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Processo n.º 631/08
2. ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama para a conferência ao abrigo do disposto no n.º 3 do
art.º 78.-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC) da
decisão sumária proferida pelo relator que decidiu não conhecer do recurso de
constitucionalidade interposto do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de
Évora, de 16 de Junho de 2008.
2 – Fundamentando a sua reclamação o reclamante discorre do seguinte
jeito:
«A., recorrente nos autos em epígrafe, notificado da decisão sumária nos termos
do nº 1 do artigo 1 da LTC, vem agora ao abrigo do nº 3 do mesmo preceito,
RECLAMAR PARA A CONFERÊNCIA, o que faz nos termos seguintes:
I
Um tribunal judicial deste país proferiu decisão no qual condenava um cidadão a
6 anos de prisão.
Percorrendo toda a cadeia de recursos ordinários possíveis, não logrou o
recorrente algo muito simples:
• Que, antes de o condenarem, os tribunais portugueses ponderassem toda a prova
recolhida pela autoridade policial e não somente a parte que o M°P° seleccionou
no libelo acusatório.
II
Se o objectivo era simples, a incomodidade do resultado moldava a vontade
aposta; logo, havia que complica-lo.
O Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, no processo 1123/08-1, que usou de
uma interpretação do artigo 4° da Lei 101/2001 de 25 de Agosto, na esteira do
despacho do Meritíssimo Juiz Presidente do Tribunal Colectivo que sindicava,
ofenderam os princípios básicos, não só da CRP, mas também os mais elementares
conceitos de ética, moral e justiça, tendo ainda apelidado de “Acintosa e
infamante” para a P.J., as “as suposições do recorrente acerca da causa provável
do resultado da apreensão da droga pelos agentes policiais” – fls. 21 do acórdão
do T.R.E.
Isto é, o Venerando Tribunal da Relação não acreditou que seria possível ter a
P.J., “com a participação de elementos civis infiltrados, actuado na importação
de droga apreendida, no seu transbordo e alto mar, transporte para a nossa
costa, desembarque e armazenamento”.
E não acreditou, porque?
Certamente, porque aquela actividade policial seria ilegal, imoral e contra a
ética.
Mas, se assim é, tudo isto – a questão em debate – é decididamente GRAVE.
Grave e, em consequência, importante para a decisão da causa.
III
O recorrente sabe que foi alvo de uma operação encoberta.
O recorrente reconheceu inclusivamente em audiência a pessoa que lhe entregou as
chaves do veículo carregado de droga.
Por todas as “longas e prolixas” peças jurídicas já entregues pelo recorrente no
processo judicial e agora reproduzidas no presente recurso para esse Colendo
Tribunal, nada mais existe para alegar.
Certo é que pelo menos o T.R. de Évora não se deu ao trabalho de ler os
documentos que acompanhavam o requerimento em audiência no qual solicitava a
requisição do relatório confidencial a que alude o artigo 4° da Lei 101/2001 de
25 de Agosto.
Na realidade, a leitura desses documentos (acórdãos judiciais e relatórios
confidenciais) obriga a concluir incontornavelmente que as atrás descritas
“suposições do recorrente, acintosas e infamantes da P.J.”, são afinal “modus
operandi” normal da P.J. – provada pelos seus próprios documentos: os relatórios
confidenciais nos processos, em tudo semelhantes, nºs 312/05.7 JELSB do Tribunal
Judicial de Odemira e nº 370/04.1 JELSB do Tribunal Judicial de Faro, O
recorrente não é infame, apenas pretende defender-se com a verdade, na posse
documental da P.J.
IV
O recorrente, acusado de difamação, está em condições de provar a imputação de
que faz.
A prova está na disposição da parte contrária (na P.J.).
Tanto em processo civil como em processo penal, o julgador pode requisitá-la.
Basta requisitar o relatório confidencial. A sua resposta, quer positiva quer
negativa, arruma a questão.
V
A seguir se transcreve o despacho do Sr. Juiz Presidente do Tribunal Colectivo,
constante de fls. 877 relativamente ao qual se arguiu posteriormente a
inconstitucionalidade:
“nos termos do artigo 4° da lei 101/2001 a autoridade judiciária só ordena a
junção ao processo do relato a que se refere n°5 do artigo 3°, se a reputar de
absolutamente indispensável em termos probatórios. Resulta dessa norma o
carácter altamente excepcional da divulgação do relatório ora requerido, O que
se compreende atendendo aos interesses em causa com o regime jurídico das acções
encobertas.
Importa, pois, apurar se no presente processo estamos perante a referida
excepção.
Assim, e independentemente da apreciação dos depoimentos prestados em audiência
de julgamento, entendemos que a junção do relato nada trazia de útil ou
necessário para a prova dos factos constantes dos autos. Se entendemos que nada
traria de útil ou necessário, por maioria de razão entendemos não ser
“absolutamente indispensável” nos termos legalmente exigidos.
Assim, por não se verificarem os pressupostos legais de que depende a junção aos
autos do relatório requerido, indefere-se ao requerimento.
No que respeito aos documentos agora juntos, os mesmos, embora indirectamente,
podem ser úteis à defesa do arguido com o objecto exposto em audiência de
julgamento.
De resto, assiste sempre ao arguido o direito de juntar o que tiver por
pertinente para a sua defesa.
Como tais documentos não se revelam impertinentes admite-se a sua junção.”
VI
É este e não outro o despacho que foi arguido de inconstitucional e
posteriormente mantido no recurso intercalar do T.R.E.
Ora, salvo o devido respeito, lido e relido não se vê como será possível afirmar
não ter o Sr. Juiz Presidente do Tribunal Colectivo ponderado a questão à luz do
artigo 4° da Lei 101/2001 de25 de Agosto.
VII
Competindo ao Tribunal Constitucional a apreciação da “in”constitucionalidade da
norma – dimensão normativa – critério normativo de que a decisão recorrida haja
feito efectiva aplicação importa, “in casu” ponderar se era ou não absolutamente
indispensável a requisição do relatório confidencial.
Na verdade, ao exigir-se, como parece que é feito até aqui, que a defesa do
recorrente prove a existência de uma acção encoberta com condição prévia da
aludida requisição do relatório confidencial cair-se-á no vício do raciocínio da
“petição do principio”: – não se pode lançar mão do relatório confidencial
porque não se provou a operação encoberta e não se pode provar a operação
encoberta porque não é requisitado o relatório confidencial.
Encontrada estaria assim a fórmula para a manutenção eterna do encobrimento da
operação encoberta, administrando-se assim a justiça apenas com a prova que o
M°P° entender conveniente apresentar em Juízo.
Fica de fora, o princípio constitucional do contraditório e da lealdade e
transparência dos actos judiciais.
Será isto que se pretende?
Será isto que a CRP propugna?
Nestes termos requer-se a realização de Conferência reiterando-se o pedido
formulado.
Assim se fazendo Justiça»
3 – O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional,
pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
4 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
«1 – A., identificado nos autos, recorre para o Tribunal
Constitucional, através de um longo e prolixo requerimento (fls. 1177 a 1224),
do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, de 16 de Junho de 2008,
que lhe negou provimento aos recursos intercalares e da decisão final
interpostos do acórdão proferido pelo tribunal colectivo do 1.º Juízo do
Tribunal Judicial de Montemor-o-Novo que o condenou pela prática, como autor
material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21.º,
n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, entre o mais, na pena de seis
anos de prisão.
2 – Do teor do seu requerimento resulta que o recorrente interpõe
recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.º 70.º da
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão, dada a circunstância de,
pretendendo demonstrar o cumprimento do ónus de prévia suscitação da questão de
constitucionalidade, alegar que o fez na audiência de julgamento, através de
registo na respectiva acta, e que o repetiu na motivação de recurso interposto
do acórdão do tribunal colectivo de 1.ª instância para o Tribunal da Relação de
Évora.
3 – Nesse requerimento o recorrente diz ter haver “arguido a
inconstitucionalidade do mencionado art.º 4.º da Lei n.º 101/2001 quando
interpretado no sentido constante do despacho (da 1.ª instância),
intercalarmente recorrido, no qual negou provimento ao recurso de todos os
factos recolhidos na investigação policial que hão-de completar o libélio
acusatório e têm de fazer parte indissoluvelmente do objecto do recurso”, “com
base na violação do art.º 32.º, n.º 1, n.º 5 e 8 da Constituição da República
Portuguesa e violação do art. 272.º da Constituição da República Portuguesa, sem
esquecer da violação da Convenção da Protecção dos Direitos do Homem, no seu
art.º 6.º, parágrafo 5.º”.
4 - Como é consabido, o objecto do recurso de fiscalização concreta
de constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da
Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, apenas pode
traduzir-se numa questão de (in)constitucionalidade da norma/dimensão
normativa/critério normativo de que a decisão recorrida haja feito efectiva
aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do aí decidido.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de
constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e
incidental) do recurso de constitucionalidade, tal como o mesmo se encontra
recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da
constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da
natureza da própria função jurisdicional constitucional (cf. José Manuel M.
Cardoso da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, 3.ª edição revista e
actualizada, pp. 40 e segs., e, entre outros, os Acórdãos n.º 352/94, publicado
no Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994, n.º 560/94, publicado
no mesmo jornal oficial, de 10 de Janeiro de 1995 e, ainda na mesma linha de
pensamento, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República II Série, de
20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o
Acórdão n.º 192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de
2000).
Na verdade, a resolução da questão de constitucionalidade há-de
poder, efectivamente, reflectir-se na decisão recorrida, implicando a sua
reforma, no caso de o recurso obter provimento, o que apenas se afigura possível
quando a norma cuja constitucionalidade o Tribunal Constitucional aprecie haja
constituído a ratio decidendi da decisão recorrida, ou seja, o fundamento
normativo do aí decidido.
Por outro lado, cumpre acentuar que, sendo o objecto do recurso de
fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas
que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no
recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em sim mesma ainda que e
quando esta faça aplicação directa de preceitos ou princípios constitucionais ou
o modo como a mesma determinou o direito infraconstitucional e o aplicou às
circunstâncias concretas do caso.
5 – Ora, examinado o acórdão recorrido, constata-se que, a norma
pretendida sindicar não foi aplicada pela decisão recorrida como fundamento da
decisão nela proferida.
Na verdade, o acórdão da 2.ª instância, acolhendo fundamentação do
acórdão de 1.ª instância, considerou, brevitatis causa, que “não ocorreu
qualquer intervenção de agentes encobertos”, pelo que “o relatório da suposta
operação encoberta seria, à partida, inobtenível”, mas “mesmo admitindo que por
mera hipótese de raciocínio, que tal relatório exista, não foram invocados
factos, no requerimento que foi objecto de indeferimento, que tornasse
absolutamente indispensável em termos probatórios, a sua junção aos autos”.
Tendo o tribunal a quo dado como provado que inexiste, na vida real,
o facto pressuposto na hipótese recortada pela norma cuja constitucionalidade se
pretende sindicar e a cuja verificação está associado o efeito jurídico nela
pretendido (a obrigação da elaboração de relatório sobre a intervenção do agente
encoberto), nunca pode considerar-se haver uma efectiva aplicação desse
preceito.
É certo que o acórdão recorrido elabora, depois, um raciocínio
académico ou hipotético de admissibilidade abstracta da existência do relatório,
e, em decorrência dessa hipotização, da possibilidade de aplicação da norma.
Mas um tal raciocínio, porque construído em abstracto, não pode
considerar-se efectivo fundamento da concreta decisão.
Por outro lado, mesmo situando-nos no domínio da admissibilidade
puramente intelectual do facto, impor-se-ia concluir que, ainda assim, a
conclusão tirada não se fundamentou na suposta aplicação da norma, mas em outro
preceito ou critério jurídico estranho à sua hipótese, qual seja o de o
requerente “não haver invocado factos, no requerimento que foi objecto de
indeferimento, que tornasse absolutamente indispensável em termos probatórios, a
junção aos autos” do pretendido relatório.
Finalmente, pode, ainda, notar-se que o recorrente dirige a
argumentação desenvolvida contra o decidido sobre a não requisição do relato do
agente encoberto, quer na motivação do recurso para o tribunal a quo, quer no
requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, não directamente
sobre a invalidade constitucional da norma/dimensão normativa/ou critério
normativo aplicado ao caso, por violação dos princípios do contraditório, da
igualdade de armas e de asseguramento de todas as garantias de defesa, a cuja
aplicação ao caso concreto seja devida concreta decisão tomada, mas directamente
sobre a correcção do “despacho recorrido”, apodando-o de violar tais princípios
constitucionais.
Já se viu, todavia, que não cabe na competência do Tribunal
Constitucional sindicar a correcção da decisão, seja no seu momento
determinativo do direito aplicando, seja no seu momento ponderativo-decisório
das circunstâncias do caso dentro do quadro legal predeterminado, mesmo quando
ela faça directa aplicação de normas ou princípios constitucionais.
De tudo flui que não pode tomar-se conhecimento do recurso de
constitucionalidade, por manifesta falta dos seus analisados pressupostos
específicos.
5 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 8UCs.».
B – Fundamentação
5 – Como se distrai do articulado da sua reclamação, o reclamante
não contesta, num único ponto, a fundamentação em que se estribou a decisão
sumária.
No seu arrazoado, o reclamante continua a censurar a decisão
judicial recorrida, em si própria, questionando-a no que importa à posição
tomada de não entender como útil ou necessário à decisão da causa a requisição e
junção aos autos de um alegado relatório relativo à actividade de um suposto
agente encoberto, ocorrida durante a investigação criminal.
Ora, esta dimensão da decisão recorrida, porque relativa à concreta
actividade judicativo-decisória relativa ao julgamento da matéria de facto e de
ponderação das provas produzidas nos autos não pode ser conhecida pelo Tribunal
Constitucional, pelas razões já aduzidas na decisão ora reclamada.
Temos, pois, de concluir pelo indeferimento da reclamação.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indferir a reclamação e condenar o reclamante nas custas, fixando a taxa
de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 23.09.2008
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos