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Processo nº 895/07
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
(Conselheiro Benjamim Rodrigues)
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e Fiscal
de Loulé recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo
70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na actual redacção
(LTC), da sentença proferida naquele Tribunal que recusou a aplicação da norma
constante do “artigo 98.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das
Pessoas Colectivas (CIRC), aprovado pelo DL. n.º 442-B/88, de 30/11, com a
redacção introduzida pelo DL n.º 198/2001, de 03/07”, com fundamento na sua
inconstitucionalidade.
Apresentou alegações, em que veio dizer que face à orientação definida pelo
Plenário no acórdão n.º 173/08, era de entender que, sendo este caso
perfeitamente idêntico, deveria entender-se que também aqui não ocorreu uma
verdadeira recusa de aplicação da mesma norma.
Houve mudança de relator.
*
Fundamentação
A decisão recorrida tem o seguinte teor:
“A. Limitada, veio recorrer da decisão do Chefe de Finanças do Serviço de
Finanças de Faro que lhe aplicou uma coima no valor de €. 65,74 por não ter
efectuado o pagamento especial por conta do IRC…
Dispõe o n.º 1 do art. 98.º do CIRC (Redacção do Decreto-lei n.º 198/2001- 3 de
Julho) que:
«Sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 96.º, os sujeitos
passivos aí mencionados, excepto os abrangidos pelo regime simplificado previsto
no artigo 53º, ficam sujeitos a um pagamento especial por conta, a efectuar
durante o mês de Março ou, em duas prestações, durante os meses de Março e
Outubro do ano a que respeita ou, no caso de adoptarem um período de tributação
não coincidente com o ano civil, no 3º mês e no 10º mês do período de
tributação respectivo.»
E do art. 33.º da LGT consta a seguinte comando:
«As entregas pecuniárias antecipadas que sejam efectuadas pelos sujeitos
passivos no período de formação do facto tributário constituem pagamento por
conta do imposto devido a final.»
Por seu turno, o art. 114.º do RGIT diz-nos o seguinte:
«1. A não entrega, total ou parcial, pelo período até 90 dias, ou por período
superior, desde que os factos não constituam crime, ao credor tributário, da
prestação tributária deduzida nos termos da lei é punível com coima variável
entre o valor da prestação em falta e o seu dobro, sem que possa ultrapassar o
limite máximo abstractamente estabelecido.
2. Se a conduta prevista no número anterior for imputável a título de
negligência, e ainda que o período da não entrega ultrapasse os 90 dias, será
aplicável coima variável entre 10% e metade do imposto em falta, sem que possa
ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.
5. Para efeitos contra-ordenacionais são puníveis como falta de entrega da
prestação tributária:
(…)
f) A falta de pagamento, total ou parcial, da prestação tributária devida a
título de pagamento por conta do imposto devido a final, incluindo as situações
de pagamento especial por conta.
(…).»
E a seu tempo o n.º 5 do art. 27.º da Lei n.º 32-B/2002 de 30 de Dezembro
estatui o que segue:
«O incumprimento do disposto no artigo 98.º do Código do IRC é punido, nos
termos da alínea f) do n.º 5 do artigo 114.º do Regime Geral das Infracções
Tributárias, com coima variável entre 50% e o valor da prestação tributária em
falta, no caso de negligência, e com coima variável entre o valor e o triplo da
prestação tributária em falta, quando a infracção for cometida dolosamente.»
Também é sabido que no n.º 4 do art. 26.º do RGIT estabeleceu-se esta norma:
«Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, os limites estabelecidos nos
números anteriores, os limites mínimo e máximo das coimas previstas nos
diferentes tipos legais de contra-ordenação, são elevados para o dobro sempre
que sejam aplicadas a uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente
constituída, ou outra entidade fiscalmente equiparada.»
Sendo as coisas assim e uma vez que a Arguida deixou de entregar nos cofres do
Estado o pagamento especial por conta a que a citada norma do art. 98.º, n.º 1
do CIRC refere, naturalmente que a conclusão a retirar dessa situação seria a
que a Administração Fiscal retirou, a saber, o cometimento negligente da
contra-ordenação prevista e punível pelos demais normativos atrás referidos.
Acontece, porém, que o n.º 2 do art. 104.º da Constituição da República
Portuguesa reza assim:
«A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real.»
E ainda relevante se mostra o que, ao tempo, dispunha o n.º 2 do art. 98.º do
CIRC (na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 107-B/2003, de 31 de Dezembro e
que vigorou até à entrada em vigor da Lei n.º 60-A/2005, de 30/12, que lhe deu a
actual redacção):
«O montante do pagamento especial por conta é igual a 1% do volume de negócios
relativo ao exercício anterior, com o limite mínimo de (euro) 1250, e, quando
superior, será igual a este limite acrescido de 20% da parte excedente, com o
limite máximo de (euro) 40000.»
Discorrendo sobre o citado comando constitucional, refere o Prof. Saldanha
Sanches (em Manual de Direito Fiscal, 2.ª edição, página 263 e seguinte), que:
«A proclamação constitucional do direito subjectivo do contribuinte a ser
tributado de acordo com o seu lucro real é uma particularidade do ordenamento
jurídico-tributário português. O legislador constitucional optou pela
consagração expressa desse direito.
(…)
Pode mesmo fazer-se um contraste entre a liberdade de conformação que tem o
legislador ordinário quanto às escolha do objecto de tributação e a escolha do
nível das taxas com a obtenção da igualdade na distribuição dos encargos
tributários que a Constituição lhe impõe: uma vez legalmente decidida a
tributação das empresas o modo como é distribuída a carga tributária entre elas
tem que respeitar o princípio da igualdade.
E isso conduz-nos às regras de determinação do valor ou da quantificação do
imposto: uma zona onde uma obrigação de resultado, a distribuição justa dos
encargos tributários, incide sobre o legislador ordinário.
E essa especifica concretização do princípio da igualdade vai exigir uma
tributação segundo o rendimento líquido objectivo o que por sua vez se vai
decompor num conjunto de sub-princípios …».
Daí que as dúvidas que sobre a questão assaltaram o Prof. Casalta Nabais (em
Direito Fiscal, 2.ª edição, 3.ª reimpressão da edição de 2003, página 263 e
seguinte), as quais abaixo se sintetizam:
«Introduzido em 1998, o pagamento especial por conta foi objecto de profundas
alterações na LOE/2003. Nos termos daquele artigo na redacção dada por esta Lei,
este pagamento é igual à diferença entre o valor correspondente a l % dos
respectivos proveitos ou ganhos do ano anterior, com o limite mínimo de € 1.250
e máximo de € 200.000 e o montante dos pagamentos por conta efectuados no ano
anterior. O pagamento especial por conta, diferentemente do que acontece com os
pagamentos por conta normais (que segundo o art. 96.° dão lugar ao imediato
reembolso caso sejam superiores ao imposto devido), será deduzido, nos termos do
art. 87. °, ao montante apurado na declaração periódica de rendimentos do
próprio exercício a que respeita ou, se insuficiente, até exercício seguinte.
O que torna o pagamento especial por conta num empréstimo forçado ou mesmo num
imposto (na medida em que não venha a ser deduzido nos quatro exercícios
seguintes) de discutível constitucionalidade.»
Note-se que nessa mesma linha seguiram Leite de Campos, Silva Rodrigues e Lopes
de Sousa, em Lei Geral Tributária – Comentada e Anotada, 3.ª edição, página 163
(em anotação ao citado art. 33.º da LGT), como se pode ver deste passo dali
retirado:
«As entregas em causa são qualificadas de pagamento por conta do imposto; sem se
indicar o seu regime jurídico, do qual tudo depende.
As entregas pecuniárias antecipadas poderão ser entendidas em termos de
pagamentos fraccionados do imposto sujeitos às condições resultantes da
existência e do montante deste.
Contra esta caracterização invocar-se-á, porventura, o princípio da capacidade
contributiva. Antes de verificado (completamente) o facto tributário não se sabe
sequer se há lugar a imposto. É certo que tais prestações assentam em
rendimentos passados que se presume manterem-se. Mas não se pode considerar
como facto tributário algo que não se prende com rendimentos, riqueza ou despesa
actuais.
Tais prestações antecipadas poderão ser configuradas como meros financiamentos
ao Estado. Cria-se uma conta devedora do Estado que será compensada com o
imposto a pagar.
Estaríamos, pois, nesta perspectiva perante empréstimos forçados, não se lhes
aplicando as normas dos impostos.
Na tese aposta, dir-se-á que são prestações antecipadas do imposto devido a
final. Assim, aplicar-se-lhes-iam as normas dos impostos.»
Mais definitivo se mostrou João de Avillez Ogando, no estudo citado pela Arguida
(…), o qual, inter alia, referiu:
«No que em particular diz respeito à tributação das pessoas colectivas, a
Constituição da República Portuguesa adoptou, como critério aferidor da
capacidade contributiva das empresas, o seu lucro real, ao proclamar que “a
tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento
real”(19), o que demonstra claramente que a tributação das empresas deve
basear-se fundamentalmente na sua contabilidade, o que foi aliás adoptado pelo
legislador ordinário ao consagrar que “o lucro tributável (...) é constituí o
pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações positivas
e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado,
determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos
deste Código.”(20).
A determinação do lucro com base na contabilidade foi adoptada como critério de
aferição do rendimento real das empresas por ser a forma mais rigorosa de
determinar a imagem fiel do património, da situação financeira e dos resultados
das empresas, e por essa via, de apurar em atenção à sua capacidade
contributiva, a sua medida de oneração fiscal.
(…)
Até à reforma operada pelo Orçamento de Estado para 2003, não existia qualquer
dúvida de que como vimos, o pagamento especial por conta pago, com a
configuração que lhe era dada pela Lei n.° 30-G/ 2000 de 29 de Dezembro,
tinha-se transformado num verdadeiro e próprio imposto mínimo, dada a
impossibilidade de reembolso em caso de insuficiência de colecta, excepto em
situações de cessação de actividade. A verdade é que dada a sua baixa expressão
na contabilidade das empresas, o pagamento especial por conta encontrava-se
integrado no IRC, e era este que conferia legitimidade para a imposição do
pagamento especial por conta e não o contrário, sendo que quando constituía um
tributo não era contestado pela generalidade dos agentes económicos.
Ora, não temos hoje qualquer razão para sustentar entendimento diferente, pelo
que o actual regime do pagamento especial por conta continua a apresentá-lo
como um verdadeiro imposto sobre as vendas, e agora sobre os proveitos e ganhos.
Mais: com a actual configuração do pagamento especial por conta, quer no que diz
respeito à ampliação da sua base de incidência, quer no que diz respeito ao
aumento dos seus limites mínimo e máximo o método de cálculo do IRC passa a
definir-se como um conjunto de normas unicamente dirigidas à Administração
Tributária como segundo critério na cobrança de impostos sobre o rendimento das
pessoas colectivas. A utilidade das regras sobre tributação do lucro esgota-se
na questão de saber se a excepção se verifica, ou seja, se o pagamento especial
por conta foi insuficiente para cobrir uma outra colecta possível. Como segundo
critério na cobrança de impostos, o IRC passou apenas a ser uma forma de
legitimação da nova fórmula de tributação das empresas: a de um imposto
subsidiário sobre os proveitos e ganhos, pago em caso de insuficiência do lucro
tributável.
(…)
O pagamento especial por conta viola o princípio da tributação na medida da
capacidade contributiva, na sua função solidarista, ao não ter em linha de
conta—por ser calculado com a medida de uma taxa única sobre os proveitos — as
diferenças económicas entre empresas, designadamente de que diferentes sectores
de actividade apresentam diferentes rácios de rentabilidade, e, por conseguinte
uma diferente capacidade para pagar imposto. Além disso, apresenta o efeito
perverso a que atrás se faz referência, de permitir às empresas que apresentem
volumes anuais de proveitos e ganhos superiores a €. 20.000.000,00, de
apresentar inferiores rentabilidades dos proveitos e ganhos antes de impostos. É
do conhecimento geral, não apenas dos estudiosos das matérias económico
financeiras, que as vendas são um indicador que pode ser altamente falacioso
atenta a diversidade de actividades empresariais, uma vez que há negócios pouco
interessantes com elevadas rentabilidades de vendas mas com baixa rotação do
activo, podendo o inverso também ser verdadeiro. Quando ainda se acrescentam
outros proveitos e ganhos, sem distinção, ainda se agrava a sua iniquidade.
Viola ainda o princípio da capacidade contributiva na sua função garantística,
por duas vias: pois pagam em termos iguais os que podem e os que não podem
pagar, por não apresentarem rendimentos, sejam quais que não tenham forem os
seus proveitos — pois que sempre os terão ainda que não tenham lucro —, e ainda
por afastar arbitrariamente possibilidade de reembolso às empresas que sejam
susceptíveis de ser abrangidas pelo regime simplificado de tributação, o que é
incompreensível.
Finalmente e no âmbito do princípio da igualdade tributária, o pagamento
especial por conta viola outro seu corolário formal que é o princípio da
uniformidade na tributação, uma vez que a sua taxa é proporcional e não
progressiva, o que é indutor de maior desigualdade entre os contribuintes.
Como atrás se fez referência, caso se revele a insuficiência da
colecta apurada no ano a que se refere o pagamento especial por conta, o
contribuinte pode proceder à sua dedução até ao quarto exercício seguinte. Nesta
circunstância, o pagamento especial por conta perde a sua característica de
pagamento por conta passando a afirmar-se como uma entrega antecipada de imposto
de anos vindouros. Isto decorre aliás do disposto no artigo 33.° da Lei Geral
Tributária, que reforça esta ideia ao referir que os pagamentos por conta do
imposto devido a final são “entregas pecuniárias antecipadas que sejam
efectuadas pelos sujeitos passivos no período de formação do facto tributário”.
E isto viola o princípio da capacidade contributiva, pois esta não é levada em
consideração — como aliás não poderia em qualquer caso sê-lo por tratar-se do
pagamento por conta — e na medida em que a capacidade contributiva de anos
vindouros não existe, por ser indeterminada e indeterminável.»
Diremos, por fim, que a violação do mencionado princípio constitucional da
capacidade contributiva resulta patente na seguinte circunstância (assinalada
pelo jornal Diário Económico, edição de 27-01-2006, a propósito da última
alteração introduzida no pagamento especial por conta (…) «Outra alteração
importante a esta matéria tem ver com o facto de, pela primeira vez desde a
criação do pagamento especial por conta em 1998, pelo Decreto-Lei n.º 44/98, de
3 de Março, o Governo Português ter tomado uma posição em relação ao pagamento
especial por conta devido pelos sujeitos passivos que apenas aufiram
rendimentos isentos de IRC.
(…) com esta alteração fica claro que o pagamento especial por conta, que até
agora era entendido como um adiantamento por conta do imposto devido a final,
também abrange os sujeitos passivos que tenham apenas rendimentos isentos de
IRC e que, de facto, podem não ter qualquer imposto devido a final.»
Ora, sendo as coisas assim e considerando que, de acordo com o disposto no n.º 3
do art. 103.º da Constituição da República Portuguesa, «ninguém pode ser
obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição,
que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos
termos da lei», impõe-se concluir que a decisão que aplicou a coima à Arguida
violou o nosso texto legislativo fundamental e por isso se não pode manter”.
O Tribunal Constitucional, em acórdão proferido pelo Plenário, nos termos do
artigo 79.º - A, da LTC, tendo por objecto recurso sobre questão idêntica,
relativo a uma decisão que é cópia da aqui recorrida, pronunciou-se nos
seguintes termos:
“Como fundamentação, a decisão recorrida, dispensando-se de qualquer arrazoado
argumentativo próprio, limitou-se a proceder a uma colagem, em termos algo
desconexos, de textos doutrinários em que se lançam dúvidas sobre a
constitucionalidade de certos pontos do regime do pagamento especial por conta,
previsto no artigo 98.º, n.º 1, do CIRC, ou se sustenta, mesmo, que eles estão
feridos de inconstitucionalidade.
No termo desse somatório de citações, a parte propriamente decisória da sentença
vem formulada do seguinte jeito:
«Ora, sendo as coisas assim e considerando que, de acordo com o disposto no n.º
3 do art. 103.º da Constituição da República Portuguesa, “ninguém pode ser
obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição,
que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação ou cobrança se não façam nos
termos da lei”, impõe-se concluir que a decisão que aplicou a coima à Arguida
violou o nosso texto legislativo fundamental e por isso se não pode manter.»
Não se conformando com esta decisão, o Ministério Público interpôs recurso para
o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC, indicando como norma desaplicada o artigo 98.º, n.º 1, do Código do
IRC.
Em face destes dados, constantes dos autos, levanta-se, com total pertinência, a
dúvida quanto ao preenchimento dos pressupostos deste tipo de recurso de
constitucionalidade.
Dúvida que nasce, desde logo, pelo facto de a sentença imputar a
inconstitucionalidade directamente à decisão administrativa, como resulta,
expressis verbis, do trecho acima transcrito. Referenciando essa decisão, em si
mesma, como violadora da Constituição, a decisão judicial recorrida não parece
situar a questão de constitucionalidade no plano normativo, como se impunha para
estar assegurada a idoneidade do objecto do recurso. Não transparece dessa
decisão qualquer confronto entre uma norma de direito ordinário e uma regra ou
princípio constitucionais, em termos fundamentadores da desconformidade da
primeira em face dos segundos. Nessa medida, o recurso não terá por objecto uma
questão de constitucionalidade “normativa”, o que leva à preclusão do seu
conhecimento.
Poder-se-á dizer, em contrário, que o juízo formulado pela sentença quanto à
decisão administrativa assenta necessariamente numa precedente valoração como
inconstitucional da base normativa em que esta se apoia. Nessa linha,
admitir-se-á que, ainda que formulada “em termos pouco precisos”, como reconhece
o Ministério Público, a decisão deve ser interpretada como contendo um juízo de
inconstitucionalidade da norma fiscal que criou para a arguida a obrigação de
proceder aos pagamentos especiais por conta, ou seja, do n.º 1 do artigo 98.º do
CIRC.
Mas é, no mínimo, muito duvidoso que, no âmbito do direito estrito, como é o que
regula os pressupostos de admissão dos recursos de constitucionalidade, caiba ao
Tribunal Constitucional proceder àquela tarefa reconstrutiva, nos termos
propugnados. Tarefa que, em casos como o sub judice, se revestiria de especial
complexidade e se rodearia de particular incerteza, pois não se pode olvidar que
a decisão administrativa impugnada tem carácter sancionatório, resultando de um
processo de natureza contra-ordenacional, pelo que só num segundo momento de um
percurso ascendente se poderia eventualmente identificar uma norma-fundamento
de direito fiscal material. E a falibilidade dessa análise retrospectiva fica
bem a descoberto em casos como o presente, em que o dever infringido e a norma
que o impõe – fundamentos últimos da aplicação da coima — não foram os
considerados na decisão recorrida.
Para além deste primeiro obstáculo ao conhecimento do recurso, depara-se-nos um
segundo, verdadeiramente intransponível.
Tem ele a ver com a exigência de que a norma que constitui objecto de recurso
tenha sido efectivamente desaplicada pelo tribunal a quo. Na verdade, o
pressuposto do recurso só ficará preenchido se, no termo daquele esforço
interpretativo, se puder afirmar, com segurança, que houve recusa de aplicação
de uma norma ou normas, com fundamento em inconstitucionalidade, e que a(s)
norma(s) em causa coincide(m) com a(s) apontada(s) pelo recorrente, no seu
recurso.
O Ministério Público, no requerimento de interposição do recurso, especificou
como preceito legal desaplicado o artigo 98.º, n.º 1, do Código do IRC. Todavia,
percorrendo a decisão recorrida, em momento algum nela se equaciona a
inconstitucionalidade da norma constante desse artigo. A disposição apenas é
referida na matéria de facto dada como provada e na parte inicial da
fundamentação de direito, em articulação com o artigo 99.º, n.º 1, para
sustentar que o pedido de limitação dos pagamentos por conta, ao abrigo deste
último preceito, não exoneraria a arguida de efectuar o primeiro pagamento,
contrariamente à sua pretensão.
Consciente, porventura, deste facto, o Ministério Público, como já fizera no
processo decidido pelo Acórdão n.º 241/2007 – processo em tudo idêntico ao
presente e que correu termos no mesmo tribunal −, vem, na resposta à questão
suscitada, levantar a hipótese de uma recusa implícita de aplicação do artigo
98.º, n.º 1.
E, na verdade, essa via hermenêutica não é estranha aos critérios decisórios
deste Tribunal, tendo sido considerada nalguns arestos (cfr., entre outros, os
Acórdãos n.º 605/99, n.º 399/89 e n.º 16/96). Mas sempre, diga-se, com um
elevado grau de exigência quanto à concludência dos dados de onde se poderá
inferir uma rejeição de aplicação. Importa, pois, averiguar se estão
preenchidas, neste caso, as condições que justificam essa conclusão.
O artigo 98.º, n.º 1, do CIRC contém a norma instituidora dos pagamentos
especiais por conta, servindo, digamos assim, de “porta de entrada” a esse
instituto, no ordenamento fiscal português. Para além da previsão da obrigação,
limita-se a estabelecer o número das prestações tributárias e o calendário da
sua efectivação, silenciando, por inteiro, qualquer outro aspecto do regime.
Isto dito, resultando a decisão recorrida da impugnação de uma coima pelo não
cumprimento dessa obrigação, ressalta à evidência que o predito artigo 98.º, n.º
1, “tem a ver” com a matéria nela tratada e decidida, integrando-se, com
destaque, no campo normativo que emoldura a decisão sancionatória.
Mas isso está muito longe de bastar para que, de imediato, se possa estabelecer
uma relação de mútua implicação entre a anulação da decisão condenatória em
coima e a recusa de aplicação do artigo 98.º, n.º 1. Para que assim seja,
imperioso se torna dar por assente que uma coisa não subsiste sem a outra, que a
decisão recorrida não poderia ter sido proferida com o sentido e alcance que lhe
foram conferidos sem, simultaneamente, se denegar validade constitucional
àquele preceito, com a consequente desaplicação. Será esse o caso dos autos?
Para o valorarmos e decidirmos, há que articular as magras considerações
decisórias, acima transcritas, com os excertos doutrinários que pretendidamente
lhes servem de fundamento. O que deles sobressai é a contestação e crítica de
alguns pontos do regime dos pagamentos especiais por conta, mormente os que se
relacionam com a fixação da base de incidência — o volume de negócios e não os
lucros —, com uma taxa única não progressiva, e a extrema dificuldade de
reembolso, em caso de insuficiência das colectas a considerar para a dedução,
dado o apertado condicionalismo que o rodeia. São esses aspectos da disciplina
da figura que são confrontados com parâmetros constitucionais, designadamente
com o princípio da capacidade contributiva e o princípio da tributação das
empresas sobre o seu rendimento real (artigo 104.º, n.º 2, da CRP).
E a selecção desses textos e dos pontos neles focados não foi arbitrária, tendo
em conta a configuração, em concreto, do caso em juízo e o interesse que moveu
ao recurso judicial. Na verdade, o que sobremodo inquietou o contribuinte foi a
possibilidade de ficar exposto a pagamentos por conta, no exercício de 2003,
cada um deles muito superior ao imposto liquidado a final, dada a disparidade
de resultados económicos e de montantes da colecta, entre esse ano e o anterior.
Ora, nenhum desses aspectos particulares (ainda que não marginais, reconheça-se)
do regime dos pagamentos especiais por conta vem regulado no artigo 98.º, n.º 1.
Eles representam opções legislativas autonomamente tomadas no quadro de outros
preceitos: o artigo 98.º, n.º 2 e n.º 4, do CIRC, quanto à taxa e base de
incidência, o artigo 83.º, n.º 2, alínea f), quanto à dedução à colecta do
exercício a que respeita, ou, se insuficiente, até ao quarto exercício seguinte
(artigo 87.º, n.º 1, do CIRC), e ainda o artigo 87.º, n.º 3, do mesmo diploma,
quanto aos requisitos de reembolso da parte não deduzida. Estas soluções não vêm
necessariamente na decorrência da decisão “primária” de impor prestações
antecipadas “por conta”, nem corporizam um ponto de vista valorativo único que a
todas inspire. Tanto assim é que, sem mudar uma vírgula ao enunciado normativo
do artigo 98.º, n.º 1, tal como está formulado, e sem pôr minimamente em causa a
sua conformidade constitucional, o mesmo é dizer, a conformidade constitucional
da previsão de entregas antecipadas, em certas datas do período de formação do
facto tributário (mais não diz o preceito…), a disciplina das questões reguladas
naquelas normas poderia ser outra, sem oferecer o flanco a objecções de
constitucionalidade. Ou, visto na perspectiva da decisão: pode ser dado, como
foi, provimento ao recurso de contra-ordenação, sem que isso passe pela
desaplicação, por inconstitucionalidade, do artigo 98.º, n.º 1.
Tanto basta para que se conclua que, não só não se detecta na decisão recorrida
qualquer elemento sinalizador de uma recusa implícita de aplicação deste artigo
– assim decidiu, de igual modo, o Acórdão n.º 241/2007 −, como, mais ainda, dela
transparecem dados que contrariam uma tal inferência. A pretexto de se tratar
da norma de previsão dos pagamentos especiais por conta, não pode, na verdade, o
recorrente transferir para o âmbito do artigo 98.º, n.º 1, questões de
constitucionalidade que essa norma, em si, não suscita nem suscitou, como se ela
fosse o habitáculo qualificado, em bloco e concentradamente, do regime fiscal
cuja aplicação justificaria a coima.” (Acórdão nº 173/08, acessível no site
www.tribunalconstitucional.pt).
Tendo este acórdão sido proferido com a finalidade de serem evitadas
divergências jurisprudenciais neste Tribunal, deve ser acatada a sua doutrina,
pelo que, pelas razões nele referidas, não deve ser conhecido o presente
recurso, proferindo-se decisão nesse sentido.
*
Decisão
Pelo exposto, não se conhece do recurso interposto pelo Ministério Público para
o Tribunal Constitucional, da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de
Loulé, proferida nestes autos em 4-06-2007.
*
Sem custas.
Lisboa, 31 de Julho de 2008
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues (vencido de acordo com os fundamentos do voto de vencido do
Ac. 173/08)
Rui Manuel de Moura Ramos