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Processo nº 410/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Em 8 de Janeiro de 2003, A., Lda., interpôs, no Supremo Tribunal
Administrativo, recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário de
Estado da Administração Educativa, de 17 de Julho de 2002, que aplicara à
recorrente, a título de sanção disciplinar – e ao abrigo do disposto no artigo
99º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 553/80 (Estatuto do Ensino Particular e
Cooperativo), bem como do disposto nos artigos 1º, alínea b) e 3º, alíneas c) e
g) da Portaria nº 207/98, de 28 de Março – a pena de multa de oito salários
mínimos nacionais, ordenando igualmente a reposição da importância de 75.972,18
euros.
Por Acórdão de 14 de Dezembro de 2005, o Supremo Tribunal Administrativo,
considerando improcedentes todas as conclusões das alegações da recorrente,
negou provimento ao recurso.
2. Inconformada, a recorrente intentou recurso para o Pleno da 1.ª Secção do
Supremo Tribunal Administrativo, entre o mais sustentando nas conclusões das
alegações de recurso:
I. O Dec.-Lei n° 553/80 de 21 de Novembro (Estatuto do Ensino Particular e
Cooperativo) é originariamente inconstitucional, na medida em que:
i) sem credencial parlamentar, regulou aspectos essenciais de uma liberdade
abrangida pelo regime de direitos, liberdades e garantias – a liberdade de
criação de escolas, enquanto dimensão específica da liberdade de ensino e de
educação (“liberdade de aprender e ensinar”) e como dimensão da liberdade de
iniciativa económica privada – e, consequentemente, pela reserva de lei, dando
assim corpo a uma inconstitucionalidade orgânica;
ii) remeteu para Portaria do Governo a regulação de matérias que, na versão da
CRP em vigor em 1980, já integravam a reserva relativa da Assembleia da
República: o Governo não estava autorizado pela Lei de Bases do Ensino
Particular e Cooperativo (Lei n° 9/79) a legislar sobre matéria de instituição
de ilícitos e sanções por infracções ao regime do ensino particular e
cooperativo.
II. Após a revisão constitucional de 1982, agudizou-se a inconstitucionalidade
do Dec.-Lei n° 553/80, em matéria de sanções a aplicar às escolas particulares e
cooperativas, em especial o seu Artigo 99°, passando então a existir também uma
inconstitucionalidade superveniente (inconstitucionalidade material e orgânica),
na medida em que, em violação do n° 5 do art. 115° da CRP (hoje n° 6 do art.
112° da CRP), passou a remeter em branco toda a matéria sancionatória para um
acto normativo de natureza regulamentar, operando a deslegalização de uma
matéria que, pela sua natureza, é de reserva legislativa;
III. A Portaria n° 207/98, publicada já após a revisão constitucional de 1982,
constitui um regulamento integrador de natureza substantiva e procedimental, em
violação do citado n° 5 do art. 115° da CRP;
IV. A inconstitucionalidade do artigo 99°-4 do Decreto-Lei n° 553/80 provoca,
por si só, a ilegalidade da Portaria n° 207/98 (inconstitucionalidade da lei
habilitante);
V. A Portaria n° 207/98 enferma de inconstitucionalidade orgânica, na medida em
que se ocupa de matérias que, nos termos da CRP, são da competência exclusiva da
Assembleia da República: regime de punição de infracções disciplinares e do
respectivo processo.
VI. Tal Portaria já não podia sequer “legislar” sobre o regime de punição de
infracções disciplinares e respectivo processo, por se tratar de matéria da
competência exclusiva da Assembleia da República (art. 165°, n° 1, d) da CRP).
VII. Daí que a sanção disciplinar aplicada com fundamento no Dec.-Lei n° 553/80
e Portaria n° 207/98, bem como as consequências financeiras dela decorrentes,
estão feridas de violação da lei (por ausência de suporte legal válido) e de
inconstitucionalidade, material e orgânica, sendo inevitável a sua anulação.
Por Acórdão de 23 de Janeiro de 2007, foi negado provimento ao recurso
jurisdicional, tendo o Pleno da 1.ª Secção de Contencioso Administrativo do
Supremo Tribunal Administrativo considerado, no ponto 5.1. da inerente
fundamentação, o seguinte:
No que respeita às questões apreciadas pelo acórdão recorrido, continua desde
logo a recorrente a persistir na questão da inconstitucionalidade das normas que
permitem a aplicação de sanções e ordem de devolução das quantias recebidas no
âmbito do contrato que a recorrente celebrou com os serviços da entidade
recorrida e cuja inconstitucionalidade configura, como se entendeu no Ac.
recorrido, bem como no acórdão do Pleno de 22.06.2006, essencialmente em três
dimensões:
“– o Decreto-Lei n.° 553/80, de 21 de Novembro, é organicamente inconstitucional
por não se basear em autorização legislativa, que a Recorrente entende
necessária para legislar sobre a instituição de ilícitos contraordenacionais e
respectivas sanções;
– subsidiariamente, defende que, após a revisão constitucional de 1982, aquele
Decreto-Lei n.º 553/80, em especial o seu art. 99.º, enferma de
inconstitucionalidade superveniente, material e orgânica, por afrontar o n° 5 do
art 115º da CRP, na redacção de 1982 (a que corresponde, actualmente, o n° 6 do
art. 112º);
– a Portaria n.° 207/98, de 28 de Março, emitida já depois da revisão
constitucional da 1982, constitui um regulamento integrador de natureza
substantiva e procedimental em violação do citado n° 5 do art 115º da CRP, na
redacção de 1982 violando ainda o disposto no art. 165º, n° 1, alínea d), da
CRP, por estabelecer normas sobre o regime de punição de infracções
disciplinares e respectivo processo, que é matéria inserida na reserva relativa
de competência legislativa da Assembleia da República.”.
Perante a verificação das alegadas inconstitucionalidades a sanção disciplinar
que lhe foi aplicada careceria, no entender da recorrente, de “suporte legal
válido”.
A alegada inconstitucionalidade foi decidida pelo acórdão recorrido (aderindo a
anterior jurisprudência do STA, nomeadamente ao decidido no ac. de 11.05.04,
rec. 2054 (posteriormente confirmado por unanimidade pelo Ac. do Pleno de
22.06.2006), nos seguintes termos:
“O despacho recorrido contém dois comandos distintos (quanto ao conteúdo
decisório, incluindo a natureza da matéria sobre que versam) ainda que
funcionalmente ligados.
Na primeira parte, o despacho aplica a sanção administrativa revista no art° 99°
do DL n° 553/80, de 21.11 e no n° 1. al. b) da Portaria n° 207/98, de 28.3, com
fundamento no não cumprimento do estipulado no contrato de associação celebrado
entre o Estado e o Instituto Vasco da Gama: na segunda, ordena a reposição nos
Cofres do Estado de determinada quantia e a devolução de outras (...), como
obrigação que resultaria daquela aplicação indevida dos apoios financeiros.
Ou seja, conforme se refere no citado acórdão de 11.05.04 (rec. 2054/02), «as
duas decisões, ainda que partindo do mesmo facto de incumprimento do contrato de
associação, retiram dele diferentes consequências, uma sancionatória e outra
constitutiva de deveres de prestar.
Os vícios que vêm apontados aos dois actos assentam em diferentes questões
jurídicas: os apontados ao primeiro acto são atinentes a questões do direito
sancionatório e os vícios apontados ao segundo assentam em questões da
disciplina dos contratos administrativos de associação, pelo que teremos de os
analisar em separado quanto a cada um dos pertinentes conteúdos decisórios».
(…)
As questões de inconstitucionalidade:
Estas questões foram profusa e correctamente analisadas no aludido acórdão de
11.5.04, pelo que, merecendo a nossa concordância transcreve-se o que a tal
respeito se ponderou no referido aresto:
“As questões de inconstitucionalidade suscitadas respeitam à aplicação de uma
sanção, pelo que é apenas nesta perspectiva que as passamos a analisar.
A precedência desta questão em relação às demais resulta do facto de a sua
eventual procedência deixar o acto sem suporte legal válido, pelo que uma
anulação com esse fundamento esgotaria desde logo a utilidade do recurso, uma
vez que o acto assim anulado seria irrepetível no enquadramento em que foi
praticado ou noutro homólogo.
(...)
Vejamos se procedem os fundamentos acima condensados.
A Lei 9/79 de 19 de Março estabeleceu as bases gerais do Ensino Particular e
Cooperativo e previu o respectivo desenvolvimento de modo que o n.º 5 do artigo
8.º incumbiu o Governo de estabelecer a regulamentação dos contratos de
concessão de apoios e subsídios e a respectiva fiscalização.
O DL 553/80, de 21.11, veio definir, em desenvolvimento daquela Lei um quadro
orientador, auto-denominado Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo,
maleável, sem a preocupação de exaustividade prescritiva, que remete para
legislação complementar toda a matéria susceptível de regulamentação especial
(referências retiradas do texto do respectivo preâmbulo).
Este Decreto‑Lei tal como a Lei que regulamenta assentam no princípio da
liberdade de aprender e ensinar compreendendo a liberdade dos pais de escolher e
orientar o processo educativo dos filhos – art. 2.º, n.º 1.
Para assegurar estas liberdades e direitos o diploma reconhece o dever do Estado
de apoiar a família nas despesas de educação dos filhos instituindo para o
efeito subsídios.
Uma das formas de subsidiar a educação que foi adoptada por este diploma é o
apoio financeiro às escolas particulares através de diversos tipos de contratos,
entre eles o contrato de associação que tem por fim possibilitar a frequência
das escolas particulares nas mesmas condições de gratuitidade do ensino público.
Estes contratos concedem às escolas além dos benefícios fiscais e financeiros
gerais um subsídio por aluno igual ao custo de manutenção e funcionamento por
aluno das escolas públicas de nível e grau equivalente (art. 15.º).
Em contrapartida, os contratos de associação obrigam as escolas nos termos do
artigo 16.º a efectivar o ensino em termos de custos de acordo com o orçamento
anual de gestão a apresentar e para controle desta execução obriga à
apresentação de balancetes trimestrais e o balanço e contas anuais ao Ministério
da Educação (al. e) e f).
Além destas obrigações as escolas particulares estão adstritas ao dever de
“responder pela correcta aplicação dos subsídios, créditos e outros apoios
concedidos – artigo 41.º n.º 1 al. d).
E, nos termos do artigo 99.° n.º 1:
“Às entidades proprietárias de escolas particulares que violem o disposto neste
decreto lei podem ser aplicadas pelo Ministério da Educação ... as seguintes
sanções, de acordo com a natureza e gravidade da violação:
a) Advertência;
b) Multa de valor entre dois e vinte salários mínimos nacionais;
c) Encerramento definitivo.”
E o nº 4 do mesmo artigo dispõe:
“A cominação de sanções será objecto de regulamentação específica, a definir por
Portaria dos Ministros das Finanças e do Plano e da Educação e Ciência, ouvido o
Conselho Consultiva do Ensino Particular e Cooperativo.”
Por seu lado o artigo 101° n.° 2 estatui que:
“As questões relativas a subsídios ou outros benefícios de natureza financeira
ou fiscal serão decididas por despacho conjunto dos Ministros das Finanças e do
Plano e da Educação e Ciência.”
A regulamentação específica para a cominação de sanções, prevista pelo n° 4 do
artigo 99° viria a surgir com a publicação da Portaria 207/98, de 28 de Março,
aprovada pelos Ministros das Finanças e da Educação.
Nela se determina sob o n° 3:
“A pena de multa de valor entre 2 e 20 salários mínimos nacionais é aplicada às
pessoas singulares ou colectivas titulares de estabelecimentos de ensino
particular e cooperativo que violem disposições legais, nomeadamente quando:
a) Violem o estabelecido no artigo 94° do Estatuto.
[…]
g) Apliquem indevidamente os apoios financeiros concedidos.”
À data da emissão da Portaria estava em vigor o CPA que prevê em termos gerais,
para todo e qualquer acto administrativo, na alínea e) do artigo 180° o poder da
Administração de aplicar as sanções previstas para a inexecução ou indevida
aplicação dos apoios concedidos através do contrato.
Portanto, é neste contexto que importa averiguar das inconstitucionalidades
apontadas pela recorrente.
Desde logo importa saber se a autorização parlamentar para o Governo regular as
matérias em causa era necessária, e sendo-o em que termos deveria ser concedida
e só por fim determinar se o DL 553/80 estava ou não autorizado a legislar sobre
os ilícitos e as correspondentes sanções por incumprimento das normas que
regulam o ensino particular e cooperativo.
A Lei nº 9/79 estabeleceu as bases gerais do Ensino Particular e Cooperativo e o
n° 5 do artigo 8.° incumbiu o Governo de estabelecer a regulamentação dos
contratos de concessão de apoios e subsídios e a respectiva fiscalização através
da sua competência legislativa normal por decreto lei, nos termos da al. c) do n
° 1 do artigo 201º, da versão original da Constituição em vigor à data do DL
553/80 de fazer o desenvolvimento dos princípios e bases gerais do regime
contido naquela Lei e circunscrevendo-se ao âmbito desta.
A Lei de Bases não é uma lei de autorização para o Governo legislar em matérias
reservadas ao Parlamento, mas uma lei com um conteúdo regulador de enquadramento
geral que por si só e com os limites resultantes de não extravasar do conteúdo
da Lei permitem e legitimam o desenvolvimento do respectivo regime.
Nestas circunstâncias deve considerar-se a previsão das sanções pelo DL 553/80
dentro do limite do regime jurídico da Lei nº 9/79 que contém as bases gerais,
como sendo normas indispensáveis à garantia de efectividade do regime jurídico,
sabido o papel central que o aspecto sancionatório desempenha.
Assim, quando uma lei estabelece um regime geral através de princípios e bases
tem de entender-se que o poder de estabelecer o regime sancionatório
correspondente está circunscrito no âmbito desses princípios e bases, como
elemento indispensável à respectiva aplicação e, assim, o Governo pode legislar
sobre estes aspectos desde que o regime sancionatório adoptado em concreto não
esteja sujeito a outras limitações, como sucede com as reservas de competência
absoluta ou relativa do Parlamento, as quais não podem ser superadas pela
existência de uma Lei de Bases sobre outra matéria, mesmo quando o Governo
legislar no respectivo desenvolvimento.
No caso, estamos perante um regime contratual em que as sanções por inexecução
são sanções administrativas previstas pelo Decreto lei de desenvolvimento da Lei
de Bases do Ensino Particular e Cooperativo e também pelo artigo 180º al. e) do
CPA, disposição que permite sustentar em geral a exercício deste poder pela
Administração, nos termos que vamos adiante analisar.
O facto de as sanções contratuais terem sido equiparadas a sanções disciplinares
para efeitos de procedimento não altera a respectiva natureza de sanção
contratual, tudo sem prejuízo de seguirem o mesmo regime de procedimento e até
da respectiva prescrição bem como a mesmo regime procedimental das sanções
disciplinares, e sem perder as suas características substantivas diferentes.
Neste contexto importa realçar que a limitação de reserva de lei parlamentar
sobre o regime geral das infracções disciplinares e do ilícito de mera ordenação
social, hoje existente, surgiu posteriormente à emissão do DL 553/80, com a
revisão constitucional de 1982, pelo que aquele Decreto Lei podia prever sanções
do tipo que enuncia no artigo 99° sem ofensa das disposições constitucionais
sobre a hierarquia das fontes de direito.
De qualquer modo quando foi emitida a Portaria que especificou as sanções em
causa estavam aprovadas as bases gerais do regime das contra ordenações bem como
o regime geral das infracções disciplinares, com respeito da reserva
parlamentar, pelo que também nesta perspectiva não existiam obstáculos de
natureza constitucional a que o DL 553/80 e a Portaria 207/98 estatuíssem sobre
o regime sancionatório das infracções às normas daquele decreto lei.
Certo é também que o Dec. Lei 553/80 não tinha de cumprir regras constitucionais
como a posteriormente introduzida como n° 5 do artigo 115° da Const. de 82,
inexistentes à data da sua emissão, nem as limitações orgânico‑formais na sua
génese têm de ser avaliadas em face de norma constitucional introduzida em
revisão posterior.
Portanto, uma primeira conclusão se impõe: – O DL 553/80 não necessitava de
autorização Parlamentar para dispor como fez sobre matéria de ilícito e seu
sancionamento por desrespeito das normas que regulam os estabelecimentos
particulares e cooperativos em desenvolvimento das bases gerais do sistema de
ensino.
Mas, a conclusão do processo legislativo previsto naquele Decreto Lei que
consistiu em prever as sanções aplicáveis sem regular especificadamente as
situações a que seriam concretamente aplicadas tem de se confrontar com a
alteração constitucional superveniente uma vez que se tratou de um processo
legislativo reconhecidamente incompleto e que prosseguiu com a emissão de uma
Portaria autorizada expressamente pelo Decreto Lei no domínio da Constituição de
76, depois emitida no domínio de aplicação do texto constitucional revisto em
1982, que proibiu qualquer lei de conferir a acto de outra natureza o poder de,
com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar
qualquer dos seus preceitos (n° 5 do artigo 115° da Const. na revisão de 1982).
Ou seja, relativamente à inconstitucionalidade que vem assacada à Portaria,
verificamos que esta veio retomar a regulação de situações previstas no Dec. Lei
553/80, pelo enunciado das sanções aplicáveis e pela regra de que as sanções
seriam, cada uma de per si, aplicáveis a situações a especificar de acordo com a
natureza e a gravidade dessas situações.
A Portaria regulamentou uma lei em sentido formal (decreto lei) que lhe concedeu
validamente, como vimos, a competência para efectuar aquela regulamentação.
Desta perspectiva não haveria que retornar à questão de determinar se o DL
553/80 podia validamente conferir a uma Portaria o poder de regular aquelas
situações, assente como está que o fez validamente em face dos condicionamentos
existentes no momento em que o Decreto Lei foi emitido.
Já da perspectiva do processo legislativo incompleto que o próprio DL 553/80
reconhece, poderia exigir-se a conformação das normas materiais prevendo as
especificidades do sancionamento com a nova exigência constitucional se houvesse
de entender-se que aquelas especificações eram necessariamente matéria de
reserva de lei em sentido formal, ainda que reserva de decreto lei do Governo e
por isso mesmo não poderiam ser objecto de diploma regulamentar.
Mas, esta averiguação é inútil porque não existem matérias reservadas à
competência legislativa do Governo (salvo quanto à sua própria orgânica), nem
reserva material de regulamento, no direito constitucional português.
Esta constatação, porém, não esgota o problema, porque o nº 5 do artigo 115° da
Const. na redacção de 1982 não contém apenas um parâmetro formal de controle do
grau normativo, antes significa e tem sido entendido (na falta de parâmetros de
delimitação de matérias a tratar por lei ou regulamento) como constituindo uma
limitação material, com o sentido de exigência de a lei em sentido formal ter de
atingir um grau de densidade reguladora ou um patamar de concretização tal que
não permita transferir para diplomas de hierarquia inferior a sua interpretação
e integração.
Ou seja, este critério material abriga-nos a retornar ao próprio DL 553/80 para
aferir se ele se coaduna com esta exigência material, uma vez que não tendo de
submeter-se aos critérios formais da lei constitucional nova, tem no entanto de
se conformar com os novos critérios e exigências materiais sob pena de
inconstitucionalidade.
Importa pois decidir sobre se a regulação constante do DL 553/80 ainda que
incompleta, estará incompleta do ponto de vista das necessidades sentidas para a
respectiva aplicação, ou se está incompleta do ponto de vista da densidade
reguladora que a lei tem de atingir de modo a satisfazer o requisito de não
deixar a outro instrumento normativo de grau inferior espaços cujo preenchimento
haja de qualificar‑se como interpretação e integração da lei.
Esta análise terá de ter em mente que a exigência de densificação reguladora não
pode ir ao ponto de retirar espaço aos regulamentos de aplicação.
Apesar das dificuldades do problema teórico, o que nos interessa sobretudo é
encontrar a solução concreta para o que ocorre em relação a este DL 553/80.
Ora, nele prevêem-se os ilícitos a que vai aplicar-se, que são as violações de
disposições contidas naquele decreto lei, prevêem-se os respectivos agentes, e
distingue-se entre as violações de deveres pelas escolas particulares e pelos
directores pedagógicos, enunciam-se as sanções aplicáveis e estabelece-se o
critério geral de que tais sanções serão especificamente aplicáveis de acordo
com a natureza e gravidade das situações, sendo essas especificações a regular
por Portaria. Está, portanto, estabelecido na lei uma escala graduada por
gravidade das sanções a aplicar tal como está enunciado o critério de que aquela
escala crescente de gravidade de penas terá correspondência na previsão de
situações concretas de aplicabilidade igualmente escolhidas pela sua natureza e
por forma crescente de gravidade.
As sanções e os critérios foram inteiramente expressos no decreto lei e as
situações de violação foram definidas e completamente limitadas pelas próprias
normas do mesmo diploma, ficando apenas sem especificação os agrupamentos
relacionais entre cada grupo de violações e a sanção.
Ora, se nos interrogarmos à luz da concepção da teoria geral do direito sobre a
integração da lei, se a Portaria veio integrar o art° 99° do DL 553/80 a
resposta é necessariamente afirmativa Mas, neste sentido todos os regulamentos
podem ser qualificados de integrativos na medida em que vêm acrescentar algo
necessário à aplicação da lei.
De modo que o conceito de integração da lei que é usado no n° 5 do artigo 115°
da Const não pode ser o conceito de integração das lacunas da lei que é usado
pela teoria geral do direito civil.
A exigência constitucional parece antes dever entender-se como proibição de a
lei efectuar pelo reenvio a transformação do regulamento em fonte de normação
primária e por outro lado exigência de que a lei de atinja um grau de
concretização ou densificação reguladora que permita determinar os elementos
essenciais das relações que regula em termos orientadores quanto à direcção das
soluções (no caso de sanções, partindo também da definição precisa do respectivo
conteúdo) e delimitadores quanto à abrangência, mas sem necessidade de
concretizar ou especificar todos os aspectos necessários à aplicação, os quais
podem ser objecto de regulamento.
Isto é, no caso em análise, não apenas o efeito jurídico, mas também os
pressupostos de facto na parte que respeita à previsão das situações cuja
violação dá lugar àquelas sanções estão definidas por lei formal de
desenvolvimento de bases gerais – decreto lei – e os critérios de distribuição
graduada das sanções segundo cada situação de facto não foram deixados pela lei
à discricionariedade regulamentar, impondo-lhe orientação precisa, pelo que
temos de concluir que é a lei e não a actividade regulamentar que estabelece a
definição primária das relações entre o Estado e os particulares.
O que está vedado pelo n° 5 do artigo 115º actualmente n° 6 do artigo 112° (Lei
Const 1/2001) é que a lei confira ao regulamento de execução a possibilidade de
integrar, sem vinculação a critérios pré-definidos pela própria lei, as opções
relativas ao modo de resolver certas situações ou grupos de situações. Se a lei
estabelecer os critérios de decisão das situações que prevê e as delimitar
suficientemente, a integração deixa de ser integração de opções legislativas,
mas passa a ser integração dos modos de a aplicar, sendo que esta última não é
visada pela exigência do critério material de reserva de lei que se pode retirar
do inciso constitucional.
São estes regulamentos executivos permitidos pela norma constitucional “os que
se limitam a esclarecer e precisar o sentido das leis ou de determinados
pormenores necessários à sua boa execução” como se pode ver dos Ac. do TC n.°
174/93 ACT 24.º vol. Pág. 57 e Ac TC 289/2004 de 27 de Abril de 2004. Também o
Ac. do TC 70/2004/T in DR II Série, de 7.5.2004 se refere a este sentido de
reserva material ou conteudística da lei” como exigência de a lei conter em si,
essencialmente, o critério de decisão das situações concretas, para concluir por
uma exigência mitigada do princípio da tipicidade fiscal, raciocínio
transponível para o problema que nos detém da tipicidade da norma sancionatória.
Considera-se, portanto, que a integração da previsão do artigo 99º, do DL 553/80
que é efectuada pela Portaria 207/98, de 28 de Março, respeita apenas a aspectos
de aplicação estando as situações a que se aplicam as sanções e o conteúdo
destas previstos no decreto lei, tal como as orientações sobre cada grupo de
situações que integrariam a aplicação de cada uma das sanções, pelo que a
definição dos quadros gerais dos aspectos garantísticos dos direitos individuais
afectados pelas sanções estava efectuada e não foi violado o disposto no n.° 5
do artigo 115º da Const. na redacção vigente à data da emissão da Portaria, que
era a introduzida pela revisão constitucional de 1982.
De resto o contrato celebrado com a recorrente remete expressamente para a
Portaria pelo que as sanções contratuais estavam especificadarnente previstas
quando da respectiva celebração e vêm atacadas apenas quanto aos pressupostos da
sua existência enquanto tal e não pelo seu conteúdo, pelo que não procedem os
vícios que se pretendia decorrerem do uso deste poder da Administração.
A posição, adoptada no acórdão recorrido que acaba de se transcrever, foi aquela
que foi adoptada entre outros nos acórdãos do Pleno de 21-3-2006, Rec 20/03 e de
22.06.2006, rec. 2054/02, pelo que aqui mais uma vez se acompanha e para cuja
doutrina se remete, já que não vislumbramos argumentos com força suficiente para
dela divergir.
Acresce que, como se entendeu ainda no ac. de 22.06.2006, “o art. 165.°, n.° 1,
alínea d), da CRP não insere no âmbito da reserva relativa de competência
legislativa da Assembleia da República toda a matéria da punição das infracções
disciplinares e do respectivo processo, mas apenas o seu regime geral.”.
Por isso e no seguimento dos citados acórdãos, conclui-se igualmente como no
acórdão recorrido, que as referidas normas do Decreto-Lei n.° 553/80 e da
Portaria n.° 207/98, não enfermam dos vícios de inconstitucionalidade que lhe
são imputados pela Recorrente, improcedendo por isso o alegado nas conclusões I
a VII.
3. Trouxe então a recorrente recurso ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), “para apreciação concreta da
constitucionalidade (orgânica) do Dec.Lei n° 553/80, de 21 de Novembro, da
constitucionalidade (material e orgânica) do Artigo 99° daquele Diploma, e da
constitucionalidade (orgânica) e ilegalidade (por inconstitucionalidade da lei
habilitante) da Portaria
n° 207/98, de 28 de Março, designadamente do seu artigo lº b) e do seu artigo 3º
c) e g)”.
4.Admitido o recurso, concluiu assim a recorrente as suas alegações no sentido
da inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 553/80, de 21 de Novembro, e da
Portaria n.º 207/98, de 28 de Março:
1. O Dec.-Lei nº 553/80 de 21 de Novembro (Estatuto do Ensino Particular e
Cooperativo) é originariamente inconstitucional, na medida em que:
a. sem credencial parlamentar, regulou aspectos essenciais de uma liberdade
abrangida pelo regime de direitos, liberdades e garantias – a liberdade de
criação de escolas, enquanto dimensão específica da liberdade de ensino e de
educação (“liberdade de aprender e ensinar”) e como dimensão da liberdade de
iniciativa económica privada – e, consequentemente, pela reserva de lei, dando
assim corpo a uma inconstitucionalidade orgânica;
b. remeteu para Portaria do Governo a regulação de matérias que, na versão da
CRP em vigor em 1980, já integravam a reserva relativa da Assembleia da
República: o Governo não estava autorizado pela Lei de Bases do Ensino
Particular e Cooperativo (Lei n° 9/79) a legislar sobre matéria de instituição
de ilícitos e sanções por infracções ao regime do ensino particular e
cooperativo.
II. Após a revisão constitucional de 1982, agudizou-se a inconstitucionalidade
do Dec.-Lei nº 553/80, em matéria de sanções a aplicar ás escolas particulares e
cooperativas, em especial o seu Artigo 99º, passando então a existir também uma
inconstitucionalidade superveniente (inconstitucionalidade material e orgânica),
na medida em que, em violação do nº 5 do art. 115 da CRP (hoje nº 6 do art. 112º
da CRP), passou a remeter em branco toda a matéria sancionatória para um acto
normativo de natureza regulamentar, operando a deslegalização de uma matéria
que, pela sua natureza, é de reserva legislativa;
III. A Portaria nº 207/98, publicada já após a revisão constitucional de 1982,
constitui um regulamento integrador de natureza substantiva e procedimental, em
violação do citado nº 5 do art. 115º da CRP;
IV. A inconstitucionalidade do artigo 99º‑4 do Decreto-lei nº 553/80 provoca,
por si só, a ilegalidade da Portaria nº 207/98 (inconstitucionalidade da lei
habilitante);
V. A Portaria nº 207/98 enferma de inconstitucionalidade orgânica, na medida em
que se ocupa de matérias que, nos termos da CRP, são da competência exclusiva da
Assembleia da República: regime de punição de infracções disciplinares e do
respectivo processo.
VI. Tal Portaria já não podia sequer “legislar” sobre o regime de punição de
infracções disciplinares e respectivo processo, por se tratar de matéria da
competência exclusiva da Assembleia da República (art. 165, nº 1, d) da CRP).
Por sua vez, o Secretário de Estado da Administração Educativa apresentou
contra-alegações, onde concluiu:
1. O Decreto-Lei n.° 553/80, de 21 de Novembro, não padece de qualquer
inconstitucionalidade material e orgânica, pois a Lei de Bases do Ensino
Particular e Cooperativo (Lei n.° 9/79, de 19 de Março), aprovada pela
Assembleia da República, autorizava o Governo, no art.° 17°, a publicar por
decreto-lei, o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, de acordo com os
princípios anteriormente definidos naquela Lei.
2. Pelo que, não existe violação do preceito constitucional – alínea d) do n.° 1
do art.° 165° da Constituição da República Portuguesa –, pois o regime geral do
direito disciplinar que constitui matéria legislativa da competência exclusiva
da Assembleia da República, foi, por autorização prévia, concedida ao Governo
(art.° 17° da Lei n.° 9/79) para legislar por decreto-lei as normas que enformam
o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, de acordo com os princípios
estabelecidos naquela Lei.
3. Nem tão pouco a Portaria n.° 207/98, de 28 de Março, está ferida reflexamente
de inconstitucionalidade material e orgânica, pois limita-se a estabelecer a
cominação das sanções disciplinares definidas no Estatuto do Ensino Particular e
Cooperativo, ao abrigo de autorização legal prévia (n.° 4 do art.° 99° do
Decreto‑Lei n.° 553/80).
4. A limitação de reserva de lei parlamentar sobre o regime geral das infracções
disciplinares, surgiu com a revisão constitucional de 1982 (art.° 115° n.° 5),
pelo que o Dec-Lei n.º 553/80 podia prever sanções, tal como o fez no citado
art.° 99°, sem ofensa dos normativos constitucionais à data em vigor.
5. No que diz respeito à Portaria n.° 207/98, esta limitou-se a regulamentar
matéria prevista no Decreto-Lei n.° 553/80, especificando as situações que se
enquadram no enunciado das sanções, de acordo com a gravidade e natureza das
situações.
6. O Decreto-Lei n.° 553/80 previu as sanções a aplicar às entidades
proprietárias e aos directores pedagógicos das escolas particulares que
violassem os deveres consignados naquele diploma, prevendo igualmente as
situações a que correspondem cada uma das sanções, ficando apenas para momento
posterior a regulação de situações previstas naquele Decreto-Lei e a
especificação das situações, de acordo com a natureza e a gravidade dessas
situações, o que veio a acontecer com a publicação da Portaria n.° 207/98.
7. Aquela Portaria regulamentou o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo
(Dec-Lei nº 553/80), não tendo introduzido quaisquer inovações àquele diploma,
não exorbitando, deste modo, o âmbito próprio do regulamento.
8. Assim, não existe qualquer violação do preceito constitucional, introduzido
na revisão da Constituição de 1982 (art.° 115° n.° 5), actualmente art.° 112°
n.° 6, pois não se pode falar em integração de normas no sentido previsto
naquele normativo.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
A)
A questão de constitucionalidade
5. O contexto da questão
A questão de constitucionalidade que o presente recurso coloca ao Tribunal pode
ser delimitada – como decorre, aliás, do relato que acabou de se fazer – do
seguinte modo:
A recorrente A. celebrou com o Estado português (Ministério da Educação) um
contrato de associação nos termos do qual o Colégio (da recorrente) assumia a
obrigação de prestar serviços de ensino no âmbito da escolaridade obrigatória
mediante a percepção de apoios financeiros públicos.
Na sequência de um processo disciplinar instaurado pelo Secretário de Estado da
Administração Educativa à recorrente – com fundamento em eventual incumprimento,
por parte desta, das obrigações decorrentes do contrato de associação –, veio a
mesma a ser condenada no pagamento de multa de oito salários mínimos nacionais,
bem como na obrigação de reposição, nos cofres do Estado, de um certo montante
em dinheiro, tudo isto ao abrigo do disposto no artigo 99º do Decreto-Lei nº
553/80 e nos artigos 1º, alínea b), e 3º, alínea c) e g), da Portaria nº 207/98,
de 28 de Março.
Do despacho do Secretário de Estado que a condenara nas sanções disciplinares
atrás referidas interpôs a recorrente A. recurso contencioso de anulação junto
da 1ª secção do Supremo Tribunal Administrativo. Tal recurso não veio a obter
provimento. Inconformada, recorre então a A. para o pleno daquela mesma secção:
uma vez mais, porém, confirma o Supremo Tribunal a decisão recorrida, recusando
conceder provimento ao recurso.
Nas suas alegações junto do Supremo Tribunal Administrativo, suscitara a
recorrente três questões de inconstitucionalidade relativamente às normas (acima
referidas, e constantes do Decreto-Lei nº 533/80 e da Portaria nº 207/98) que
permitiam, in casu, a aplicação das sanções disciplinares. Foram elas: (i) a
questão da inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei nº 533/80; (ii) a
questão da inconstitucionalidade orgânica e material das normas contidas no
artigo 99º do mesmo Decreto-Lei; (iii) a questão da inconstitucionalidade das
normas (atrás referidas) constantes da Portaria nº 207/98.
São estas mesmas questões que voltam a ser repetidas no recurso que é interposto
para o Tribunal Constitucional.
Com efeito, foi a elas – e a todas elas – que respondeu negativamente o Supremo
Tribunal Administrativo (fls. 526 e ss. dos autos), pelo que é desta ‘resposta’,
que aplicou norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo
(artigo 280, n.º 1, alínea b) da Constituição), que agora se recorre.
6. O âmbito do pedido
Objecto do juízo de constitucionalidade é, pois, o direito sancionatório
disposto em conjunto pelo Decreto-Lei nº 553/80 e pela Portaria nº 207/98.
O Decreto-Lei nº 553/80 aprovou o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo
para o nível não superior. No nº 1 do seu artigo 99º estabeleceu que às
entidades proprietárias das escolas particulares pudessem ser aplicadas pelo
Ministro da Educação as penas de advertência, de multa e de encerramento
(provisório ou definitivo) da escola, «de acordo com a natureza e a gravidade da
infracção», e sempre que estivesse em causa a «[violação] do disposto neste
decreto-lei».
Por seu turno, dispôs o nº 4 do mesmo artigo:
A cominação de sanções será objecto de regulamentação específica, a definir por
portaria dos Ministros das Finanças e do Plano e da Educação e Ciência, ouvido o
Conselho Consultivo do Ensino Particular e Cooperativo.
Em cumprimento desta remissão legal, veio a Portaria nº 207/98 regulamentar o
direito sancionatório já definido no Decreto-Lei nº 553/80. Fê-lo antes do mais
numa dimensão substantiva, já que densificou a alusão genérica à «violação do
disposto n[o] decreto-lei». O artigo 1º da Portaria identifica os tipos legais
violados e gradua as sanções a aplicar em função desses mesmos tipos. Depois, a
Portaria regulamenta o direito sancionatório também numa dimensão adjectiva, já
que elege o processo disciplinar como procedimento a adoptar na aplicação das
sanções (artigo 11º), determinando a aplicação subsidiária do Estatuto
Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e
Local (artigo 12º).
Foi, portanto, ao abrigo de todo este direito sancionatório, estatuído em
conjunto pelo Decreto-Lei nº 553/80 e pela Portaria nº 207/98, que veio a
recorrente a ser condenada nas sanções disciplinares atrás referidas. Mais
precisamente, veio a sê-lo nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 99º do
decreto-lei (que prevê a aplicação de multa de valor entre dois e vinte salários
mínimos nacionais), e das alíneas c) e g) do artigo 1º da Portaria (que
determina condenação em multa quer para os casos de não prestação das
informações solicitadas, nos termos da lei, pelo Ministério da Educação, quer
nos casos de aplicação indevida dos apoios financeiros concedidos).
No recurso de constitucionalidade não se questiona a ‘dimensão interpretativa
concreta’ com que estas normas foram aplicadas pela decisão recorrida. O que se
questiona – na sequência das alegações apresentadas, e na sequência da resposta
que lhes foi dada pela sentença de que se interpôs recurso – é o modo do seu
surgimento no ordenamento jurídico.
Diz-se, antes do mais, que é organicamente inconstitucional o Decreto-Lei nº
553/80 por ser ele acto legislativo governamental que invadiu a reserva de lei
parlamentar. Depois, diz-se que são inconstitucionais as normas que se consagram
no seu artigo 99º por terem elas, especificamente, violado a proibição de
deslegalização decorrente hoje do nº 5 do artigo 112º da Constituição.
Finalmente, diz-se que são inconstitucionais as normas relevantes da Portaria nº
207/98 por disporem elas sobre matéria que é reservada à função legislativa. A
violação da reserva de lei parlamentar, por um lado, e a violação da reserva da
função legislativa, por outro, formam as razões pelas quais se questiona a
validade constitucional do direito no caso aplicado: tais razões dizem portanto
respeito, não ao sentido das normas, mas ao modo do sua aparição no ordenamento
jurídico.
A ordem da colocação das questões obedece a uma sequência lógica.
Com efeito, e como a inconstitucionalidade orgânica é, em geral, um vício do
acto legislativo, se se entender que é inconstitucional, por violação da reserva
de lei parlamentar, o Decreto-Lei nº 553/80, prejudicada fica a necessidade de
averiguação de todas as outras questões. Não será então já necessário saber se
as normas contidas no seu artigo 99º lesam, especificamente, a proibição de
deslegalização constante do nº 5 do artigo 112º da Constituição, visto já se ter
obtido quanto a elas um juízo de constitucionalidade; como não será necessário
saber se são ou não inconstitucionais – desta feita, por violação da reserva de
função legislativa – as normas da Portaria nº 207/98, que perderão naturalmente
a sua habilitação legal caso seja negativo o juízo quanto à constitucionalidade
do acto legislativo que autorizara a sua emissão.
Por outro lado, se se concluir que o Decreto-Lei nº 553/80 não invadiu a reserva
de lei parlamentar e não é, por nenhum outro motivo, organicamente
inconstitucional, o juízo quanto à eventual inconstitucionalidade – por
«deslegalização» proibida – das normas contidas no seu artigo 99º não será
apenas, em si mesmo, necessário como continuará a ser prejudicial da questão
colocada em último lugar. É que também aqui perderão as normas da portaria a sua
habilitação legal, caso se conclua que é inconstitucional (mas já não por razões
orgânicas) o regime de direito sancionatório estabelecido pelo artigo 99º do
Decreto-Lei nº 553/98.
Sendo esta a ordem lógica de colocação das questões, por ela se ordenará também
a resposta que, agora, ao Tribunal se pede.
B)
Da eventual inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei nº 553/80
7. Os termos da questão
Data de 21 de Novembro de 1980 o Decreto-Lei nº 553/80, que estabeleceu o
Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo de nível não superior.
Sustenta a recorrente que é inconstitucional tal acto legislativo governamental
por ter ele invadido, sem autorização, a reserva de competência do Parlamento.
Fundamenta-se a afirmação no ‘facto’ de o Estatuto regular matérias respeitantes
a direitos, liberdades e garantias – maxime, o direito à criação de escolas
privadas e, ainda, o direito de iniciativa económica privada – que sempre se
encontraram sob reserva de competência da Assembleia da República e, portanto,
subtraídas à competência legislativa não autorizada do Governo. Assim é agora –
diz-se – nos termos do artigo 165º, alínea b) da Constituição, na sua versão
actual, como o era – diz-se ainda – nos termos do artigo do artigo 167º, também
alínea b), da versão originária da CRP, vigente ao momento da emissão do
Decreto-Lei.
A afirmação, diga-se desde já, seria de todo procedente se se pudesse provar que
o direito à criação de escolas privadas (e já não, pelos motivos adiante
expostos, o direito de iniciativa económica privada) era, face à versão
originária da Constituição, um direito fundamental, reconhecido inequivocamente
como direito, liberdade e garantia pessoal pelo ordenamento constitucional.
É que não restam dúvidas que o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo
condiciona de forma essencial o exercício de um tal direito. Fá-lo desde logo
quando prevê os modos de «criação e funcionamento dos estabelecimentos de ensino
particular» (artigos 23º a 33º), mas também quando define em que consiste a
«autonomia pedagógica» de que gozarão tais estabelecimentos (artigo 34º 41º);
quando estabelece os direitos e deveres dos seus docentes (artigos 45º a 74º);
quando estabelece os modos de apoio estadual às escolas, nomeadamente através de
contratos de associação (artigos 8º a 22º); e quando, finalmente, prevê sanções
aplicáveis às escolas inadimplentes que podem ir até ao encerramento das mesmas
(artigos 94º a 98º). Assim, e de acordo com tudo quanto o Tribunal tem dito
sobre o âmbito da reserva parlamentar referida aos direitos, liberdades e
garantias – que, como se sabe, deve abranger não apenas os casos de restrição
propriamente ditos, mas também aqueles em que se condicione de forma essencial o
modo de exercício dos direitos: veja-se, entre outros, o Acórdão nº 373/91, em
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20º vol., pp. 111‑133 [124], bem como o
Acórdão nº 207/2003, disponível em www.tribunalconstitucional.pt) – dúvidas não
restariam que o Estatuto, por regular como regula o exercício do direito à
criação de escolas privadas de ensino não superior, se deveria incluir no âmbito
da reserva parlamentar. Ponto é, como já se disse – e esta ideia aparece agora
como absolutamente central –, que se provasse que, ao tempo em que foi emitido o
referido Estatuto, existia efectivamente no ordenamento jurídico português um
tal direito: não como direito criado por lei, mas como direito e liberdade
constitucionalmente protegido.
É com efeito sabido que, nos domínios das normas constitucionais relativas a
formas e a competências, vale o princípio tempus regit actum. O parâmetro de
aferição da constitucionalidade orgânico-formal de uma certa norma só pode ser
portanto aquele que vigorava ao tempo da sua emissão. Como se disse no Acórdão
nº 408/89 «[é] incontestável que, se a norma legal em causa tive[r] violado as
normas constitucionais vigentes na altura em matéria de forma e competência
legislativa, seguramente que essas normas teriam nascido inconstitucionais, e
inconstitucionais continuariam a ser, mesmo que uma revisão constitucional
viesse a alterar as regras constitucionais pertinentes» (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 13º vol., p. 1153).
A revisão constitucional de 1982 veio acrescentar ao artigo 43º da Constituição
(Liberdade de aprender e de ensinar) um nº 4, onde se dispôs, em redacção que se
mantém na versão actual, que «[é] garantido o direito de criação de escolas
particulares e cooperativas». Significa isto que na versão do texto
constitucional vigente à emissão do Decreto-Lei nº 553/80 se não previa
expressamente a existência de um tal direito. Posto que a inconstitucionalidade
orgânica é, por definição, sempre originária, o referido Decreto-Lei só poderá
ser julgado inconstitucional, por violação da reserva de lei parlamentar, se se
provar que, não obstante a ausência de uma consagração constitucional expressa,
o direito à criação das escolas privadas já era reconhecido pelo ordenamento
português como direito fundamental, com a estrutura própria de um direito,
liberdade e garantia.
Sustenta o recorrente que assim é, por desde sempre se ter reconhecido, no
artigo 43º, a liberdade de aprender e de ensinar, e por o direito à criação de
escolas privadas não ser mais do que uma ilação necessária de uma tal liberdade,
consagrada afinal pela Constituição portuguesa desde a sua versão originária.
Mas resta saber se há neste argumento alguma razão.
8. Lei de autorização e lei de bases
Ao contrário do que parece pretender, nas suas alegações, a entidade recorrida,
a necessidade de uma tal averiguação não é dispensada pelo facto de o
Decreto-Lei nº 553/80 poder ser qualificado como acto legislativo de
desenvolvimento de lei de bases.
É verdade que o legislador que, através do referido decreto-lei, estabeleceu o
Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo de nível não superior quis dar
cumprimento aos princípios programáticos definidos pela Lei nº 9/79, relativa às
Bases do Ensino Particular e Cooperativo. Fê-lo aliás – como se reconhece na
exposição de motivos do Decreto-Lei nº 553/90 – em obediência ao disposto no
artigo 17º da Lei de Bases, que estatuía:
No prazo de cento e oitenta dias a contar da data de publicação desta lei, deve
o Governo publicar, por decreto-lei, o Estatuto dos Ensinos Particular e
Cooperativo, de acordo com os princípios estabelecidos nesta lei e integrando,
na medida do possível, a regulamentação prevista no âmbito dos diversos artigos,
ouvidos os órgãos representativos dos estabelecimentos particulares e
cooperativos e os sindicatos dos professores.
No entanto, o facto de assim ser não torna inútil a questão de saber se, à
altura em que foi emitido o Decreto-Lei, o direito constitucional vigente
reservava ou não, à competência da Assembleia da República, a definição de
regimes que, como este, viessem a definir aspectos essenciais do modo de
exercício do direito à criação de escolas particulares.
Com efeito, a existência neste domínio de uma lei de bases não supre a eventual
necessidade de existência de uma lei de autorização legislativa. Dizendo por
outras palavras, e voltando à análise do caso sob juízo: ao comando fixado no
artigo 17º da Lei nº 9/79 não pode ser conferido o ‘valor’ ou a ‘função’ própria
da autorização legislativa parlamentar, de modo a entender-se que, por força
dele, estaria sempre o Governo legitimado a legislar – qualquer que fosse a
‘matéria’ objecto da legislação e quaisquer que fossem, sobre tal ‘matéria’, as
normas constitucionais, vigentes ao tempo, sobre a competência reservada do
Parlamento. Assim é por decorrer da Constituição uma distinção clara entre a
‘natureza’ da lei de bases (e o seu regime) e a ‘natureza’ da lei de autorização
legislativa (e o seu regime).
Tal distinção – que se torna hoje evidente face ao actual sistema de repartição
de competências legislativas entre Parlamento e Governo – existia já perante a
versão originária da Constituição.
Na verdade, e ao tempo em foi emitido o Decreto-Lei nº 553/80, previa a CRP
tanto a ‘figura’ da lei de bases (artigo 167º, alíneas n) e r) da versão
originária) quanto a de lei de autorização legislativa (artigo 164º, alínea e);
artigo 168º; artigo 169º, nº 2, também da versão originária).
Tal como agora sucede, também nessa altura havia traços comuns entre estes dois
tipos de lei.
Nenhuma delas pretendia esgotar a regulamentação da matéria sobre que versavam,
‘devolvendo’ ambas ao Governo uma função de normação posterior; e tanto uma com
a outra delimitavam, de modo vinculativo, o conteúdo da normação governamental.
Mas enquanto o Governo, perante uma lei de bases, se encontrava apenas vinculado
a «[f]azer decretos-lei de desenvolvimento dos princípios (…) contidos em leis
que a eles se circunscrev[esse]m» (artigo 201º, nº 1, alínea c), versão
originária), perante a existência de uma lei de autorização legislativa a
vinculação governamental aparecia já como algo bem mais intenso. De acordo com o
artigo 168º (sempre da versão originária) a autorização legislativa – que,
aliás, ao contrário da lei de bases, devia definir a sua própria duração – não
podia ser utilizada mais de uma vez, caducando quer com a exoneração do Governo
a quem fosse concedida quer com o termo da legislatura ou com a dissolução da
Assembleia da República. Nem o imperativo da utilização única nem as regras de
caducidade valiam para as leis de bases.
São estes, aliás, aspectos centrais de regime que continuam hoje, no essencial e
como muito bem se sabe, a distinguir o estatuto constitucional das leis de
autorização do estatuto constitucional das leis de base. Não vale a pena
analisar agora que precisões e aditamentos vieram as sucessivas revisões
constitucionais acrescentar a estes dois regimes, desde o início tão diversos; o
que importa salientar é apenas o seguinte.
O que sempre justificou a diversidade de regimes foi a diferença de ‘natureza’ –
patente desde a versão originária da Constituição – entre os dois institutos.
Enquanto a ratio da lei de bases se encontra na necessidade de uma repartição de
tarefas no seio da função legislativa (entre o ‘legislador’ que fixa os grandes
princípios e aquele ‘outro’ que os adapta à realidade parcelar e multiversa), a
ratio da lei de autorização legislativa decorre de uma outra necessidade: aquela
de fazer intervir, para a regulação de certas matérias, o legislador
parlamentar, enquanto legislador dotado de uma maior intensidade de legitimação
democrática. Ao implicar a única forma, constitucionalmente admitida, de
«delegação» de uma competência reservada ao legislador democrático, a
autorização pressupõe uma relação de confiança entre um certo parlamento e um
certo governo, relação essa que justifica o seu regime próprio e que difere
acentuadamente dos elos que se estabelecem entre a lei de bases e o seu
desenvolvimento.
Assim sendo, não pode conferir-se a uma lei de bases as funções que
constitucionalmente são atribuídas, exclusivamente, à lei de autorização. Esta
afirmação – que é válida ainda para a interpretação das normas constitucionais
vigentes ao momento em que se emitiu o Decreto-Lei nº 553/80 – justifica que se
entenda que ao artigo 17º da Lei nº 9/79 não pudesse ser reconhecida uma
qualquer função ‘autorizadora’ da emissão de actos legislativos governamentais
em matéria que, eventualmente, estivesse reservada à competência da Assembleia
da República.
Resta, por isso, averiguar se – como pretende a recorrente – a matéria em causa
nos autos integrava já, na versão originária da Constituição, o âmbito da
reserva parlamentar.
9. O direito à criação de escolas privadas
A CRP consagra a liberdade de educação no artigo 43º, que dispõe:
1. É garantida a liberdade de aprender e de ensinar
2. O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer
directrizes filosóficas, estéticas, políticas ou religiosas
3. O ensino público não será confessional
4. É garantido o direito de criação de escolas particulares e cooperativas.
A inserção sistemática do preceito e os seus três primeiros números provêm da
redacção originária da Constituição. A revisão constitucional de 1997 apenas
melhorou a redacção do nº 2, substituindo a sua frase inicial: onde, na versão
aprovada em 1976, se dizia que o Estado não pode atribuir-se o direito de
programar (…), passou a dizer-se simplesmente que o Estado não pode programar
(…).
Em contrapartida, o nº 4, que garante expressamente o direito de criação de
escolas particulares e cooperativas foi, como já se disse, aditado pela revisão
de 1982.
A alegação da recorrente, segundo a qual, não obstante o seu tardio
reconhecimento expresso, tal direito já existiria como direito fundamental
implícito durante a vigência da primeira versão da Constituição não deixa de
ser, em alguma medida, uma alegação razoável. É que, não sendo o conceito de
direito fundamental «implícito» um conceito estranho à jurisprudência do
Tribunal [vejam-se os Acórdãos nºs 103/88 (DR, IIª Série, nº 205, de 5 de
Setembro de 1988, pp. 8107‑8); 6/84 (DR, IIª Série, nº 101, de 2 de Maio de
1984, pp. 3947‑8) e, finalmente, 509/2002 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt)], onde se reconheceu a existência de direitos
fundamentais não escritos), também não seria no caso ilógico que se admitisse
que, na unidade de sentido da chamada «liberdade educativa», estaria não só
implicada a liberdade na escola (essa mesma que desde sempre foi textualmente
garantida) como ainda a liberdade de escola (ou o direito de criação de escolas
privadas) que o texto só veio a consagrar a partir de 1982.
Com efeito, razões várias de direito internacional e de direito comparado fazem
crer que, normalmente, estas duas liberdades – a liberdade na escola e a
liberdade de escola – formam um corpo indissociável.
Assim é, por exemplo, face ao artigo 26º da Declaração Universal dos Direitos do
Homem; face ao artigo 13º nº 3 do Pacto Internacional dos Direitos Económicos,
Sociais e Culturais; face ao artigo 2º do Protocolo nº 1 à Convenção de
Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. Assim é ainda nos
casos do artigo 33º da Constituição italiana, do artigo 7º da Constituição alemã
e dos artigos 20º e 27º da Constituição espanhola.
Entende-se em geral que o conteúdo deste direito comum (e comum quer ao direito
internacional quer a várias constituições nacionais) pode ser apreendido através
de um sistema de valores onde vão incluídas, ao mesmo tempo, dois tipos
diferentes de ‘liberdades’. Uma – a que por antonomásia se chama por vezes
‘liberdade de cátedra’ – faz parte do conjunto das liberdades do espírito que
decorrem do princípio do pluralismo de expressão ínsito na ideia de Estado de
direito. Está próxima da liberdade de manifestação do pensamento, da liberdade
de consciência e da liberdade de criação intelectual, artística e científica; e
visa garantir para quem ensina (e, em certa medida, para quem aprende) um
direito de defesa perante imposições ‘ideológicas’ estaduais. É a liberdade na
escola, que se concretiza sobretudo na liberdade de expressão dos professores no
contexto da sua específica função docente. Outra, desta diferente mas com ela
conexa, é a liberdade de escola, entendida como liberdade de criação e de oferta
de um certo projecto educativo. Decorrente, sobretudo, do direito dos pais a
«escolher o género de educação a dar aos filhos» (artigo 26º da DUDH), nela se
realiza – diz-se – o encontro entre a liberdade de aprender e a liberdade de
ensinar, que nunca estarão integralmente cumpridas aí onde se não reconhecer um
direito dos privados à instituição de centros destinados a prosseguir um ideário
educativo próprio. Nessa medida – diz-se ainda – o direito à criação de escolas
privadas é algo de substancialmente diverso do direito à iniciativa económica
privada. Enquanto esta última visa, primacialmente, a realização de um bem
jurídico-económico, a primeira visa a realização de um bem diverso, que a
liberdade educativa – quando entendida na sua unidade de sentido – pressupõe.
Sendo este o conteúdo que, quer em direito internacional quer em direito
comparado, comummente se atribui à liberdade de educação (vejam-se entre outros
Paulo Pulido Adragão, A liberdade de aprender e de ensinar, Lisboa, 1995 e
Carlos Vidal Prado, La libertad de cátedra: un estúdio comparado, Madrid, 2001),
não seria em princípio ilógico que se entendesse que, consagrando desde o seu
início a Constituição portuguesa uma das vertentes de tal liberdade –
nomeadamente aquela que se consubstancia na liberdade na escola, claramente
inscrita nos princípios de pluralidade e neutralidade do Estado em matéria de
projectos educativos, princípios esses decorrentes dos nºs 1 a 3 do artigo 43º
da CRP –, não deixaria o ‘sistema’ de conter implicitamente o reconhecimento do
direito dos privados à criação de escolas, destinadas à realização de ideários
pedagógicos próprios. Sobretudo se se tiver em conta que a chamada «cláusula
aberta dos direitos» (artigo 16º, nº 1) provém, justamente, da primeira versão
da Constituição.
No entanto, e apesar de tudo, é esta uma conclusão que nada permite retirar. Nem
o «sistema» da versão originária da Constituição nem a sua história a legitimam.
Com efeito, no texto aprovado pela Constituinte era claro o carácter primordial
que se atribuía ao Estado nas funções de ensino e de educação. Tal decorria, não
só do nº 2 do artigo 73º («O Estado promoverá a democratização da educação e as
condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios
formativos, contribua para o desenvolvimento da personalidade e para o progresso
da sociedade democrática e socialista») como do nº 2 do artigo 75º, que
consagrava o princípio da supletividade do ensino particular: «O Estado
fiscaliza o ensino particular supletivo do ensino público».
Por mais ambíguo que fosse este conceito de supletividade (e da sua dilucidação
tratou o Parecer nº 4/79 da Comissão Constitucional: Pareceres da Comissão
Constitucional, 7º vol., pp. 235‑278) o que é certo é que através dele se
entendia que o «ensino particular» deveria ser algo destinado a desaparecer, que
subsistiria aí onde não chegasse (ou enquanto não chegasse) o ensino público.
Este mesmo entendimento é aliás corroborado pela leitura das Actas das sessões
da Assembleia Constituinte em que foi discutida a questão (Diários da Assembleia
Constituinte, nº 41, de 3 de Setembro de 1975; nº 60 de 10 de Outubro; nº 62 de
11 de Outubro; nº 63 de 15 de Outubro; nº 64 de 16 de Outubro): para a
orientação maioritária, que então vingou, não havia qualquer ligação, nem
‘filosófica’ nem ‘prática’, entre liberdade de aprender, liberdade de ensinar, e
escolas privadas.
Não vale a pena averiguar agora da coerência e da clareza do sistema que, assim,
se instituiu; o que é certo é que o direito à criação de escolas privadas não
era, nem sequer implicitamente, um direito fundamental face à versão originária
da Constituição. Tal não impediu que a lei ordinária o viesse entretanto a
reconhecer e a regular, como sucedeu, precisamente, com a Lei de Bases nº 9/79 e
com o Decreto-Lei nº 553/80. No entanto, a sua condição de direito fundamental –
e mais propriamente, de direito, liberdade e garantia pessoal – só se torna
certa após a revisão de 1982 (veja-se, quanto a este ponto, o Diário da
Assembleia da República, Iª Série, nº 103, de 16/6/82, pp. 4248-4257).
Por este motivo, improcede a alegação da recorrente, segundo a qual seria o
Decreto-Lei nº 553/80 organicamente inconstitucional, por incidir sobre matérias
referentes a direitos, liberdades e garantias, reservadas ao Parlamento.
Resta averiguar se as normas contidas no seu artigo 99º lesam especificamente –
e por outros motivos – a Constituição.
C)
Da constitucionalidade do direito sancionatório fixado
pelo artigo 99º do Decreto-Lei nº 553/80
10. Os termos da questão
Como já se viu, estabelece o nº 1 do artigo 99º do Decreto-Lei nº 553/80 que
«[à]s entidades proprietárias que violem o disposto neste decreto-lei podem ser
aplicadas, pelo Ministro da Educação e da Ciência, as seguintes sanções, de
acordo com a natureza e a gravidade da violação». Segue-se o elenco das sanções,
definido nas alíneas a) a d): advertência; multa de valor entre dois e vinte
salários mínimos nacionais; encerramento da escola por período até dois anos e
encerramento definitivo. (Além disso, e no seu nº 2, prevê o preceito o elenco
de sanções a aplicar também aos directores pedagógicos das escolas, questão, no
caso, de abordagem inútil).
A lei não previu os comportamentos típicos a que deveriam corresponder as
sanções que fixou. Tão pouco estabeleceu o modo da sua graduação (aos ilícitos
típicos a que correspondessem) ou o procedimento que deveria ser adoptado para a
sua aplicação. Limitou-se a dizer – como já foi salientado – que o regime
sancionatório assim definido seria aplicável às escolas que violassem o disposto
no decreto-lei; que as sanções deveriam ser aplicadas de acordo com a natureza e
a gravidade da infracção e que, finalmente, «a [sua] cominação ser[i]a objecto
de regulamentação específica, a definir por Portaria(…)». Foi assim que a
Portaria nº 207/98 veio determinar a que tipos de comportamentos seria aplicável
cada uma das sanções, identificando portanto os ilícitos típicos que a lei não
identificara e estabelecendo as graduações sancionatórias que ela própria não
estabelecera (artigo 1º). Além disso, e como já se referiu, foi também o
regulamento administrativo que veio a eleger o procedimento a aplicar, ao
determinar (artigo 11º) que «[a] aplicação das sanções previstas no presente
diploma é precedida de processo disciplinar (…)».
Sustenta a recorrente que são inconstitucionais as normas contidas no artigo 99º
do Decreto-Lei nº 553/80, que estabelece, com a densidade que acabámos de
descrever, o direito sancionatório aplicado ao caso. E fundamenta a alegação de
inconstitucionalidade em dois tipos diferentes de razões: quer na violação da
reserva de competência do Parlamento quer na violação, tout court, da reserva de
função legislativa. Importa, no entanto, distinguir.
11. Reserva de competência legislativa parlamentar
Decorre de tudo quanto atrás se disse que não pode proceder, também quanto às
normas contidas no artigo 99º do Decreto-Lei nº 553/80, a ideia segundo a qual
tais normas seriam organicamente inconstitucionais por implicarem invasão da
reserva de competência legislativa do Parlamento. Por um lado, volta a
recorrente, a este propósito, a esgrimir o mesmo argumento que invocara para
sustentar a inconstitucionalidade orgânica de todo o decreto-lei: o de que se
estaria aqui perante matérias atinentes a direitos, liberdades e garantias,
incluídas na alínea b) do artigo 165º (versão actual da CRP) e só passíveis de
serem reguladas por decreto-lei autorizado. Já vimos por que razão assim não é.
Por outro lado, diz-se agora que, para além disso, a matéria em causa seria
ainda especificamente respeitante ao «regime geral de punição das infracções
disciplinares, bem como dos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo
processo», constante igualmente do âmbito da reserva relativa da competência
legislativa do Parlamento nos termos da alínea d) do artigo 165º da CRP. No
entanto, tendo sido esta alínea aditada ao elenco das matérias reservadas apenas
aquando da revisão constitucional de 1982, não procede – pelos motivos já vistos
– a alegação de inconstitucionalidade orgânica.
Nada permite concluir, portanto, que o Governo não poderia – à luz das normas
constitucionais vigentes ao momento da emissão do Decreto-Lei nº 553/80 – fixar
o regime sancionatório constante do seu artigo 99º por motivos atinentes às
regras de repartição de competências legislativas entre ele próprio e o
Parlamento. É seguro que não havia na versão inicial da CRP norma competencial
alguma que vedasse a regulação de um regime sancionatório como este à
competência legislativa do Governo. Por este motivo – e só por ele – não pode a
constitucionalidade das normas constantes do artigo 99º ser posta em causa por
razões orgânicas. A argumentação da entidade recorrida, segundo a qual, ainda
aqui, o Decreto-Lei nº 553/80 nada mais teria feito do que dar cumprimento ao
estatuído pela Lei de Bases nº 9/79 (que dispunha, no nº 5 do seu artigo 8º:
«Incumbe ao Governo estabelecer a regulamentação adequada para a celebração dos
contratos e concessão dos apoios e subsídios previstos neste artigo, com
especificação dos compromissos a assumir por ambas as partes, bem como a
fiscalização do cumprimento dos contratos estabelecidos»), é, para o caso,
irrelevante. Como já se viu, a existência de um comando de legiferação contido
numa leis de bases nunca poderia suprir a necessidade de existência de uma
autorização legislativa, se, de facto, tal necessidade resultasse da
Constituição. Não resultava. Por isso – e só por isso – não são organicamente
inconstitucionais as normas contidas no artigo 99º do Decreto-Lei nº 553/80.
Resta saber se não serão elas inconstitucionais por um outro motivo.
12. Reserva de função legislativa
Com efeito, diversa da questão da (inexistente) invasão da reserva competencial
do Parlamento é a questão da (eventual) invasão da reserva de função
legislativa.
Sustenta a recorrente que é inconstitucional o regime sancionatório definido
pelo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo por nele se não ter respeitado
a reserva da função legislativa: ao remeter para normação administrativa (mais
exactamente para portaria) a tipificação dos comportamentos puníveis; a
adequação das sanções aos tipos; a escolha do procedimento sancionatório a
aplicar, o legislador do Estatuto – diz a recorrente – fez aquilo que a
Constituição lhe proíbe: deixou de regular matérias que só poderiam ser
reguladas por acto da função legislativa, reenviando portanto para uma outra
autoridade (no caso, a administrativa) o exercício de uma competência que só a
ele pertencia.
É certo – e a doutrina assim o tem consensualmente defendido (por todos: Afonso
Queiró, «Teoria dos Regulamentos», em Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano
XXVII, p. 11) – que até 1982 nada havia na Constituição que impedisse o
legislador, quer parlamentar quer governamental, de «deslegalizar» certa
normação por ele iniciada, reenviando a sua continuação para regulamentos
administrativos que dispusessem sobre a matéria em termos novos e originários,
desde que a referida matéria não estivesse ela própria, por imposição
constitucional, sujeita a reserva de lei.
Foi exactamente isso que fez – e validamente, à luz da primeira versão da
Constituição – o legislador que definiu o Estatuto do Ensino Particular e
Cooperativo.
Com efeito, por um lado e como já se viu, não estava então reservada à lei a
«matéria» por ele regulada. Por outro, o «reenvio» que se fazia no artigo 99º do
Decreto-Lei nº 553/80 implicava uma verdadeira «deslegalização», na medida em
que através dele se habilitava a administração a emitir, sobre a matéria, uma
verdadeira regulação praeter legem, porque primária e inovatória. Atentemos
agora, com mais vagar, neste segundo aspecto.
Não é fácil – como bem se sabe – estabelecer traços seguros entre aqueles
regulamentos administrativos que são secundum legem e aqueles que vão para além
da lei, ou que são praeter legem. No entanto, se se tomar como bom o critério
doutrinário segundo o qual « o regulamento executivo não pode inovar no domínio
das restrições à esfera individual, nem criar preceitos que se não liguem por um
vínculo de pormenorização ou procedimentalização às normas contidas na lei
regulamentada» , por ser ele um regulamento «secundário ou derivado,
relativamente ao regime estabelecido pelo legislador» (José Manuel Sérvulo
Correia, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos,
Coimbra, 1987, p. 241), limitando-se a «editar as providências necessárias para
assegurar a fidelidade ou (…) a conformidade à vontade do legislador (…)» sem
dar vida a nenhuma regra de fundo, a nenhum preceito jurídico «novo» e
originário» (Afonso Queiró, ob.cit., p. 9), então parece certo que na categoria
destes regulamentos se não insere aquele para o qual reenviou o legislador que
estabeleceu o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo.
Na verdade – e ao contrário do que sustenta a entidade recorrida – a lei não
definiu então, com densidade suficiente, o regime sancionatório que deveria ser
aplicado às escolas inadimplentes. Limitou-se a estabelecer o elenco das sanções
a cominar «em caso de violação do disposto no decreto-lei», afirmando ainda que
tais sanções deveriam ser aplicadas de acordo com a natureza e a gravidade da
violação. Foi, pois, o regulamento administrativo que veio densificar todo este
regime, que a lei, finalmente, apenas desenhou a título principial: como já
vimos, a Portaria nº 207/98 definiu os ilícitos sancionáveis; estabeleceu as
sanções correspondentes a cada um; fixou o procedimento a adoptar na aplicação
das sanções. É bem difícil sustentar que um regulamento assim não inova no
domínio das restrições à esfera individual, ou não cria normação primária, dando
vida a preceitos jurídicos «novos» ou «originários». Seguro é porém que a
habilitação legal para a emissão deste tipo de regulamentos não era proibida
pela primeira versão da Constituição.
Veio no entanto a proibi-la a revisão constitucional de 1982, o que não pode
deixar de ser tido em conta no caso agora sob juízo. É que, nele, se não manteve
apenas a habilitação legal para a emissão de regulamentos praeter legem; mais do
que isso, tal habilitação só veio a ser cumprida pela Portaria nº 207/98, anos
após a entrada em vigor da Lei de Revisão Constitucional nº 1/82.
E não restam dúvidas que a Lei de Revisão pretendeu, justamente, vedar ao
legislador este ‘tipo’ de reenvios normativos.
Antes do mais, ficou claro, a partir de 1982, que o direito à criação de escolas
privadas era para a CRP uma liberdade fundamental constitucionalmente tutelada.
O direito sancionatório previsto pelo artigo 99º do Decreto-Lei nº 553/80 – esse
mesmo que remete para regulamento administrativo a definição, inovatória, dos
ilícitos cometidos; a graduação das sanções que se lhes deveria aplicar; o
procedimento a adoptar na sua aplicação – passou assim a ser direito
sancionatório incidente sobre o exercício de uma liberdade fundamental, com
todas as consequências que daí advêm quanto à extensão e à densidade da reserva
de lei na regulação de matérias que lhe digam respeito. Com efeito, e como muito
bem se sabe – e como sempre o tem dito o Tribunal: vejam‑se, entre outros, o
Acórdão nº 307/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12º volume, p. 499 e
ss.), e ainda os Acórdãos nºs 174/93 e 185/96 (disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt) – em matérias que impliquem restrições ou
condicionamentos essenciais ao exercício de liberdades fundamentais só são
constitucionalmente admissíveis os regulamentos de execução.
Mas, além disso, a revisão constitucional de 1982 veio a proibir em geral as
habilitações legais para a emissão, em matéria inicialmente regulada por lei, de
regulamentos administrativos praeter legem, ou seja, de regulamentos que venham
a “interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar” quaisquer preceitos
da própria lei “habilitante” (artigo 112º, nº 5, da versão actual da CRP). Este
princípio constitucional, introduzido em 1982, não pode deixar de ser
considerado como um princípio de índole material ou substancial. O que nele se
contém é algo mais do que uma regra ou conjunto de regras relativas a formas ou
a competências. Com efeito, do princípio contido no nº 5 do artigo 112º da CRP
decorre uma proibição (de reenvios normativos para regulamentos praeter legem)
que, para além de incidir directamente sobre o âmbito da conformação do
legislador ordinário, limitando‑o, reflecte a intenção do regime aprovado em
1982: a de conferir uma outra, e mais intensa, tutela constitucional à reserva
da função legislativa – enquanto delimitação daqueles domínios de vida que só
podem ser regulados por actos legislativos com exclusão de quaisquer outras
fontes normativas –, «reserva» essa que, em última análise, decorre do princípio
mais vasto do Estado de direito (que, recorde‑se, só veio a ser consagrado pelo
texto da Constituição a partir de 1982).
Por todos estes motivos, tem dito o Tribunal, em jurisprudência constante, que a
proibição de habilitações legais para a emissão de regulamentos praeter legem
afecta directamente, não os regulamentos que tenham sido emitidos ao abrigo de
«habilitações legais» indevidas, mas as próprias normas legais que os
habilitaram, ainda que estas tenham sido aprovadas antes da revisão de 1982.
Entende-se, com efeito, que, nesses casos, tais normas se tornam
supervenientemente inconstitucionais, precisamente por ser de ordem material – e
não orgânica ou formal – o novo regime constitucional que veio dar outra, e mais
intensa, tutela ao princípio da reserva de função legislativa (assim, e entre
outros, Acórdão nº 203/86, em DR, IIª série, nº 195, 26/8/1986, pp. 7978 e ss;
Acórdão nº 458/89, em DR, IIª série, nº 25, 30/1/1990, pp. 1019 e ss; Acórdão nº
1/92, em DR, Iª série, nº 43, 20/2/1992, pp. 1026 e ss.; Acórdão nº 869/96,
disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
É esta a doutrina que se deve aplicar às normas contidas no artigo 99º do
Decreto‑Lei nº 553/80, que fixaram, sem a densidade que, ratione materiae, seria
constitucionalmente exigida, o regime sancionatório aplicável às escolas
privadas.
Prejudicada fica, assim, a questão de saber se as normas da Portaria nº 207/98
lesam, em si mesmas, algum parâmetro constitucional. A análise do problema
torna-se inútil, face ao juízo, que acabou de ser feito, quanto à invalidade das
normas legais que habilitaram a sua emissão.
III
Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se conceder provimento ao recurso, devendo a
decisão recorrida ser reformada de acordo com o presente juízo sobre a questão
de constitucionalidade.
Lisboa, 29 de Julho de 2008
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão