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Processo n.º 524/08
2ª Secção
Relator: Conselheira João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. foi condenado por sentença proferida no processo n.º 333/02.1TASTC, do 2º
Juízo, do Tribunal de Santiago de Cacém, na pena de 3 anos de prisão, pela
prática de um crime de homicídio por negligência, p.p. pelo artigo 137,º, n.º 2,
do Código Penal.
O arguido recorreu desta sentença para o Tribunal da Relação de Évora que, por
acórdão proferido em 23-10-2007, concedeu parcial provimento ao recurso,
condenando o arguido pela prática de um crime de homicídio por negligência, p.p.
pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 24 meses de prisão.
Após ter solicitado a correcção e esclarecimento do acórdão do Tribunal da
Relação de Évora, o que foi indeferido por acórdão proferido em 15-4-2008, o
arguido interpôs recurso destes dois acórdãos para o Tribunal Constitucional,
nos termos do artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, nos seguintes termos:
“Com o esclarecimento ora prestado no D. acórdão de 15 de Abril de 2008 sobre os
termos da fundamentação do D. acórdão de 23 de Outubro de 2007, veio esse
Venerando Tribunal dizer que a condenação do arguido nestes autos numa pena de
24 meses de prisão pela prática de um crime de homicídio negligente, p.p. pelo
n.° 1 do art. 137° do Cód. Penal, não considerou a anterior condenação do
arguido pela prática do mesmo crime.
Por conseguinte, mesmo indeferindo o pedido dc esclarecimento e correcção da
fundamentação do acórdão de 23 de Outubro de 2007, não deixou esse Venerando
Tribunal de dar resposta ao pedido de esclarecimento formulado.
Na realidade, o arguido fora confrontado pela leitura do acórdão desse Tribunal
de 23 de Outubro de 2007, com a inclusão na factualidade dada como provada
(alínea ii, na pág. 26 do aresto) da aludida anterior condenação pela prática de
um crime de homicídio negligente.
O que, naturalmente, suscitou a dúvida legítima sobre a eventual ponderação
daquela anterior condenação da medida da pena aplicada no D. acórdão de 23 de
Outubro de 2007 dos presentes autos.
Tendo o arguido, de imediato, invocado que juntara aos presentes autos certidão
da decisão judicial proferida no anterior processo, nos termos da qual, à data
da prolação pelo Tribunal a quo da sentença ora recorrida (28/04/2005), a
decisão do aludido processo judicial não transitara em julgado, o que só ocorreu
em 12 de Dezembro de 2006 (cf. certidão que se junta como Doc. 1) pelo que esse
factor de graduação agravante fora indevidamente considerado na sentença
recorrida nos presentes autos.
Encontrando-se, portanto, agora assente que o arguido foi condenado nos
presentes autos, sem que para o efeito tenha sido considerada a anterior
condenação pela prática do mesmo crime, o presente recurso versa sobre a
apreciação da constitucionalidade da aplicação, no D. acórdão desse Tribunal de
23 de Outubro de 2007, dos arts. 71° e 40º do Cód. Penal na determinação da
medida da pena concretamente aplicada ao arguido.
A aplicação dos arts. 71° e 40° do Cód. Penal só se verificou com a prolação do
D. acórdão de 23 de Outubro de 2007 que, concedendo parcial provimento ao
recurso do arguido, procedeu à determinação e aplicação de nova medida da pena,
razão pela qual a questão de constitucionalidade que ora se invoca não podia ter
sido anteriormente suscitada nos autos, o que não obsta ao conhecimento do
presente recurso de constitucionalidade, conforme jurisprudência pacífica do
Tribunal Constitucional.
Porém, cumpre precisar que o recorrente, no pedido formulado para esclarecimento
e correcção da fundamentação do acórdão de 23 de Outubro de 2007 desde logo
suscitou a questão de constitucionalidade, em cumprimento do disposto no n.° 2
do art. 75°-A da Lei n.° 28/82 de 15 de Novembro, na actual redacção, pese
embora as limitações sentidas à data para o efeito, atenta a necessidade de
esclarecimento que só agora, com a prolação do acórdão de 15 de Abril de 2008,
ficaram satisfeitas.
Para tanto, o recorrente invocou:
“Ora, salvo o devido respeito, que é muito, o esclarecimento destas questões é
essencial e determinante para aferição no D. acórdão proferido da
proporcionalidade entre a pena aplicada e a culpabilidade, dos fundamentos que
determinaram a não suspensão da execução da pena de prisão, bem como da correcta
aplicação in casu do principio de “proibição de excesso” (n.° 2 do artº 40º do
Cód. Penal), consubstanciado na circunstância de, em caso algum, a medida da
pena pode ultrapassar a medida da culpa e só se revela possível mediante
expressa pronúncia no D. acórdão proferido, a qual totalmente omitida”.
Com efeito, entende o recorrente que a aplicação do art. 71° do Cód. Penal no D.
acórdão desse tribunal de 23 de Outubro de 2007 na determinação da medida da
pena concretamente aplicada ao arguido (24 meses de prisão) violou o princípio
da proporcionalidade ou da “proibição do excesso”, previsto no n.º 2 do art. 40°
do Cód. Penal, que constituiu um subprincípio concretizador do princípio do
Estado de Direito Democrático, ínsito no art. 2° da Constituição da República
Portuguesa (neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, em Fundamentos da
Constituição, Coimbra Editora, 1991, págs. 82-85).
Mais, o princípio da proporcionalidade ou da “proibição do excesso” violado pela
aplicação do direito no acórdão de 23 de Outubro de 2007 é ainda consagração do
princípio constitucional da restrição mínima do direito à liberdade pessoal
previsto nos n.°s 1 e 2 do art. 18° da Constituição da República Portuguesa e do
princípio que a doutrina tem denominado da necessidade das penas ou da máxima
restrição das penas.
Como se pode ler no D. acórdão n.° 164/2008 do Venerando Tribunal
Constitucional, proferido no proc. 1042/07, publicado na II Série do Diário da
República n.° 71, de 10 de Abril de 2008, “resulta deste princípio a asserção de
que a legitimidade das penas criminais depende da sua necessidade, adequação e
proporcionalidade, em sentido estrito, para a protecção de bens ou interesses
constitucionalmente tutelados; e o seu valor assenta na verificação de que
“qualquer criminalização e respectiva punição” (...) determina a restrição de
direitos, liberdades e garantias das pessoas (maxime, do direito à liberdade,
consagrado no n.° 1 do artigo 27° da Constituição). Ora, tal restrição só pode
justificar-se, nos termos do n.° 2 art 18°, quando se mostre necessária para a
salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”
Com efeito, as restrições e os condicionamentos dos direitos fundamentais só se
justificam quando, para além do mais, se mostrem necessários e adequados à
salvaguarda de outros direitos ou valores constitucionais e têm sempre que ser
proporcionados, pois, tratando-se de restrições, têm que deixar intocado o
conteúdo essencial do artigo 18° da Constituição (cf. acórdão n.º 392/89 do
Tribunal Constitucional, publicado na II Série do Diário da República, de 14 de
Setembro de 1989).
Ora, salvo o devido respeito, a aplicação in casu de uma pena de 24 meses de
prisão pela prática de um crime negligente, na forma simples, ultrapassa
largamente a medida da culpa do arguido, violando os invocados princípios
constitucionais com consagração na lei ordinária no art. 40° do Código Penal.
Trata-se, na realidade, de uma pena privativa da liberdade do arguido,
desproporcional, e que, inclusivamente, não teve subjacente a aplicação dos
princípios constitucionais citados, os quais foram objecto de recente
consagração na lei ordinária, através do regime de permanência na habitação,
previsto na nova redacção do art. 44º do Cód. Penal, que lhe foi dada pela Lei
59/2007, de 4 de Setembro, e do alargamento do regime da suspensão da execução
da pena de prisão, na nova redacção do art. 50° do Cód. Penal, que lhe foi dada
pela mesma Lei, que se encontram em vigor desde 15 de Setembro de 2007, isto é,
em data anterior à da prolação do acórdão de 23 de Outubro de 2007 dos presentes
autos.
A pena concretamente aplicada ao arguido nestes autos constitui, assim, uma
excessiva e desnecessária restrição do seu direito fundamental à liberdade
pessoal, sem que se mostre sequer demonstrada, na fundamentação do acórdão de
que se recorre, a necessidade da mesma para salvaguarda de outros direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos (que não se vislumbram), conforme
impõe o n.° 2 do art. 18° da Constituição.
E, a pena aplicada também não reflecte a intenção do legislador, na recente
alteração ao Cód. Penal, de substituir as penas de prisão pelo aludido regime de
permanência na habitação, ou de, preferencialmente, suspender a execução das
penas de prisão, cujo regime foi, como se referiu, alargado, tudo em prol do
princípio da máxima restrição das penas, o qual foi, assim, violado na aplicação
do direito no acórdão de que se recorre.
Do exposto, invoca-se a inconstitucionalidade da aplicação do direito perfilhada
no D. acórdão de 23 de Outubro de 2007 e no D. acórdão de 15 de Abril de 2008,
que indeferiu o pedido de esclarecimento e correcção da fundamentação do
primeiro, concretamente a determinação da medida da pena aplicada, a qual, não
ponderando a possibilidade de aplicação do regime de permanência na habitação,
previsto no art. 44° do Cód. Penal, ou o alargamento do regime de suspensão da
execução da pena de prisão, na nova redacção do art. 50° do mesmo Código, violou
os princípios constitucionais oportunamente invocados nos autos, bem como o
princípio doutrinário da necessidade das penas ou da máxima restrição das penas,
que são directamente aplicáveis e vinculam os Tribunais, ex vi do n.° 1 do art.
18° da Constituição da República Portuguesa.”
Foi proferida decisão sumária, em 2-7-2008, de não conhecimento do recurso, com
os seguintes fundamentos:
“No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência
atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já
não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões
judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a
inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é
imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é
discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual
depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e,
por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda
hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por
relevantes às particularidades do caso concreto.
No presente recurso pretende-se que se aprecie da constitucionalidade da pena
aplicada no caso concreto.
Não está em causa a conformidade constitucional de qualquer norma ou de qualquer
interpretação normativa dotada de suficiente abstracção e generalidade, mas sim
a aplicação duma determinada pena a uma situação concreta, pelo que a
inconstitucionalidade invocada é imputada à própria decisão.
Não admitindo o nosso sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade a
figura do denominado “recurso de amparo”, não pode ser conhecido este recurso,
devendo ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º
- A, n.º 1, da LTC.”
Desta decisão reclamou o recorrente, com a seguinte argumentação:
“1. Na decisão sumária proferida nos autos, refere o Senhor Conselheiro Relator
que “No presente recurso pretende-se que se aprecie da constitucionalidade da
pena aplicada no caso concreto.
Não está em causa a conformidade constitucional de qualquer norma ou de qualquer
interpretação normativa dotada de suficiente abstracção e generalidade, mas sim
a aplicação duma determinada pena a uma situação concreta, pelo que a
inconstitucionalidade invocada é imputada à própria decisão.
Não admitindo o nosso sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade a
figura do denominado “recurso de amparo”, não pode ser conhecido este recurso,
devendo ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo
78.º-A, n.º 1, da LTC.”
2. Salvo o devido respeito, que é muito, não pode o recorrente concordar com tal
interpretação sobre os fundamentos do recurso interposto, admitindo, todavia,
não ter logrado expressar-se com clareza no requerimento de interposição deste
recurso, o que motiva a apresentação desta reclamação.
3. Com efeito, do D. acórdão do Tribunal a quo, de 15 de Abril de 2008, que
esclareceu os termos da fundamentação do anterior acórdão do mesmo Tribunal, de
23 de Outubro de 2007, resulta que a condenação do ora recorrente numa pena de
24 meses de prisão pela prática de um crime de homicídio negligente, p.p. pelo
n.º 1 do art. 137º do Cód. Penal, não considerou a anterior condenação do
arguido pela prática do mesmo crime.
4. Não obstante, o recorrente fora confrontado pela leitura do acórdão do
Tribunal a quo de 23 de Outubro de 2007, com a inclusão na factualidade dada
como provada (alínea ii, na pág. 26 do aresto) da aludida anterior condenação
pela prática de um crime de homicídio negligente.
5. O que, naturalmente, suscitou a dúvida legítima sobre a eventual ponderação
pelo Tribunal a quo daquela anterior condenação na medida da pena aplicada no D.
acórdão de 23 de Outubro de 2007.
6. Assim, no presente recurso, pretende o recorrente colocar ao superior
julgamento desse Venerando Tribunal Constitucional a apreciação da
constitucionalidade da aplicação, em geral e abstracto, das normas dos arts.
71º e 40º do Cód. Penal, tal como o fez o Tribunal a quo no seu acórdão de 23 de
Outubro de 2007.
7. Embora se tratem de normas do Código Penal sobre a determinação da medida da
pena, que se reflectem concreta e casuisticamente, o que se pretende ver
apreciado neste recurso é o critério normativo, geral e abstracto, que preside à
aplicação concreta dessas normas em cada decisão judicial.
8. Na realidade, a aplicação do direito em sede de apreciação da
responsabilidade penal dos agentes e a sua punição em defesa do interesse
público e social, despida de critérios normativos ou alheia aos princípios
constitucionais vigentes, seria arbitrária, desigual e exclusivamente dependente
da sensibilidade concreta do julgador, em clara violação do princípio
constitucional do Estado de Direito Democrático.
9. Não se trata, pois, de apreciar a constitucionalidade da pena aplicada nos
presentes autos, mas, ao invés, de apreciar, precisamente, com carácter de
generalidade e com possibilidade de aplicação a outras situações, a
constitucionalidade da interpretação e aplicação realizada pelo Tribunal a quo
dos arts. 71º e 40º do Cód. Penal relativos à determinação da medida da pena.
10. Com efeito, entende o recorrente que a interpretação do art. 71º do Código
Penal realizada pelo Tribunal a quo, no sentido de aplicar uma pena efectiva de
prisão a um arguido pela prática de um crime negligente, na forma simples, sem
antecedentes do mesmo ilícito, ultrapassa largamente a medida proporcional da
culpa e é inconstitucional por tratar-se da aplicação de uma pena privativa da
liberdade, em clara violação do princípio da restrição mínima do direito à
liberdade pessoal, previsto nos n.ºs 1 e 2 do art. 18º da Constituição da
República Portuguesa e do princípio que a Doutrina tem denominado da necessidade
das penas ou da máxima restrição das penas.
11. Não está, pois, em causa no presente recurso a apreciação da
constitucionalidade da pena aplicada no caso concreto, mas antes a interpretação
e aplicação do direito realizada pelo Tribunal a quo dos arts. 71º e 40º do Cód.
Penal, enquanto critério normativo geral e abstracto de determinação das penas.
12. A interpretação e aplicação do direito pelo Tribunal a quo constitui, neste
como em qualquer outro caso similar, uma excessiva e desnecessária restrição do
direito fundamental à liberdade pessoal, sem que, reitera-se, se mostre sequer
demonstrada, na fundamentação do acórdão de que se recorre, a necessidade da
mesma para salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos (que não se vislumbram), conforme impõe o n.º 2 do art. 18º da
Constituição.
13. Daí ter-se invocado, no requerimento de interposição de recurso para esse
Venerando Tribunal, a inconstitucionalidade da aplicação do direito perfilhada
no D. acórdão de 23 de Outubro de 2007 e no D. acórdão de 15 de Abril de 2008,
que indeferiu o pedido de esclarecimento e correcção da fundamentação do
primeiro, concretamente dos arts. 71º e 40º do Código Penal, sem ponderar a
possibilidade de aplicação do regime de permanência na habitação, previsto no
art. 44º do Cód. Penal, ou o alargamento do regime de suspensão da execução da
pena de prisão, na nova redacção do art. 50º do mesmo Código, em clara violação
dos princípios constitucionais oportunamente invocados nos autos, bem como do
princípio doutrinário da necessidade das penas ou da máxima restrição das
penas, que são directamente aplicáveis e vinculam os Tribunais, ex vi do n.º 1
do art. 18º da Constituição da República Portuguesa.”
O Ministério Público respondeu, pronunciando-se pelo indeferimento da
reclamação, nos seguintes termos:
“1º - A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2º - Na verdade, – e face ao teor do requerimento de interposição do recurso – é
evidente que o ora reclamante não questiona qualquer critério normativo atinente
à escolha e determinação da medida concreta da pena, insurgindo-se antes contra
o modo como, no caso concreto e específico, o tribunal aplicou os critérios
legais, conduzindo à cominação de uma pena privativa de liberdade ao arguido.”
*
Fundamentação
A decisão reclamada entendeu não conhecer do recurso de constitucionalidade
interposto pelo reclamante por considerar que o recorrente pretendia a
apreciação da constitucionalidade da pena aplicada pela decisão recorrida, o
que escapa à competência do Tribunal Constitucional.
Na verdade, conforme se diz na decisão reclamada, no sistema português de
fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal
Constitucional cinge‑se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou
seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas
ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade
imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Alega agora o reclamante que não pretende que se aprecie a constitucionalidade
da pena aplicada nos presentes autos, mas sim a constitucionalidade da
interpretação e aplicação realizada pelo Tribunal a quo dos artigos 71º e 40º do
Código Penal relativos à determinação da medida da pena.
Se a aplicação ao caso concreto de determinadas normas se traduz numa operação
de subsunção que não compete ao Tribunal Constitucional fiscalizar, já
relativamente a uma interpretação dessas normas que se traduza na adopção de um
critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com
carácter de abstracção e generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a
outras situações, tem o Tribunal Constitucional competência para verificar a sua
constitucionalidade, quando integre a ratio decidendi da sentença recorrida.
Esclarece o recorrente na reclamação apresentada que com o recurso interposto
pretendia que o Tribunal verificasse a constitucionalidade da “interpretação do
art. 71º do Código Penal realizada pelo Tribunal a quo, no sentido de aplicar
uma pena efectiva de prisão a um arguido pela prática de um crime negligente, na
forma simples, sem antecedentes do mesmo ilícito”, uma vez que tal interpretação
“ultrapassa largamente a medida proporcional da culpa e é inconstitucional por
tratar-se da aplicação de uma pena privativa da liberdade, em clara violação do
princípio da restrição mínima do direito à liberdade pessoal, previsto nos n.ºs
1 e 2 do art. 18º da Constituição da República Portuguesa e do princípio que a
Doutrina tem denominado da necessidade das penas ou da máxima restrição das
penas.”
Além do recorrente no requerimento de interposição de recurso não ter
explicitado este critério normativo como sendo aquele cuja constitucionalidade
pretendia ver apreciado, e era nesse momento que tinha o ónus de o fazer, nos
termos do artigo 75º - A, n.º 1, da LTC, tal critério também não se encontra de
forma alguma enunciado com carácter de generalidade na decisão recorrida.
Na verdade, da leitura desta não se constata que aí se sustente que qualquer um
que cometa um crime negligente, na forma simples, sem antecedentes no mesmo
ilícito, deva ser condenado numa pena de prisão. O que na decisão recorrida se
entendeu é que o recorrente, ponderado o conjunto de circunstâncias concretas
apurado, devia ser punido com uma pena de 24 meses de prisão, pela prática de um
crime de homicídio por negligência, p.p. pelo artigo 137,º, n.º 1, do Código
Penal. Esta ponderação individualizada, traduz-se numa operação de subsunção que
o Tribunal Constitucional não tem competência para fiscalizar, como já se disse
na decisão sumária reclamada.
Assim, deve manter-se a decisão reclamada, indeferindo-se a reclamação.
*
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação deduzida por A. da decisão sumária
proferida nestes autos em 2-7-2008.
*
Custas da reclamação pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20
unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do
Decreto-lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 23 de Setembro de 2008
João Cura Mariano
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos