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Processo n.º 546/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. instaurou acção de despejo contra B., L.da, pedindo a
declaração da resolução do contrato de arrendamento relativo à loja do prédio
sito na Rua …, n.º..‑.., em Lisboa, e a condenação da ré na entrega do local à
autora, livre de pessoas e bens, e no pagamento das rendas vencidas e vincendas
até à efectivação dessa entrega. Alegou, em síntese, que a ré, locatária da
referida loja, celebrou, em 1 de Maio de 2003, com C. e D. um contrato,
denominado de cessão de exploração, por via do qual eles passariam a explorar
por sua conta o estabelecimento comercial aí instalado, pelo prazo de 12 meses,
renovável por iguais e sucessivos períodos, mediante o pagamento da quantia
mensal de € 650,00, actualizável anualmente, mas fê‑lo sem pedir autorização à
senhoria e também sem fazer a comunicação legal referida no artigo 1038.º,
alínea g), do Código Civil, que impõe ao locatário a obrigação de “comunicar ao
locador, dentro de quinze dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos
referidos títulos quando permitida ou autorizada”, resultando da precedente
alínea f) a obrigação de o locatário “não proporcionar o gozo total ou parcial
da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica,
sublocação ou comodato, excepto se a lei o permitir ou o locador o autorizar”.
Por despacho saneador do 7.º Juízo Cível da Comarca de
Lisboa, de 13 de Abril de 2007, o pedido de resolução do contrato de
arrendamento foi julgado improcedente por se haver entendido que a ré não estava
obrigada a pedir autorização à autora para celebrar tal contrato nem tinha de
proceder à comunicação a que se reporta a alínea g) do artigo 1038.º do Código
Civil, pelo que da omissão desses actos não resultava a possibilidade de
resolução do contrato de arrendamento. Após recordar que, nos termos do n.º 1 do
artigo 111.º do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto‑Lei
n.º 321‑B/90, de 15 de Outubro, “não é havido como arrendamento do prédio urbano
(…) o contrato pelo qual alguém transfere temporária e onerosamente para outrem,
juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial
(...) nele instalado”, o despacho saneador desenvolveu a seguinte argumentação:
“O referido contrato é um contrato atípico ou inominado, que não se
identifica nem com o arrendamento, nem com o trespasse e cujo regime jurídico
não se encontra expresso na lei.
O que há de característico em tal contrato não é a cedência da
fruição do imóvel nem a do gozo do mobiliário ou do recheio que nele se
encontra, mas a cedência temporária do estabelecimento como um todo, uma
universalidade, uma unidade económica mais ou menos complexa.
Através desse contrato não se dá a transmissão do direito ao
arrendamento, não envolvendo o mesmo a transferência definitiva do
estabelecimento nem sequer a transferência do arrendamento sobre o imóvel, como
sucede no trespasse, já que o cedente conserva a titularidade da relação
locatícia.
Nesse contrato, o negócio não incide directamente sobre o prédio,
sendo este apenas um dos elementos do estabelecimento comercial propriamente
dito, não ocorrendo consequentemente uma transmissão do arrendamento, sendo o
cedente quem perante o senhorio continua a responder, como locatário, perante
qualquer violação contratual que seja fundamento de resolução.
Como sustenta a ré, decorre de todo o exposto que a lei exclui o
mencionado contrato de cessão de exploração do âmbito do contrato de locação,
sujeitando‑o ao princípio da liberdade contratual (a este propósito, vide, por
todos, a posição do Ex.mo Juiz Conselheiro Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7.ª
edição, Livraria Almedina, pág. 647 e seguintes).
A este propósito também já o Tribunal Constitucional se pronunciou
no Acórdão n.º 289/99, de 12 de Maio (DR, II Série, de 14 de Julho de 1999), e
no Acórdão n.º 77/2001, de 14 de Fevereiro (DR, II Série, de 26 de Março de
2001), no sentido de que a falta de comunicação ou de autorização do senhorio a
que aludem as alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código Civil, estando em causa
a cessão de exploração do estabelecimento, não é contrária à Constituição,
antes compatibilizando o eventual conflito dos direitos que se consagram nos
artigos 61.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, do diploma fundamental, e não constituindo
fundamento para a resolução do contrato (vide também obra citada, pág. 648).
Assim, sendo certo que o contrato que a ora ré celebrou com C. e D.
foi um contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial, conclui‑se
que a pretensão da autora não pode proceder, porquanto a ré não estava obrigada
a pedir autorização à autora para celebrar tal contrato nem tinha que proceder à
comunicação a que se reporta a alínea g) do artigo 1038.º do Código Civil, pelo
que não se verifica existir qualquer fundamento para a resolução do contrato de
arrendamento existente entre autora e ré.”
Contra esta decisão apelou a autora para o Tribunal da
Relação de Lisboa, sustentando, em suma, que a comunicação ao locador da cessão
de exploração pelo locatário é obrigatória, nos termos do artigo 1038.º, alínea
g), do Código Civil, e tinha de ser feita no prazo de 15 dias a contar da
respectiva escritura, resultando da falta dessa comunicação a ineficácia da
cessão em relação ao senhorio e fundamento de resolução do contrato de
arrendamento.
A ré apelada contra‑alegou, sustentado a confirmação da
decisão recorrida e logo aduzindo que “a interpretação do teor das alíneas f) e
g) do artigo 1038.º do Código Civil no sentido de que a cessão de exploração de
estabelecimento comercial instalado em prédio arrendado em termos de a sua
validade estar condicionada à prévia autorização do senhorio e de o arrendatário
estar sujeito ao dever de comunicação ao senhorio após a sua realização,
constituindo qualquer dessas faltas fundamento de despejo previsto na alínea f)
do n.º 1 do artigo 64.º do RAU, como o faz a recorrente, constitui
inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade, que
aqui desde já se invoca para os devidos e legais efeitos, uma vez que pelos
atrás referidos acórdãos do Tribunal Constitucional [Acórdãos n.ºs 289/99 e
77/2001] ficou assente que a cessão de exploração de estabelecimento comercial
não é contrária à Constituição, antes compatibilizando o eventual conflito dos
direitos que se consagram nos artigos 61.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, da CRP, e não
constituindo fundamento para a resolução do contrato de arrendamento”.
Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22 de
Abril de 2008, foi julgada procedente a apelação da autora, revogada a decisão
apelada, declarado resolvido o contrato de arrendamento e condenada a ré na
entrega do locado, livre de pessoas e bens, e no pagamento da quantia de €
132,50 por cada mês que decorrer até essa efectiva entrega. Para alcançar essa
solução, o referido acórdão desenvolveu a seguinte fundamentação:
“4.2. O inquilino está ou não obrigado a notificar ao senhorio a
cessão de exploração do locado, no prazo de 15 dias contados a partir da data
da celebração desse contrato?
4.2.1. A questão que aqui cumpre dirimir – e que se consubstancia na
interpretação do estatuído na alínea g) do artigo 1038.º do Código Civil («São
obrigações do locatário: …. comunicar ao locador, dentro de 15 dias, a cedência
do gozo da coisa por algum dos referidos títulos, quando permitida ou
autorizada» – sendo esses «títulos» os enunciados na alínea f) desse mesmo
normativo) – originou jurisprudência e doutrina não só diversa mas
diametralmente oposta.
O que será, talvez, pouco agradável tendo em conta a previsão do n.º
3 do artigo 8.º do Código Civil e a necessidade de garantir à comunidade a
segurança e certeza jurídicas pelas quais esta tanto anseia.
Porém, a verdade é que os princípios interpretativos estabelecidos
pelo legislador nos três números do artigo 9.º do aludido Código permitem essas
divergências desde que a interpretação proposta tenha na letra da lei um mínimo
de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expressa (n.º 2).
Ainda assim, esse não é o único critério a atender, pois o julgador
terá sempre que ter em conta as condições específicas do tempo em que a norma
jurídica está a ser aplicada (n.º 1) e que presumir que o legislador consagrou
as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos
adequados (n.º 3, cabendo acrescentar que por soluções acertadas se deve
entender aquelas que são eticamente conformes à hierarquia de valores que
estrutura e dá consistência ao tecido social comunitário, ou, mais simplesmente,
as que cabem nos limites da boa fé, dos bons costumes e do fim económico e
social do direito – artigo 334.º do Código Civil).
Mas, repete‑se, essas regras não são entendidas de um modo uniforme
e, por isso, são tão diversamente aplicadas – daí a necessidade dos acórdãos
para uniformização de jurisprudência (artigos 732.º‑A e 732.º‑B do CPC).
4.2.2. Só que a tudo isto acresce que, como avisava Marco Túlio
Cícero no século I AC, o tempora o mores, e, sopesando bem todas as
consequências sociais que resultaram da predominância dada, durante décadas, aos
interesses dos inquilinos sobre os dos senhorios, a comunidade começou a
inverter esse seu entendimento e essa sua prática – e, em boa verdade, esse
predomínio, no caso dos arrendamentos para fins comerciais e industriais, dada a
concreta natureza dos interesses em colisão, não é nem ética nem
sociologicamente sustentável (v. artigos 334.º e 335.º do Código Civil,
especialmente este último).
O NRAU – que consubstancia o mais recente (actual) pensamento
legislativo – e, em particular, a nova redacção dada ao n.º 2 do artigo 1109.º
do Código Civil, é disso um sinal evidente, um sinal que o julgador não pode
ignorar, nomeadamente porque tem como função social e institucional administrar
a justiça em nome do povo (n.º 1 do artigo 202.º da Constituição da República).
Em termos puros e simples, quando estão em causa arrendamentos para
fins comerciais e industriais, passou a considerar‑se que não podem suscitar‑se
dúvidas quanto à existência de um efectivo dever de informação do inquilino ao
senhorio quanto às exactas condições em que o espaço locado está a ser usado
(isto exactamente porque o cedente não perde a qualidade de arrendatário, ao
contrário do que acontece com o trespassante).
4.2.3. Não se ignora, portanto, a opinião jurídica do falecido
Conselheiro Aragão Seia – ou a jurisprudência do Tribunal Constitucional
igualmente citada na sentença que agora se sindica – mas é igualmente inequívoco
que os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça mais recentes (inter alia, todos
in www.dgsi.pt/jstj, acórdãos de 9 de Outubro de 2006 – relator Faria Antunes, e
de 10 de Julho de 2007 – relator Salvador da Costa) propõem já a solução
jurídica que veio a ser consagrada nesse novo artigo 1109.º do Código Civil, a
saber: que nos casos de celebração, pelos arrendatários, de contratos de cessão
de exploração, é obrigatória a comunicação de tais acordos aos senhorios, no
prazo de 15 dias, sob pena de permitir a estes últimos peticionar em juízo a
resolução dos contratos de arrendamento firmados com tais inquilinos – que como
tal permanecem não obstante o novo contrato – e o consequente despejo desses
locados.
E o supra transcrito texto do artigo 1038.º, que é o aplicável à
situação sub judice (artigo 12.º do Código Civil), permitia e permite essa
interpretação, totalmente conforme às regras enunciadas no artigo 9.º daquele
Código.
4.2.4. E porque assim é, não pode manter‑se a decisão recorrida,
antes havendo que julgar procedentes as conclusões das alegações do recurso
intentado pela ora apelante, e, por essa razão, com o que se revoga a sentença
proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, declarar resolvido o contrato de
arrendamento relativo à loja do prédio urbano sito na Rua Cesário Verde, n.º
3‑C, em Lisboa, inscrito na matriz da freguesia de Penha de França sob o artigo
515, e condenar a ré a entregar imediatamente essa loja à autora, livre de
pessoas e bens, bem como a pagar a esta demandante a quantia de € 132,50 por
cada mês que decorrer até à entrega efectiva do locado.”
Notificada deste acórdão, a ré apelada, ora recorrente,
veio do mesmo interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da “interpretação
adoptada na decisão recorrida segundo a qual a cessão de exploração (ou
locação) de estabelecimento comercial instalado em prédio arrendado se encontra
abrangida na hipótese das referidas alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código
Civil, em termos de a sua validade estar sujeita ao dever de comunicação ao
senhorio após a sua realização, pelo que a falta dessa comunicação constituía
fundamento de despejo previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 64.º do RAU (já
que os factos ocorreram no âmbito da lei antiga – RAU), interpretação essa que é
manifestamente violadora do princípio da igualdade – como, aliás, já
anteriormente se alegara – atentas as anteriores decisões proferidas no âmbito
da mesma legislação pelo douto Tribunal Constitucional nos seus Acórdãos n.ºs
289/99, de 12 de Maio, e 77/2001, de 14 de Fevereiro, já referidos, assim
compatibilizando o conflito de direitos que se consagrou nos artigos 61.º, n.º
1, [e 62.º, n.º 1,] da Constituição da República Portuguesa”.
Neste Tribunal, a recorrente apresentou alegações,
concluindo:
“1. A interpretação das normas constantes das alíneas f) e g) do
artigo 1038.º do Código Civil no sentido de que na cessão de exploração
comercial (ou locação de estabelecimento) a sua validade está sujeita ao dever
de comunicação ao senhorio, após a sua realização, pelo que a falta dessa
comunicação constitui fundamento para despejo ao abrigo do disposto na alínea f)
[do n.º 1] do artigo 64.º do RAU, é manifestamente violadora do disposto no
artigo 61.º da CRP e do principio da igualdade, atentas as anteriores decisões
proferidas no âmbito dessa mesma legislação por este mesmo douto Tribunal, por
seus doutos Acórdãos n.ºs [289]/99, de 12 de Maio, e 77/2001, de 14 de
Fevereiro.
2. Os factos a que se refere a presente acção reportam-se ao ano de
2004, sendo certo que o contrato de cessão de exploração tem a data de 1 de Maio
de 2003 e a contestação da acção foi apresentada em 20 de Fevereiro de 2004.
3. A legislação nova a que os M.mos Juízes Desembargadores se
reportam – NRAU, Lei n.º 6/2006 – entrou em vigor apenas em Fevereiro de 2006
e, nos termos da aplicação das leis no tempo, não é claramente aplicável aos
factos ocorridos antes da sua entrada em vigor, nem expectável que as partes
regulem os seus comportamentos à luz de uma lei futura.
4. O tratamento de situações como as que decorreram no âmbito dos
processos cujos acórdãos atrás referirmos aconselha a que a decisão de
considerar dispensável essa notificação prevista nas alíneas f) e g) do artigo
1038.º do Código Civil se mantenha, a fim de que factos idênticos, processados
em períodos de vigência de uma idêntica legislação, não sejam tratados de forma
desigual.
5. Decorre de todo o exposto que a interpretação dada em
conformidade com o explanado no ponto 1 destas alegações é inconstitucional,
violando quer o disposto no artigo 61.º, n.º 1, da CRP, quer ainda o princípio
da igualdade.
Nestes termos e nos mais do direito aplicável, deve ser concedido
provimento ao presente recurso, e, em face disso, deve este Venerando Tribunal
proferir um juízo de inconstitucionalidade da interpretação dada pelo Tribunal
a quo às normas contidas nas alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código Civil,
com a redacção ocorrida ao tempo da vigência do RAU (2004), no sentido de que a
falta de comunicação aí prevista constituía no caso de cessão ou locação de
estabelecimento fundamento de despejo previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo
64.º do RAU, pois só assim se fará Justiça!”
A autora apelante, ora recorrida, contra‑alegou,
propugnando a improcedência do recurso.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. A fim de definir, com precisão, o objecto do
presente recurso, cumpre salientar que, como resulta do precedente relatório, a
autora, tendo inicialmente fundado o pedido de resolução do contrato de
arrendamento quer na omissão do pedido de autorização para a celebração do
contrato de cessão de exploração do estabelecimento, quer na omissão da
comunicação da celebração desse contrato, veio, na apelação por ela interposta,
a cingir o fundamento do pedido a esta última causa.
Por outro lado, embora a discussão travada nos autos
pelas partes se tenha centrado no reconhecimento, ou não, da consagração legal
desse dever de comunicação e na constitucionalidade dessa exigência, a sua
relevância jurídico‑prática sempre esteve associada à consequência que, a vingar
a tese da existência do dever de comunicação, derivava da sua violação: o
reconhecimento do direito de o senhorio resolver o contrato de arrendamento com
o fundamento previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 64.º do RAU [“1. O
senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário: (…) f) Subarrendar ou
emprestar, total ou parcialmente, o prédio arrendado, ou ceder a sua posição
contratual, nos casos em que estes actos são ilícitos, inválidos por falta de
forma ou ineficazes em relação ao senhorio, salvo o disposto no artigo 1049.º
do Código Civil; (…)”].
Constitui, assim, objecto do presente recurso a questão
da constitucionalidade da norma, extraída da conjugação dos artigos 64.º, n.º 1,
alínea f), do RAU e 1038.º, alíneas f) e g), do Código Civil, interpretados no
sentido de que constitui fundamento de resolução do contrato de arrendamento a
falta de comunicação do locatário ao locador da celebração de um contrato de
cessão de exploração do estabelecimento comercial sito no prédio arrendado.
2.2. O n.º 1 do artigo 1085.º do Código Civil dispunha –
regra que foi transferida para o artigo 111.º, n.º 1, do RAU – que não era
havido como arrendamento a cessão de exploração de estabelecimento comercial [ou
“locação de estabelecimento”, designação que o legislador por vezes utilizara no
passado (cf., designadamente, os artigos 1682.º‑A, n.º 1, alínea b), do Código
Civil, aditado pelo Decreto‑Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, 246.º, n.º 2,
alínea c), do Código das Sociedades Comerciais, e 80.º, n.º 2, alínea m), do
Código do Notariado, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto, na
redacção do Decreto‑Lei n.º 40/96, de 7 de Maio) e que veio a consagrar no
artigo 1109.º do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 6/2006, de 27 de
Fevereiro (que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano – NRAU)], entendida
como o contrato pelo qual se transfere temporária e onerosamente, para outrem,
juntamente com o gozo do prédio [prédio arrendado, entenda‑se, já que se o
cedente do estabelecimento for simultaneamente proprietário do prédio estaremos
na presença de um contrato misto de arrendamento para comércio e de locação de
estabelecimento – cf. Manuel Henrique Mesquita, Revista de Legislação e de
Jurisprudência, ano 129.º, pp. 79‑80], exploração de um estabelecimento
comercial ou industrial nele instalado. Essa explicitação legal do afastamento
da equiparação a arrendamento visou primacialmente não submeter a cessão da
exploração de estabelecimento comercial (em prédio arrendado) às regras
específicas do contrato de arrendamento, designadamente a regra vinculística da
renovação obrigatória, antes valendo quanto a ela as regras comuns da liberdade
contratual (cf. Jorge Alberto Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7.ª edição,
Coimbra, 2003, pp. 644 e seguintes).
Face ao teor das alíneas f) e g) do artigo 1038.º do
Código Civil – que se mantém inalterado desde a versão originária desse diploma
–, verificou‑se persistente divergência doutrinal e jurisprudencial quanto à
questão de saber se sobre o locatário incide quer o dever de obter autorização
do locador para a celebração de contrato de cessão de exploração de
estabelecimento comercial a funcionar no prédio locado, quer o dever de
comunicar ao locador essa cessão, ou apenas o dever de efectuar esta
comunicação, ou nenhum desses deveres.
A tese da inexistência dos deveres de obtenção de
autorização do locador para a celebração do contrato de cessão de exploração de
estabelecimento comercial e de comunicação da efectiva celebração de tal
contrato assentava desde logo, quanto ao primeiro dever, num argumento de
maioria ou paridade de razão extraído da expressa determinação legal (cf.
artigo 1118.º, n.º 1, do Código Civil, substituído pelo artigo 115.º, n.º 1, do
RAU) da desnecessidade de autorização para a celebração de trespasse, sendo
certo que enquanto no trespasse ocorre transferência definitiva da titularidade
do estabelecimento, a cessão de exploração transfere pro tempore a mera fruição
do estabelecimento (cf., nesse sentido, ainda perante a legislação anterior ao
Código Civil, Orlando de Carvalho, Critério e Estrutura do Estabelecimento
Comercial, I – O Problema da Empresa como Objecto de Negócios, Coimbra, 1967, p.
603; e, já na vigência do Código Civil, Rui de Alarcão, “Sobre a transferência
da posição do arrendatário no caso de trespasse”, Boletim da Faculdade de
Direito, vol. XLVII, 1971, pp. 21‑54, em especial p. 27, nota 12, F. M. Pereira
Coelho, Arrendamento, Coimbra, 1984, p. 204, nota 1, e Paulo de Tarso
Domingues, “A locação de empresa”, Revista de Direito e Economia, anos XVI a
XIX, 1990‑1993, pp. 539‑566, em especial pp. 559‑566; em sentido oposto,
entendendo que, face ao silêncio do artigo 1085.º do Código Civil (ou artigo
111.º do RAU) quanto à possibilidade de cessão da exploração sem necessidade de
autorização do senhorio, em contraste com a expressa dispensa dessa
autorização para o trespasse, constante do artigo 1118.º (artigo 115.º do RAU),
não haveria lugar à aplicação analógica desta última norma, mantendo aplicação
as regras gerais da locação, carecendo a cessão de exploração de
estabelecimento de autorização e comunicação ao senhorio, cf. Fernando Andrade
Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3.ª
edição, Coimbra, 1986, pp. 532‑533, anotação 7 ao artigo 1085.º, e Pedro Romano
Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial) – Contratos, 2.ª edição,
Coimbra, 2001, p. 294).
Por outro lado, a negação da existência de qualquer dos
dois referidos deveres era derivada da constatação de que do contrato de cessão
da exploração de estabelecimento comercial não resultava qualquer cessão de
posição contratual (o locatário cedente da exploração do estabelecimento
continuava a ser a contraparte do locador no contrato de arrendamento), nem
sublocação, nem comodato, pelo que não se verificava nenhuma das três situações
em que (taxativamente) a alínea f) do artigo 1038.º do Código Civil condicionava
a possibilidade de o locatário proporcionar a outrem o gozo da coisa à obtenção
de prévia autorização do locador, nem, consequentemente, nenhuma das situações
em que, nos termos da subsequente alínea g), estava obrigado a comunicar a
cedência da coisa por algum dos “referidos títulos” (cessão da posição
contratual, sublocação ou comodato): neste sentido, Aragão Seia, obra citada,
pp. 647‑648.
Uma terceira via, considerando não exigida a autorização
do locador, mas devida a comunicação da cessão – por imprescindível para
possibilitar ao senhorio a fiscalização do negócio realizado, designadamente
para, nos termos do n.º 2 do artigo 111.º, apurar se terá ocorrido alguma das
circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 115.º (que determina não haver
trespasse quando a transmissão não for acompanhada de transferência, em
conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que
integram o estabelecimento, ou quando, transmitido o gozo do prédio, passe a
exercer‑se nele outro ramo de comércio ou indústria ou quando, de um modo geral,
lhe seja dado outro destino), hipótese em que o contrato passa a ser havido
como arrendamento do prédio –, tem sido defendida, na doutrina, entre outros,
por M. Januário da Costa Gomes, Arrendamentos Comerciais, 2.ª edição, Coimbra,
1991, pp. 76‑77; Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, Manual do Arrendamento
Urbano, 3.ª edição, Coimbra, 2001, pp. 611‑618; António Pais de Sousa, Anotações
ao Regime do Arrendamento Urbano, 6.ª edição, Lisboa, 2001, p. 212; Jorge Manuel
Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2003,
pp. 310‑319; cf., por último, a anotação de Fernando de Gravato Morais ao
acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 17 de Junho de 2004, P. 1092/04
(“Comunicação da cedência do gozo do imóvel ao senhorio no caso de locação de
estabelecimento”, Cadernos de Direito Privado, n.º 10, Abril/Junho 2005, pp.
60‑68), constando, quer do acórdão quer da anotação, desenvolvidas referências
às posições doutrinais e jurisprudenciais que têm subscrito cada uma das três
teses em presença, referências para as quais se remete (apenas se aditando a
menção aos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Outubro de 2006, P.
06A2463, de 14 de Outubro de 2006, P. 06A2756, e de 10 de Julho de 2007, P.
07B2409, com texto integral disponível em www.dgsi.pt/jstj).
Como é sabido, a aludida controvérsia doutrinal e
jurisprudencial veio a ser resolvida pela Lei n.º 6/2006, na redacção dada ao
n.º 2 do novo artigo 1109.º do Código Civil, que, sob a epígrafe Locação de
estabelecimento, e inserido na Subsecção VIII – Disposições especiais do
arrendamento para fins não habitacionais, dispõe:
“1 – A transferência temporária e onerosa do gozo de um prédio ou de
parte dele, em conjunto com a exploração de um estabelecimento comercial ou
industrial nele instalado, rege‑se pelas normas da presente subsecção, com as
necessárias adaptações.
2 – A transferência temporária e onerosa de estabelecimento
instalado em local arrendado não carece de autorização do senhorio, mas deve
ser‑lhe comunicada no prazo de um mês.”
Trata‑se, porém, de normação inaplicável ao caso dos
autos, em que o contrato de cessão do estabelecimento comercial foi celebrado em
1 de Maio de 2003, tendo a presente acção sido instaurada em 26 de Janeiro de
2004.
2.3. No Acórdão n.º 289/99 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 43.º vol., p. 547), este Tribunal – em recurso interposto do
acórdão do STJ, de 19 de Março de 1998, que confirmara a improcedência de acção
de resolução de contrato de arrendamento comercial fundada na falta de pedido de
autorização e na falta de comunicação, por parte do locatário, de cedência de
exploração de estabelecimento comercial instalado no prédio locado – não julgou
inconstitucionais as normas das alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código
Civil, quando interpretadas no sentido de que a falta de comunicação ou de
autorização do senhorio não constituem fundamento para resolução do contrato de
arrendamento, estando em causa a cessão de exploração do estabelecimento.
Para atingir esta conclusão, desenvolveu‑se a seguinte
fundamentação:
“II – 1. Segundo o disposto nas alíneas f) e g) do artigo 1038.º do
Código Civil, são obrigações do locatário [n]ão proporcionar a outrem o gozo
total ou parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição
jurídica, sublocação ou comodato, excepto se a lei o permitir ou o locador o
autorizar, e [c]omunicar ao locador, dentro de quinze dias, a cedência do gozo
da coisa por algum dos referidos títulos, quando permitida ou autorizada.
A decisão sob censura qualificou o negócio jurídico celebrado entre
o réu e mulher e a sociedade Álvaro Pinto Correia & Filhos, L.da, como um
contrato de cessão de exploração comercial, concluindo seguidamente que da mesma
se não «justificaria, nem autorização nem levar ao conhecimento do senhorio».
Significa isto, pois, que o acórdão impugnado veio interpretar
aquelas alíneas de sorte a que a cessão de exploração de um estabelecimento
comercial, levada a efeito pelo detentor desse estabelecimento, que arrendou
determinado local para a sua instalação, não está dependente de prévia
autorização do senhorio e comunicação ao mesmo da realização desse negócio.
E é esta interpretação que as recorrentes, por intermédio do
vertente recurso, impugnam do ponto de vista da sua validade constitucional,
pois que, na sua óptica, ela violaria o que se dispõe no n.º 1 do artigo 62.º da
Lei Fundamental.
Dispõe‑se neste preceito constitucional que [a] todos é garantido o
direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos
termos da Constituição.
E é essa garantia que as recorrentes consideram violada com a
interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça fez da norma constante da
alínea g) do artigo 1038.º do Código Civil, ao nela se não abranger, no
conceito de cessão onerosa ou gratuita da posição jurídica do arrendatário a
cessão de exploração do estabelecimento comercial ou industrial instalado na
coisa locada.
No aresto ora impugnado foi sublinhado que «em nada foi afectada a
posição contratual das senhorias» porquanto «(c)ontinua a ser o mesmo, o
arrendatário» e a transferência «incidiu, directamente, sobre o estabelecimento
comercial do réu, só abrangendo, digamos indirectamente, bens nele porventura
existentes e o arrendamento».
2. De acordo com a noção legal, o arrendamento urbano é o contrato
pelo qual uma das partes concede à outra o gozo temporário de um prédio urbano,
no todo ou em parte, mediante retribuição (cf. artigo 1.º do Regime do
Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 321‑B/90, de 15 de Outubro).
A natureza jurídica do direito do arrendatário tem sido objecto de
controvérsia na doutrina portuguesa.
Autores como Paulo Cunha, Luís Pinto Coelho, Dias Marques, Oliveira
Ascensão e Menezes Cordeiro podem ser apontados como defensores da tese da
realidade do direito de locatário, enquanto que outros, como Inocêncio Galvão
Teles, Pinto Loureiro, Gomes da Silva, Pires de Lima, Manuel Henrique Mesquita,
Adriano Vaz Serra, João de Matos, Cunha e Sá, Rodrigues Bastos, Pereira Coelho,
Manuel Januário Gomes, Antunes Varela e António Santos Lessa se postam como
sustentando aquilo que, comummente, se designa por concepção personalista (cf.
Jorge Pinto Furtado, in Manual do Arrendamento Urbano, 1996, pp. 52 e 53, nota
64).
A mais impressiva (e, quiçá maioritária) jurisprudência, por seu
turno, tem, nos feitos à mesma submetidos, optado por aquilo que se pode
desenhar como seguindo uma perspectiva iluminada pela tese personalista do
direito do locatário.
Como é sabido, esteia‑se esta tese na circunstância de o Código
Civil parecer, na noção contida no seu artigo 1022.º, «reflectir ... a imagem
tradicional da locação como contrato obrigacional e não real», o que é
transponível para a noção utilizada no artigo 1.º do RAU (cf. António Pais de
Sousa, Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano, 4.ª edição, p. 56).
Em abono da defesa do arrendamento como um direito real, não poderá
deixar de citar‑se José de Oliveira Ascensão (Direito Civil – Reais, 4.ª edição
refundida, p. 471), que ensina que o «direito de arrendamento é inerente ao
prédio e atribui o aproveitamento deste», pelo que, «[e]m consequência, não é
atingido por quaisquer transmissões, em vida ou por morte, do direito
concorrente que limita», defendendo que «[e]ste princípio vem hoje estabelecido
em geral para a locação do artigo 1057.º».
Por outro lado, Manuel Henrique Mesquita (Obrigações
Reais e Ónus Reais, 1990, p. 176) escreve:
«[…] as manifestações normativas da realidade apenas se verificam
após a efectivação da relação de uso ou fruição da coisa locada – e a relação
jurídica locativa, conforme vimos, nasce por mero efeito do contrato de locação,
não pressupondo, por conseguinte, a entrega da coisa ao locatário. Em segundo
lugar, porque, mesmo depois de instaurada a relação de uso ou fruição, a
posição jurídica do locatário continua a ser disciplinada, quanto a alguns dos
seus efeitos ou vicissitudes, em função e à luz de uma relação intersubjectiva
estabelecida entre ele e o locador, consubstanciada no contrato locativo. O
direito do locatário não chega a autonomizar‑se da sua matriz contratual, sendo
disciplinado pela lei, não apenas no seu momento genético, mas também para além
dele, como uma das faces da relação negocial de cooperação de que promana.»
Torna‑se claro que este Tribunal não tem, in casu, que tomar
qualquer posição sobre a controvérsia de que se vem dando notícia, havendo,
apenas, que não deixar passar em claro que, mesmo que se sustentasse que o
contrato de arrendamento não tem natureza essencialmente pessoal, como diz
Pereira Coelho (Direito Civil – I Arrendamento, Sumários das lições ao Ciclo
Complementar de Ciências Jurídicas em 1980-1981, pp. 19 e seguintes), que pugna
por não haver argumentos decisivos para essa concepção afastar, não é de
desprezar o facto de a lei equiparar, por vezes, o direito do arrendatário aos
direitos reais para determinados efeitos.
Abordando a relevância do arrendamento, conquanto numa outra
perspectiva, este Tribunal teve ocasião de dizer no seu Acórdão n.º 267/95
(publicado na II Série do Diário da República, de 20 de Julho de 1995):
«8 – Seja, porém, qual for em definitivo a natureza jurídica do
direito ao arrendamento (real ou obrigacional), uma coisa é certa: um tal
direito é, em certa medida, protegido pelo artigo 62.º da Constituição, ou
seja, pela garantia constitucional do direito de propriedade.
Vejamos em que medida.
O artigo 62.º, n.º 1, da Constituição garante o direito à
propriedade privada e à sua transmissão, ‘nos termos da Constituição’, isto é,
dentro dos limites e termos definidos noutros pontos da Lei Fundamental,
competindo ao legislador definir o conteúdo e limites do direito de propriedade
privada [artigo 168.º, n.º 1, alíneas b) e j), da Constituição].
Elemento essencial do direito de propriedade é o direito de não de
ser privado dela, que a Constituição não garante em termos absolutos,
prevendo-se no n.º 2 do artigo 62.º apenas o direito de não ser arbitrariamente
privado da propriedade e o direito à percepção de uma indemnização no caso de
requisição ou de expropriação por utilidade pública.»
3. Perante esta parametrização, torna‑se claro que, no caso sub
specie, e para que se não tenda a precipitar um raciocínio com base no qual, não
podendo o arrendamento ser desligado do direito garantido pelo n.º 1 do artigo
61.º do Diploma Básico, a interpretação normativa sub specie constitucionis se
figuraria como feridente de tal garantia, há que levar mais longe a análise da
questão.
Efectivamente, não pode o problema em apreço ser desligado de uma
outra óptica, justamente aquela que consiste no desenho do que, no caso, se
postava, ou seja, aquilo que os tribunais judiciais deram como assente (e que,
de todo em todo, este Tribunal não pode, no dito caso, pôr em crise) e que
consistiu em se tratar uma situação de cessão de exploração do estabelecimento.
Como se sabe, a relação de arrendamento é susceptível de sofrer,
como qualquer outra relação jurídica, modificações subjectivas, ou seja, aquelas
que operam no plano dos sujeitos.
No que se refere ao arrendamento com um fim que não seja o de
habitação, a doutrina tem considerado apenas como modificações subjectivas da
relação jurídica os seguintes casos: simples cessão da posição contratual;
subarrendamento; trespasse de estabelecimento comercial ou industrial; e cessão
de escritório, consultório ou estúdio de profissão liberal (para alguma doutrina
– cf. Jorge Pinto Furtado, ob. cit., p. 442 – ainda aí se incluem os casos de
subarrendamento).
Não importando, para o caso, as situações previstas no artigo 122.º
do RAU (redacção e numeração operadas pelo Decreto‑Lei n.º 257/95, de 30 de
Setembro) – a que corresponde ao artigo 1120.º do Código Civil –, não se vai sem
dizer que as restantes situações se encontram reguladas no artigo 1059.º, n.º 2,
do Código Civil, e no artigo 115.º do RAU.
Quanto às situações de cessão da posição contratual e de
subarrendamento, exigem expressamente os artigos 424.º, n.º 1, ex vi do artigo
1059.º, n.º 2, um e outro do Código Civil – quanto à cessão da posição de
arrendatário –, 1038.º, alínea f), do mesmo corpo de leis e 44.º do RAU – quanto
ao subarrendamento – o consentimento do senhorio.
Tratando‑se de um estabelecimento comercial, convém efectuar um mui
perfunctória discorrer sobre o respectivo conceito e aquilo que tem sido
vincado como a diferenciação entre os seus trespasse e cessão de exploração.
Assim, Pinto Furtado (ob. cit., pp. 486 a 488) defende que o
estabelecimento comercial deve ser visualizado como um «complexo de bens
patrimoniais congregados pelo empresário para a realização da sua actividade
económica», acrescentando:
«Complexo de bens que envolverá, pois, não apenas as coisas
materiais ou corpóreas, mas também as coisas imateriais ou incorpóreas, com
valor económico, que lhe dão aisance instrumental – como, designadamente, o
aviamento, ou seja aquela qualidade em clientela e organização que está para o
estabelecimento comercial como a fertilidade do solo está para a organização de
uma exploração agrícola, ou como o nome ou insígnia do estabelecimento.
[…] temos ainda um nítido afloramento de semelhante perspectiva
jurídico‑positiva universalizante na facti species do artigo 115.º do RAU.
[…] O estabelecimento comercial ou industrial, a que se reporta este
preceito, constitui portanto o que na dogmática se denomina universalidade.»
De seu lado, Oliveira Ascensão («Estabelecimento comercial», in
Revista da Ordem dos Advogados, ano 47, 1987, I, P. 14), doutrina no sentido de
que:
«O estabelecimento comercial é uma universalidade de facto: é uma
coisa colectiva, unificada pela aptidão para o desempenho de uma função
produtiva.
[…] que há um sentido técnico de estabelecimento comercial,
entendido agora como complexo de situações jurídicas. Neste sentido, o
estabelecimento comercial é uma universalidade de direito. É ponto em que nos
não podemos deter; mas também não vemos motivo nenhum para fugir à qualificação.
O estabelecimento comercial, como situação jurídica, cai inteiramente naquela
noção, pois é um complexo de situações jurídicas (ou uma situação jurídica
complexa) juridicamente unificadas para efeitos da sua sujeição a vicissitudes
comuns.»
Também Ferrer Correia («Reivindicação do estabelecimento comercial
como unidade jurídica», in Estudos Jurídicos, II, 1969, pp. 262 e seguintes)
defende que «é como verdadeira unidade jurídica, e não apenas como unidade
económica, que o estabelecimento comercial deve ser concebido».
Dada a sua relação com a cessão da exploração de estabelecimento,
não é despicienda a citação da seguinte passagem do mesmo autor: «a chamada
concessão de exploração comercial ou industrial (rectius: locação de
estabelecimento) não é redutível a tantos contratos distintos e autónomos
quantos os singulares elementos componentes da universalidade. Designadamente, o
negócio jurídico não poderá ser qualificado como arrendamento, sem embargo de
envolver a transferência para o locatário, por todo o tempo do contrato, do uso
do prédio onde o estabelecimento está instalado.» (p. 265).
Ainda Pinto Furtado, e agora a propósito do trespasse, é do
entendimento de que:
«Além disso, entende‑se pacificamente que ele [o trespasse]
envolverá, por outro lado, necessariamente, uma transferência definitiva do
estabelecimento. A mera transmissão pro tempore não forma um trespasse –
asserção que hoje parece seguramente confirmada pela destrinça que o Regime
estabelece entre trespasse, referido no artigo 115.º, e concessão ou cessão da
exploração, que contempla no seu artigo 111.º» (p. 490).
Também Manuel Januário Gomes considera que os conceitos de
trespasse e de cessão de exploração são distintos, porquanto no caso do
primeiro haverá «sempre que ocorrer uma transferência definitiva e unitária do
estabelecimento comercial» (Arrendamentos comerciais, 1991, 2.ª ed., pp. 162 e
163), enquanto que o segundo «consiste numa forma de negociação do
estabelecimento comercial traduzida numa transferência temporária e onerosa do
seu gozo ou exploração» (dita obra, p. 61).
4. Sem se ter que tomar partido – já que isso se situa fora dos
poderes cognitivos deste Tribunal – sobre o que se deva entender por cessão de
exploração efectuada pelo recorrido, tal como foi dado por assente pelo Supremo
Tribunal de Justiça (e que, aliás, se encontra apoiada por autores tais como
Orlando de Carvalho, Rui Alarcão, Pereira Coelho e M. Januário Gomes – quanto a
este último, veja‑se a obra já citada, p. 77), é evidente que havemos de tomar
por assente que na interpretação do artigo 1038.º, alínea g), do Código Civil,
que aqui é objecto de recurso, foi considerado que aquela cessão não alterou a
relação jurídica estabelecida entre as recorrentes, como locadoras, e o
recorrido, como arrendatário, qualidade que, no entender daquele alto tribunal,
se manteve inalterada quanto, nomeadamente, às suas obrigações.
É, pois, neste plano que se tem de verificar da existência ou não da
alegada contrariedade com a Constituição da norma contida na alínea g) [e
também a da alínea f)] do artigo 1038.º do Código Civil no entendimento segundo
o qual, havendo cessão do estabelecimento comercial instalado em local
arrendado, o arrendatário não necessita da autorização do senhorio para
efectuar essa cessão, nem de lha comunicar, tal como foi entendido pelo acórdão
recorrido.
Neste contexto, há que não olvidar que, como se sublinhou no Acórdão
deste Tribunal n.º 425/87 (publicado no Diário da República, II Série, de 5 de
Janeiro de 1988), tomando por referência o «direito de propriedade privada,
dir‑se‑á, desde logo, que a conflitualidade existente entre o senhorio e o
inquilino radica numa base obrigacional, derivando os direitos e deveres
respectivos de um contrato entre ambos celebrado ...».
Assim sendo, e atentos os direitos e obrigações das partes no
contrato de arrendamento para comércio ou indústria razoavelmente admissíveis e
que, porventura, no prisma do senhorio, se podem configurar como tendo
incidência nos poderes de uso, fruição e disposição do seu direito sobre a coisa
locada (quiçá podendo acarretar uma sorte de «limitações» àqueles poderes), não
se pode dizer que o proprietário do locado (ou quem sobre ele tenha poderes de
uso e fruição, caso não seja proprietário) fique afectado ou veja alteradas mais
gravosamente essas «limitações» decorrentes do arrendamento que livremente antes
celebrou no desfrute da sua autonomia contratual e na decorrência dos poderes de
fruição que tinha sobre essa mesma coisa.
É que, esse anterior contrato, com toda a corte de eventuais
«limitações» que dele promanem para o livre e incondicionado exercício do
direito de propriedade sobre o locado (ou um outro direito de conteúdo
patrimonial, não passando em claro, que, como dizem Gomes Canotilho e Vital
Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., p. 331, o
espaço semântico-constitucional do direito de propriedade não se limita à
proprietas rerum) continua intocado e sujeito a toda a regulamentação que o
pauta, continuando a ser exigível pelo locador que o arrendatário cumpra as
obrigações inerentes a esse contrato, mantendo‑se, pois, de pé os mesmíssimos
direitos, obrigações e ónus decorrentes do contrato.
O que, com a cessão, ocorreu foi unicamente uma alteração subjectiva
da gestão do estabelecimento, tido como uma universalidade e da qual faz parte o
próprio local onde o mesmo se encontra instalado, estabelecimento esse que
continua a ser o mesmo e titulado pelo mesmo arrendatário sobre o qual, como se
disse, continuam a impender as mesmas obrigações que defluem do contrato de
arrendamento.
Na interpretação de que se cura, a posição das ora recorrentes, no
que tange ao seu direito de propriedade sobre a coisa locada não deve, por isso,
considerar‑se «tocada» ou, pelo menos, apresentar maiores «limitações» do que
aquelas que eventualmente já decorriam do contrato de arrendamento que
celebraram com o locatário.
E isto, é evidente, mesmo que para quem perfilhe a perspectiva de
que o contrato de arrendamento, mesmo para comércio e indústria, é um contrato
intuitus personae (questão sobre a qual, atento o que acima se disse já, este
órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa não tem aqui
que tomar posição), por isso que o mesmo mantém o seu objecto, continuando a
ser as mesmas as partes contratantes e as condições e cláusulas a que tal
contrato obedece.
Mas, mesmo para quem não perfilhe na sua integralidade uma
fundamentação como a que se veio de expor, por isso que poderia defender que a
mesma, levada às últimas consequências, porventura conduziria a que não fossem
consideradas como contrárias à Constituição todas as alterações da pessoa do
arrendatário (verbi gratia, nos casos de trespasse ou de outras situações de
cessão do arrendamento) sem que houvesse necessidade de comunicação ou
autorização do senhorio, o que é certo é que, tratando‑se, como no caso se
trata, de uma cessão de exploração de um estabelecimento comercial ou
industrial, a manutenção do contrato de arrendamento onde tal estabelecimento se
sedia ou situa, com dispensa de autorização e comunicação de e ao senhorio, não
deixará de ser perspectivável como uma protecção desse mesmo estabelecimento e,
dessa sorte, de protecção da própria livre iniciativa económica consubstanciada
na exploração do estabelecimento.
Não se divisa, assim, que a interpretação, seguida pelo aresto
recorrido e de harmonia com a qual a falta de comunicação ou de autorização do
senhorio a que aludem as alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código Civil, não
constitui fundamento para resolução do contrato de arrendamento, estando em
causa a cessão de exploração do estabelecimento, seja contrária à Constituição,
antes compatibilizando o eventual conflito dos direitos que se consagram nos
artigos 61.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, desde diploma fundamental.”
O juízo de não inconstitucionalidade constante deste
Acórdão n.º 289/99 foi reiterado no Acórdão n.º 77/2001, proferido em recurso em
que os recorrentes (autores vencidos em acção de resolução do contrato de
arrendamento fundada em cedência, pelo locatário, da exploração de um
estabelecimento comercial instalado no locado sem que tivesse obtido autorização
dos locadores ou lhes tivesse sido efectuada qualquer comunicação) sustentavam
a inconstitucionalidade material, por violação dos princípios constitucionais da
igualdade, da justiça e do Estado de direito e ainda por violação do direito de
propriedade, da norma da alínea f) do artigo 1038.º do Código Civil, entendida
no sentido de que não abarca na sua previsão a hipótese de cessão da exploração
de estabelecimento comercial ou industrial e de que, em consequência, este
negócio se pode realizar sem autorização prévia do senhorio e sem necessidade de
comunicação posterior ao negócio. Após se reproduzir a parte relevante da
fundamentação do Acórdão n.º 289/99, acrescentou-se no Acórdão n.º 77/2001:
“3.1. Há que convir que a interpretação dada pelo Tribunal da
Relação do Porto no acórdão sob recurso à norma da alínea f) do artigo 1038.º do
Código Civil é, de todo em todo, similar àquela interpretação que foi objecto da
análise no Acórdão de que imediatamente acima se encontra transcrita uma parte.
Daí que a corte argumentativa utilizada no dito Acórdão n.º 289/99
seja, cabalmente, transponível para o caso sub specie e concernentemente à norma
da alínea f) do artigo 1038.º do Código Civil, no entendimento perfilhado pelo
Tribunal da Relação do Porto.
A isto acresce que se não vislumbra da alegação produzida pelos
recorrentes qualquer argumento que tenha virtualidade, ainda que mínima, e que
possa abalar a mencionada corte argumentativa.
Sublinhar‑se‑á, tão‑somente, que nenhuma das dimensões do princípio
da igualdade, como sejam a proibição do arbítrio, a proibição de discriminação
e a obrigação de diferenciação, foi violada pelo sentido normativo seguido pelo
acórdão sob censura quanto ao preceito de que agora se trata.
De facto, a cessão de exploração de estabelecimento comercial ou
industrial não é equivalente às restantes situações invocadas nas alegações:
sublocação e trespasse. Qualquer uma destas apontadas situações expressamente
previstas na alínea f) do artigo 1038.º do Código Civil são consideradas, ao
contrário daquela, pela doutrina, como casos de modificação subjectiva da
relação jurídica (cf. Jorge Pinto Furtado, referido no Acórdão n.º 289/99, e na
passagem ali transcrita).
Desse modo, não se pode falar de qualquer tratamento desigual,
porquanto desiguais são as situações confrontadas.
No que respeita aos princípios da justiça e do Estado de direito não
se divisa em que é que a norma contida na alínea f) do artigo 1038.º do Código
Civil, na aludida interpretação, os possa violar, tanto mais quanto é certo que,
quanto a esse ponto, nenhum desenvolvimento se alcança da alegação que foi
produzida pelos recorrentes que suporte, em termos minimamente aceitáveis, essa
pretensa violação.
Motivos pelos quais se haverá de concluir pela inexistência de
qualquer violação da Constituição.”
2.4. A recorrente entende que o critério normativo
acolhido no acórdão recorrido viola o princípio da igualdade, fundamentalmente
por contrastar com anteriores decisões do Tribunal Constitucional, que, na sua
tese, para situações idênticas, teriam imposto a adopção de entendimentos
opostos.
Esta arguição é claramente improcedente.
É sabido que não compete ao Tribunal Constitucional
determinar qual a interpretação mais correcta do direito ordinário aplicável ao
caso, cabendo‑lhe apenas sindicar se a interpretação efectivamente acolhida nas
decisões recorridas – interpretação que tem de ser recebida como um dado da
questão de constitucionalidade – respeita ou desrespeita os princípios e as
normas constitucionais.
Perante divergências jurisprudenciais – designadamente
tão vincadas e reiteradas como as verificadas a propósito da questão de saber
se a cessão da exploração de estabelecimento comercial instalado em local
arrendado estava sujeita a autorização do e a comunicação ao senhorio, ou
apenas a comunicação, ou nem a uma nem a outra –, é óbvio que, na prática, se
criam situações de desigualdade, sendo casos idênticos objecto de soluções
diferentes consoante a corrente jurisprudencial em que se inserem os tribunais
que os decidem. Mas tal não representa a verificação de uma situação de
inconstitucionalidade normativa por violação do princípio da igualdade, enquanto
imposição ao legislador ordinário do dever de não consagrar soluções
arbitrárias.
Por outro lado, a circunstância de, nos dois aludidos
Acórdãos, o Tribunal Constitucional ter decidido que não era
constitucionalmente imposto que o legislador consagrasse o dever de o locatário
obter autorização do senhorio para a cessão da exploração do estabelecimento
comercial instalado no local arrendado e de comunicar ao locador a efectivação
da cessão autorizada, não impõe, como sua decorrência lógica, que se tenha por
constitucionalmente proibida a consagração de qualquer um desses deveres. O que
naqueles Acórdãos se decidiu foi que, consideradas as diferenças entre os
títulos referidos na alínea f) do artigo 1038.º do Código Civil (cessão da
posição contratual, subarrendamento e comodato) e a cessão de exploração de
estabelecimento comercial instalado em local arrendado, o princípio
constitucional da igualdade não impunha ao legislador ordinário que
estabelecesse para esta cessão os mesmos condicionalismos fixados para aquelas
três figuras; e que, por outro lado, a interpretação normativa que dispensava a
autorização do e a comunicação ao senhorio não violava, de forma intolerável, o
direito de propriedade deste, antes o conciliava com o direito de iniciativa
económica do locatário.
No presente caso – sem qualquer contradição com a
anterior jurisprudência deste Tribunal –, dir‑se‑á que o critério normativo,
seguido na decisão recorrida, de que a cessão de exploração deve ser comunicada
ao senhorio (sem exigência de obtenção de prévia autorização) não viola o
princípio da igualdade, desde logo porque nem sequer equipara integralmente
esta situação às três expressamente previstas nas alíneas f) e g) do artigo
1038.º do Código Civil, relativamente às quais se exige cumulativamente a
autorização e a comunicação, e depois porque, atentas as razões invocadas para
a afirmação do dever de comunicação (legítimo interesse do senhorio em conhecer
a identidade de quem efectivamente usufrui do local arrendado e direito que lhe
assiste de controlar o preenchimento dos requisitos do contrato de cessão, ao
abrigo dos n.ºs 2 dos artigos 111.º e 115.º do RAU), a imposição deste dever
nada tem de arbitrário, desnecessário ou inadequado.
Ao que acresce que, tratando‑se de um dever de fácil
execução e que não interfere (ao contrário da exigência de autorização) com a
decisão do locatário sobre o modo por ele tido por mais vantajoso para a
exploração do seu estabelecimento, não se vislumbra como possa sustentar‑se que
tal solução viola o direito de iniciativa económica, consagrado no artigo 61.º,
n.º 1, da CRP.
Improcedem, assim, os fundamentos em que a recorrente
alicerçou a sua tese da inconstitucionalidade do critério normativo adoptado no
acórdão recorrido.
2.5. A recorrente centrou a sua argumentação
fundamentalmente na impugnação da correcção da interpretação do direito
ordinário segundo a qual o locatário deve comunicar ao senhorio a cessão de
exploração de estabelecimento comercial instalado no local arrendado e na
acusação de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade e do
direito de iniciativa económica privada, do critério normativo que afirma a
existência desse dever.
Porém, aceitando‑se a consagração legal e a
constitucionalidade da imposição desse dever, a violação da Constituição pode
ser colocada numa outra perspectiva: a da eventual violação do princípio da
proporcionalidade por se considerar excessivo o sancionamento do incumprimento
desse dever com a resolução do contrato de arrendamento, apreciação que é
consentida pelo artigo 79.º‑C da LTC, e aliás já encarada por este Tribunal.
Na verdade, a problemática da violação do princípio da
proporcionalidade no âmbito da previsão legal das causas de resolução do
contrato de arrendamento já foi apreciada por este Tribunal, no Acórdão n.º
302/2001, em recurso de decisão que decretara o despejo de todo o prédio locado
(rés‑do‑chão e 1.ª andar), com fundamento em cedência gratuita de apenas uma
sala do 1.º andar, não autorizada pelo nem comunicada ao senhorio. Sustentava a
recorrente que a norma do artigo 64.º, n.º 1, alínea f), do RAU, ao não permitir
a redução do contrato de arrendamento, nos casos de incumprimento ou violação de
apenas parte do mesmo, e ao não prever a consequente subsistência da parte ou
partes não afectadas pela violação verificada, violava o princípio da
proporcionalidade constitucionalmente consagrado. O Tribunal decidiu, por
maioria, negar provimento ao recurso, não julgando inconstitucional a norma
questionada. Reconhecendo não existirem obstáculos a que a aplicação do
princípio da proporcionalidade, “inicialmente restrita à conformação dos actos
dos poderes públicos e à protecção dos direitos fundamentais”, se estenda ao
domínio das relações jurídico‑privadas, como “princípio geral de direito,
conformador não apenas dos actos do poder público mas também, pelo menos em
certa medida, dos actos de entidades privadas e inspirador de soluções
adoptadas pela própria lei no domínio do direito privado”, o aludido Acórdão
acabou por concluir que “num sistema de resolução do contrato de arrendamento
por iniciativa do senhorio caracterizado pela existência de causas tipificadas,
e num sistema em que a resolução do contrato fundada no incumprimento por parte
do arrendatário tem necessariamente de ser decretada pelo tribunal, não se
afigura desrazoável, arbitrário nem excessivo que o incumprimento traduzido em
cedência do imóvel pelo arrendatário, sem autorização do senhorio, constitua
fundamento de resolução do contrato pelo senhorio, ainda que se trate de mera
cedência parcial”.
Na perspectiva ora em apreço, importa começar por
salientar que, apesar do pacífico entendimento do carácter taxativo da
enumeração das causas de resolução do contrato de arrendamento por iniciativa
do senhorio, constante dos artigos 1093.º do Código Civil e 64.º do RAU, ele não
impediu que fosse sustentado, na doutrina e na jurisprudência, que da
verificação do preenchimento de qualquer uma dessas situações não decorria
inexoravelmente a atribuição ao locador do poder de requerer a resolução do
contrato [O NRAU, na redacção dada ao artigo 1083.º do Código Civil, substituiu
a tipificação taxativa de fundamentos, prevista no artigo 64.º, n.º 1, do RAU,
por “um critério de base, formulado em termos de cláusula geral” – o
incumprimento, por qualquer das partes, de obrigações contratuais que, pela sua
gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do
arrendamento –, “complementado por previsões específicas, de carácter meramente
exemplificativo, de situações de incumprimento pelo arrendatário, justificativas
da resolução pelo senhorio”, sendo certo que “a aplicação das previsões
específicas não pode ser desligada da ponderação do factor de valoração
enunciado na cláusula geral” (Joaquim de Sousa Ribeiro, “O novo regime do
arrendamento urbano: contributos para uma análise”, Cadernos de Direito Privado,
n.º 14, Abril/Junho 2006, pp. 3‑24, em especial pp. 20‑21, republicado em
Direito dos Contratos – Estudos, Coimbra, 2007, pp. 307‑343, em especial pp.
336‑337; no mesmo sentido, cf. Maria Olinda Garcia, A Nova Disciplina do
Arrendamento Urbano, Coimbra, 2006, p. 23; e Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e
João Caldeira Jorge, Arrendamento Urbano, Lisboa, 2006, pp. 167‑168).]
Para fundar tais soluções, a jurisprudência e a doutrina
sublinharam que nada impedia a aplicação ao contrato de arrendamento da regra do
artigo 802.º, n.º 2, do Código Civil (“O credor não pode, todavia, resolver o
negócio, se o não cumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, tiver
escassa importância”), disposição esta que “encerra um princípio geral da
resolução dos contratos que [o artigo 1093.º do Código Civil] não deve ter
querido afastar” (V. G. Lobo Xavier, “Contrato de arrendamento: interpretação;
Aplicação do prédio a ramo de negócio diverso do convencionado e teoria do
acessório”, anotação ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 1 de
Fevereiro de 1979, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 116.º, n.ºs
3709 a 3711, pp. 105‑118, 153‑160 e 179‑182, em especial p. 180 e notas 30 e 31,
com referência a diversas decisões judiciais, principalmente em casos de
afectação parcial do prédio locado a fim diverso do convencionado), e isto
independentemente do recurso à invocação da figura do abuso de direito (local
citado, nota 32). Como se referiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de
3 de Julho de 1997, P. 96B916 (texto integral disponível em www.dgsi.pt/jstj) –
que, embora reconhecendo ter a locatária violado a alínea f) do artigo 1038.º do
Código Civil ao consentir que, sem autorização dos locadores, uma sociedade
indicasse, na escritura da sua constituição, como sua sede o local arrendado,
considerou tratar‑se de violação de “escassa importância”, que não justificava a
aplicação da sanção da resolução do contrato –: “O artigo 64.º do RAU, ao
tipificar os fundamentos de resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio,
revela ser a resolução a última sanção, como razão extrema, excluída para
infracções mínimas, as de escassa importância, as que de modo algum frustram o
plano contratual ou afectam a base de confiança própria de um contrato intuitus
personae, como é o arrendamento”.
Relativamente à consagração legal do direito do locador
não informado da transmissão por trespasse de obter o despejo do locado,
Antunes Varela (“Acção de despejo”, Colectânea de Jurisprudência, ano VIII,
1983, tomo IV, pp. 15‑23, em especial p. 19) referia que “A falta de comunicação
do trespasse do estabelecimento ao locador (dono do imóvel onde o
estabelecimento se encontra instalado) é severamente (talvez excessivamente, em
face do espírito da actual legislação locatícia e até porque o senhorio não pode
opor‑se à cessão do direito ao arrendamento), sancionada com o direito de
despejo”, sanção que adiante qualifica de “severíssima”. E A. Ferrer Correia
(“Sobre a projectada reforma da legislação comercial portuguesa”, Revista da
Ordem dos Advogados, ano 44, Maio 1984, pp. 5‑43, em especial pp. 40‑41)
considerava “manifestamente excessiva” a sanção para a omissão do dever de
comunicação do trespasse consistente na atribuição ao senhorio do direito de
resolução do contrato, considerando preferível, embora de difícil sustentação
face aos textos legais vigentes, a solução, preconizada por Orlando de
Carvalho, de, enquanto a notificação não tivesse lugar, o senhorio ter o direito
de ignorar a cessão realizada, com todas as consequências inerentes [Já no
domínio do NRAU, Ricardo Costa (“O Novo Regime do Arrendamento Urbano e os
negócios sobre a empresa”, Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais –
Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco
Lobo Xavier, vol. I, Coimbra, 2007, pp. 479‑523, em especial pp. 504‑505] realça
“a severidade, o excesso e a desproporção do direito ao despejo” como sanção
pela omissão de comunicação do trespasse].
Apesar de estas acusações de excessiva severidade e
desproporção da atribuição ao senhorio do direito de despejo por omissão da
comunicação da efectivação de trespasse, que implica uma transferência
definitiva do gozo do locado para terceiro, valerem, eventualmente com acrescida
força, para a outorga de similar direito de resolução como sanção para a
omissão de comunicação da cessão – por definição, meramente temporária – de
exploração de estabelecimento comercial, afigura‑se que, tudo considerado, elas
não serão suficiente para fundamentar um juízo de inconstitucionalidade da
solução legal por violação do princípio da proporcionalidade.
O reduzido leque de tipos de sanção aplicável ao
incumprimento do contrato por parte do locatário, face à multiplicidade de
possíveis violações dos diversos deveres que o oneram, torna inevitável que
sanção da mesma gravidade seja aplicável a violações contratuais de desigual
repercussão. E, como assinalava João Baptista Machado (“Resolução do contrato de
arrendamento – Prazo para a propositura da acção”, em Obra Dispersa, vol. I,
Braga, 1991, pp. 3‑30, em especial pp. 18‑19): “Se, por força da renovação
imposta (artigo 1095.º), o arrendatário goza duma posição de privilégio – em
detrimento do interesse do senhorio –, bem se compreende que, em contrapartida,
sobre ele impenda um mais estrito dever de cumprir rigorosamente, ponto por
ponto, as suas obrigações contratuais. (…) E é assim que nós vemos postas como
fundamentos legais do arrendamento certas infracções contratuais que, nos
quadros do regime comum da resolução legal, não seriam suficientes para a
justificar [Efectivamente, em inúmeras hipóteses, particularmente fora dos
grandes centros, os factos previstos nas alíneas a), e), f), g) e i), segunda
parte, do artigo 1093.º, n.º 1, atendendo ao interesse do credor terão «escassa
importância». Representam, contudo, formas de inadimplemento e o senhorio não
tem outro meio de reagir contra elas que não seja a acção de resolução]. (…)
Sintetizando, deve pois dizer‑se que, em princípio, só ao arrendatário
cumpridor a lei pretende conferir tutela especial do regime proteccionista dos
arrendamentos urbanos; e que, por isso, contra o arrendatário que é mau
cumpridor ele põe um meio fácil de reacção, facultando-lhe amplamente o
exercício do despejo imediato – ou seja, o direito de resolução.”
Analisado o quadro legal vigente, tal como foi
interpretado na decisão recorrida, no seu conjunto, há que concluir que a
solução em causa não se mostra, de forma manifesta, violadora do princípio da
proporcionalidade.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma, extraída da
conjugação dos artigos 64.º, n.º 1, alínea f), do Regime do Arrendamento Urbano,
aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 321‑B/90, de 15 de Outubro, e 1038.º, alíneas f) e
g), do Código Civil, interpretados no sentido de que constitui fundamento de
resolução do contrato de arrendamento a falta de comunicação do locatário ao
locador da celebração de um contrato de cessão de exploração do estabelecimento
comercial sito no prédio arrendado; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida, na parte impugnada.
Custas pela recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 23 de Setembro de 2008.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos