
artigo 113.º, n.º 6, da CRP.
O fenómeno da inclusão de soluções constitucionais noutros diplomas de grau
hierárquico inferior está por demais generalizado, sendo facilmente documentável
no próprio domínio estatutário. Poderá, decerto, discutir-se doutrinalmente a
propriedade, do ponto de vista da técnica legística, dessa “importação”. Sem
entrar nesse debate, sempre se dirá, todavia, que, dada a natureza da norma,
consagradora de uma regra básica decorrente do princípio democrático, e a
natureza do Estatuto – o momento legislativo fundamental de afirmação
jurídico-política do princípio da autonomia — é perfeitamente natural que, neste
ponto, o diploma faça eco reprodutivamente do disposto na Constituição.
Mas, para o que à questão de constitucionalidade importa, é seguro que «os
preceitos repetitivos não terão qualquer força vinculativa própria» (RUI
MEDEIROS/ TIAGO FREITAS/ RUI LANCEIRO, Enquadramento da Reforma do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, polic., 2006, 22).
Se assim é, se a norma estatutária que reitera uma prescrição constitucional é,
enquanto fonte normativa, irrelevante, porque não produtiva de eficácia
autónoma, correspondente à do diploma receptor, em nada afectando a aplicação
directa daquela prescrição, com a valia constitucional que lhe cabe, então, por
arrastamento, fica eliminado o terreno de apreciação dos restantes fundamentos
da alegada inconstitucionalidade.
De facto, só faria sentido ponderar uma eventual violação da reserva de lei
orgânica se o regime constante do n.º 5 do artigo 69.º do Estatuto fosse
inovador, em confronto com o que, a propósito, a Constituição dispõe. Já vimos,
todavia, que assim não é.
Ora, a afirmada tese de que a inserção disfuncional em estatutos de uma matéria
sujeita a lei orgânica acarreta uma inconstitucionalidade formal tem como
pressuposto necessário a admissão de que é nessa lei orgânica que teremos que
encontrar a base normativa dos efeitos jurídicos em apreciação. Só assim ganha
justificação a exigência de cumprimento estrito dos requisitos próprios das leis
orgânicas, que o ponto 8.º do pedido refere. Falhando esse pressuposto, decai
igualmente a pertinência da consideração da questão, pelo que não releva aqui
saber se foi ou não cumprido o regime procedimental da lei orgânica.
Em face do exposto, é de decidir pela não inconstitucionalidade do disposto no
n.º 5 do artigo 69.º do Estatuto, tanto na primeira, como na segunda parte.
B) A norma do n.º 3 do artigo 114.º
9. O artigo 114.º do EPARAA, na redacção dada pelo Decreto n.º 217/X, reza
assim:
«Artigo 114.º
Audição pelo Presidente da República sobre o exercício de competências políticas
1 − A Assembleia Legislativa deve ser ouvida pelo Presidente da República antes
da nomeação ou exoneração do Representante da República na Região.
2 − A Assembleia Legislativa, o Presidente do Governo Regional e os grupos e
representações parlamentares da Assembleia Legislativa devem ser ouvidos pelo
Presidente da República antes da dissolução da Assembleia Legislativa e da
marcação da data para a realização de eleições regionais ou de referendo
regional.
3 − O Presidente da Assembleia Legislativa e o Presidente do Governo Regional
devem ser ouvidos pelo Presidente da República antes da declaração do estado de
sítio ou de emergência no território da Região.»
O pedido questiona a constitucionalidade deste n.º 3, com fundamento na violação
do princípio da reserva constitucional da definição das competências dos órgãos
de soberania enunciado no artigo 110.º, n.º 2, da CRP.
Defende-se, em síntese, que:
− As regras sobre audição de outras entidades são estruturantes do processo de
declaração do estado de sítio e do estado de emergência, integrando, como tal, a
reserva de lei constitucional da competência do Presidente da República nesta
matéria. Para além dos pressupostos e limites substanciais dessa competência, a
Constituição prescreve os trâmites relativos à audição do Governo e à
autorização da Assembleia da República (artigos 19º, 134º, alínea d), 197º, n.º
1, alínea f), e 138º da CRP). Não prevê qualquer trâmite de audição de órgãos de
governo das regiões ou de quaisquer outros órgãos constitucionais, por parte do
Presidente da República.
− Embora os regimes do estado de sítio e do estado de emergência sejam também
objecto de disciplina pela lei ordinária (alínea e) do artigo 164º da CRP), as
suas regras apenas devem proceder à densificação ou “regulamentação” das regras
constitucionais que estruturam o processo correspondente, e nunca integrar as
mesmas normas constitucionais.
− Deve ser a Constituição e não a lei ordinária a determinar as audições com
carácter obrigatório por três ordens de razões: elas constituem um limite às
competências do Presidente da República; sendo a declaração dos estados de
excepção um acto de soberania, se consta da Constituição a obrigatoriedade de
audição prévia do Governo – um órgão de soberania – por maioria de razão dela
deveria constar a audição de órgãos constitucionais não soberanos, se tal
correspondesse à intenção jurídico-política do legislador constituinte; por
último, o instituto dos estados de excepção pressupõe um processo jurídico
unitário quanto à sua decretação, independentemente de poder abranger a
totalidade ou parte do território nacional, pelo que as diferenças, quanto às
audições prévias, que resultariam da norma em apreço, pelo facto de o Estatuto
da Região Autónoma da Madeira omitir este trâmite, ofenderiam os princípios da
unidade, da solidariedade nacional e da igualdade (artigos 6.º, n.º 2, 225.º e
13.º da CRP).
− Subsidiariamente, para o caso de não proceder este fundamento de
inconstitucionalidade, considera-se que essa imposição legal só poderia constar
de lei orgânica e nunca de lei estatutária, nos termos das disposições
conjugadas da alínea e) do artigo 164.º com o n.º 2 do artigo 166.º da CRP, o
que implicaria a inconstitucionalidade formal da norma, por violação da reserva
de lei orgânica.
10. A norma em causa vem prever a audição prévia, pelo Presidente da República,
do presidente da Assembleia Legislativa e do presidente do Governo Regional,
antes da declaração do estado de sítio ou de emergência no território da Região.
O teor do preceito suscita a dúvida se a previsão abrange a declaração dos
estados de excepção apenas no território da Região (como parece pressupor o
pedido – ponto 23.º), ou se se estende aos casos em que esse território também é
incluído, conjuntamente com outras parcelas do território português igualmente
especificadas, ou integrado na totalidade nacional. Na segunda hipótese
interpretativa, o dever de audição existiria sempre que o âmbito geográfico da
Região fosse abrangido pela declaração.
Sendo este segundo entendimento o sugerido, de algum modo, pela letra do
preceito e o abonado pela teleologia que lhe subjaz, é por ele que optamos.
11. Nem a Constituição, nem a Lei n.º 44/86, de 30 de Setembro, que
estabelece o regime do estado de sítio e do estado de emergência, prevêem a
audição, pelo Presidente da República, dos órgãos de governo próprio de cada
região autónoma previamente à declaração de estados de excepção, ainda que estes
abranjam o respectivo território.
A questão colocada é a de saber, antes de mais, se a introdução de
um trâmite de audição obrigatória de outros órgãos pelo Presidente da República
é matéria de reserva da Constituição. O que implica saber se está em causa uma
regra do regime dos estados de excepção que a Constituição reserva para si ou
se, pelo contrário, é matéria susceptível de ser regulamentada pela lei do
regime do estado de sítio e do estado de emergência, que integra a reserva
absoluta de competência legislativa da Assembleia da República e reveste a forma
de lei orgânica (artigos 164.º, alínea e), e 166.º, n.º 2).
Como referem GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, em comentário ao artigo
19.º (Constituição da República Portuguesa anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 399
s.), a «partir da “constitucionalização” do “direito de necessidade”,
procurou-se fixar os pressupostos da sua utilização, considerando-se como mais
conforme à “ideia constitucional” ser a própria Constituição a definir e regular
as situações de “excepção constitucional”». Nessa medida, pode dizer-se que «a
Constituição se preocupou em constitucionalizar ao máximo os estados de excepção
constitucional» (ob. cit., 405), pelo que «define com algum pormenor vários
aspectos dos estados de excepção constitucional, designadamente, os seus
pressupostos materiais (n.º 2), a competência, a forma e o processo da sua
declaração (arts.134.º/d, 138.º, 162.º/b, etc.), os requisitos da declaração
(n.ºs 4 e 5), os limites do estado de excepção […] (n.ºs 5, 6 e 7) e finalmente
as suas implicações jurídico-constitucionais (arts. 172.º-1, in fine, e 289.º)»
− ob. cit., 404-405.
Como salienta JORGE BACELAR GOUVEIA (O Estado de Excepção no Direito
Constitucional, entre a eficácia e a normatividade das estruturas de defesa
extraordinária da Constituição, vol. I, Coimbra, 1998, 593), a “elevada
positivação constitucional” do estado de excepção foi mesmo, em certos aspectos,
acentuada nas sucessivas revisões constitucionais.
É certo que não pode afirmar-se uma “codificação constitucional
integral“ dos estados de excepção. Demonstra-o a previsão de uma intervenção
normativa, nesta matéria (alínea e) do artigo 164.º).
Mas, entre os aspectos de regulação deixados à lei, não deve ser incluído o
procedimento de audição prévia de outros órgãos, por parte do Presidente da
República. Há um figurino procedimental desse trâmite na Constituição, que o
legislador ordinário não pode alterar, alargando o círculo dos órgãos a ser
ouvidos. Por isso mesmo, a Lei n.º 44/86, na parte em que disciplina o processo
da declaração (artigos 24.º a 29.º), não estabelece nada de novo quanto às fases
do procedimento, antes regulamenta o regime procedimental já desenhado pela
Constituição.
Salienta o Autor por último citado que, embora a Constituição aceite o
pluralismo de fontes normativas reguladoras do estado de excepção, «no tocante
às normas formalmente constitucionais de excepção, podemos dizer que vigora um
regime de reserva de Constituição, segundo o qual os aspectos regulativos do
estado de excepção que constam do texto constitucional são, na sua essência, do
foro constitucional.» E acrescenta que essa «conclusão impõe-se com
clarividência a partir da sujeição, que vimos existir, a certos limites
materiais de revisão constitucional. É também esse o sentido que se retira da
necessidade de o estado de excepção ser proclamado na “… forma prevista na
Constituição”, numa vertente não tanto hierárquica quanto essencialmente
substantiva.» (ob. cit., 652).
A preocupação constitucional em procedimentalizar, em extremo, a
declaração do estado de excepção obedece ao propósito de ligar todos os órgãos
de soberania com funções políticas (mas apenas estes) à declaração e aos seus
efeitos, através de “um mecanismo complexo de interdependência” (GOMES
CANOTILHO, Direito constitucional e teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra,
2003, 1104).
Este procedimento comporta, em regra, seis fases, todas previstas na
Lei Fundamental: 1.ª) iniciativa do Presidente da República ou proposta do
Governo; 2.ª) audição, não vinculativa, do Governo quando a iniciativa não tenha
partido dele; 3.ª) mensagem do Presidente à Assembleia da República; 4.ª)
deliberação da Assembleia; 5.ª) decreto do Presidente; 6.ª) referenda, livre, do
Governo (seguimos a enumeração de JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição
Portuguesa Anotada, cit., II, 413).
As previsões constitucionais formam um bloco integrado, unindo e encadeando, em
diferentes fases e em diferentes níveis, a intervenção dos três órgãos de
soberania com funções políticas. Note-se que a intervenção governamental não se
situa apenas ao nível da participação consultiva, com o objectivo (de certa
forma neutro) de estudar e dar parecer. Para além de lhe competir emitir
referenda, «o acto de pronúncia do Governo é um acto de juízo com relevância
autónoma, em que o Governo exprime a sua opinião sobre os pressupostos
legitimadores da declaração do estado de sítio ou do estado de emergência,
avalia discricionariamente o mérito da eventual decisão e aprecia as
possibilidades e limites das medidas que a ele pertencerá adoptar (como órgão
encarregado da defesa nacional, da manutenção da ordem e da segurança em tais
situações)» − GOMES CANOTILHO, ob. cit., 1108.
Estamos em face do exercício de uma função de soberania, compreendendo-se,
assim, que a intervenção se restrinja aos respectivos órgãos (políticos).
A audição obrigatória dos presidentes dos órgãos de governo próprio da Região
Autónoma teria outro sentido, colocando-se necessariamente a outro nível. A
introdução desse novo trâmite procedimental, não previsto na Constituição,
desobedeceria aos ditames de natureza formal-procedimental por ela fixados,
sendo estranha à lógica imanente à definição constitucional dos órgãos
intervenientes (com a sua restrição a órgãos da soberania). Não tem cobertura
constitucional.
12. Alguma dúvida poderá lançar sobre esta conclusão o facto de o artigo 229.º,
n.º 2, da CRP, prever que «os órgãos de soberania ouvirão sempre, relativamente
às questões da sua competência respeitantes às regiões autónomas, os órgãos de
governo regional». Por sua vez, entre os poderes das regiões autónomas
enumerados no artigo 227.º, n.º 1, consta o de «pronunciar-se, por sua
iniciativa ou sob consulta dos órgãos de soberania, sobre as questões da
competência destes que lhes digam respeito […]».
Parece seguro que, descontados os tribunais, a referência aos órgãos de
soberania, abrange-os a todos, sem excluir o Presidente da República (nesse
sentido, JORGE MIRANDA, “Sobre a audição dos órgãos das regiões autónomas pelos
órgãos de soberania”, Estudos em homenagem à Professora Doutora Isabel de
Magalhães Collaço, II, Coimbra, 2002, 779 s., 785, e RUI MEDEIROS/TIAGO FREITAS/
RUI LANCEIRO, ob. cit., 135).
Poderia pensar-se que, entre as questões da competência do Presidente da
República sobre que incide o dever de audição dos órgãos de governo regional se
conta a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência (a favor dessa
solução, ob. loc. ult. cit.).
Ainda que a dúvida seja inteiramente legítima, afigura-se, contudo, mais
conforme com o modo como a Lei Fundamental constitucionalizou as várias fases do
iter procedimental conducente à declaração do estado de sítio e do estado de
emergência não interligar o exercício desta competência do Presidente da
República com o âmbito da previsão das normas que prevêem o dever geral de
audição. Estas constituem disposições genéricas, que não devem prevalecer sobre
a regulação constitucional específica do artigo 138.º, n.º 1. Aqui foram
positivados, de forma, tudo o indica, totalizante e fechada, os trâmites da
declaração do estado de sítio e do estado de emergência. O processo de audição
está aí esgotantemente previsto, não abrindo espaço para a aplicação de normas
gerais, de objecto indiferenciado. Não pode, pois, ver-se no dever de audição
previsto no n.º 2 do artigo 229.º a fonte constitucional da criação de um novo
trâmite, a somar aos consagrados no local próprio.
É certo que a própria Lei n.º 44/86, de 30 de Setembro, que estabelece o regime
do estado de sítio e do estado de emergência, prevê, no artigo 25.º, n.º 4, que
«a Assembleia da República consultará os órgãos de governo próprio das regiões
autónomas, nos termos do artigo 231.º, n.º 2, da Constituição, sempre que a
declaração do estado de sítio ou do estado de emergência se refira ao respectivo
âmbito geográfico».
Mas não pode ver-se nesta disposição uma infirmação, na perspectiva do
legislador ordinário, de quanto acima fica dito.
Na verdade, esta norma situa-se a um diferente nível daquele que o artigo 114.º,
n.º 3, do Estatuto, reivindica para si, na sua articulação com o disposto no
artigo 138.º, n.º 1, da CRP. Ao contrário da norma sindicada, o artigo 25.º, n.º
4, da Lei n.º 44/86 não se coloca ao nível da disciplina primária das condições
procedimentais da declaração do estado de sítio ou do estado de emergência. Uma
vez imposta, pela Constituição, a autorização da Assembleia da República, ela
apenas regula, como disciplina de segundo grau, um procedimento a observar por
este órgão, antes de deliberar sobre a matéria. Cabe, pois, perfeitamente,
dentro da remissão, para a respectiva lei, dos aspectos dos regimes do estado de
sítio e do estado de emergência não contemplados pela Constituição (alínea e) do
artigo 164.º da CRP).
Não assim o artigo 114.º, n.º 3, do Estatuto. Este vem impor ao Presidente da
República, como condição da declaração, um novo trâmite, não previsto na
Constituição, ao estabelecer a obrigatoriedade da audição dos presidentes dos
órgãos regionais. Por força da norma em apreço, a identificação constitucional
do destinatário do dever de audição, em sede específica do exercício da
competência excepcional do Presidente da República para declaração do estado de
sítio ou de emergência, é alterada, com a indicação suplementar de novos órgãos
a ser ouvidos. A previsão genérica do artigo 229.º, n.º 2, da CRP, não parece
fornecer respaldo constitucional bastante, para o efeito.
Na medida em que introduz um novo trâmite, convocando novos órgãos
ao procedimento de audição antes da declaração do estado de sítio ou de
emergência, não abrangidos pela previsão constitucional específica dessa
matéria, a norma do artigo 114.º, n.º 3, do Estatuto, aprovado pelo Decreto
n.º 217/X, viola o artigo 110.º, n.º 2, conjugado com o artigo 138.º, n.º 1, da
Constituição.
Sendo assim, fica prejudicada a apreciação, a este propósito, da também invocada
violação da reserva de lei orgânica.
C) As normas do n.º 1 do artigo 45.º e dos n.º 5 e 6 do artigo 46.º, na parte em
que se referem à iniciativa referendária regional
13. As normas em questão estabelecem o seguinte:
«Artigo 45.º
Iniciativa legislativa e referendária regional
1 − A iniciativa legislativa e referendária regional compete aos Deputados, aos
grupos e representações parlamentares, ao Governo Regional e ainda, nos termos e
condições estabelecidos no artigo seguinte, a grupos de cidadãos eleitores.
2 − Os Deputados e os grupos e representações parlamentares não podem apresentar
projectos ou propostas de alteração de decreto legislativo regional ou
antepropostas de referendo regional que envolvam, no ano económico em curso,
aumento das despesas ou diminuição das receitas da Região previstas no
orçamento.
3 − Os projectos e as propostas de decreto legislativo regional ou de referendo
regional definitivamente rejeitados não podem ser renovados na mesma sessão
legislativa.
4 − Os projectos e as propostas de decreto legislativo regional e de referendo
regional não votados na sessão legislativa em que tiverem sido apresentados não
carecem de ser renovados nas sessões legislativas seguintes, salvo termo da
legislatura ou dissolução da Assembleia Legislativa.
5 − As propostas de decreto legislativo regional e de referendo caducam com a
demissão do Governo Regional.
6 − As comissões parlamentares podem apresentar textos de substituição, sem
prejuízo dos projectos e das propostas a que se referem.
7 − O presente artigo aplica-se, com as devidas adaptações, aos anteprojectos e
antepropostas de lei.»
«Artigo 46.º
Iniciativa legislativa e referendária dos cidadãos
1 − Os cidadãos regularmente inscritos no recenseamento eleitoral no território
da Região são titulares do direito de iniciativa legislativa, do direito de
participação no procedimento legislativo a que derem origem e do direito de
iniciativa referendária.
2 − A iniciativa legislativa dos cidadãos pode ter por objecto todas as matérias
incluídas na competência legislativa da Assembleia Legislativa, à excepção das
que revistam natureza ou tenham conteúdo orçamental, tributário ou financeiro.
3 − Os grupos de cidadãos eleitores não podem apresentar iniciativas
legislativas que:
a) Violem a Constituição da República Portuguesa ou o presente Estatuto;
b) Não contenham uma definição concreta do sentido das modificações a introduzir
na ordem legislativa;
c) Envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das
receitas previstas no orçamento da Região.
4 − A iniciativa referendária dos cidadãos pode ter por objecto as matérias
referidas no n.º 3 do artigo 43.º e não pode envolver, no ano económico em
curso, um aumento das despesas ou uma diminuição das receitas previstas no
orçamento da Região.
5 − O exercício do direito de iniciativa é livre e gratuito, não podendo ser
dificultada ou impedida, por qualquer entidade pública ou privada, a recolha de
assinaturas e os demais actos necessários para a sua efectivação, nem dar lugar
ao pagamento de quaisquer impostos ou taxas.
6 − O direito de iniciativa legislativa de cidadãos é exercido através da
apresentação à Assembleia Legislativa de projecto de decreto legislativo
regional, subscrito por um mínimo de 1500 cidadãos eleitores recenseados no
território da Região, e o direito de iniciativa referendária através da
apresentação de anteproposta de referendo, subscrita por um mínimo de 3000
cidadãos eleitores recenseados no território da Região.»
No pedido, considera-se que as normas do n.º 1 do artigo 45.º e dos n.ºs 5 e 6
do artigo 46.º do Estatuto assumem carácter inovatório, em face do disposto no
n.º 2 do artigo 232.º e das correspondentes remissões para o artigo 115.º da
CRP, em matéria de referendo regional, padecendo de inconstitucionalidade, pelas
seguintes razões principais:
− O n.º 1 do artigo 45.º atribui competência para a iniciativa referendária a um
conjunto de entidades (Assembleia Legislativa, Governo Regional e grupos de
cidadãos eleitores), mas, ao fazê-lo, inova em face do disposto no n.º 2 do
artigo 232.º da CRP, o qual apenas comete essa faculdade à Assembleia
Legislativa da região;
− O n.º 5 do artigo 46.º densifica os critérios da liberdade e gratuitidade do
direito de iniciativa referendária, determinando que a recolha de assinaturas e
demais actos necessários para a sua efectivação não podem ser dificultados ou
impedidos por qualquer entidade ou sujeitos ao pagamento de impostos ou taxas,
do que resulta a fixação de uma regra garantística sobre as condições de
realização do referendo que não resulta directamente da Constituição;
− O n.º 6 do artigo 46.º, na sua segunda parte, fixa o número mínimo de cidadãos
eleitores que podem subscrever uma iniciativa referendária popular, disposição
que implica um juízo de mérito sobre os pressupostos da pré-iniciativa
referendária que não decorre de qualquer norma constitucional;
− As normas do artigo 45.º, n.º 1, e dos n.ºs 5 e 6 do artigo 46.º enfermam de
inconstitucionalidade formal, por violação da reserva de lei orgânica, onde se
inclui o regime do referendo regional (artigos 164.º, alínea b), e 166.º, n.º
2).
14. Os preceitos referidos, que dispõem sobre a iniciativa legislativa e
referendária, inserem-se sistematicamente na definição das “competências em
geral” da “Assembleia Legislativa” (cfr. Subsecção I da Secção II do Capítulo I
do Título IV – órgãos de governo próprio − do Estatuto, na redacção do Decreto
n.º 217/X).
Como questão prévia, há que precisar que todas as normas citadas apresentam um
conteúdo prescritivo bidireccionado, tanto à iniciativa legislativa, como à
iniciativa referendária. Ora, muito embora o pedido indique como objecto esses
preceitos, na sua completude normativa, sem qualquer restrição, na verdade vem
apenas questionada a parte deles atinente à iniciativa referendária. Há, pois,
que circunscrever o objecto do pedido, quanto a essas normas, ao segmento de
cada uma delas que se reporta à iniciativa referendária.
15. Antes de entrarmos na análise das questões suscitadas, impõe-se também
precisar o sentido do segmento normativo do artigo 45.º, n.º 1, aqui em causa,
pois a leitura que dele é feita no pedido apresenta-se incompatível com o
sentido que se extrai dos seus elementos literal, sistemático e teleológico.
Na verdade, o segmento normativo questionado não tem por objecto a iniciativa
referendária em sentido próprio, isto é, aquela que se traduz na aprovação e
apresentação de uma proposta de referendo ao Presidente da República.
É esta iniciativa (consubstanciada na proposta de referendo regional) que o
artigo 232.º, n.º 2, da Constituição, reserva para a Assembleia Legislativa e
que, no caso do referendo nacional, a Constituição integra na competência da
Assembleia da República e do Governo da República (artigo 115.º, n.º 1). Por
razões que se prendem com a diferente (em relação aos correspondentes órgãos da
República) delimitação de competências entre as Assembleias Legislativas das
regiões autónomas e os Governos Regionais (cfr. JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, ob.
cit., III, 417-418), as propostas de referendo regional cabem apenas às
Assembleias Legislativas.
E esta regra do artigo 232.º, n.º 2, da Constituição, é integralmente respeitada
no EPARAA, uma vez que, no artigo 43.º, n.º 1, sob a epígrafe “Referendo
regional”, se dispõe: «Compete à Assembleia Legislativa apresentar propostas de
referendo regional ao Presidente da República.»
O correspondente directo, no citado Estatuto, do preceituado no artigo 232.º,
n.º 2, da CRP, não é o artigo 45.º, n.º 1, mas antes o artigo 43.º, n.º 1. A
norma do artigo 45.º, n.º 1, corresponde, com algumas diferenças, ao que se
prevê na Constituição, no artigo 167.º, n.º 1, quanto à iniciativa do referendo
(e, antes disso, à iniciativa legislativa) no âmbito da Assembleia da República.
A “iniciativa referendária” a que se refere o artigo 45.º, n.º 1, não é, assim,
a iniciativa perante o Presidente da República, mas antes a “pré-iniciativa” (na
expressão de JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Coimbra, 2005,
VII, 326) perante a própria Assembleia Legislativa, a “anteproposta” (na
terminologia do artigo 45.º, n.º 2) a submeter a aprovação à Assembleia e que,
uma vez aprovada, se converterá em proposta de referendo a apresentar ao
Presidente da República. O que naquela norma é regulado é o momento impulsivo e
inicial do processo referendário, que desencadeia, no âmbito da Assembleia
Legislativa, o debate e eventual aprovação de uma proposta de referendo.
Para além de ser claro que a competência para a iniciativa referendária perante
o Presidente da República é tratada no citado artigo 43.º, n.º 1, do EPARAA, com
total acolhimento do que a Constituição estabelece, é também certo que, tanto o
artigo 45.º, como o artigo 46.º, se referem à “anteproposta de referendo
regional”, ou seja, à “pré-iniciativa” perante a Assembleia Legislativa (cfr. os
artigos 45.º, n.º 2, e 46.º, n.º 6).
Só esta interpretação, aliás, confere sentido útil aos n.ºs 2 a 7 do artigo 45.º
Por todas estas razões, conclui-se que a norma do artigo 45.º, n.º 1, incide
sobre a iniciativa junto da Assembleia Legislativa, exigindo o subsequente
exercício do poder de aprovação da proposta de referendo (isto é, da iniciativa
referendária junto do Presidente da República), por parte da própria Assembleia
Legislativa, nos termos previstos no artigo 232.º, n.º 2, da Constituição.
Assim sendo, não tendo a norma questionada por objecto a iniciativa referendária
junto do Presidente da República (consubstanciada na competência para aprovar
propostas de referendo), mas sim a iniciativa referendária junto da Assembleia
Legislativa, não é, à partida, susceptível de violar o disposto no artigo 232.º,
n.º 2, da Constituição.
16. A segunda questão suscitada prende-se com a inconstitucionalidade formal,
por violação da reserva de lei orgânica, que abrangeria as três normas aqui em
causa.
A norma do artigo 45.º, n.º 1, refere-se à pré-iniciativa, quer parlamentar
(deputados e grupos e representações de deputados) e governamental, quer popular
(grupos de cidadãos eleitores). Os seus termos correspondem àquilo que a
Constituição prescreve, no artigo 167.º, n.º 1, para a iniciativa referendária
junto da Assembleia da República. Assim pode concluir-se porque não há diferença
substancial entre as expressões “grupos parlamentares” (artigo 167.º, n.º 1, da
CRP) e “grupos e representações parlamentares” (artigo 45.º, n.º 1, do
Estatuto), pois a “representação parlamentar” equivale ao deputado que seja
único representante de um partido (cfr. o artigo 14.º do Regimento da Assembleia
Legislativa da Região Autónoma dos Açores e o artigo 10.º do Regimento da
Assembleia da República).
Acontece que apenas a pré-iniciativa popular tem directo suporte constitucional,
no n.º 2 do artigo 115.º, por remissão do artigo 232.º, n.º 2, parte final. A
Lei Fundamental nada mais dispõe quanto à legitimidade para a iniciativa
referendária (ou legislativa) junto das Assembleias Legislativas das regiões
autónomas.
Mas, da omissão de um preceito directamente atinente a esta matéria,
dificilmente se pode retirar a conclusão de que a Constituição não confere base
normativa bastante ao disposto, sobre a matéria, no n.º 1 do artigo 45.º
Sendo o tratamento constitucional do funcionamento das Assembleias Legislativas
das regiões autónomas muito menos extensivo e detalhado do que o conferido ao
tratamento do funcionamento da Assembleia da República – o que, justamente, se
compreende bem, por respeito à autonomia, conferindo espaço a que esta se
exprima, quanto a este ponto, através dos estatutos político-administrativos,
uma vez que está em causa o funcionamento de um órgão regional −, a Constituição
não contém, para as Assembleias Legislativas das regiões autónomas, um preceito
idêntico ao do artigo 167.º
Note-se que a doutrina tem dirigido críticas a esta inserção sistemática, que se
prendem, justamente, com o facto de a iniciativa, quanto a um acto político (a
proposta de referendo), aparecer regulada conjuntamente com a iniciativa quanto
a actos legislativos. Assim se mistura o tratamento de actos de diferente
natureza.
Apesar da inserção sistemática da norma do artigo 167.º, n.º 1, o segmento aqui
em causa consubstancia uma “regra jurídico-organizatória”, uma regra
competencial quanto ao direito de iniciativa do referendo, pelo que estaria
melhor colocado no artigo a ele dedicado.
Estabelecidas as necessárias interconexões de regime, numa leitura
sistematicamente ordenadora e integradora de normas dispersas, apta a produzir
uma carga de sentido suplementar, poder-se-á concluir que os termos do artigo
167.º, n.º 1, só literalmente e pela sua errada inserção sistemática (no que ao
referendo concerne) se podem considerar restritos à Assembleia da República. O
domínio material de aplicação da norma permite estender o conteúdo prescritivo
aqui em questão, sem esforço, às Assembleias Legislativas das regiões autónomas,
atendendo, até, a que o disposto para a Assembleia da República serve de modelo
regulador para as Assembleias Legislativas (RUI MEDEIROS, in JORGE MIRANDA/RUI
MEDEIROS, ob. cit., III, 420).
Estamos perante uma lacuna autêntica, não intencionada, a preencher “dentro do
espírito do sistema”. Ora, não faria sentido, no quadro das opções
constitucionais, abrir a porta à iniciativa popular referendária, uma iniciativa
“de fora” da organização política, e fechá-la aos (titulares dos) órgãos que, em
termos orgânico-funcionais, decorrentes do seu próprio estatuto, protagonizam
primariamente o processo político.
Se a Constituição reconheceu expressamente a pré-iniciativa popular, só por uma
inadvertência de não articulação sistemática não reconheceu expressamente, para
o âmbito regional, a legitimidade dos detentores “institucionais” deste tipo de
iniciativas. Esse reconhecimento impõe-se, por um argumento de identidade, senão
de maioria de razão.
Necessário se torna, por isso, concluir que o disposto no artigo 167.º, n.º 1,
da Constituição, não obstante a sua inserção sistemática, contém regras sobre o
regime do referendo que são aplicáveis, quer no âmbito da Assembleia da
República, quer, no que ao referendo regional respeita, no âmbito das
Assembleias Legislativas das regiões autónomas, por força da leitura integrada
daquele preceito com o artigo 115.º e com a remissão que para este é feita no
artigo 232.º, n.º 2.
Aqui chegados, cremos ter fornecido uma base argumentativa suficiente para
permitir concluir que, também nesta parte − em que prevê a iniciativa
parlamentar ou governamental referendária no seio da Assembleia Legislativa − a
norma em causa tem suporte na Constituição.
Ficará consequentemente afastada a alegada inconstitucionalidade formal do
disposto no n.º 1 do artigo 45.º, no que se refere à legitimidade para a
pré-iniciativa referendária de deputados, grupos e representações parlamentares
e Governo Regional.
17. Vejamos agora o problema da reserva de lei orgânica, no que respeita à parte
do n.º 1 do artigo 45.º que remete a fixação dos termos e condições da
iniciativa referendária popular para norma estatutária.
Neste aspecto, e quanto à iniciativa popular, o disposto no artigo 45.º, n.º 1,
afasta-se do n.º 2 do artigo 115.º: enquanto que este prescreve que a iniciativa
popular será regulada por lei, entenda-se, por lei da reserva absoluta da
Assembleia da República, que reveste a forma de lei orgânica (artigos 164.º,
alínea b), e 166.º, n.º 2), na norma sindicada remete-se a regulação dos termos
e condições dessa iniciativa para o artigo seguinte, ou seja, para o artigo 46.º
Desta norma, só vem impugnada, todavia, a constitucionalidade do n.º 5 e do n.º
6. A apreciação da constitucionalidade da parte remissiva do n.º 1 do artigo
45.º identifica-se, assim, com a apreciação da constitucionalidade dos preceitos
dos n.ºs 5 e 6 do artigo seguinte.
Quanto à norma do n.º 5, o que ali se visa é a protecção do “direito de
iniciativa” de que são titulares os cidadãos eleitores perante a respectiva
Assembleia Legislativa (cfr. o n.º 1 do artigo 46.º), através da proibição de
criar obstáculos (nomeadamente, encargos consubstanciados em impostos ou taxas)
ao seu livre exercício. Poderá dizer-se que estão em causa condições de
efectivação (ou de facilitação da efectivação) de um direito de participação
política. Na medida em que este direito é reconhecido, incumbe ao Estado
garantir a sua efectivação (artigo 2.º da CRP), até porque é sua tarefa
fundamental, nos termos da alínea c) do artigo 9.º da CRP «defender a democracia
política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na
resolução dos problemas nacionais». E onde se lê Estado e “problemas nacionais”,
deve também ler-se, no âmbito regional, os órgãos de governo das regiões
autónomas e “problemas regionais”, tomando até em linha de conta que “a
participação democrática dos cidadãos” é um dos objectivos primários visados
pela autonomia regional (artigo 225.º, n.º 1). Acresce que o referendo
(incluindo o regional, dado o disposto no artigo 232,º, n.º 2, da CRP), é uma
das formas constitucionalmente previstas de o povo exercer o poder político
(artigo 10.º, n.º 1, da CRP).
Pode, assim, defender-se, com razoabilidade, que esta regra garantística não tem
alcance inovatório, pois não prescreve nada que não decorra da Constituição. Ao
reconhecer o direito de iniciativa popular referendária, a Lei Fundamental está
também a impor implicitamente à Administração Pública que, no seu domínio de
actuação, e no que dela depende, se abstenha de criar obstáculos ao exercício
efectivo desse direito.
Ademais, estamos perante um regra simples, implicando deveres negativos, de non
facere, que não resulta de uma opção suplementar livre do legislador, dentro de
um leque de alternativas disponíveis, de carácter regulamentar, mas antes flui,
com naturalidade, de regras e princípios constitucionais relevantes na matéria.
Aliás, essa regra nada tem de especificamente atinente à matéria do referendo,
sendo antes uma manifestação, para esse domínio particular, de uma directriz
válida em geral, para todos os casos de efectivação de direitos de participação
política. Corresponde ao sentido mais profundo de qualquer direito desta índole
a inexistência dos constrangimentos que o n.º 5 do artigo 46.º do Estatuto
intenta evitar. Tanto assim é que a Lei n.º 43/90, de 10 de Agosto, ao regular o
direito de apresentar petições, estabelece, no artigo 5.º, a sua gratuitidade,
pelo que o respectivo exercício “não pode, em caso algum, dar lugar ao pagamento
de quaisquer impostos ou taxas”.
Desta forma se afasta a alegada inconstitucionalidade formal, quanto ao n.º 5 do
artigo 46.º
18. Resta saber se o n.º 6 do artigo 46.º, na medida em que disciplina matéria
abrangida pelo âmbito próprio da lei do referendo, é inconstitucional por violar
a forma de lei orgânica que esta deve assumir.
Um juízo sobre esta invocada inconstitucionalidade requer, antes de mais,
apreciar e decidir se o disposto na norma sindicada cai ou não no âmbito próprio
da lei do referendo regional – cuja disciplina, integrando a reserva absoluta de
competência da Assembleia da República e devendo assumir a forma de lei orgânica
(artigos 164.º, alínea b), e 166.º, n.º 2), se continua a aguardar.
Essa é uma verdadeira questão prévia, pois, só em face de uma resposta
afirmativa, se levanta a questão consequencial do tratamento constitucionalmente
adequado da violação da reserva de lei orgânica.
E diga-se que não é de primeira evidência a melhor inserção sistemática da
matéria que dá conteúdo ao artigo 46.º, n.º 6, do Estatuto. Não pode perder-se
de vista que estamos perante uma norma estatutária que regula um aspecto da
iniciativa referendária de um grupo de cidadãos perante a Assembleia
Legislativa. Ou seja, embora reportada, em último termo, ao referendo (ainda que
não à consulta referendária, propriamente dita), a disposição não deixa também
de ter a ver com a competência daquele órgão constitucional — o que justificará
a sua localização na respectiva secção do Estatuto, em tratamento conjunto com a
iniciativa legislativa, à semelhança do que faz o artigo 167.º da CRP e o
Regimento da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores (Resolução n.º
15/2003/A, de 26 de Novembro), nos artigos 11.º, n.º 2, alínea d), e 196.º
Constitui, a mais disso, uma manifestação particular do direito de petição dos
cidadãos.
Coloca-se, pois, numa zona de fronteira, com uma projecção tripartida em todos
os campos referidos, assumindo a natureza de uma autêntica norma-charneira entre
matérias diferenciadas, ainda que relacionadas entre si.
Mas, tudo ponderado, e tendo em conta que a iniciativa referendária é o ponto
focal que magnetiza todo o campo da estatuição, cremos ajustado considerar que
estamos perante matéria que cai no âmbito necessário da lei do referendo
regional — uma lei orgânica, nos termos constitucionais já referidos. Somos,
assim, confrontados com as consequências que devem ser retiradas da violação da
reserva de lei orgânica.
Na situação em apreço, o problema nasce pelo facto de, apesar de ambas
comungarem da natureza de leis de valor reforçado, as leis orgânicas estarem
constitucionalmente sujeitas a requisitos próprios, não extensíveis às leis de
aprovação dos estatutos político-administrativos das regiões autónomas.
Assim é quanto à maioria estipulada para aprovação das leis orgânicas em votação
final global (n.º 5 do artigo 168.º), mais exigente do que a prevista para
idêntica votação do Estatuto (artigo 116.º, n.º 3), excepto no que se refere às
suas disposições que enunciem matérias que integram o respectivo poder
legislativo (alínea f) do n.º 6 do artigo 168.º).
Também quanto à imposição de votação na especialidade pelo Plenário, ela abrange
um extenso rol de leis orgânicas, incluindo as leis dos regimes dos referendos
(n.º 4 do artigo 168.º), mas não as normas estatutárias.
Em caso de veto político do Presidente da República, é exigível para a
confirmação de decretos a promulgar como leis orgânicas uma maioria parlamentar
(maioria de dois terços dos Deputados presentes, desde que superior à maioria
absoluta dos Deputados em efectividade de funções – artigo 136.º, n.º 3) mais
qualificada do que a requerida para os decretos a promulgar como estatutos
(maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções – artigo 136.º, n.º
2).
Igualmente no que diz respeito à fiscalização preventiva de
constitucionalidade, os n.ºs 4, 5 e 7 do artigo 278.º estabelecem especialidades
de regime das leis orgânicas, quanto à legitimidade e aos prazos (dessa
iniciativa e da promulgação).
A estas diferenças, que resultam da Constituição, haverá ainda que somar, a
nível do direito ordinário, a exigência, restrita às leis orgânicas, de legenda
própria e numeração privativa, nos termos do artigo 8.º, n.º 1, alínea b), da
Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 42/2007, de
24 de Agosto.
Cotejando as diferenças de regime entre as leis orgânicas e as estatutárias, há
a concluir que, alojando-se nestas matéria que deveria sujeitar-se à forma das
primeiras, estamos perante um vício de procedimento, qualificável como défice ou
insuficiência de forma, resultante da inclusão de normas “reforçadas” em lei
menos rígida (embora, no caso, também reforçada).
A situação é, de certo modo, a inversa da identificável quando normas de direito
comum são inseridas em leis de valor reforçado. Nesta última situação, estamos
perante um excesso ou desproporção de forma, em razão da natureza da matéria
regulada. É assim porque matérias em relação às quais tal não era exigido são
submetidas ao procedimento de produção normativa que compete às leis daquela
natureza.
Em relação a estas “normas parasitárias” − utiliza a expressão CARLOS BLANCO DE
MORAIS, Algumas reflexões sobre o valor jurídico de normas parasitárias
presentes em leis reforçadas pelo procedimento, Lisboa, 2001, 41 −, extrai-se do
Acórdão n.º 428/05, deste Tribunal (tirado em Plenário, embora com um voto de
vencido) que a Constituição não proíbe a inclusão em acto normativo que reveste
a forma de lei orgânica (no caso, lei do regime do referendo) de matéria que
pode constar de lei comum (relativa ao recenseamento eleitoral), mas tais normas
não adquirem, por essa forma, força ou valor de lei orgânica.
A questão em aberto é a de saber se a situação de insuficiência de forma pode
ser objecto de um tratamento análogo, em termos de se ajuizar que a inclusão no
Estatuto não afecta a constitucionalidade da norma, desde que submetida ao
regime que lhe cabe, atenta a natureza da matéria sobre que incide.
Alguma doutrina o admite. É o caso de RUI MEDEIROS/ TIAGO DE FREITAS/ RUI
LANCEIRO, Enquadramento, cit., 126, precisamente a propósito de normas sobre
referendo regional. Escrevem estes Autores que «tais preceitos, apesar de
constarem dos Estatutos, ficarão sujeitos às regras constitucionais
procedimentais relativas à lei do referendo e gozarão do mesmo valor que esta».
Mas há que ver que, na situação de insuficiência de forma, e justamente porque o
é, nunca será viável, em princípio, submeter a norma ao tratamento que
materialmente lhe cabe. A própria natureza do vício impedirá o preenchimento
dessa condição da solução da irrelevância da desadequação de forma.
Isso mesmo se constata no caso em apreço. Ainda poderíamos admitir, numa
abordagem casuística, que a regra da maioria exigível para aprovação das leis
orgânicas pudesse ser suplantada pela unanimidade verificada na votação final
global do Estatuto. É defensável que não houve, quanto a este ponto, qualquer
vício de procedimento, pois, independentemente da maioria constitucionalmente
exigida para a aprovação do Estatuto (maioria simples, nos termos do artigo
116.º, n.º 3, com excepção das matérias contempladas no artigo 168.º, n.º 6,
alínea f), da CRP), o certo é que o texto final da Proposta de Lei n.º 169/X −
que esteve na origem do Decreto n.º 217/X, agora em apreciação − foi aprovado,
em votação final global, por unanimidade, tendo-se registado 202 votos a favor
(cfr. Reunião Plenária de 11.06.2008, DAR, I Série, n.º 94, de 12.06.2008).
Mas já o mesmo se não diga do facto de a aprovação da norma em causa não ter
obedecido à votação na especialidade em Plenário. A unanimidade em torno da
aprovação global final não sana esse vício. Faltou a ponderação, em concreto, da
adequação ou não do número mínimo de subscritores fixado no n.º 6 do artigo 46.º
para o exercício do direito de iniciativa referendária.
Também a circunstância de o decreto não ter sido enviado para promulgação ao
Presidente da República como lei orgânica, mas como decreto de aprovação da 3.ª
revisão do EPARAA, inviabilizou uma eventual iniciativa de apreciação preventiva
da constitucionalidade, a tomar pelos outros sujeitos legitimados, ao abrigo do
n.º 4 do artigo 278.º E quaisquer conjecturas quanto à improbabilidade do
exercício desse direito, por falta de interesse, atenta a unanimidade da
aprovação global, não passam disso mesmo, de conjecturas, a nível do fáctico,
sem virtualidade de eliminar a eficácia operativa da disciplina
constitucionalmente fixada.
Pode, pois, concluir-se que há fundamento para a apontada inconstitucionalidade
formal do n.º 6 do artigo 46.º, por violação da reserva de lei orgânica,
prevista na alínea b) do artigo 164.º, em conjugação com o disposto no n.º 2 do
artigo 166.º da CRP.
Conclusão que concomitantemente acarreta a inconstitucionalidade formal do n.º 1
do artigo 45.º, na parte em que remete para o n.º 6 do artigo 46.º
D) A norma da alínea c) do n.º 2 do artigo 49.º
19. Vem pedido que o Tribunal ajuíze da conformidade constitucional da norma da
alínea c) do n.º 2 do artigo 49.º do Estatuto.
A referida norma atribui à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores
competência para legislar sobre «o regime de elaboração e organização do
orçamento da Região».
Ao assim dispor, o Estatuto invade a esfera de reserva absoluta de competência
legislativa da Assembleia da República, de que faz parte, nos termos da alínea
r) do artigo 164.º da CRP, legislar sobre o «regime geral de elaboração e
organização dos orçamentos do Estado, das regiões autónomas e das autarquias
locais».
Poderia pensar-se que, referindo a previsão constitucional o “regime geral”, ela
denotaria um regime comum, abrindo espaço para regimes especiais e
particularizados de enquadramento orçamental, a fixar noutra lei, sobre a mesma
matéria, onde caberia a mediação normativa da Assembleia Legislativa.
Assim não é, todavia. No contexto da previsão da alínea r), e tendo em conta a
natureza e função da lei de enquadramento orçamental, em relação à lei do
orçamento, ao qualificativo “geral” não é de atribuir aquele significado. O
termo aponta para a aplicabilidade do regime de enquadramento a todas as leis de
orçamento, que anualmente se vão sucedendo no tempo. Tanto assim que ele vem
reportado também aos regimes de elaboração e organização dos orçamentos das
regiões autónomas e das autarquias locais, não obstante esses regimes, para além
dos princípios gerais, comuns à lei de enquadramento do orçamento do Estado,
conterem regras próprias a que se deverão submeter os orçamentos regionais e
autárquicos. E o grau de densidade normativa da lei de enquadramento do
orçamento da Região Autónoma dos Açores (Lei n.º 79/98, de 24 de Novembro) não
deixa margem para a intervenção suplementar de um outro diploma, também ele
sobre os princípios a que deve obedecer a “elaboração e organização” do
orçamento.
É, pois, líquido que falar de “regime de elaboração e organização do orçamento
da Região” é o mesmo que falar da lei de enquadramento orçamental (artigo 106.º
da CRP), com esse âmbito – uma lei única, de acordo com a arquitectura
constitucional. As duas expressões são equivalentes (PAZ FERREIRA, in JORGE
MIRANDA/RUI MEDEIROS, ob. cit., II, 236).
E igualmente seguro é que a alínea r) do artigo 164.º «inclui as respectivas
leis de enquadramento no âmbito da competência legislativa absolutamente
reservada da AR» (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., 4.ª ed., 1105).
Ora, sendo as leis de enquadramento, incluindo as respeitantes às regiões
autónomas matéria reservada à competência legislativa da Assembleia da
República, elas ficam, de imediato, de fora da esfera de competência das
Assembleias Legislativas das regiões autónomas, por força do limite negativo do
n.º 4 do artigo 112.º A esses órgãos compete apenas a aprovação do orçamento
regional (alínea p) do artigo 227.º).
Na medida em que atribui à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores
uma competência para legislar que lhe está vedada pelo n.º 4 do artigo 112.º da
CRP, em conjugação com o disposto na alínea r) do artigo 164.º, a norma
sindicada é inconstitucional.
E) A norma da alínea i) do n.º 2 do artigo 53.º
20. O pedido questiona a constitucionalidade da norma constante da alínea i) do
n.º 2 do artigo 53.º do Estatuto.
Dispondo o n.º 1 deste artigo que «compete à Assembleia Legislativa legislar em
matéria de pescas, mar e recursos marinhos», a referida norma especifica que
estão abrangidos nessas matérias «os regimes de licenciamento, no âmbito da
utilização privativa dos bens do domínio público marítimo do Estado, das
actividades de extracção de inertes e da pesca».
Muito embora o pedido, ao reproduzir o conteúdo prescritivo da norma, a não
transcreva integralmente, omitindo a referência final às actividades
concretamente objecto do regime de licenciamento (as de extracção de inertes e
da pesca), deve entender-se que ele se não restringe a um dado segmento do
preceito. Isso mesmo resulta do teor conclusivo do requerimento (alínea f) do
ponto 100.º), onde se indica “a norma da alínea i) do n.º 2 do art. 53.º” como o
objecto, nesta matéria, da apreciação da constitucionalidade.
Note-se, aliás, que, tal como prevista no Estatuto, a atribuição de competência
para fixação do regime de licenciamento, no âmbito da utilização privativa de
bens do domínio público, tem um objecto mais restrito do que o atinente aos
actos administrativos de licenciamento. Quanto a estes, o poder conferido à
Região abrange não só as actividades de extracção de inertes e da pesca, como
também as “de produção de energias renováveis” (artigo 8.º, n.º 2, do Estatuto,
na redacção do decreto em apreciação).
21. Vem alegado que a inclusão desta matéria na competência legislativa regional
viola o n.º 4 do artigo 112.º da CRP, «como consequência do desrespeito pela
reserva de competência dos órgãos de soberania que abrange a matéria da alínea
v) do n.º 1 do art. 165.º da CRP».
Desta norma resulta que a “definição e regime dos bens do domínio público” é
matéria contida na reserva relativa da Assembleia da República, pelo que só
poderá constar de lei formal ou de decreto-lei autorizado.
Por outro lado, o preceito que fixa o estatuto constitucional da dominialidade
pública − o artigo 84.º da CRP − comete à lei tarefas complementares de
normação, no domínio da definição dos bens integrantes e da fixação do regime,
condições de utilização e limites (alínea f) do n.º 1 e n.º 2).
A questão central que o confronto entre as duas disposições suscita é a de saber
se todas estas dimensões normativas enunciadas no artigo 84.º estão
compreendidas na esfera da reserva relativa de competência da Assembleia da
República, ou, por outras palavras, se a reserva fixada na alínea v) do n.º 1 do
artigo 165.º da CRP é total, abarcando a regulação primária de qualquer aspecto
do regime de bens públicos.
Primo conspectu, isoladamente considerada, a referida alínea faz propender para
uma resposta afirmativa, pois a referência ao “regime” dos bens do domínio
público parece denotar toda a disciplina legal desta matéria, uma vez que dela
não se colhe qualquer indicação excludente de determinadas zonas normativas.
Esta posição fez vencimento no Acórdão 330/99, onde expressamente se proclamou:
«A reserva da Assembleia da República abrange, por isso, tudo quanto diga
respeito ao regime do domínio público do Estado, sendo que nessa abrangência –
repete-se – se inclui a definição das condições de utilização dos bens do
domínio público (a sujeição a um uso geral, a um uso particular, a um uso
especial ou a um uso excepcional, neste caso o regime de licença ou concessão)».
A orientação deste modo expressa foi reafirmada no Acórdão n.º 131/2003, onde,
recorrendo a classificações doutrinais, se considerou estarmos em face de uma
reserva de densificação total. Já no posterior Acórdão n.º 288/2004, esta
concepção nos surge algo relativizada, ao afirmar-se que, apesar dos bens em
causa integrarem o domínio público, «é de entender que nem toda a regulamentação
relativa à sua ocupação ou utilização pode ser considerada como definição do
regime dos bens do domínio público, para o efeito da competência parlamentar
reservada».
Também na doutrina, a posição que atribui à reserva carácter total tem
defensores – cfr. ANA RAQUEL MONIZ, O domínio público. O critério e o regime da
dominialidade, Coimbra, 2005, 120-123; RUI MEDEIROS/LUÍS TORGAL, in JORGE
MIRANDA/RUI MEDEIROS, ob. cit., II, 85. RUI MEDEIROS/TIAGO FREITAS/RUI LANCEIRO,
Enquadramento, cit., 188, assumem uma posição mais matizada, pois consideram que
a questão «não é líquida», reconhecendo embora que há «bons argumentos para
sustentar que se trata de uma reserva de densificação total».
Para quem tal defenda, a questão de constitucionalidade posta fica, por esta
via, resolvida de imediato, no sentido da inconstitucionalidade da norma
sindicada, por invasão da reserva relativa de competência legislativa da
Assembleia da República.
Mas uma leitura sistematicamente integrada do n.º 2 do artigo 84.º pode levar a
outro entendimento. Ao inserir, na revisão de 1989, o artigo 84.º, com as
remissões para a lei dele constantes, o legislador constitucional não se limitou
a reproduzir a fórmula hoje expressa no artigo 165.º, n.º 1, alínea v), e então
consagrada, nos mesmos termos, no artigo 168.º, n.º 1, alínea z). Foi mais
longe, pois, para além da “definição” e do”regime”, referiu as “condições de
utilização” e os “limites” como objecto de intervenção legal. Pondo de lado a
hipótese de estas duas últimas referências constituírem uma desnecessária
reiteração pleonástica, improdutiva de sentido, por já estarem contidas no
conceito de “regime”, que a mesma norma utiliza, há que atribuir à previsão
maior latitude do que a que cabe à da alínea v) do n.º 1 do artigo 165.º
E nem se diga que “não parece fazer sentido fraccionar a competência legislativa
reservada da Assembleia da República” (RUI MEDEIROS/TIAGO FREITAS/RUI LANCEIRO,
ob. loc. cit.). Pelo contrário, numa concepção moderna de gestão de bens
públicos susceptíveis de aproveitamento económico produtivo, faz todo o sentido
separar os aspectos básicos e centrais do estatuto da dominialidade, definidores
do seu objecto (categorias de bens), das regras de aquisição e cessação desse
estatuto e dos parâmetros nucleares da sua exploração (nomeadamente, as
constrições impostas pelos interesses públicos coenvolvidos) – aquilo “que a
dominialidade tem de essencial”, como se diz no voto de vencida da conselheira
MARIA DOS PRAZERES BELEZA, aposto no Acórdão n.º 330/99 − de todos os outros
aspectos mais “regulamentares”, quanto a formas concretas de utilização,
mormente quanto ao regime dos actos de licenciamento e dos contratos de
concessão que a facultem a privados. Estes aspectos estão sujeitos a uma
apreciação mais conjuntural e a determinantes mais particularizadas, pelo que se
justifica não impor uma lei da República para os fixar.
O entendimento de que a reserva estabelecida na alínea v) do n.º 1 do artigo
165.º da CRP não cobre a totalidade do regime da dominialidade, assumido no
Acórdão n.º 330/99 em dois votos de vencido (a que há a acrescentar uma
declaração de dúvidas quanto à abrangência de todas as “condições de utilização”
pela reserva parlamentar), é o que actualmente perfilham GOMES CANOTILHO/VITAL
MOREIRA, ob. cit., 4.ª ed., como claramente se retira do que, a págs. 1007,
escrevem:
«O regime legal dos bens do domínio público é da competência reservada da AR
(art. 165.º/v), embora não totalmente. De facto, do programa normativo atribuído
à lei pelo n.º 2 – definição do domínio público dos diferentes entes
territoriais, regime, condições de utilização e limites – a referida alínea do
art. 168.º [leia-se, 165.º] só menciona a definição e o regime. Por isso, os
demais aspectos caem na concorrência legislativa concorrente da AR e do
Governo».
Ora, como expressamente se reconhece no pedido (ponto 39.º), «o domínio material
regulado na norma sindicada parece respeitar às condições de utilização dos bens
do domínio público do Estado na Região Autónoma dos Açores». É neste segmento do
n.º 2 do artigo 84.º que indubitavelmente se aloja o preceito estatutário em
apreciação.
À luz deste entendimento, e de acordo com a linha interpretativa por último
referida, estamos perante matéria que escapa à previsão do artigo 165.º, n.º 1,
alínea v), pelo que, sob este ponto de vista, a norma constante do artigo 53.º,
n.º 2, alínea i), do Estatuto, aprovado pelo Decreto n.º 217/X, da Assembleia da
República, não se encontraria ferida de invalidade constitucional.
22. De todo o modo, não é esse o único fundamento invocado, em tal sentido.
Subsidiariamente, e ainda que sem projecção na fórmula conclusiva da alínea f)
do ponto 100.º do pedido, vem alegado que a matéria regulada na norma sindicada
não integra o “âmbito regional”.
Este segundo fundamento de inconstitucionalidade remete para um outro parâmetro
aferidor da competência legislativa regional – o seu confinamento ao “âmbito
regional” —, expresso, após a revisão de 2004, nos artigos 112.º, n.º 4, e
227.º, n.º 1, alínea a), da CRP.
Não pode dizer-se que o exacto alcance, neste contexto, do novel conceito de
“âmbito regional” já esteja hoje suficientemente consolidado, de forma
dogmaticamente apurada. Mas, independentemente das controvérsias sobre a maior
ou menor eficácia limitativa que deve ser reconhecida àquela fórmula
constitucional, a configuração específica da solução sub juditio permite
enunciar um juízo fundamentado, quanto à questão de constitucionalidade
suscitada.
Decisivo, para o efeito, é o atendimento devido da titularidade e da natureza do
bem do domínio público em causa, em relação ao qual se questiona a repartição de
poderes legislativos entre o Estado e a Região. Há que atentar, na verdade, que
a titularidade do domínio público marítimo cabe ao Estado (artigo 4.º da Lei n.º
54/2005, de 15 de Novembro) – cabe, e não pode deixar de caber, por imperativo
constitucional, atenta a sua incindível conexão com a identidade e a soberania
nacionais. Como corolário, está assente a intransferibilidade de bens de domínio
público marítimo do Estado para as regiões (cfr. o Parecer do Conselho
Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 22.07.1996, e os Acórdãos n.ºs
330/99 e 131/2003, deste Tribunal).
O que acaba de dizer-se não significa – cumpre sublinhá-lo — que, mantida
incólume a titularidade do Estado, não estejam constitucionalmente legitimadas
formas dúcteis de exploração e rendibilização dos bens dominiais, em cuja
definição tenham um papel relevante os poderes regionais. Uma tal opção encontra
apoio claro nos fundamentos e objectivos da autonomia traçados no artigo 225.º,
em particular nos objectivos de “desenvolvimento económico-social” e no de
“promoção e defesa dos interesses regionais” (n.º 2 do citado artigo).
Nem sequer, rejeitada a tese de que a titularidade do domínio é necessariamente
acompanhada pela titularidade de (todas as) competências gestionárias, estará
excluída a possibilidade de uma transferência para outros entes de certos
poderes de gestão ínsitos na titularidade do Estado, designadamente de poderes
que não digam respeito à defesa nacional e à autoridade do Estado. A não
regionabilidade da titularidade do domínio público marítimo integrante ou
circundante da área territorial das regiões autónomas não arrasta consigo, como
consequência forçosa, a insusceptibilidade de transferência de certos poderes
contidos no domínio. Já o parecer da Comissão do Domínio Público Marítimo n.º
5945, de 18.01.2002 (Boletim da Comissão do Domínio Público Marítimo, n.º 116,
2002, 12-17) o reconhecia, ao admitir a «transferência de poderes secundários,
que não afectasse a autoridade suprema do Estado nesta matéria […]». No mesmo
sentido se pronunciou PEDRO LOMBA (“Regiões autónomas e transferência de
competências sobre o domínio natural. Anotação ao Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 131/03”, Jurisprudência Constitucional, 2004, 57 s., esp. 64
s.).
Simplesmente, a legitimidade de fins contidos no princípio da autonomia e o
cabal respeito pelo seu alcance programático não credenciam constitucionalmente
quaisquer meios para os alcançar. Para situações deste tipo, o modelo
constitucional é o de cooperação e concertação entre os órgãos de soberania e os
órgãos regionais, como iniludivelmente resulta do disposto no artigo 229.º Para
o sector em causa, a Constituição consagrou, mesmo, uma solução concretizadora
desta ideia regulativa, ao estabelecer, no artigo 227.º, n.º 1, alínea s), a
competência das regiões autónomas para “participar na definição das políticas
respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos
marinhos contíguos”.
E conforma-se inteiramente com esse padrão relacional o disposto no artigo 8.º,
n.º 1, do Estatuto em apreciação. Aí se prescreve:
«A Região tem o direito de exercer conjuntamente com o Estado poderes de gestão
sobre as águas interiores e o mar territorial que pertençam ao território
regional e que sejam compatíveis com a integração dos bens em causa no domínio
público marítimo do Estado».
Já o mesmo, todavia, se não pode dizer da norma questionada. Nela estabelece-se
um reenvio normativo, colocando inteiramente na esfera de competência da
Assembleia Legislativa da Região Autónoma toda uma zona da disciplina legal de
um bem de domínio público necessário do Estado. Não se trata de uma partilha,
mas de uma autêntica transferência de poderes, não para a prática de actos, mas
para a sua regulação, em abstracto. Com isso, a Região ganharia uma competência
para lá das exigências do princípio da autonomia − deste só decorrem poderes de
administração e disposição do património regional (cfr. o artigo 227.º, n.º 1,
alínea h)) − mas à custa de os órgãos de soberania com poderes legislativos
perderem o controlo sobre a conformação de actos que interferem (ou podem
interferir) com as funções de soberania do Estado. E como se afirma no Acórdão
n.º 458/94: «Tão-pouco pode a lei “delegar” a favor das regiões autónomas
competências próprias de soberania [..]».
Na verdade, para além da competência reguladora do regime de licenciamento ser
concedida sem qualquer condicionamento tutelador dos interesses estaduais, a
reserva do impulso do procedimento estatutário de que gozam, também quanto às
alterações, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas (n.º 4 do artigo
226.º da CRP), faria com que os órgãos com jurisdição nacional ficassem
despojados de qualquer autónomo poder de iniciativa e de intervenção normativas
nesta matéria, numa restrição do seu poder legiferante constitucionalmente
desconforme.
Os valores e interesses garantidos pela titularidade do Estado sobre os bens de
domínio público marítimo exigem que o legislador nacional não abdique
inteiramente da sua competência reguladora da exploração económica, por
privados, desses bens, através de licenciamento. O iniludível alargamento do
âmbito da competência legislativa das regiões, resultante da revisão
constitucional de 2004, não põe em causa a intangibilidade das competências de
órgãos nacionais, associadas ao exercício de funções de soberania, sem que isso
importe, de modo algum, a revivescência de previsões constitucionais restritivas
eliminadas por aquela revisão. Daí a obrigatoriedade de intervenção do
legislador parlamentar ou governamental, quando está em causa o regime de
licenciamento da utilização privada de um bem do domínio público necessário do
Estado.
E relembre-se que, como é expressamente proclamado no n.º 3 do artigo 225.º da
CRP, «a autonomia político-administrativa regional não afecta a integridade da
soberania do Estado […]».
Como desenvolvidamente se salienta no Acórdão n.º 258/2007, quanto à competência
própria dos órgãos de soberania, «desde cedo constituiu orientação do Tribunal
Constitucional a rejeição de uma interpretação restritiva ou literal, que a
confinasse ao elenco taxativo das competências constitucionalmente reservadas,
de forma explícita, à Assembleia da República ou ao Governo […] A tal
competência acham-se também “reservadas todas as matérias que reclamem a
intervenção do legislador nacional”».
Face ao exposto, temos por inconstitucional a norma da alínea i) do n.º 2 do
artigo 53.º do Estatuto, por violação do artigo 112.º, n.º 4, da CRP.
F) As normas das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 61.º
23. É também questionada a constitucionalidade de um segmento da norma da alínea
a) e da norma da alínea b) do n.º 2 do artigo 61.º do Estatuto, aprovado pelo
decreto sub juditio.
A alínea a) enumera, entre as matérias relativas ao trabalho e à formação
profissional inscritas na competência da Assembleia Legislativa, «a promoção dos
direitos fundamentais dos trabalhadores, a protecção no desemprego e a garantia
do exercício de actividade sindical na Região e a instituição de complemento
regional ao salário mínimo nacional».
A alínea b) faz o mesmo, quanto às «relações individuais e colectivas de
trabalho na Região».
Do complexo de matérias englobadas na alínea a), o pedido tem por objecto apenas
o segmento respeitante à “garantia do exercício da actividade sindical na
Região”. Alega-se que, recaindo tal garantia no âmbito de protecção do n.º 1 do
artigo 56.º da CRP, norma integrada no capítulo atinente aos “direitos,
liberdades e garantias dos trabalhadores”, por sua vez constante do título II da
parte I da Constituição, o qual versa sobre “direitos, liberdades e garantias”,
estamos caídos no domínio de previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º,
logo, na esfera de reserva relativa de competência da Assembleia da República. A
outorga estatutária de poderes à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos
Açores para legislar neste âmbito viola essa reserva e, em consequência,
desrespeita o limite negativo da competência legislativa deste órgão, fixado no
n.º 4 do artigo 112.º
Idêntico percurso argumentativo é seguido, quanto à norma da alínea b) do mesmo
artigo. A matéria das relações colectivas de trabalho tem directamente a ver com
a norma do n.º 3 do artigo 56.º da CRP, na medida em que nele se comete à lei a
garantia do direito à contratação colectiva, e ainda com o n.º 4 do mesmo
artigo, que remete para a lei o estabelecimento de “regras respeitante à
legitimidade para a celebração das convenções colectivas de trabalho, bem como à
eficácia das respectivas normas”. Repercutindo-se o disposto nas convenções
colectivas no regime das relações individuais de trabalho, também estas acabam
indirectamente por ser objecto da normação fixada naqueles preceitos
constitucionais.
Tratando-se de matéria atinente a direitos, liberdades e garantias, a previsão
da sua regulação por acto legislativo regional de igual modo representa uma
excedência do limite negativo do n.º 4 do artigo 112.º, atenta a reserva de lei
formal fixada na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP.
24. Entrando na apreciação do que vem aduzido (que submeteremos a um tratamento
unitário, dada a identidade problemática da questão de constitucionalidade que
as duas normas convocam), pode dizer-se, antes de mais, que os referenciais
constitucionais invocados pecam por defeito.
Isso é verdade em relação à garantia do exercício de actividade sindical, pois a
actividade sindical tem uma óbvia dimensão individual (a liberdade sindical como
direito individual dos trabalhadores), o que nos remete para o campo de previsão
do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 55.º da CRP.
Mas é sobretudo verdade no que se refere à alínea b), pois a abrangência
irrestrita da previsão colhe praticamente, de forma directa ou indirecta, todas
as posições subjectivas dos trabalhadores, resultantes da estrutura vinculativa
da relação laboral, que o capítulo III do título II da parte I da Lei
Fundamental constitucionalizou.
25. Feita esta precisão, pode adiantar-se, desde já, que assiste razão ao
requerente, na invocação das apontadas inconstitucionalidades.
Na verdade, todos os passos que encadeadamente nos levam a essa conclusão estão
certificados pelas previsões e estatuições normativas a eles aplicáveis.
O conteúdo regulador das normas sindicadas tem a ver – de forma, aliás, mais
extensiva do que o alegado, como se viu − com direitos, liberdades e garantias,
que incontroversamente, pela localização sistemática, no corpo da Constituição,
da sua consagração, são abrangidos pela reserva. Não têm, pois, razão de ser,
aqui, as dúvidas que se têm suscitado quanto a direitos fundamentais enunciados
noutros quadrantes normativos.
A amplitude da previsão e o carácter esgotante das especificações qualificativas
dos direitos fundamentais abrangidos pela alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º
tornam irrelevante a exacta qualificação das posições tuteladas. Não há que
distinguir, pois em relação a todas elas, seja qual for a sua natureza, opera a
reserva.
Irreleva também o sentido prescritivo das disposições em apreciação, pois toda a
intervenção legislativa no âmbito dos direitos, liberdades e garantias é da
competência reservada da Assembleia da República, e não apenas as restrições
(GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª
ed., Coimbra, 1993, 672). Como salienta JORGE MIRANDA (in JORGE MIRANDA/RUI
MEDEIROS, Constituição portuguesa anotada, cit., II, 535): «A reserva abrange
quer um regime eventualmente mais restritivo do que o preexistente quer um
regime eventualmente ampliativo; não é o alcance da lei, mas a matéria sobre a
qual incide que a define». Daí que a tónica promocional e garantística que, de
certo modo, perpassa pela alínea a) do preceito estatutário em causa não
constitua obstáculo ao vício de inconstitucionalidade de que ela enferma.
Também não sofre dúvidas o alcance bidirecional da reserva, excludente da
competência legislativa, não só do Governo (salvo autorização), mas também das
Assembleias Legislativas das regiões autónomas. Exclusão que, quanto a estes
órgãos, e no que a este domínio respeita, tem, muito significativamente, um
carácter insuperável, pois a matéria da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º está
entre as excepcionadas como objecto possível de uma autorização legislativa
(alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º).
Aqui chegados, só resta reafirmar que a atribuição estatutária de competência à
Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, para emitir legislação
versando sobre a garantia do exercício de actividade sindical na Região e sobre
as relações individuais e colectivas de trabalho no mesmo território invade a
esfera de competência reservada de um órgão de soberania, a Assembleia da
República, pelo que o segmento normativo da alínea a) do n.º 1 do artigo 61.º e
a alínea b) do mesmo artigo, onde esse regime está, respectivamente, previsto,
não têm validade constitucional, em face do disposto no n.º 4 do artigo 112.º,
em conjugação com o estabelecido no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP.
G) A norma da alínea h) do n.º 2 do artigo 63.º
26. A norma do artigo 63.º, n.º 2, alínea h), do Estatuto, conjugada com o n.º 1
do mesmo preceito, confere competência à Assembleia Legislativa da Região para
legislar em matéria de “regulação do exercício da actividade dos órgãos de
comunicação social”.
No pedido, sustenta-se a inconstitucionalidade material da disposição, por
atentar contra o preceituado no n.º 4 do artigo 112.º, na medida em que habilita
um acto legislativo regional a dispor sobre uma matéria que a alínea a) do n.º 6
do artigo 168.º, conjugada com o artigo 39.º da CRP, integra na reserva absoluta
de competência da Assembleia da República.
Diga-se, desde já, que o pedido tem fundamento.
Pelo carácter genérico da previsão, desacompanhada de quaisquer indicações
normativas quanto a formas, critérios orientadores, objectivos e limites da
regulação da actividade da comunicação social, a norma competencial sindicada dá
guarida às mais diversas dimensões aplicativas. Desde uma intervenção normativa
de cunho mais “regulamentar”, passando pela enunciação de padrões de conduta
comunicacional, de alguns princípios e regras a observar pelos operadores, até à
institucionalização de um ente autónomo de regulação e supervisão dos órgãos de
comunicação regionais, múltiplas variáveis, que ficam inteiramente por definir,
cabem potencialmente no âmbito da previsão.
Não pode excluir-se que algumas dessas concretizações aplicativas, a adoptar no
futuro, se pudessem ainda conter dentro do constitucionalmente admissível.
Mas, menos certo não é que, na sua zona central de previsão, a norma afronta a
disciplina constitucional desta matéria. E isso é quanto basta para fundar um
juízo de inconstitucionalidade.
Na verdade, a regulação da comunicação social tem na Constituição um desenho
claro e preciso, quer quanto aos princípios substanciais rectores dessa função,
quer quanto às formas orgânicas de a exercitar. Falar-se, no actual quadro
constitucional, de “regulação do exercício da actividade dos órgãos de
comunicação social” tem um significado próprio, que aponta directamente para a
esfera competencial e para os objectivos de actuação da entidade consagrada no
artigo 39.º da CRP. E a intenção de não excluir uma potencial intervenção neste
domínio é confirmada pelo disposto na norma anterior, a alínea g), constante do
mesmo artigo, onde já se prevê a competência da Assembleia Legislativa para
legislar em matéria de “comunicação social, incluindo o regime de apoio
financeiro”.
A actividade cuja disciplina, no âmbito regional, a alínea h) do n.º 2 do artigo
63.º do Estatuto, aprovado pelo Decreto n.º 217/X, coloca inteiramente no
domínio da competência da Assembleia Legislativa da Região cabe, por força
daquele preceito, a uma entidade administrativa independente. Pelo n.º 1 do
artigo 39.º, faz-se uma enumeração detalhada dos bens protegidos, sendo, pelo
n.º 2, cometida à lei a definição da composição, competências, organização,
funcionamento, forma de designação dos membros e respectivo estatuto. Em
cumprimento deste mandato, veio a ser promulgada a Lei n.º 53/2005, de 8 de
Novembro, que cria a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC).
A possibilidade de compatibilização entre o regime constitucional de regulação
da actividade da comunicação social e a norma sindicada teria como condição
prévia a admissão de uma regionalização do tratamento normativo deste sector e
do seu enquadramento organizatório.
Ora, uma tal solução merece uma clara rejeição constitucional.
Depõe nesse sentido, desde logo, a inserção sistemática do artigo 39.º, no
capítulo dos direitos, liberdades e garantias pessoais, bem como a espécie de
bens tutelados com a regulação e o tipo de interesses por esta prosseguidos (n.º
1).
Em conjunto com as normas dos dois artigos que o antecedem e as do artigo 40.º,
o artigo 39.º integra o que já se chamou a “constituição da informação” (GOMES
CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., 4.ª ed., 571). Neste bloco, que forma um
todo, normativiza-se constitucionalmente, de forma ampla, a tutela da liberdade
de conteúdos e de meios de expressão e de informação, nas suas várias facetas,
componentes e níveis, e na bifrontalidade da sua radicação subjectiva, tanto no
pólo activo, como no pólo passivo da relação comunicacional.
No que respeita a esta constelação de posições tuteladas, e em particular da
liberdade de imprensa e de meios de comunicação social (artigo 38.º) e dos
direitos consagrados no artigo 40.º, o disposto no artigo 39.º funciona como uma
espécie de metagarantia institucional, uma garantia das garantias. Isso mesmo se
reflecte no “programa de fins” que o n.º 1 fixa à entidade reguladora, a quem
cumpre zelar pela preservação e promoção das condições estruturais de
efectivação dos direitos e liberdades garantidos.
E assinale-se que, para além da dimensão de tutela pessoal, está também em
causa, em muitas das vertentes da “constituição da informação”, uma dimensão
objectiva, que a torna um elemento constitutivo do Estado de direito
democrático. Na verdade, a liberdade e o pluralismo de expressão são condições
básicas de formação livre e manifestação genuína da vontade popular, de que vai
depender, através do sufrágio nas urnas, a composição e orientação do poder
político democrático. Em relação a esse fim último, praticamente todos os
objectivos que à entidade cumpre prosseguir (salvo o constante da alínea d))
desempenham (ou desempenham também) uma patente função instrumental.
O que fica dito é o bastante, ao que cremos, para deixar evidenciado que a
matéria da regulação da comunicação social é, do ponto de vista constitucional,
uma questão da República, que não se compadece com a regionalização do seu
tratamento normativo, mormente com a abertura incondicionada que a norma
sindicada lhe dá. Estão em causa valores e interesses que reclamam um
acolhimento universal e uma conformação unitária em todo o âmbito nacional, com
o controlo e supervisão da actividade confiada concentradamente a uma única
entidade, sem deixar margem a configurações desviantes particularizadoras.
É por mor da tutela desses interesses, e do papel que à entidade reguladora —
com a conformação que a Constituição lhe dá (designadamente, de completa
desgovernamentalização) —, cabe constitucionalmente desempenhar na garantia da
sua satisfação, que esta área normativa é alcandorada a componente da esfera
absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, a exercer
através de uma lei de valor reforçado (artigo 168.º, n.º 6, alínea a), conjugado
com o artigo 112.º, n.º 3).
A afectação dessa reserva implica a violação da esfera de competência reservada
aos órgãos de soberania (n.º 4 do artigo 112.º e alínea a) do n.º 6 do artigo
168.º), com a consequente inconstitucionalidade.
H) A norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 66.º
27. É objecto do pedido, nos seus próprios termos, «a norma da alínea a) do n.º
2 do artigo 66.º, com fundamento em violação do n.º 4 do artigo 112.º da CRP, em
consequência da inobservância da reserva de competência dos órgãos de soberania
que abrange a matéria da alínea u) do art.º 164.º da CRP e, ainda, com
fundamento na sua desconformidade com o n.º 4 do artigo 272.º da CRP» (alínea i)
do ponto 100.º).
É dito, em fundamentação:
- Esta norma, no que concerne ao regime de segurança interna, é passível de
conter matéria de restrições a direitos, liberdades e garantias, domínio de
reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, por
força do n.º 2 do artigo 18.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP,
pelo que afronta o n.º 4 do artigo 112.º;
- Quanto ao regime geral das forças de segurança, inscreve-se na reserva
absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, de acordo com a
alínea u) do artigo 164.º da CRP;
- Este regime deve observar o princípio constitucional da unidade de organização
das forças de segurança para todo o território nacional (n.º 4 do artigo 272.º
da CRP).
A norma em questão é do seguinte teor:
Artigo 66.º
Segurança pública e protecção civil
1. Compete à Assembleia Legislativa legislar em matérias de ordem e segurança
pública e de protecção civil.
2. As matérias de ordem e segurança pública e de protecção civil abrangem,
designadamente:
a) A manutenção da ordem pública e da segurança de espaços públicos, incluindo a
polícia administrativa;
b) O regime jurídico do licenciamento de armeiro;
c) A protecção civil, bombeiros, paramédicos e emergência médica;
d) A monitorização e vigilância metereológica, oceanográfica, sismológica e
vulcanológica, bem como a mitigação de riscos geológicos;
e) A assistência e vigilância em praias e zonas balneares e socorro costeiro.
A primeira questão que o pedido suscita é a da exacta delimitação do seu
objecto.
Na verdade, muito embora o conteúdo a fiscalizar seja sempre reportado à norma
da alínea a) do n.º 2 do artigo 66.º, ele não é reproduzido por inteiro, mas
nestes termos (número 61.º do pedido): «a manutenção da ordem pública e da
segurança de espaços públicos (…)». É omitida, como se vê, a referência final,
que inclui na competência legislativa regional a polícia administrativa.
Deve entender-se, todavia, que não se quis segmentar o preceito, retirando dele,
como objecto de apreciação, a parte omitida. Isto, por um lado, dados os termos
em que o pedido vem formulado; por outro, tendo em conta a latitude da exclusão,
que, a fazer-se, praticamente eliminaria todo o pedido, pondo em causa, até, a
compreensão da fundamentação atinente às forças de segurança interna. De facto,
“polícia administrativa” é conceito muito amplo, que abarca praticamente toda a
polícia, com excepção da polícia judiciária: a “polícia administrativa geral ou
de segurança pública”, bem como as “polícias administrativas especiais” (JOÃO
RAPOSO, Direito policial, I, Coimbra, 2006, 29).
28. Entrando na apreciação de mérito, há a lembrar que não é a primeira vez que
este Tribunal é chamado a pronunciar-se sobre a competência da Assembleia
Legislativa da Região Autónoma dos Açores, para legislar no domínio da ordem
pública. De facto, a questão constituiu parte do objecto do Acórdão n.º 583/96
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33.º, 1996, 65). Esteve em apreciação a
qualificação da “manutenção da ordem pública” como matéria de interesse
específico da Região, pela alínea mm) do artigo 33.º do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (aprovado pela Lei n.º
39/80, de 15 de Agosto, e revisto pela Lei n.º 9/87, de 26 de Março). Nos termos
da alínea c) do artigo 32.º desse Estatuto, essa qualificação abria as portas à
competência legislativa regional, uma vez que o tratar-se de “matéria de
interesse específico” constituía então um dos seus requisitos.
Por sete votos contra seis, o Tribunal emitiu, no predito Acórdão, um juízo de
não inconstitucionalidade. Mas não se pode perder de vista as significativas
diferenças de regime constitucional, entre o vigente na altura e o agora
aplicável, por força das revisões entretanto ocorridas.
Essas diferenças fazem-se sentir, desde logo, na regulação constitucional da
esfera de competência legislativa das Assembleias Legislativas das regiões
autónomas. Na revisão de 2004, o limite do interesse específico foi, como se
sabe, eliminado (bem como o do respeito pelos princípios fundamentais das leis
gerais da República), sendo substituído pela exigência de que os decretos
legislativos regionais se circunscrevam ao âmbito regional e versem sobre
matérias “enunciadas no Estatuto Político-Administrativo da respectiva Região
Autónoma”.
Mas não foi apenas a delimitação da competência para legislar a ser alterada.
Também sobre o específico objecto de legislação aqui em causa incidiram mudanças
de conformação constitucional, uma vez que, pela Lei Constitucional n.º 1/97,
foram aditadas a alínea u) ao artigo 164.º da CRP, integrando na reserva
absoluta de competência legislativa da Assembleia da República o “regime das
forças de segurança”, e a alínea aa) ao n.º 1 do artigo 165.º, integrando na
reserva relativa de competência do mesmo órgão o “regime e forma de criação das
polícias municipais”.
Resulta destas alterações que presentemente há que respeitar parâmetros ainda
não vigentes, à data do Acórdão n.º 583/96, na ordem constitucional portuguesa.
E quanto a esses parâmetros – as normas das alíneas u) do artigo 164.º e aa) do
n.º 1 do artigo 165.º − não parece que se suscitem dúvidas de que eles foram
desrespeitados pela norma sindicada.
Na verdade, sendo o objecto da competência legislativa a “manutenção da
segurança de espaços públicos”, sem quaisquer restrições, aí cabem
potencialmente tanto aspectos institucionais-organizatórios, como aspectos
materiais e funcionais, de regulação da actividade e das medidas dentro da
competência dos serviços encarregados da segurança. As duas vertentes são
indissociáveis. A opção por certas formas e princípios de actuação está ligada a
um certo modelo organizacional, e vice-versa.
Mesmo entendida a alínea u) do artigo 164.º como denotando apenas o regime geral
das forças de segurança, como este Tribunal já declarou (Acórdãos n.ºs 23/2002 e
304/2008), esse regime contemplará forçosamente «os fins e os princípios que
devem nortear as forças de segurança, a previsão dos corpos que as devem compor,
o modo de inter-relacionação entre eles, as grandes linhas de regulação destes
corpos e os princípios básicos relativos à interferência das forças de segurança
com os direitos fundamentais dos cidadãos» (último Acórdão citado).
Dada esta amplitude do âmbito da reserva, legislar sobre “manutenção da
segurança de espaços públicos” implica, na sua área nuclear de incidência, de
definição de políticas, sua coordenação e de medidas para as efectivar, uma
actividade sobreponível à que a Constituição reserva para a Assembleia da
República. A atribuição de competência para tal fere o disposto na alínea u) do
artigo 164.º
O mesmo se diga, mutatis mutandis, da actividade legislativa sobre o “regime e
forma de criação das polícias municipais”. Estas polícias, embora não tenham a
natureza de forças de segurança, colaboram com essas forças e desempenham
funções também finalizadas à “segurança dos espaços públicos”, pelo que estão
compreendidas por esta referência da norma sindicada.
29. Por outro lado, segurança pública e ordem pública são conceitos intimamente
relacionados entre si. Por isso mesmo, como no caso da norma em apreciação, são
normalmente enunciados em simultâneo, como componentes de um binómio incindível.
A segurança não é apenas, em sentido estrito, a prevenção de acidentes e crimes,
é também a tranquilidade (ordem nas ruas) e a salubridade (da água, do ar, dos
alimentos, etc.) públicas – tudo ideias classicamente reportadas também à ordem
pública (nesse sentido, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., 3.ª ed., 955).
Entendido o conceito de segurança em termos latos, ele forma com o de ordem
pública uma relação praticamente biunívoca. Sendo assim, apesar de a
Constituição não utilizar o termo, deve entender-se que a reserva constitucional
quanto ao regime de segurança se estende à ordem pública. E, deste modo, não é
possível segmentar a norma, pondo a salvo do juízo de inconstitucionalidade a
referência à ordem pública.
Acresce que o n.º 4 do artigo 272.º estabelece o princípio da unidade de
organização das forças de segurança. Este princípio, não só proíbe a criação de
forças de segurança de âmbito regional (e também local), como também proíbe que,
na sua actuação no território regional, as forças de segurança nacionais fiquem
sujeitas a directrizes que emanem do poder regional, ao abrigo de legislação que
o n.º 2, alínea a), do artigo 66.º do Estatuto permite emitir. A unidade de
organização das forças de segurança implica uma estrutura organizativa
hierarquizada, com uma direcção central única, dotada de poderes de comando em
todo o âmbito nacional. Daqui resulta, indirectamente, a inadmissibilidade de
competência legislativa regional, nesta matéria, não excluída do alcance da
norma em apreciação.
Por último, e ainda que esse aspecto da questão tenha sido, aparentemente,
abandonado na fundamentação (número 65.º) e, seguramente, na conclusão (alínea
i) do número 100.º) do pedido, há que relacionar a competência legislativa
atribuída pela norma sindicada com a reserva de competência da Assembleia da
República prevista na alínea b) do artigo 165.º
A manutenção da ordem e da segurança públicas implica medidas de polícia. Estas,
quer pelo seu fundamento (a salvaguarda de direitos fundamentais), quer pelos
seus efeitos (a invasão da esfera protegida por direitos, liberdades e garantias
individuais), “instalam-se” necessariamente na área dos direitos, liberdades e
garantias (cfr. o artigo 272.º, n.º 3, da CRP), objecto da reserva relativa de
competência da Assembleia da República que aquele preceito constitucional
consagra.
Por todas estas razões, é de decidir que o disposto no artigo 66.º, n.º 2,
alínea a), do Estatuto é inconstitucional, com fundamento em violação do n.º 4
do artigo 112.º, em consequência da inobservância do disposto na alínea u) do
artigo 164.º, nas alíneas b) e aa) do n.º 1 do artigo 165.º e no n.º 4 do artigo
272.º
I) A norma do artigo 47.º, n.º 3
30. O artigo 47.º estabelece o seguinte:
«Artigo 47.º
Discussão e votação
1 - A discussão de projectos e propostas de decreto legislativo regional e
de anteprojectos ou antepropostas de lei compreende um debate na generalidade e
outro na especialidade.
2 - A votação compreende uma votação na generalidade, uma votação na
especialidade e uma votação final global.
3 - Os projectos de Estatuto Político-Administrativo e de lei relativa à
eleição dos Deputados à Assembleia Legislativa são aprovados por maioria de dois
terços dos Deputados em efectividade de funções.
4 - Carecem de maioria de dois terços dos Deputados presentes, desde que
superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções:
a) A aprovação do Regimento da Assembleia Legislativa;
b) A eleição dos membros de entidades administrativas independentes
regionais que lhe couber designar;
c) A eleição de provedores sectoriais regionais.
5 - Carecem de maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções:
a) A rejeição do programa do Governo Regional;
b) A aprovação de moções de censura;
c) A rejeição de moções de confiança;
d) A criação ou extinção de autarquias locais;
e) A eleição de titulares de cargos ou órgãos, em representação da
Região, previstos na lei.»
O pedido questiona a constitucionalidade do n.º 3 deste preceito com base em
quatro fundamentos:
1) Violação do princípio da tipicidade da lei consagrado no n.º 5 e no n.º 3 do
artigo 112.º da CRP e, complementarmente, do princípio da tipicidade
constitucional das leis reforçadas, como critério derivado do princípio da
tipicidade da lei, com assento no n.º 3 do mesmo artigo;
2) Violação do artigo 116.º, n.º 3, da Constituição, que consagra o critério da
maioria simples como regra geral que deve presidir às deliberações dos órgãos
colegiais;
3) Violação do artigo 224.º, n.º 2 [querendo referir-se, ao que tudo indica, o
artigo 226.º, n.º 2], em conjugação com o artigo 110.º, n.º 2, na medida em que
amplia, sem norma constitucional habilitante, os limites à competência de
iniciativa derivada ou superveniente dos Deputados da Assembleia da República;
4) Violação da reserva de lei orgânica, no que respeita à parte da norma
referente à lei relativa à eleição dos deputados à Assembleia Legislativa
(artigos 166.º, n.º 2, e 164.º, alínea j)).
Está em causa saber se o Estatuto pode contemplar uma regra de maioria reforçada
− dois terços − para aprovação dos projectos de Estatuto Político-Administrativo
e de lei relativa à eleição dos deputados à Assembleia Legislativa.
Trata-se, em ambos os casos, de leis resultantes de um procedimento concertado
entre a Assembleia da República e as Assembleias Legislativas, pois, na
terminologia de GOMES CANOTILHO, (“Os Estatutos das regiões autónomas. Em torno
de um conceito material de estatuto”, A autonomia no plano jurídico. I
centenário da autonomia dos Açores. Actas, 3.º vol., 1995, 15), a estas compete
o momento impulsivo da iniciativa, e àquela o momento deliberativo. Vigente,
quanto ao estatuto, desde o texto inicial da CRP, esse regime foi alargado, pela
revisão de 2004, às leis eleitorais das Assembleias Legislativas.
31. Para uma cabal identificação do objecto do pedido, deve começar por dizer-se
que, muito embora o enunciado da norma sindicada refira apenas “os projectos” de
Estatuto Político-Administrativo e de lei relativa à eleição dos Deputados à
Assembleia Legislativa, não pode atribuir-se à expressão um alcance excludente
das alterações aos mesmos diplomas.
Na verdade, a partir do momento em que o texto inicial dessas leis viu a luz do
dia, as intervenções normativas posteriores sobre estas matérias devem, em
rigor, ser qualificadas como revisões ou alterações, sem que a mudança de
conteúdo implique a quebra de continuidade e de identidade do Estatuto e da lei
eleitoral.
Em conformidade, o Decreto n.º 217/X da Assembleia da República aprovou a 3:ª
revisão do Estatuto Político-Administrativo da RAA, assim como a Lei n.º 61/98,
de 27 de Agosto, já se auto-designara como “segunda alteração” ao mesmo diploma,
sendo que a Lei n.º 9/87, de 26 de Março, se auto-intitulou como “Primeira
revisão do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores”.
De igual modo, as sucessivas alterações à lei eleitoral da Região Autónoma dos
Açores, até à última − a “quinta alteração”, introduzida pela Lei Orgânica n.º
5/2006, de 31 de Agosto −, apresentaram-se como tal. E essa qualificação foi
abonada e certificada pela Lei Constitucional n.º 1/2004 (sexta revisão
constitucional), ao fixar um determinado programa normativo à “revisão da lei
eleitoral” de ambas as regiões autónomas (n.ºs 2 e 3 do artigo 46.º).
Nestes termos, pode concluir-se que os projectos legislativos serão sempre,
nestas matérias, projectos de alteração.
32. Entrando na apreciação dos argumentos aduzidos, há a dizer, quanto à
violação do princípio da tipicidade dos actos legislativos, que não está em
causa a criação de um novo acto, não previsto, nem a atribuição a um acto
previsto de efeitos não previstos. Trata-se apenas de disciplinar um aspecto
procedimental do regime daquelas duas categorias de leis, atinente à iniciativa
das leis, à elaboração dos projectos respectivos — actos da competência
reservada da Assembleia Legislativa, nos termos do artigo 226.º, n.º 1, da CRP.
Ora, não se afigura que uma regra fixando a maioria exigível para a aprovação
desses projectos possa bulir com um elemento essencial, estruturalmente
identificador do conceito de “lei”, em termos de uma alteração fazer extravasar
os seus limites, com a criação de uma nova subcategoria, não prevista. Esse
aspecto de regime não tem eficácia constitutiva do tipo “acto legislativo”, não
é um elemento fixo e rígido, insusceptível de variações. A elasticidade do tipo,
quanto a esse elemento, comporta perfeitamente opções diferenciadas de regime,
sem pôr em causa a qualificação e a permanência do quadro conceptual em questão.
De igual modo, não parece que saia beliscado o princípio da tipicidade
constitucional das leis reforçadas, como princípio derivado do da tipicidade da
lei. Os estatutos político-administrativos e as leis eleitorais já são, nos
termos constitucionais, leis reforçadas, constatando-se que o aspecto de regime
caracterizador dessa categoria, atinente ao seu modo de ser na relação com as
outras leis, em nada é afectado pela norma sindicada. O que estaria
constitucionalmente vedado, por aquele princípio, seria transformar uma lei
comum em lei de valor reforçado ou alterar o regime deste específico valor. Nada
disso pode ser censurado à norma em questão.
33. Maiores dúvidas suscita o argumento de que o procedimento da iniciativa das
leis em causa se encontra “integralmente constitucionalizado”, pelo que, no
silêncio da Constituição quanto a uma maioria qualificada, é de aplicar o
“critério democrático de decisão”, consistente na regra da maioria simples,
consagrada no artigo 116.º, n.º 3, da CRP.
No mesmo sentido parece apontar a posição de JORGE MIRANDA, Manual, V, 279,
n.1, contra a admissibilidade de uma maioria qualificada, em razão de o artigo
226.º da Constituição a não prever.
Ainda que merecendo aturada reflexão, cremos que o argumento não é decisivo. O
que a Constituição se preocupou em regular, neste preceito, e justamente porque
está em causa “um concerto legislativo de vontades” (CARLOS BLANCO DE MORAIS, A
autonomia legislativa regional, Lisboa, 1993, 207), foram os aspectos
procedimentais que têm a ver com a relação entre os dois órgãos, a Assembleia
Legislativa e a Assembleia da República, competentes na matéria. Não está
constitucionalmente definido nada de específico sobre o ponto, nem pode
invocar-se, a este propósito, uma reserva constitucional de regulação
procedimental.
O princípio geral do apuramento da maioria pela pluralidade de votos (n.º 3 do
artigo 116.º) é «um princípio subsidiário que cede quando a Constituição, ela
mesma, a lei ou os regimentos dos próprios órgãos exijam maiorias qualificadas»
(GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., 3.ª ed., 540). É certo que o artigo
116.º, n.º 3, quando admite o afastamento do princípio, refere-se unicamente aos
actos não directamente regulados pela própria Constituição (JORGE MIRANDA, in
JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, ob. cit., II, 317, e RUI MEDEIROS, ibidem, III,
287). Mas, justamente, «a Constituição não regula directamente as maiorias
exigidas nas votações das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas,
abrindo assim espaço para a própria lei estatutária disciplinar esta matéria»
(ob. loc. ult. cit.).
Sendo assim, «nada impede, neste contexto de dignificação do papel central das
populações insulares no procedimento de elaboração dos estatutos, que as normas
estatutárias prevejam um procedimento específico de elaboração pelas Assembleias
Legislativas das Regiões Autónomas dos projectos de revisão dos estatutos
político-administrativos, incluindo através da exigência de maiorias
qualificadas para a aprovação pelos parlamentos regionais de propostas de
alteração das leis estatutárias» (ob. loc. cit.).
E o que se diz das leis estatutárias é extensível, por identidade de razão, às
leis relativas à eleição de deputados às Assembleias Legislativas.
Estamos perante uma dimensão nuclear da autonomia. Autonomia que se singulariza,
fundamentalmente, por as regiões serem dotadas de estatutos e de órgãos de
governo próprio (MARIA LÚCIA AMARAL, A forma da República. Uma introdução ao
estudo do direito constitucional, Coimbra, 2005, 371). As duas ideias estão
interligadas. E bem poderá dizer-se que o respeito pelo “regime autonómico
insular”, que a Constituição impõe logo numa das normas prodrómicas (artigo 6.º,
n.º 1), se manifesta, desde logo, pelo respeito pela vontade insular (expressa
na proposta de Estatuto), quanto à regulação da sua esfera de competência
(constitucionalmente assegurada) no processo de elaboração desse diploma
central.
Não estamos perante a auto-atribuição de uma competência constitucionalmente não
prevista. Estamos antes perante a regulação – por uma lei da República,
sublinhe-se —, de uma forma de exercício de uma competência que cabe na reserva
regional de iniciativa legislativa.
O ponto decisivo é o da valoração da expressão de vontade do órgão legislativo
regional como compatível ou não com a competência do outro órgão interveniente,
dentro de um processo concertativo que a ambos une. O que urge averiguar,
recolhendo uma ideia de LUCAS PIRES/PAULO RANGEL, “Autonomia e soberania (Os
poderes de conformação da Assembleia da República na aprovação dos projectos de
estatutos das Regiões Autónomas)”, Juris et de jure, Porto, 1998, 411 s., 423, é
se, no âmbito de um “procedimento de cooperação”, esta solução de maioria
qualificada é uma exigência ainda “suportável”, “aceitável”, “sustentável” pela
competência própria da Assembleia da República.
O Tribunal responde pela positiva.
34. E nem se diga que esta solução limita a iniciativa derivada ou superveniente
dos Deputados da Assembleia da República, prevista no n.º 2 do artigo 226.º
Falar de “iniciativa superveniente” só faz sentido na condição de já ter sido
dado, pelo órgão insular, o passo que faz surgir esse poder de “iniciativa”.
Atribuir a este poder uma projecção “retroactiva”, para uma fase do processo em
que a Assembleia da República não tem competência própria, não tem base
constitucional.
Atenta a reserva de iniciativa da Assembleia Legislativa, o condicionamento da
competência subsequente da Assembleia da República existe sempre, decorrendo dos
próprios termos em que o artigo 226.º regula o iter produtivo das duas leis em
causa.
É claro que a exigência de uma maioria de dois terços para os projectos dessas
leis é susceptível de potenciar, em certas conjunturas políticas, bloqueios de
iniciativa, com o consequente menor chamamento da Assembleia da República, de um
ponto de vista puramente fáctico-quantitativo, ao exercício da sua competência
própria. Mas, por fundados que sejam os reparos que, eventualmente, sob o prisma
da conveniência política, se possam dirigir a este regime, isso não afecta, só
por si, a sua validade constitucional.
35. Resta considerar o quarto argumento, respeitante à lei eleitoral, de
violação da reserva de lei orgânica.
Afigura-se, antes de mais, que esta alegação tem escassa autonomia (se é que
alguma tem) em relação à da violação do princípio da tipicidade das leis
reforçadas (cfr. o n.º 82.º, alínea b), do pedido).
A nosso ver, o pedido não distingue a matéria da lei eleitoral (o objecto da
reserva da respectiva lei) do processo de produção legislativa dessa lei. Uma
coisa é a regulação das eleições, outra coisa é a regulação do procedimento
legislativo conducente à aprovação dessa lei. Nem a lei eleitoral poderia
regular aquilo que necessariamente está antes no tempo, ou seja, o seu processo
genético, aquilo que a fez nascer.
Não é matéria especificamente eleitoral, como a inserção no artigo 226.º, em
tratamento conjunto com a aprovação do Estatuto, bem comprova.
Por tudo quanto fica dito, o Tribunal pronuncia-se pela não
inconstitucionalidade do disposto no n.º 3 do artigo 47.º
J) A norma do n.º 2 do artigo 67.º
36. A previsão estatutária das matérias sobre que pode incidir a competência da
Assembleia Legislativa ocupa um extenso corpo de normas, que vai do artigo 49.º
ao artigo 67.º
Depois de, nas disposições anteriores, o Estatuto prever e agrupar domínios de
competência legislativa regional “em razão da matéria”, por sectores de
actividade, e de, no n.º 1 do artigo 67.º, proceder a uma enumeração avulsa de
matérias, sem ligação entre si, prescreve, no n.º 2 do mesmo preceito:
«À Assembleia Legislativa também compete legislar, para o território regional e
em concretização do princípio da subsidiariedade, em outras matérias não
reservadas aos órgãos de soberania».
É objecto do pedido a apreciação da constitucionalidade desta norma. A sua
validade, em face da Lei Fundamental, é contestada, com os seguintes
fundamentos, em súmula:
- No novo modelo de repartição de competências legislativas entre as regiões e
os órgãos de soberania, decorrente da 6.ª Revisão Constitucional, de 2004, o
Estatuto fica investido da função de enunciar as matérias não enunciadas na
Constituição, sobre as quais podem incidir os poderes legislativos das regiões
(artigos 112.º, n.º 4, proémio e alínea a) do do n.º 1 do artigo 227.º e n.º 1
do artigo 228.º);
- O artigo 67.º, n.º 2, do Estatuto não cumpre essa função, dada a natureza e as
características dos elementos que o integram;
- De facto, quanto ao princípio da subsidiariedade, ele tem carácter
indeterminado e não constitui um princípio atributivo de competências, devendo
respeitar os critérios estruturantes de repartição de competências, entre os
quais se conta a regra de enumeração estatutária das matérias sobre que pode
incidir o poder legislativo regional. Esse critério tem a qualidade de instituto
auxiliar que permite delimitar, dentro da mesma matéria, um “âmbito regional”
cometido ao poder normativo do legislador autonómico e um domínio próprio da
esfera de competência implicitamente reservada aos órgãos de soberania;
- Quanto ao “território regional”, é um conceito redutor, pois de acordo com a
jurisprudência do Tribunal Constitucional, o conceito de “âmbito regional” não
se esgota num critério geográfico, devendo ser completado por um critério
material, impeditivo de as leis regionais afectarem os valores e interesses de
outras instituições ou pessoas colectivas públicas. Pode mesmo arguir-se a
inconstitucionalidade material do “critério territorial”, por desconformidade
parcial com o conteúdo necessário do conceito de âmbito regional previsto no n.º
4 do artigo 112.º da CRP;
- Nem se diga que a norma impugnada tem uma redacção próxima do n.º 2 do artigo
31.º do Estatuto em vigor, pois esta norma encontra-se ferida de
inconstitucionalidade superveniente, em face da nova redacção dada ao n.º 1 do
artigo 228.º, pelo que o n.º 2 do artigo 67.º do Estatuto constante do Decreto
em apreciação, ao incorporar um sentido semelhante, será igualmente
inconstitucional;
- Em face do exposto, por permitir contornar indevidamente a regra expressa na
alínea f) do n.º 6 do artigo 168.º da CRP, por violação do comando ínsito no n.º
4 do artigo 112.º, reiterado no n.º 1 do artigo 228.º e na alínea a) do n.º 1 do
artigo 227.º da CRP e ainda do n.º 2 do artigo 110.º a norma encontra-se ferida
de inconstitucionalidade.
37. Antes de entrarmos na apreciação do alegado no pedido, cumpre procedermos à
caracterização do preceito em causa, atendendo à sua estrutura normativa e ao
seu papel dentro do sistema previsional estatutário da competência legislativa
regional.
O n.º 2 do artigo 67.º do Estatuto é uma norma de textura aberta, pois a sua
previsão não está recortada de forma precisa e rígida, mas antes com um elevado
grau de indeterminação, através de conceitos “porosos”, “necessitados de
preenchimento com valorações”, em face do caso concreto. Corresponde, pois, a
uma claúsula geral.
Sendo uma cláusula geral, ela é simultaneamente uma cláusula residual, o que
decorre agora da sua articulação com as restantes normas atributivas de
competência legislativa. Desse ponto de vista sistémico, ela é uma norma de
remate ou de fecho, uma “norma de recolha ou intercepção” (Auffangsvorschrift),
para empregar um termo corrente na literatura alemã. Destina-se, como o vocábulo
germânico expressivamente conota, a “aprisionar” matérias que possam ter
escapado indevidamente às malhas da rede de previsões de cunho determinado.
Este jogo combinado de regras com uma cláusula geral, todas concorrendo, em
planos distintos, para compor o tratamento normativo de uma dada matéria, é um
processo de normação com virtualidades manifestas, pois permite recolher as
vantagens da ductilidade e flexibilidade aplicativas, próprias de uma cláusula
geral, sem abrir mão, por inteiro, da efectivação dos interesses ligados à
certeza e à segurança jurídicas. Não surpreende, assim, o seu crescente uso, nos
mais variados sectores normativos.
E não é novidade a utilização desta técnica de legislar, neste domínio. A
própria Constituição lançou mão dela, a propósito do requisito (entretanto
revogado, na revisão de 2004), da determinação das “matérias de interesse
específico das regiões autónomas”. De facto, pela revisão constitucional de
1997, a Constituição passou a inserir, ao lado de uma lista não taxativa de
matérias, uma cláusula geral, referindo «outras matérias que respeitem
exclusivamente à respectiva região ou que nela assumam particular configuração»
(alínea o) do artigo 228.º) E o EPARAA, na sequência desta revisão, decalcou a
previsão constitucional, através da enunciação de uma lista (esta taxativa) de
matérias, complementada por uma cláusula geral de teor igual à da Constituição
(alínea hh) do artigo 8.º do Estatuto, na versão introduzida pela Lei n.º
61/98).
Pode discutir-se, e tem sido discutida, face ao disposto na alínea a) do n.º 1
do artigo 227.º, a validade de uma cláusula deste tipo, como elemento do sistema
de repartição de competências entre o legislador nacional e o regional. E, se se
entender que o imperativo constitucional de enunciação de matérias não pode ser
cumprido através de uma cláusula geral, ainda que de carácter residual, desde
logo se concluirá pela inconstitucionalidade deste processo de normação.
38. Podem, todavia, ser apontadas razões no sentido de admitir que o programa
normativo que a Constituição fixa ao Estatuto, de “definir” (proémio do n.º 1 do
artigo 227.º) e de “enunciar” (n.º 4 do artigo 112.º e n.º 1 do artigo 228.º) as
matérias sobre que versa a competência da Assembleia Legislativa da Região, é
susceptível de ser levado a cabo desta forma. Definir e enunciar não é
forçosamente o mesmo que enumerar taxativamente, através da fixação de um
numerus clausus (nesse sentido, a favor da legitimidade de um sistema de lista
aberta, JORGE MIRANDA, “A autonomia legislativa das regiões autónomas após a
revisão constitucional de 2004”, Scientia Jurídica, 2005, 201 s., aqui 213-214,
e RUI MEDEIROS/TIAGO FREITAS/RUI LANCEIRO, Enquadramento, cit., 54-55; contra,
ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, in ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO/PEDRO LOMBA, Comentário à
Constituição Portuguesa, III, 1.º tomo, Coimbra, 2008, 179-180).
Mas, mesmo admitindo, em tese geral, que a enumeração pode ser complementada por
uma cláusula residual (nesse sentido, RUI MEDEIROS/TIAGO FREITAS/RUI LANCEIRO,
ob. cit., 55: «Assim, não só parece ser conveniente, como o texto constitucional
parece abrir espaço para a inclusão, a par de uma lista regional de matérias, de
uma cláusula residual»; em termos um pouco menos afirmativos, RUI MEDEIROS, in
JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, ob. cit., III, 347) a questão não fica resolvida,
pois o decisivo é saber se esta cláusula residual, constante do artigo 67.º, n.º
2, do Estatuto, na sua concreta formulação, satisfaz ou não as exigências de
determinação inferíveis da Constituição.
Como adverte o último Autor citado: «Em qualquer caso, para evitar que, através
de uma tal cláusula, se abram os estatutos a todas e quaisquer matérias, sem
qualquer parâmetro seguro de determinação das competências regionais, e em
fraude à Constituição, afigura-se decisivo que uma tal cláusula residual seja
suficientemente densificada para que possa operar como norma de controlo da
actividade legislativa regional» (ob. loc. ult. cit.).
Na verdade, a intermediação estatutária, constitucionalmente imposta através da
exigência de que as matérias sobre que podem versar os decretos legislativos
regionais tenham sido “enunciadas no estatuto político-administrativo da
respectiva região autónoma” não pode ter o sentido puramente formalista de
tornar esse diploma o invólucro necessário de não importa que conteúdo
(respeitados os restantes limites).
Isso seria incompatível com o papel central e decisivo, reservado, no novo
regime de repartição de competências, à enunciação de matérias pelo Estatuto. Ao
poder de legislar não é constitucionalmente pré-definido um objecto próprio,
após a eliminação do “interesse específico”. Como contraponto desta
“desconstitucionalização” (usa o termo MARIA LÚCIA AMARAL, ob. cit., 377), surge
o imperativo de enunciação estatutária, a que é atribuído tal relevo que ele é
reiteradamente expresso (n.º 4 do artigo 112.º, alínea a) do artigo 227.º e n.º
1 do artigo 228.º).
Sob pena de o requisito ser degradado a mera exigência formal, esvaziada de
qualquer alcance substancial, que pudesse ser adicionado ao dos demais limites
referidos no n.º 4 do artigo 112.º, ele só ficará satisfeito se, do enunciado
estatutário, decorrerem parâmetros materiais minimamente certificativos (e, na
perspectiva contrária, delimitativos) dos poderes legislativos da Região.
39. Será este o caso da claúsula residual sub juditio?
Para o ajuizarmos, temos que nos debruçar analiticamente sobre o seu conteúdo.
Dos três elementos que este contém, poderemos arredar, de imediato, para o
efeito, a circunscrição da competência às “matérias não reservadas aos órgãos de
soberania”. Esta exclusão corresponde inteiramente à ressalva final do disposto
no n.º 4 do artigo 112.º, tendo, pois, a ver com um outro factor de apreciação,
autonomamente exigível, pelo que não pode ter a pretensão de contribuir para a
concretização do que aqui está em jogo.
Um segundo elemento constante da cláusula é a restrição “ao território regional”
da competência para legislar. A expressão evoca, de imediato, a referência
constitucional, no n.º 4 do artigo 112.º, ao “âmbito regional”, como limite da
competência legislativa regional.
No pedido, as duas fórmulas são expressamente relacionadas, encarando-se a
constante da cláusula residual como uma tradução estatutária da última.
Partindo-se do entendimento de que esta deve conter um critério material, que a
referência ao “território regional” não admite, estaria ferida de
inconstitucionalidade, tornando-se, nessa medida, “inservível para fundamentar a
consagração da cláusula residual”.
Mas, o que está em causa não são as exigências eventualmente decorrentes da
referência constitucional ao “âmbito regional” – um outro critério, distinto do
aqui em apreciação. Do que, neste contexto, devemos curar é do préstimo da
referência ao “território regional”, como contributo densificador da cláusula
estatutária definidora do âmbito residual de competência legislativa.
Independentemente da sua validade constitucional para exprimir aqueloutro
requisito – questão que não temos que apreciar aqui − a expressão funciona, para
este efeito, como um dado, a valorar sob o prisma da sua eficácia
concretizadora.
E essa eficácia – há que dizê-lo – é praticamente nula. Sendo a Região Autónoma
dos Açores uma pessoa colectiva de base territorial, apresenta-se como quase
tautológica a restrição do âmbito de competência legislativa do seu órgão
legiferante à área geográfica do arquipélago.
Resta o princípio da subsidiariedade. De acordo com a cláusula, a competência da
Assembleia Legislativa para legislar é estabelecida “em concretização do
princípio da subsidiariedade”.
O princípio da subsidiariedade tem, após a Lei Constitucional n.º 1/97, assento
constitucional, no n.º 1 do artigo 6.º, como princípio autónomo de organização e
funcionamento do Estado unitário. A sua invocação neste contexto não é, para
nós, isenta de alguma ambiguidade, pois, muito embora tanto lhe possa ser
atribuído um sentido “descendente”, como “ascendente” (cfr. CARLOS BLANCO DE
MORAIS, “A dimensão interna do princípio da subsidiariedade no ordenamento
português”, ROA, 1998, 779), não é inteiramente claro se ele é aduzido aqui como
medida de valor e critério de controlo ou como base aprioristicamente fundante
de legitimidade – sendo que, nesta segunda hipótese, pode ser havido como
justificativo da eliminação, na prática, da não exclusividade da competência
legislativa regional, ao arrepio do desenho constitucional.
Seja como for, o alcance operativo algo difuso dessa ideia regulativa torna-a de
préstimo muito diminuto como parâmetro primário e autónomo, minimamente seguro,
de repartição de competências. Remetendo para critérios de maior eficácia e
maior adequação, dificilmente se pode radicar nela padrões objectivos de
definição competencial.
Esta conclusão não pode, aliás, surpreender, se atentarmos na natureza
principial do critério. Trata-se de um princípio programático, pelo que não
deixa de ser paradoxal chamá-lo à colação em função concretizadora de uma
cláusula geral. Enunciar não é o mesmo que apontar o critério e a razão de ser
da enunciação. Estando em causa partir da Constituição para o Estatuto, em via
descendente, de sentido concretizador, o que se faz é o caminho inverso, o
“percurso de retorno”, o que não permite avanços, naquele sentido. Praticamente
nada se ganha, em termos determinativos e identificativos de outras matérias, a
adicionar às especificamente enunciadas no Estatuto, com a inclusão desta
cláusula residual. Tudo fica em aberto, ao abrigo desta cláusula (o que
significa que tudo, respeitados os restantes parâmetros, poderia ser objecto da
competência da Assembleia Legislativa).
Não andaríamos longe da eliminação, na prática, e por esta via, de um requisito
indispensável ao papel que o legislador constitucional atribuiu, na revisão de
2004, aos estatutos, de «fonte directa e imediata de aferição material da
competência regional» (ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, in ALEXANDRE SOUSA
PINHEIRO/PEDRO LOMBA, ob. cit., 178). Aos estatutos, como sustentam os mesmos
Autores, cabe uma “função central na delimitação material da legislação
regional”, função que resultaria incumprida, a admitir-se uma norma com o grau
de abertura e de indeterminação de que dá mostras o n.º 2 do artigo 67.º do
EPARAA.
O Tribunal entende, pois, que a cláusula geral do artigo 67.º, n.º 2, do
Estatuto não cumpre satisfatoriamente o mandato constitucional a ele cometido,
no que diz respeito à competência da Assembleia Legislativa, de definir e
enunciar as matérias por ela abrangidas. Pelo seu teor irrestrito e
indeterminado, com total omissão de qualificações materiais delimitadoras, ela
não atinge o grau de densificação constitucionalmente exigível.
Temo-la por ferida de inconstitucionalidade, por violação do disposto nos
artigos 112.º, n.º 4, 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1, da CRP.
L) A norma do n.º 1, última parte, do artigo 44.º
40. O n.º 1 do artigo 44.º tem a seguinte redacção:
«Artigo 44.º
Forma dos actos
1 - Revestem a forma de decreto legislativo regional os actos previstos
nas alíneas b), c), d) e e) do artigo 34.º, no artigo 37.º, no n.º 1 do artigo
38.º, no n.º 1 do artigo 39.º, no artigo 40.º e no artigo 41.º.
2 - (…)
3 - (…)
4 - (…)
5 - (…).»
O artigo 41.º, por sua vez, estabelece:
«Artigo 41.º
Competência regulamentar da Assembleia Legislativa
É da exclusiva competência da Assembleia Legislativa regulamentar as leis e
decretos-leis emanados dos órgãos de soberania que não reservem para o Governo
Regional o respectivo poder regulamentar.»
Das normas transcritas, resulta a atribuição da forma de decreto legislativo
regional aos actos previstos no artigo 41.º do Estatuto, ou seja, aos actos da
Assembleia Legislativa que procedam à regulamentação das leis e decretos-leis
emanados dos órgãos de soberania e que não reservem para o Governo Regional o
respectivo poder regulamentar.
Vem suscitada a inconstitucionalidade da norma por duas razões: primeiro, porque
a forma de decreto legislativo regional permitirá que o acto regulamentar se
exima à obrigação constitucional de invocação da lei habilitante e ao princípio
da subordinação dos regulamentos à lei, em violação dos artigos 112.º, n.º 7, e
266.º, n.º 2, da CRP; segundo, porque a norma cria um “tipo híbrido de acto
legislativo”, violando o princípio da tipicidade da lei, consagrado no artigo
112.º, n.º 5.
Desde o texto inicial da Constituição da República que o poder de regulamentar
leis emanadas de órgãos de soberania, que não reservem para estes o respectivo
poder regulamentar, cabe, em exclusivo, às Assembleias Legislativas das regiões
autónomas (cfr., até à revisão constitucional de 1997, os artigos 229.º, alínea
b), e 234.º, n.º 1, a que correspondem os actuais artigo 227.º, n.º 1, alínea
d), segunda parte, e 232.º, n.º 1).
Como se escreveu no Acórdão n.º 278/01: «A competência para o exercício dos
poderes regulamentares das regiões autónomas, relativos apenas à legislação
regional e à legislação geral emanada dos órgãos de soberania que não reservem
para estes o respectivo poder regulamentar, encontra-se, na verdade,
constitucionalmente dividida pela assembleia legislativa regional e pelo governo
regional. Nos termos da Constituição, à assembleia legislativa regional compete
exclusivamente regulamentar leis gerais emanadas de órgãos de soberania,
enquanto o governo regional tem competência apenas para regulamentação da
legislação regional.»
Este poder regulamentar da Assembleia Legislativa (a que acresce o poder
regulamentar que lhe é atribuído pelo artigo 233.º, n.º 4), directamente baseado
na Constituição, consubstancia o desempenho de uma actividade normativa, no
exercício da função administrativa.
A norma questionada prevê que esse poder regulamentar seja exercido sob a forma
de decreto legislativo regional, ou seja, que um acto de natureza regulamentar
assuma a veste de acto legislativo (artigo 112.º, n.º 1, in fine).
O Estatuto, desde a sua versão inicial, sempre previu a forma de acto
legislativo (inicialmente, decreto regional, depois designado decreto
legislativo regional) para aquele poder regulamentar da Assembleia Legislativa −
cfr. artigos 23.º, n.º 1, e 22.º, alínea c), do Estatuto Provisório, aprovado
pelo Decreto-Lei n.º 318-B/76, de 30 de Abril; artigos 28.º, n.º 1, e 26.º, n.º
1, alínea d), nas redacções dadas pelas Leis n.ºs 39/80, de 5 de Agosto, e 9/87,
de 26 de Março; e, finalmente, artigo 34.º, n.º 1, em conjugação com o artigo
32.º, n.º 1, alínea i), da Lei n.º 61/98, de 27 de Agosto. Norma idêntica
encontra-se prevista no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da
Madeira (cfr. os artigos 39.º e 41.º do EPARAM).
Esta opção estatutária tem, no entanto, merecido críticas da doutrina.
Ainda na vigência do texto originário da Constituição de 1976, pronunciando-se
sobre uma norma dos estatutos provisórios que fixava para tais regulamentos a
forma de “decreto regional”, salientava AFONSO QUEIRÓ (Lições de Direito
Administrativo, I, Coimbra, 1976, 374): «O “decreto regional” é, a quanto se
conclui deste preceito constitucional [artigo 235.º, n.º 1, no texto originário
da Constituição], uma forma exclusivamente reservada pela Constituição para os
actos editados pelas assembleias regionais no exercício da sua competência
explicitamente legislativa, entendendo-se por tal a competência normativa que se
traduza em actos-regra praticados em directa execução da Constituição ou dentro
da discricionariedade conferida por esta às referidas assembleias. Não estão
nestas condições os regulamentos das leis ordinárias gerais emanadas dos órgãos
de soberania.»
O artigo 235.º, n.º 1, rezava assim: «Os decretos regionais, bem como os
regulamentos das leis gerais da República, são enviados ao Ministro da República
para serem assinados e publicados».
Mas este argumento literal − baseado na norma do n.º 1 do artigo 235.º, na
versão originária, que distinguia “decretos regionais” e “regulamentos das leis
gerais da República” − já não pode sustentar-se face às posteriores alterações
do texto constitucional.
Na sua redacção actual, a Constituição limita-se a distinguir, a propósito das
competências do Representante da República, os decretos legislativos regionais e
os decretos regulamentares regionais (artigo 233.º, n.º 1), distinção que também
constava do artigo 278.º, n.º 2, na redacção anterior à Lei Constitucional n.º
1/2004 (sobre esta redacção, cfr. JORGE PEREIRA DA SILVA, “Algumas questões
sobre o poder regulamentar regional”, Perspectivas Constitucionais, Nos 20 Anos
da Constituição de 1976, I, Coimbra, 1996, 857).
Ora, é claro que “decretos regulamentares regionais” não é expressão equivalente
a “regulamentos das leis gerais da República”, uma vez que abrange os decretos
do Governo Regional. Sendo assim, a previsão constitucional de dois tipos de
actos normativos regionais não resolve o problema em questão, pois limita-se a
prever uma dualidade de actos, sem especificar o âmbito de aplicação de cada um
deles.
Poder-se-ia argumentar que essa previsão era desnecessária, uma vez que, estando
em causa o exercício do poder regulamentar, inserido no âmbito da função
administrativa, daí decorreria a impossibilidade de lançar mão de um acto típico
da função legislativa.
Neste sentido, JORGE PEREIRA DA SILVA (ob. cit., 858), salienta que «cada forma
deve servir para o exercício de certa competência» e que «os decretos
simultaneamente regulamentares e legislativos, como assumem força formal de lei,
perdem a subordinação à própria lei que regulamentam».
Atenta a natureza e as funções do órgão que, neste caso, é titular do poder
regulamentar, a questão assume especificidades que não podem ser ignoradas: a
Assembleia Legislativa, além de ser o órgão legislativo regional, possui
competência regulamentar (o que não se verifica com a Assembleia da República,
com excepção da competência para aprovar o seu regimento), mas este poder
normativo de segundo grau não é acompanhado (nem faria sentido que o fosse) de
funções de poder executivo, que estão cometidas ao Governo Regional (já no plano
nacional, é ao Governo da República, enquanto órgão superior da administração
pública – artigos 182.º e 199.º, alínea c), da CRP − que estão atribuídas as
competências regulamentares, a par das suas competências legislativas).
Ou seja, o poder regulamentar da Assembleia Legislativa, directamente fundado na
Constituição, apresenta-se como um “enclave” de competência administrativa no
conjunto das funções daquele parlamento que, naturalmente, são de índole
legislativa.
Neste contexto, não causa particular estranheza a opção estatutária pela forma
de decreto legislativo regional na emissão dos regulamentos que são da
competência exclusiva da Assembleia Legislativa.
A necessidade de apurar a natureza material dos actos, independentemente do seu
autor e da forma que revistam, não é um problema exclusivo do poder regulamentar
das Assembleias Legislativas, verificando-se igualmente no que respeita a actos
regulamentares do Governo, aprovados sob a forma de decreto-lei.
Saliente-se, além do mais, que o uso da forma de decreto legislativo regional
não tem obstado a que os diplomas, emitidos ao abrigo do poder conferido pela
segunda parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição, sejam
tratados como verdadeiros regulamentos, nomeadamente, para aferir dos limites
das competências dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas, entre si,
e perante os órgãos de soberania.
ANA RAQUEL MONIZ (“A titularidade do poder regulamentar no direito
administrativo português (algumas questões)”, BFDUC, n.º 80, 2004, 483 s., aqui
535) salienta que «as normas estatutárias que atribuem a forma de decreto
legislativo regional aos regulamentos das Assembleias Legislativas não devem ser
interpretadas no sentido de que tais diplomas sejam actos legislativos, na
medida em que materialmente não constituem o resultado do exercício da função
legislativa, e, por conseguinte, assumem apenas natureza e força de
regulamento». Em jeito de conclusão, a Autora questiona-se se «não se poderá
argumentar com a necessidade de consideração material do acto, desde logo para
admitir uma possibilidade de reacção no âmbito da justiça administrativa contra
quaisquer regulamentos ilegais “independentemente da sua forma”.» (ob. cit.,
537).
Acrescente-se, quanto a este último ponto, que essa é a solução que, no que
respeita à impugnação de actos administrativos, expressamente se consagra no
artigo 52.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, em conformidade
com um princípio de irrelevância da forma.
Embora a questão agora em apreciação não tenha sido anteriormente colocada ao
Tribunal Constitucional, extrai-se da sua jurisprudência que os regulamentos que
assumam a forma de decreto legislativo regional não perdem (não podem perder) a
subordinação à própria lei que regulamentam.
Assim, no Acórdão n.º 395/93, salientou-se, quanto a um decreto legislativo
regional, a sua natureza de “diploma regulamentar de uma lei geral emanada de um
órgão de soberania” e não de “legislação regional”, para daí se extrair a
inconstitucionalidade de todo o decreto regulamentar regional que lhe dava
execução.
E no Acórdão n.º 18/2007, o Tribunal considerou inconstitucional um decreto
legislativo regional, na medida em que “devolvia” toda a regulamentação que lhe
competia, por força do disposto na segunda parte da alínea d) do n.º 1 do artigo
227.º, para decreto regulamentar regional.
Não procede, assim, a alegada violação dos princípios da subordinação dos
regulamentos à lei e do princípio da tipicidade da lei, uma vez que a norma
citada não cria um acto novo, mas opta pela utilização de uma das formas de acto
previstas na Constituição, que é a forma mais ligada à natureza do órgão que é
titular do poder regulamentar e que, de qualquer modo, não obsta à correcta
identificação do conteúdo do acto, enquanto regulamento, nem à manutenção do
correspondente valor e força jurídica.
41. As considerações tecidas levam, também, à improcedência do argumento segundo
o qual a forma de decreto legislativo regional permitirá que o acto regulamentar
se exima à obrigação constitucional de invocação da lei habilitante.
Pois, como vimos, a Assembleia Legislativa fica sempre subordinada às regras
próprias da emissão de regulamentos, independentemente de os mesmos assumirem a
forma de decreto legislativo regional.
A este respeito, lembre-se, ainda, que este Tribunal tem admitido que o artigo
112.º, n.º 7, da CRP, não impõe que a indicação da lei definidora da competência
conste de um qualquer trecho determinado do regulamento (cfr. o Acórdão n.º
357/99), e tem considerado suficiente a mera referência à lei habilitante no
articulado do regulamento, ainda que dele não conste a expressa indicação que se
pretendia proceder à regulamentação daquela lei (Acórdão n.º 110/95).
Termos em que se conclui pela conformidade constitucional da norma do artigo
44.º, n.º 1, no segmento que remete para o «artigo 41.º».
III. Decisão
Face ao exposto, o Tribunal Constitucional decide, no que respeita à 3.ª revisão
do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovada pelo
Decreto n.º 217/X, da Assembleia da República, pronunciar-se no sentido da:
a) Não inconstitucionalidade da primeira e da segunda partes da norma do artigo
69.º, n.º 5;
b) Inconstitucionalidade da norma do artigo 114.º, n.º 3, por violação do artigo
110.º, n.º 2, conjugado com o artigo 138.º, n.º 1, da Constituição;
c) Não inconstitucionalidade da norma do artigo 45.º, n.º 1, na parte em que
confere iniciativa referendária regional aos deputados, aos grupos e
representações parlamentares, ao Governo Regional e a grupos de cidadãos
eleitores;
d) Não inconstitucionalidade da norma do n.º 5 do artigo 46.º, na dimensão
atinente ao direito de iniciativa referendária (e, correlativamente, da parte do
n.º 1 do artigo 45.º que para ela remete);
e) Inconstitucionalidade da norma do artigo 46.º, n.º 6, na dimensão atinente ao
direito de iniciativa referendária (e, correlativamente, da parte do n.º 1 do
artigo 45.º que para ela remete), por violação do disposto na alínea b) do
artigo 164.º, em conjugação com o disposto no n.º 2 do artigo 166.º da CRP;
f) Inconstitucionalidade da norma do artigo 49.º, n.º 2, alínea c), por violação
do n.º 4 do artigo 112.º da CRP, em conjugação com o disposto na alínea r) do
artigo 164.º;
g) Inconstitucionalidade da norma do artigo 53.º, n.º 2, alínea i), por violação
do artigo 112.º, n.º 4, da CRP;
h) Inconstitucionalidade da norma do artigo 61.º, n.º 2, alínea a), no segmento
relativo à «garantia do exercício de actividade sindical na Região», e da norma
da alínea b) do mesmo preceito, por violação do disposto no n.º 4 do artigo
112.º da CRP, em conjugação com o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da
CRP;
i) Inconstitucionalidade da norma do artigo 63.º, n.º 2, alínea h), por violação
do artigo 112.º, n.º 4, da CRP, em conjugação com o disposto na alínea a) do n.º
6 do artigo 168.º da CRP;
j) Inconstitucionalidade do artigo 66.º, n.º 2, alínea a), por violação do n.º 4
do artigo 112.º, em consequência da inobservância do disposto na alínea u) do
artigo 164.º, nas alíneas b) e aa) do n.º 1 do artigo 165.º, e no n.º 4 do
artigo 272.º;
l) Não inconstitucionalidade da norma do artigo 47.º, n.º 3;
m) Inconstitucionalidade da norma do artigo 67.º, n.º 2, por violação do
disposto nos artigos 112.º, n.º 4, 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1, da
CRP;
n) Não inconstitucionalidade da norma do artigo 44.º, n.º 1, no segmento que
remete para o «artigo 41.º».
Lisboa, 29 de Julho de 2008
Joaquim de Sousa Ribeiro
José Borges Soeiro
Benjamim Rodrigues (com declaração de voto relativamente à alínea c) da decisão)
Maria João Antunes (com declaração de voto, que se junta, relativamente à alínea
b) da Decisão)
Gil Galvão (Votei a decisão quanto à alínea l), embora sem prejuízo de uma mais
desenvolvida ponderação, insusceptível de ser realizada nas circunstâncias
concretas do presente processo)
Mário José de Araújo Torres (vencido quanto à alínea a) da decisão, pelas razões
constantes da declaração de voto junta)
Carlos Fernandes Cadilha (vencido quanto às alíneas b) e i) da decisão, pelos
fundamentos constantes da declaração de voto junta)
Maria Lúcia Amaral (vencido quanto à alínea b) da Decisão, de acordo com
declaração de voto junta).
Carlos Pamplona de Oliveira (vencido conforme declaração)
João Cura Mariano (vencido quanto à declaração de inconstitucionalidade das
normas constantes do n.º 3 do art.º 114, do n.º 1, do art.º 45 e do n.º 6 do
art.º 46 do E.P.A.R.A.A., na versão do Decreto n.º 217/X, pelas razões
constantes da declaração anexa).
Vítor Gomes (vencida quanto à alínea l) e com declaração atinente à alínea e) da
decisão, conforme declaração anexa)
Ana Maria Guerra Martins (vencida quanto à alínea l) da decisão relativa ao
art.º 47.º/3, por considerar que a norma é inconstitucional, no essencial, pelas
razões constantes do n.º 1 da declaração de voto do Exmo. Senhor Conselheiro
Vítor Gomes, para o qual remeto).
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Embora acompanhando o juízo de não inconstitucionalidade constante da alínea c)
da decisão, no tocante à existência de previsão constitucional da competência
dos “grupos e representações parlamentares” para apresentarem perante a
Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores projectos de iniciativa de
referendo regional, não me louvo, porém, na aplicação do n.º 1 do art.º 167.º da
Constituição da República por via de uma directa aplicação analógica sustentada
no acórdão.
As normas atributivas de competência constitucional (como de outro
nível) são normas de provisão expressa de poderes, normas expressas de
atribuição de poderes por parte do legislador constitucional, não estando
impedido que essa norma possa ser determinada por interpretação extensiva, mas
nunca por aplicação analógica, por esta corresponder a uma norma criada pelo
juiz dentro do sistema.
Ora, da interpretação conjugada do n.º 2 do art.º 232.º da
Constituição [que especificamente prevê a competência da Assembleia Legislativa
da região autónoma para apresentar propostas de referendo regional], com o n.º 4
do mesmo artigo [que prevê que “se aplica à Assembleia Legislativa da região
autónoma e respectivos grupos parlamentares, com as necessárias adaptações”
(itálico aditado) o disposto em vários preceitos constitucionais] e, finalmente,
com art.º 180.º do mesmo compêndio fundamental [preceito para o qual o referido
n.º 4 remete], é possível inferir directamente, por interpretação declarativa
ou, quando muito, extensiva, a competência dos grupos e representações
parlamentares para apresentarem perante a Assembleia Legislativa da Região
Autónoma dos Açores projectos de iniciativa de referendo regional, bastando para
tanto adaptar (como manda o preceito constitucional) o disposto na alínea g) de
tal artigo 180.º [que prevê a iniciativa legislativa] também à iniciativa
referendária.
Por fim, a ter algum sentido a convocação do n.º 1 do art.º 167.º da
Constituição, quanto ao segmento aqui em causa, tal só seria possível por via
deste “jogo” de remissões de sentidos normativos.
Benjamim Rodrigues
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a decisão no sentido de o Tribunal se pronunciar pela
inconstitucionalidade da norma do artigo 114º, nº 3, da 3ª revisão do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovada pelo Decreto nº
217/X, da Assembleia da República, mas não acompanho a fundamentação constante
dos pontos 10., 11. e 12., pelas seguintes razões.
A norma em causa determina a obrigatoriedade da audição dos presidentes de
órgãos de governo regional pelo Presidente da República, no caso de este órgão
pretender declarar os estados de excepção apenas no território da Região
Autónoma dos Açores (cf. pontos 16. e 23. do pedido), mas já não quando a
declaração do estado de sítio ou de emergência abrange também o território da
Região.
Este trâmite de audição obrigatória do Presidente da Assembleia Legislativa e do
Presidente do Governo Regional não é matéria de reserva da Constituição, no
sentido explicitado na Fundamentação, quando a declaração de estado de sítio ou
de emergência abranja apenas o território da Região Autónoma dos Açores. Neste
caso, a “regulação constitucional específica do artigo 138.º, n.º 1,” abre-se ao
que se dispõe no nº 2 do artigo 229º – os órgãos de soberania ouvirão sempre,
relativamente às questões da sua competência respeitantes às regiões autónomas,
os órgãos de governo regional (no sentido deste dever de audição, Rui
Medeiros/Tiago Fidalgo de Freitas/Rui Lanceiro, “Parecer. Enquadramento da
Reforma do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores”,
2006, p. 135).
Tratando-se de norma que integra os regimes do estado de sítio e do estado de
emergência, pronunciei-me pela inconstitucionalidade, por violação do disposto
no artigo 164º, alínea e), em conjugação com o nº 2 do artigo 166º, da
Constituição da República Portuguesa, pelas razões que se extraem do ponto 18.
da Fundamentação.
Maria João Antunes
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei no sentido da pronúncia pela
inconstitucionalidade da norma do n.º 5 do artigo 69.º do Estatuto
Político‑Administrativo da Região Autónoma dos Açores, na redacção resultante
da revisão aprovada pelo Decreto n.º 217/X, embora por fundamento diverso do
invocado no pedido.
Contrariamente ao aduzido no pedido, a norma em causa
não versa sobre o prazo de marcação das eleições subsequentes à dissolução da
assembleia legislativa da Região pelo Presidente da República, mas sim determina
que o acto de dissolução se considera juridicamente inexistente se as eleições
não se realizarem no prazo máximo de 60 dias.
Nesta vertente, isto é, enquanto norma reguladora dos
requisitos da dissolução de um órgão de governo próprio da Região, entendo que a
norma tem natureza estatutária e, por isso, não procede o alegado vício de
violação de reserva de lei orgânica, que tem por pressuposto o entendimento de
que estaria em causa matéria da lei eleitoral regional.
2. Entendo, porém – e é aqui que radica a minha
divergência relativamente a esta parte do precedente acórdão –, que a norma em
causa não se limita a reproduzir o que já consta do n.º 6 do artigo 113.º da
Constituição da República Portuguesa (CRP).
Antes de prosseguir, interessa registar que considero
inequívoco que este preceito constitucional – que o pedido não refere – é
aplicável às eleições legislativas regionais. A versão originária da
Constituição continha três normas dispersas: uma a condicionar a dissolução da
Assembleia da República à marcação, no decreto de dissolução, da data de novas
eleições, a realizar no prazo de 90 dias, de harmonia com a lei eleitoral
vigente ao tempo da dissolução, sob pena de inexistência jurídica do decreto de
dissolução (artigo 175.º, n.ºs 1 e 3); outra, a condicionar a dissolução dos
órgãos regionais à realização de novas eleições no prazo máximo de 90 dias, pela
lei eleitoral vigente ao tempo da dissolução, sob pena de nulidade do
respectivo decreto (artigo 234.º, n.º 2); e a terceira, a determinar que a
dissolução das assembleias das autarquias locais tinha de ser acompanhada da
marcação de novas eleições, a realizar no prazo de 60 dias (artigo 243.º, n.º
3). Na revisão constitucional de 1982, estas três disposições desapareceram e
deram lugar à inserção, no então artigo 116.º (hoje, artigo 113.º), dedicado aos
princípios gerais de direito eleitoral, de um n.º 6, determinando que no acto de
dissolução de órgãos colegiais baseados no sufrágio directo tem de ser marcada a
data das novas eleições, que se realizarão nos 90 dias seguintes e pela lei
eleitoral vigente ao tempo da dissolução, sob pena de inexistência jurídica
daquele acto. Finalmente, com a revisão constitucional de 1997, o preceito foi
renumerado como artigo 113.º, e o prazo de 90 dias reduzido para 60 dias. Do
exposto resulta que, para além do seu teor literal, a história do n.º 6 do
artigo 113.º da CRP não deixa dúvidas sobre a sua aplicabilidade às eleições
legislativas regionais subsequentes a acto de dissolução.
Porém, o teor do n.º 6 do artigo 113.º da CRP aponta no
sentido de que o que determina a inexistência jurídica do acto de dissolução é a
não marcação, nesse acto, da data das novas eleições dentro do prazo máximo de
60 dias, sendo, no mínimo, duvidoso que a mesma consequência derive da não
realização das eleições nesse prazo, apesar de inicialmente marcadas para data
dentro desse período. A este propósito, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, p.
523) anotavam: “Problemático é saber qual a solução no caso de, por motivo de
força maior, elas poderem não se vir a realizar na data marcada”.
Ora, do teor literal do preceito em análise resulta
claramente que é a não realização de eleições no prazo de 60 dias que determina
a inexistência jurídica do acto de dissolução. E esse mesmo teor literal não
consente que se dê tratamento diferenciado consoante a causa que determinou que
as eleições afinal não se realizassem dentro do prazo de 60 dias que tinha sido
inicialmente respeitado.
Esta expressa cominação da inexistência do acto de
dissolução no caso de as eleições não se realizarem dentro do prazo de 60 dias,
independentemente da causa que determina essa ultrapassagem do prazo, para além
de poder ser entendida como não tendo cobertura integral no n.º 6 do artigo
113.º da CRP, surge como desproporcionada, bastando atentar em que essa
ultrapassagem pode resultar de causas de força maior ou mesmo do funcionamento
normal do processo eleitoral. Recorde‑se que a data das eleições, no caso de
dissolução da assembleia legislativa regional, tem de ser marcada com o limite
máximo de 60 dias, por força do artigo 113.º, n.º 6, da CRP, e com a
antecedência mínima de 55 dias, por força do n.º 1 do artigo 19.º da Lei
Eleitoral para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores
(Decreto‑Lei n.º 267/80, de 8 de Agosto, alterado, por último, pela Lei Orgânica
n.º 5/2006, de 31 de Agosto), o que significa que basta ocorrer alguma das
circunstâncias previstas no artigo 92.º da mesma Lei, de não realização da
votação em qualquer assembleia de voto, para que a eleição só se conclua “no
mesmo dia da semana seguinte”, isto é, necessariamente para além do prazo máximo
de 60 dias. Ora, é evidente que nem a ocorrência destas situações, nem, muito
menos, a superveniência de caso de força maior representam qualquer atentado de
tal maneira grave aos valores que historicamente, desde o constitucionalismo
monárquico, determinaram a consagração da regra da marcação simultânea das novas
eleições, em prazo relativamente curto e sem manipulação da lei eleitoral, como
condição da validade do acto de dissolução das assembleias representativas, que
justifique razoavelmente a imposição da sanção da inexistência, que, a meu ver,
decorre inexoravelmente do teor literal da norma ora em apreço.
Mário José de Araújo Torres
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei vencido quanto à declaração de inconstitucionalidade do artigo 114º,
n.º 3, do Estatuto aprovado pelo Decreto n.º 217-X da Assembleia da República,
por considerar que o trâmite aí previsto de audição dos órgãos de governo da
Região Autónoma, antes da declaração de estado de sítio ou de emergência no
território da região, corresponde a uma concretização do direito de audição que
está já consagrado no artigo 229º, n.º 2, da Constituição e que está pressuposto
no próprio regime procedimental constitucionalizado que resulta dos artigos
134º, alínea d), e 138º.
A formalidade não tem, por outro lado, também, qualquer efeito prático, visto
que o artigo 25º, n.º 4, da Lei n.º 44/86, de 30 de Setembro, que regulamenta o
estado de excepção, prevê a consulta dos órgãos regionais, por parte da
Assembleia da República, no âmbito do procedimento específico interno relativo à
autorização do pedido de declaração do estado de sítio ou de emergência, pelo
que seria inútil, por ter sido já realizada, qualquer nova audição dos mesmos
órgãos antes da emissão do decreto do Presidente da República.
As considerações expendidas no acórdão quanto à introdução, na lei
regulamentadora do estado de sítio e de emergência, de um novo trâmite
procedimental não especialmente previsto na Constituição são igualmente válidas
para a solução legislativa constante do artigo 114º, n.º 3, do Estatuto. Não se
trata aí de interferir no figurino que o legislador constitucional concebeu para
o processo de declaração do estado de sítio ou de emergência, que se destina
unicamente a regular as competências específicas dos diversos órgãos de
soberania, mas de dar cobertura a um trâmite procedimental que sempre deveria
ter lugar de acordo com o princípio geral que decorre do artigo 229º, n.º 2, da
Constituição, e cuja específica previsão no Estatuto constitui uma mera
regulação de segundo grau, e que se encontra por isso, também, excluída do
princípio da reserva de lei orgânica.
Mal se compreenderia, de resto, que uma decisão política com o mais relevante
impacto na vida dos cidadãos residentes na região autónoma, implicando a
suspensão do exercício de direitos, liberdades e garantias, pudesse ser adoptada
sem a prévia audição dos respectivos órgãos de governo.
2. Não acompanho o acórdão também no que se refere à declaração de
inconstitucionalidade da norma do artigo 63º, n.º 2, alínea h), do Estatuto, por
entender que essa disposição, ao atribuir competência legislativa própria à
Assembleia Legislativa Regional no âmbito da «regulação do exercício da
actividade dos órgãos de comunicação social», não pode ser interpretada como
significando a concessão à Região de poderes normativos na área da «regulação da
comunicação social», expressão esta que tal como é assumida no texto
constitucional tem um sentido jurídico muito preciso e necessariamente mais
restritivo.
Da conjugação das disposições dos artigos 39º e 168º, n.º 6, alínea a), da
Constituição o que pode concluir-se é que cabe na reserva parlamentar a emissão
da «lei respeitante à entidade de regulação da comunicação social», incumbência
essa de que a Assembleia da República se desonerou através da aprovação da Lei
n.º 53/2005, de 8 de Novembro, que criou a ERC – Entidade Reguladora da
Comunicação Social. Cabe, por sua vez, a essa entidade, entre outras
atribuições, assegurar o cumprimento, por parte das agências noticiosas e
operadores da rádio, televisão ou imprensa escrita, das normas reguladoras das
actividades de comunicação social, conforme prevê o artigo 8º, alínea f), dos
respectivos Estatutos, aprovados por esse diploma. É essa regulamentação avulsa
relativa ao «exercício da actividade da comunicação social», que poderá abranger
os mais diferentes sectores da comunicação social, que se encontra atribuída à
competência da Assembleia Legislativa Regional, nada permitindo concluir que a
apontada norma estatutária conceda à Região uma credencial legislativa para
instituir um regime colidente com o resultante do artigo 39º da Constituição.
Não estando, por outro lado, demonstrado que a regulamentação do «exercício das
actividades de comunicação social», na acepção antes exposta, está reservada à
competência legislativa dos órgãos de soberania, nada parece obstar a que essa
matéria se inclua nos poderes normativos de âmbito regional das regiões
autónomas.
Carlos Alberto Fernandes Cadilha
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida quanto à alínea b) da decisão, que se pronuncia pela
inconstitucionalidade da norma do artigo 114º, nº 3 do Estatuto, relativo à
audição do Presidente da Assembleia Legislativa e do Presidente do Governo
Regional antes da declaração do estado de sítio ou do estado de emergência no
território da região.
Fi-lo pelos motivos seguintes:
1º – Não acompanhei a argumentação do Acórdão, segundo a qual se não poderia
deixar de entender que a norma estatutária se reportaria à declaração do estado
de sítio e do estado de emergência em todo o território nacional e não apenas –
conforme penso, decorre da enunciação literal do preceito e da formulação do
pedido que, a esse propósito, é endereçado ao Tribunal Constitucional – no
território da região.
Partindo deste pressuposto, entendi que nenhuma razão justificaria a exclusão da
aplicação, ao procedimento, dos deveres gerais de audição dos órgãos de governo
regional consagrados nos artigos 229º, nº 3, e 227º, nº 1, alínea v) da
Constituição.
O cumprimento de tais deveres não é mais do que a concretização de um princípio
estruturante de todo o sistema autonómico regional – o princípio de cooperação
entre órgãos de soberania e órgãos regionais – que adquire densidade particular
em todos os procedimentos de decisão dos órgãos de soberania que, sendo embora
de sua competência, incidam sobre questões respeitantes às regiões autónomas.
Dada a primariedade de tais deveres, mal se compreenderia que, no caso de
declaração de estado de sítio ou de estado de emergência no território da
região, deixassem eles de ser cumpridos. É certo que a Constituição se lhes não
refere expressamente; mas nada permite pensar que a não referência expressa
revela a presença, no caso, de uma reserva de Constituição, plasmada no carácter
totalizante e fechado do procedimento enunciado no artigo 138º. Tal só seria a
meu ver defensável nas situações de estado de excepção que valessem para todo o
território nacional; não naquelas que – como entendi – são as incluídas no
âmbito da previsão da norma estatutária.
2º – É, também, a mesma natureza primária dos deveres de audição – enquanto
deveres decorrentes do princípio da cooperação entre órgãos de soberania e
órgãos regionais – que me leva a pensar que a regulação do seu cumprimento por
norma do Estatuto Político‑Administrativo não lesa a reserva da lei orgânica
relativa aos regimes do estado de sítio e do estado de emergência, imposta pela
leitura conjugada dos artigos 164º, alínea e) e 166º, nº 2, da Constituição.
Se são, justamente, as normas estatutárias que devem definir os poderes das
regiões, e se entre elas se conta – com a dimensão sistémica que atrás lhe
atribuí – o poder regional de pronúncia sobre questões de competência dos órgãos
de soberania que digam respeito à região [alínea v) do nº 1 do artigo 227º],
nenhuma razão substancial justifica que se exclua da normação estatutária a
regulação desses mesmos procedimentos de pronúncia em caso de declaração de
estado de sítio ou de estado de emergência para o território da região.
Interpreto, aqui, as imposições aparentemente contraditórias decorrentes da
alínea b) do artigo 164º da Constituição, e dos seus artigos 229º e 227º, nº 1,
alínea v), de acordo com o princípio da adequação funcional: nenhuma leitura
isolada de um preceito [neste caso, o contido na alínea b) do artigo 164º] pode
conduzir a resultados que contradigam o sistema de repartição de poderes e de
competências constitucionalmente plasmados.
Se – como entendo – o dever de audição das regiões concretiza o princípio
estruturante da cooperação entre órgãos de soberania e órgãos regionais, a
posição sistémica que tais deveres ocupam na arquitectura do nosso modelo
autonómico não pode deixar de ser tida em linha de conta, quanto à delimitação
do âmbito da reserva de lei orgânica relativa ao regime dos referendos.
Maria Lúcia Amaral
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido quanto às alíneas d), e) e g) da decisão, nos termos que sumariamente se
expõem:
1.
Os artigos 45º e 46º do projecto de Estatuto inscrevem-se na sua Secção II, que
trata da 'Competência da Assembleia Legislativa'; competência que, no que se
refere ao referendo, se resume ao poder de apresentar 'propostas de referendo
regional' ao Presidente da República, tal como, aliás, permite a Constituição no
n.º 2 do seu artigo 232º. Ora, os artigos 45º n.º 1 e 46º n.º 6, que contêm as
normas impugnadas pelo Presidente da República, na parte em que identificam quem
pode pedir à Assembleia Legislativa que delibere no sentido de apresentar uma
proposta de referendo regional, tratam do mecanismo de funcionamento da
Assembleia Legislativa da Região numa fase inicial e prévia do procedimento
referendário.
A circunstância de os Estatutos das Regiões se caracterizarem pela
natureza para-constitucional, única no ordenamento jurídico, que os coloca numa
posição de intermediação entre a Constituição e as outras leis, impõe que neles
se concentrem as regras que, justificadas pela especificidade própria,
caracterizam a autonomia regional – conforme indiscutivelmente apontam o n.º 2
do artigo 6º e o n.º1 do artigo 227º, da Constituição.
Por tal razão, sou levado a admitir que os Estatutos podem albergar normas em
princípio reservadas a actos legislativos que, tal como as leis que os aprovam,
estão sujeitos a formas mais solenes de edição, como são as leis orgânicas,
desde que se radiquem no regime autonómico e nas peculiaridades geográficas,
económicas, sociais, e culturais que o justificam.
Neste contexto, deve aceitar-se que a Constituição permite que na
Região Autónoma dos Açores vigorem regras jurídicas próprias, distintas, por
exemplo, das que vigoram na Madeira, sobre o processo de funcionamento da sua
Assembleia Legislativa, ainda que esse procedimento tenha em vista uma futura
proposta de referendo regional. Mais ainda, deve aceitar-se que local próprio
para essas regras se fixarem é precisamente o Estatuto Político-Administrativo.
Os artigos 45º n.º 1 e 46º n.º 6 contêm regras reportadas directamente ao
funcionamento interno do órgão legislativo da Região, não interferem com a
competência de outros órgãos do Estado, nem com o núcleo essencial do
procedimento referendário, e devem, por isso, constar no Estatuto, conforme, a
meu ver, permitem o n.º 2 do artigo 6º e o n.º 1 do artigo 227º, ambos da
Constituição.
Diferentemente, o n.º 5 do artigo 46º contém uma disciplina que pretende
radicar-se na área preceptiva típica dos 'direitos, liberdades e garantias' que
a Constituição trata como um estatuto de cidadania, onde não há espaço para
modelações regionais de carácter primário – n.ºs 1 dos artigos 6º, 12º e 13º e
alínea b) do n.º 1 do artigo 165º, todos da Constituição.
2.
Quanto à alínea g) da decisão, divirjo do juízo de inconstitucionalidade que se
estende à parte da norma reportada ao regime de licenciamento da pesca, matéria
que, aliás, o acórdão não chega a abordar. Não acompanho, ainda, o fundamento do
juízo de inconstitucionalidade da norma restante, por entender que o 'âmbito
regional' de que falam as alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 227º da
Constituição, sendo um pressuposto do poder legislativo regional, não constitui
um requisito positivo desse poder.
No entanto, a amplitude da norma interfere com a competência reservada prevista
na alínea v) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição, razão pela qual perfilho a
solução que o Tribunal sufragou no presente aresto, quanto a esta matéria.
Carlos Pamplona de Oliveira
DECLARAÇÃO DE VOTO DE VENCIDO
Votei no sentido da declaração de não inconstitucionalidade das normas
constantes do n.º 3, do artigo 114.º, do n.º 1, do artigo 45.º, e do n.º 6, do
artigo 46.º, do E.P.A.R.A.A., na versão do Decreto n.º 217/X, pelas seguintes
razões:
1) A norma do n.º 3, do artigo 114º (sobre a audição prévia à declaração dos
estados de sítio e de emergência)
A norma questionada prevê a audição prévia pelo Presidente da República, do
Presidente da Assembleia Legislativa e do Presidente do Governo Regional, antes
da declaração do estado de sítio ou de emergência no território da Região.
Esta norma encontra-se inserida no capítulo relativo à audição dos órgãos do
governo próprio pelos órgãos de soberania, prevendo o artigo 114.º, do
E.P.A.R.A.A., na versão do Decreto n.º 217/X, o dever de audição pelo Presidente
da República sobre o exercício das seguintes competências políticas: nomeação ou
exoneração do Representante da República na Região (n.º 1), dissolução da
Assembleia Legislativa, marcação da data para a realização de eleições
regionais ou de referendo regional (n.º 2), e declaração de estado de sítio ou
de emergência na região (n.º 3).
Se o elemento literal deste último preceito indica que a declaração do estado de
sítio ou de emergência aí prevista se limita à que atinge apenas a região ou
parcela da região dos Açores, tal indicação é reforçada pelo elemento
sistemático retirado do facto dos outros actos referidos no artigo 114.º, que
também exigem a audição prévia de órgãos regionais, se reportarem apenas à
região dos Açores, o que aliás se encontra de acordo com o âmbito do direito
constitucional de audição (artigo 229.º, n.º 2, da C.R.P.), o qual não existe em
matérias em que a região é interessada apenas na medida em que o é também o
restante território nacional.
Daí que, contrariamente à opinião que fez vencimento, entenda que esta é a
interpretação mais fiel ao pensamento legislativo do preceito questionado, pelo
que deve ser com esse sentido que o mesmo deve ser objecto de fiscalização
constitucional.
Considerando a gravidade dos efeitos da declaração do estado de sítio ou de
emergência, a Constituição regulou com algum pormenor o regime destes estados de
excepção constitucional, designadamente o seu processo de declaração, não
prevendo aí especificamente a necessidade de audição dos órgãos de governo
regionais.
Contudo, o artigo 229.º, n.º 2, da C.R.P., estabelece o dever geral dos órgãos
de soberania ouvirem sempre, relativamente às questões da sua competência
respeitantes às regiões autónomas, os órgãos de governo regional, não havendo
qualquer razão que justifique a exclusão do Presidente da República deste dever
de cooperação, nomeadamente quanto aos seus actos políticos, onde se inclui a
declaração dos estados de sítio e de emergência (vide, neste sentido, JORGE
MIRANDA, em “Sobre a audição dos órgãos das regiões autónomas pelos órgãos de
soberania”, em “Estudos em homenagem à Professora Doutora Isabel Magalhães
Collaço”, II vol., pág. 785, RUI MEDEIROS, em “Constituição Portuguesa anotada”,
tomo III, pág. 378, da ed. de 2007, da Coimbra Editora, e RUI MEDEIROS, TIAGO
FREITAS e RUI LANCEIRO, em “Enquadramento da reforma do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores”, pág. 135, da ed. de
2006, policopiada).
Na verdade, exigindo o princípio da cooperação entre estes órgãos que as regiões
autónomas sejam ouvidas nas questões da competência dos órgãos de soberania que
lhe digam exclusivamente respeito, a declaração de um estado de sítio ou de
emergência limitado à região não podia ocorrer, sem que estas se pudessem
pronunciar sobre a sua necessidade ou oportunidade.
Daí que o pormenorizado regime constitucional dos estados de excepção, apesar de
não prever expressamente como trâmite do processo conducente à respectiva
declaração a audição de qualquer órgão de governo regional, não deixa de
integrar esse dever de audição, por força do disposto na regra geral prevista no
citado artigo 229.º, n.º 2, da C.R.P.
Foi nesta perspectiva que o legislador ordinário ao regulamentar esse regime na
Lei n.º 44/86, de 30 de Setembro, não deixou de concretizar o referido dever
quando estivesse em questão a declaração de um estado de excepção no território
de uma região, inserindo-o, contudo, no processo de instrução da autorização da
Assembleia da República (artigo 25.º, n.º 4).
Assim se conclui que o disposto no n.º 3, do artigo 114.º, do E.P.A.R.A.A., na
versão do Decreto n.º 217/X, na interpretação aqui perfilhada, não desobedece ao
regime constitucional da declaração dos estados de excepção, limitando-se a
concretizá-lo quando ao dever de audição das regiões autónomas nas situações em
que o âmbito geográfico desses estados se restrinja a essas regiões.
Esta concretização é feita através da indicação do órgão de soberania
interveniente no processo de declaração do estado de excepção sobre quem recai o
dever de audição – o Presidente da República – e dos órgãos da região que devem
ser ouvidos – o Presidente da Assembleia Legislativa e o Presidente do Governo
Regional -, tendo sido acolhida a opinião que JORGE MIRANDA havia manifestado
em estudo anterior:
“Mal se compreenderia que, quanto aos actos do Presidente da República
relativos às regiões autónomas, todos de grande importância – marcação do dia
das eleições das Assembleias Legislativas Regionais, dissolução dos órgãos de
governo próprio e nomeação e exoneração dos Ministros da República (artigos
133.0, alíneas b) j) e l)) – os respectivos órgãos não fossem ouvidos…
Mesmo quando tenha de ser decretado o estado de sítio ou o estado de emergência
em qualquer das regiões ou em parte delas (artigo 19.º, n.º 2) se as
circunstâncias o permitirem, também os órgãos regionais deverão ser ouvidos.
Todavia, a consulta a que está adstrito o Presidente não pode submeter-se à
mesma disciplina da audição a cargo da Assembleia da República e do Governo. A
Lei n.º 40/96 não se lhe aplica e, a haver normas legais a regulamentá-la elas
deveriam ser pautadas por um elementar princípio de razoabilidade, tendo em
conta as finalidades institucionais e a delicadeza dos actos presidenciais a
praticar:
Assim: 1.º em vez da audição da Assembleia Legislativa e dos Governos
Regionais, órgãos colegiais, audição dos seus presidentes…” (In “Sobre a
audição dos órgãos das regiões autónomas pelos órgãos de soberania”, em “Estudos
em homenagem à Professora Doutora Isabel Magalhães Collaço”, II vol., pág. 785).
E esta concretização não invade a reserva absoluta de competência da Assembleia
da República quando no artigo 164.º, e), da C.R.P., se atribui competência
exclusiva a este órgão para legislar sobre os regimes do estado de sítio e de
emergência, através de lei orgânica (artigo 166.º, n.º 2, da C.R.P.).
Isto porque, conforme resulta do disposto nos artigos 227.º, n.º 1, 228.º, n.º
1, a), 231.º, n.º 7, e 232.º, n.º 3, da C.R.P., existe um conteúdo mínimo
necessário que tem de integrar o corpo normativo do estatuto político das
regiões autónomas.
Assumindo os estatutos a forma de lei estruturante da organização e
funcionamento das colectividades regionais, que assume um papel complementar em
relação à Constituição, à qual está subordinada, compete-lhe, em exclusividade,
além do mais, proceder à definição dos poderes regionais elencados nas
diferentes alíneas do n.º 1, do artigo 227.º, da C.R.P., onde se inclui, como
expressão do princípio da cooperação, o direito das regiões se pronunciarem, sob
consulta dos órgãos de soberania, sobre as questões de competência destes que
lhes digam respeito (alínea v).
Neste poder das regiões, como acima se explicou, está incluído o direito de
serem ouvidas antes da declaração dos estados de excepção limitados ao
território da respectiva região, pelo que constitui matéria de reserva
estatutária a concretização deste direito constitucional.
Respeitando esta matéria, simultaneamente, aos regimes dos estados de excepção e
ao direito de audição das regiões autónomas, verifica-se um conflito de reservas
legislativas. Por um lado, os regimes dos estados de sítio e de emergência
reclamam a intervenção legislativa exclusiva da Assembleia da República, sob a
forma de lei orgânica (artigo 164.º, e), e 166.º, n.º 2, da C.R.P.), mas, por
outro lado, a regulamentação do direito de audição das regiões autónomas, como
expressão do princípio da cooperação entre órgãos de soberania e órgãos de
governo regional, exigem a sua inserção legislativa nos estatutos políticos das
regiões autónomas (artigo 227.º, n.º 1, v), da C.R.P.). Note-se que apesar de
ser a Assembleia da República o órgão competente para aprovar quer a lei
orgânica, quer a lei estatutária, o processo de criação de uma e de outra tem
tantas e tão significativas diferenças, que dificilmente uma norma incluída numa
lei orgânica consegue preencher os requisitos de aprovação duma lei estatutária,
ocorrendo a mesma dificuldade no caso inverso.
O referido conflito de reservas legislativas é de fácil resolução, atenta a
diferente posição hierárquica dos tipos de lei em causa.
Na verdade, apesar de ambas serem leis reforçadas, os estatutos políticos das
regiões autónomas tem uma parametricidade erga omnes, que lhes permite vincular
materialmente qualquer outra lei ordinária do ordenamento português, mesmo
reforçada, nomeadamente as leis orgânicas, conforme reflecte o disposto no
artigo 281.º, nº 1, d), da C.R.P. (vide, neste sentido, BLANCO DE MORAIS, em
“Curso de direito constitucional”, tomo I, pág. 366, FREITAS DA ROCHA, em
“Constituição, ordenamento e conflitos normativos”, pág. 543, da ed. de 2008, da
Coimbra Editora, GOMES CANOTILHO, em “Direito constitucional e teoria da
Constituição”, pág. 781, da 7ª ed., da Almedina, e ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, em
“Comentário à Constituição Portuguesa”, coordenada por Paulo Otero, vol. III, 1º
Tomo, pág. 162, da ed. de 2008, da Almedina).
Como refere Blanco de Morais “é esta singular supra-ordenação que permite
extrair das normas estatutárias, não apenas uma hierarquia material, mas
igualmente uma hierarquia formal que lhe permite, em tese, revogar normas legais
que se insiram no âmbito do seu objecto necessário, seja como disposições
sobreponíveis, seja como disposições subordinadas” (em “Curso de direito
constitucional”, tomo I, pág. 366, da ed. de 2008, da Coimbra Editora).
Perante esta posição privilegiada dos estatutos face às demais leis reforçadas,
incluindo as leis orgânicas, a reserva estatutária deve prevalecer sobre a
reserva de lei orgânica da Assembleia da República, o que implica uma compressão
do âmbito de aplicação do disposto no artigo 164.º, e), da C.R.P., não
abrangendo a reserva aí consagrada matérias também incluídas no conteúdo
obrigatório estatutário.
Por isso, a regulamentação do direito de audição da região autónoma dos Açores
contida no n.º 3, do artigo 114.º, do E.P.A.R.A.A., na versão do Decreto n.º
217/X, também não constitui qualquer violação de reserva de lei orgânica
prevista nos artigos 164.º, e), e 166.º, n.º 2, da C.R.P..
Por estes motivos concluí pela não inconstitucionalidade do referido preceito,
interpretado com o sentido de que o mesmo apenas abrangia os casos de declaração
do estado de sítio e de emergência que tivessem como âmbito geográfico apenas a
região autónoma dos Açores.
Mesmo admitindo como possível a interpretação deste preceito sustentada pela
posição que fez vencimento, a qual tem um sentido que efectivamente escapa à
previsão da tramitação constitucional da declaração dos estados de sítio e de
emergência, não se podendo considerar abrangida pela regra geral de audição
contida no artigo 229.º, n.º 2, da C.R.P., uma vez que esta não abrange os
actos que atingem as regiões autónomas na mesma medida que afectam o restante
território nacional, suscita-se a vexata quaestio (vide, sobre esta questão, RUI
MEDEIROS, em “A decisão de inconstitucionalidade”, pág. 387 e seg., da ed. de
1999, da Universidade Católica, BLANCO DE MORAIS, em “Justiça constitucional”,
tomo II, pág. 322 e seg., JORGE MIRANDA, em “Manual de direito constitucional”,
vol. II, pág. 296-299, e LUÍS NUNES DE ALMEIDA, em “A justiça constitucional no
quadro das funções do Estado vista à luz das espécies, conteúdo e efeitos das
decisões sobre a constitucionalidade das normas jurídicas”, pág. 23-24, da
separata da Revista do Ministério Público, nº 32) de saber qual o juízo de
constitucionalidade que deve ser proferido em sede de fiscalização preventiva de
norma susceptível de diferentes interpretações, com resultados opostos ao nível
da sua conformidade com os parâmetros constitucionais.
Se, em regra, é contraproducente a adopção duma interpretação conforme à
Constituição, uma vez que a decisão de rejeição de inconstitucionalidade não tem
força obrigatória geral, permitindo que a norma venha a vigorar com um sentido
ofensivo das imposições constitucionais, a atenção às particularidades da norma
em causa, nomeadamente as especiais características dos seus destinatários e o
seu modo de aprovação, pode aconselhar, num juízo prudencial, uma opção
diferente, sendo possíveis decisões intermédias, como as decisões
interpretativas de rejeição (v.g. os acórdãos do Tribunal Constitucional nº
108/88, em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 11º vol., pág. 83, e n.º
334/94, no B.M.J. n.º 436, pág. 96).
Neste caso, devido aos destinatários da norma serem uma garantia segura de
consideração do sentido do juízo de constitucionalidade emitido por este
Tribunal, e a aprovação da mesma, por unanimidade, na Assembleia da República,
ser um inequívoco reforço do funcionamento do princípio da presunção da
constitucionalidade das normas (vide sobre a justificação e funcionamento desta
presunção em Victor Ferreres Comella, em “Justicia Constitucional y democracia”,
cap. IV a VI, da 2ª ed., do Centro de Estudios Políticos y Constitucionales),
justifica-se que, mesmo considerando que estamos perante duas interpretações
possíveis do preceito sob fiscalização, se adopte aquela que é conforme à
Constituição, proferindo-se decisão interpretativa de rejeição.
2) As normas do n.º 1, do artigo 45.º, e do n.º 6, do artigo 46º (sobre o
direito de iniciativa referendária regional dos cidadãos)
O n.º 1, do artigo 45.º, do E.P.A.R.A.A., na versão do Decreto n.º 217/X, remete
a regulamentação da iniciativa referendária por grupos de cidadãos eleitores
para os termos e condições do artigo 46.º.
O n.º 6, deste último preceito regula o direito de iniciativa referendária
regional pelos cidadãos, impondo que a anteproposta de referendo regional seja
subscrita por um mínimo de 3000 cidadãos eleitores recenseados no território da
região.
A posição que fez vencimento considerou que esta norma estatutária violava o
princípio de reserva absoluta da Assembleia da República, sob forma de lei
orgânica, nos termos do artigo 164.º, b), e 166.º, n.º 2, da C.R.P., o que
determinou também a inconstitucionalidade do n.º 1, do artigo 45.º, na parte em
que para ela remetia.
Mesmo não discutindo se todo o regime do referendo regional é ou não matéria de
reserva estatutária, o que, na hipótese afirmativa, conduziria desde logo a uma
compressão do disposto na alínea 164.º, b), e 166.º, n.º 2, da C.R.P., de forma
a excluir do seu âmbito o regime dos referendos regionais, a reafirmação das
razões acima expostas para a defesa da não inconstitucionalidade da previsão
estatutária da audição dos Presidentes da Assembleia Legislativa e do Governo
Regional sobre a declaração dos estados de excepção, conduzem a igual solução
nesta questão.
Na verdade, também aqui a matéria incluída no n.º 6, do artigo 146.º, do
E.P.A.R.A.A., na versão do Decreto n.º 217/X, que regula a pré-iniciativa
referendária impulsionada pelos cidadãos, respeita, por um lado, ao regime dos
referendos, e por outro lado, ao regime de funcionamento dos órgãos de governo
regional (a Assembleia Legislativa).
Ora, enquanto a legislação relativa ao regime dos referendos só pode constar de
lei orgânica aprovada pela Assembleia da República (artigo 164º, b), e 166.º,
n.º 2, da C.R.P.), a organização e funcionamento dos órgãos de governo
regional, deve constar obrigatoriamente do estatuto político da região (vide,
neste último sentido BLANCO DE MORAIS, em “Curso de direito constitucional”,
tomo I, pág. 358-359, FREITAS DA ROCHA, em “Constituição, ordenamento e
conflitos normativos”, pág. 542, da ed. de 2008, da Coimbra Editora, JORGE
MIRANDA, em “Manual de direito constitucional”, vol. V, pág. 372, da 3ª ed. da
Coimbra Editora, e RUI MEDEIROS, TIAGO FREITAS e RUI LANCEIRO, em “Enquadramento
da reforma do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores”,
pág. 30-34, da ed. de 2006, policopiada).
Estamos novamente perante matéria sob dupla reserva, em que o respectivo
conflito deve ser solucionado pelas razões já acima explicitadas, pela
prevalência da reserva estatutária, com a consequente restrição do âmbito da
reserva de lei orgânica da Assembleia da República, em matéria de referendos.
Por isso a regulamentação do direito de iniciativa referendária regional pelos
cidadãos contida no n.º 6, do artigo 46.º, do E.P.A.R.A.A., na versão do Decreto
n.º 217/X, não constitui qualquer violação de reserva de lei orgânica prevista
nos artigos 164.º, b), e 166.º, n.º 2, da C.R.P., o que também afasta de
qualquer juízo de inconstitucionalidade o disposto no n.º 1, do artigo 45.º, do
mesmo diploma
Por estes motivos também, contrariamente à opinião que fez vencimento, concluí
pela não inconstitucionalidade dos referidos preceitos.
João Cura Mariano
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Vencido quanto à pronúncia pela não inconstitucionalidade da
norma do n.º 3 do artigo 47.º do Estatuto aprovado pelo Decreto em apreciação,
não acompanhando a alínea l) da decisão, em síntese, pelo seguinte:
Interpreto o artigo 226.º em conjugação com o n.º 3 do artigo 116.º
da Constituição como não consentindo que os estatutos político-administrativos
das regiões autónomas se dêem a si próprios, ou à lei eleitoral para as
respectivas assembleias legislativas, o agravamento da rigidez que resulta da
norma em causa.
Afigura-se-me incongruente com a importância nuclear do
procedimento estatutário na concreta configuração da autonomia
político-administrativa das regiões autónomas não considerar sob reserva de
Constituição um aspecto fulcral, que emerge no problema da revisão das leis
estatutárias, como é o afastamento da regra geral da vida política democrática
de que a vontade dos órgãos colegiais se determina à pluralidade de votos, pela
regra da maioria simples. A determinação da maioria necessária para aprovação
dos projectos de Estatuto é um elemento de configuração intrínseca do momento
impulsivo do procedimento estatutário, de que os parlamentos regionais detêm o
monopólio, pelo que é matéria da regulação constitucional desse procedimento
concertado e não das (de cada uma das) leis estatutárias. Não se trata aqui,
somente, de disciplinar as maiorias exigidas nas votações das assembleias
legislativas das regiões autónomas, mas de condicionar o iter procedimental da
iniciativa da reforma estatutária ou da elaboração e revisão da lei eleitoral
que a Constituição directamente regula, exercendo as assembleias legislativas
das regiões autónomas uma competência que não pode ser legalmente conformada no
que possa ser determinante para a emergência do concurso da “vontade da
República” (momento deliberativo) e da “vontade regional” (momento impulsivo)
desse procedimento legislativo complexo.
Sem deter poderes constituintes, ao estabelecer esta maioria agravada, a
Assembleia da República modificou um elemento substancial do procedimento de
revisão do Estatuto, dificultando o livre jogo das alternativas políticas
futuras e exacerbando o risco de necessidade de remédios extra-sistémicos para
situações de bloqueio de iniciativa de revisão das leis em causa. As estimáveis
razões de “dignificação do papel central das populações insulares” na elaboração
do Estatuto e da lei eleitoral, que podem ser aduzidas a favor do
estabelecimento da maioria agravada na deliberação dos parlamentos regionais em
tais matérias, só podem ser acolhidas, ponderadas as suas vantagens e
desvantagens (e, eventualmente, os remédios adequados à solução adoptada), no
momento da revisão constitucional.
Aliás, é sumamente duvidoso que os estatutos possam dar-se regras (inovatórias)
sobre aspectos essenciais da sua própria revisão, matéria que transcende a
definição dos esquemas organizatórios fundamentais das regiões autónomas e a
regulação jurídica do exercício dos poderes regionais, sob pena de transformar a
'função estatutária' num apócrifo poder 'constituinte'.
Em conclusão, considero que o Tribunal deveria pronunciar-se pela
inconstitucionalidade da norma em causa, por violação das disposições conjugadas
dos n.ºs 1 e 4 do artigo 226.º e do n.º 3 do artigo 116.º da Constituição.
2. Declaro que, embora acompanhando a decisão e o essencial da
fundamentação respeitante à inconstitucionalidade da norma do n.º 6 do artigo
46.º do Estatuto (n.º 18 do acórdão), mantenho o entendimento que manifestei no
“voto de vencido” a que o acórdão faz referência quanto à proibição (também) de
inclusão em acto normativo que revista a forma de lei orgânica (ou em acto
legislativo de valor reforçado pelo procedimento) de matéria de lei comum. Não
se tornam aqui necessários maiores desenvolvimentos uma vez que a correspondente
passagem do acórdão surge, num compreensível encadeamento discursivo, apenas
para acentuar a distinção entre a situação agora contemplada e aquela outra
versada no acórdão n.º 428/2005, antes de entrar na razão determinante da
pronúncia pela inconstitucionalidade da norma em consideração, com que concordo.
Vítor Gomes