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Processo n.º 513/08
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., por conduzir a 84 km/h, sendo de 50 km/h a velocidade máxima permitida, após
ter efectuado o pagamento voluntário da respectiva coima, foi condenado pela
autoridade administrativa na inibição de conduzir por 60 dias, nos termos dos
artigos 28.º, n.º 1, b) e 5, 27.º, n.º 2, a), 138.º e 145.º, b), do C.E.
O arguido impugnou judicialmente aquela decisão, tendo o Tribunal por sentença
proferida em 27-7-2007 negado provimento à impugnação.
O arguido recorreu desta sentença para o Tribunal da Relação do Porto que, por
acórdão proferido em 13-2-2008 negou provimento ao recurso.
Deste acórdão o arguido recorreu para o Tribunal Constitucional, pretendendo que
se aprecie “a inconstitucionalidade, nos termos do art. 70, n.º 1 al. b) da LTC,
invocada advém da interpretação concebida pelo Tribunal da Relação do Porto ao
art. 62º, n.º 1 do decreto-lei n.º 433/82 de 27/10, no sentido que viola o art.
32º n.º 8 da CR.P., “ex vi” do n.º 1 do corpo do mesmo artigo.
Não se tendo questionado mais cedo a inconstitucionalidade desta interpretação,
na justa medida que esta, foi somente aplicada, neste estrito sentido, pela
primeira e única vez no Douto Acórdão que agora se recorre.”
Sobre este requerimento de interposição de recurso recaiu o seguinte despacho:
“Se bem que o Recorrente tenha tido o cuidado de especificar qual a norma
violada, como, aliás, lhe competia, o certo é que o art. 32º, nº 8, da C.R.P.
nada tem a ver com a questão. E, ainda que se reporte agora ao art. 62º, nº 1,
do R. G. C. O., o certo é que, conforme o acórdão, o mesmo é referenciado pela
“Resposta do M.P.”.
Ora o Recorrente foi dela notificado, como o foi do Parecer, e nada disse sobre
tal segmento. Como o não disse, quando toda a questão, de início, se reporta à
globalidade dos autos em fase do procedimento administrativo.
Assim, não há fundamento legal para a interposição do recurso para o T.C.,
devendo os autos considerarem-se findos, nesta fase – já lá vão mais de 2 anos
sobre a prática dos factos.
Não se admite, pois, o recurso para o T.C.”
Desta não admissão do recurso reclamou o arguido com os seguintes fundamentos:
“1º O aqui arguido admite que houve um mero lapso no supra citado requerimento,
quando fundamenta que houve uma violação do art. 32º n.º 8 da C.R.P., quando, na
realidade queria invocar o seu n.º 10, da presente redacção deste corpo de leis.
2º Neste sentido, e neste ponto se requer que seja deferido o aperfeiçoamento do
requerimento.
Posto isto,
3º como o referenciou no requerimento, no art. 62º, n.º 1 do regime geral das
contra ordenações está plasmado, que o acto de apresentação dos autos ao juiz
vale como acusação, e passando a valer, para todos os efeitos como uma acusação
em processo penal.
4º Como muito bem disse o despacho de indeferimento, o arguido teve plena
hipótese de pronunciar quer em 1ª instância, quer à resposta do M.P. da 1ª
instância, quer à Vista do M.P. na Relação.
Ora,
5º o arguido ao argumentar no requerimento de interposição de recurso, teve o
cuidado de apontar que queria recorrer, não até da inconstitucionalidade
apontada no recurso da 1ª instância para a Relação, mas sim da precisa
interpretação concebida por este tribunal no seu Douto Acórdão.
6º Esta interpretação incide sobre o valor do despacho da D.G.V. enquanto
acusação, mormente, no que concerne à questão da reincidência – a Relação foi
mais além na sua interpretação, violando esta, e não a 1ª instância, muito menos
as interpretações do M.P., a C.R.P.
7º A Relação interpretou esta matéria de tal e nova forma, e com uma concepção
que o arguido não contava nem se pôde defender, por isso e só agora, e como
referenciou no requerimento, se pôde recorrer.
8º O arguido, fundamentou o seu recurso com o art. 70º, n.º 1 al. b), na medida
em o conceito “cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o
processo” abrange, também, a fase pós Acórdão da Relação, na medida em que este,
não admite, é certo, recurso ordinário, mas admite reclamação para o próprio
tribunal, por ex., a invocação de uma qualquer nulidade.
9º Não fosse assim, nunca se poderia recorrer de uma qualquer interpretação
inconstitucional aplicada somente pela Relação.
10º A real concretização dos argumentos do recorrente apenas deve ser realizada
aquando das suas alegações, 30 dias após a notificação do despacho de
deferimento do recurso.
11º Por isso, o requerimento só pode expor os seus fundamentos até certo ponto,
não podendo ir mais além do que uma sucinta enunciação dos seus argumentos
legais.
12º Assim, a Relação não pode ir muito mais além do que negar o recurso com
fundamentos formais, ex., recurso extemporâneo, falta de indicação da norma
sobre qual incide a inconstitucionalidade, etc.
13º Se se intromete no “pensamento” do requerente, no que pondera que o
recorrente vai ou não alegar, se há ou não dentro das alegações fundamento legal
para haver recurso, a Relação vai mais além do que o art. 76º, n.º 2 da LTC
permite.”
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser indeferida a reclamação,
por falta de verificação do requisito da suscitação da questão de
inconstitucionalidade de forma processualmente adequada perante o tribunal
recorrido.
*
Fundamentação
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência
atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já
não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões
judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a
inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é
imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é
discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual
depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e,
por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda
hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes
às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º
1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua
admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão
de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo
72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio
decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente. Aquele primeiro requisito (suscitação da questão de
inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a
decisão impugnada) só se considera dispensável nas situações especiais em que,
por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota
com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo
excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade
processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a
decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que
suscitasse então a questão de constitucionalidade.
O reclamante invoca a verificação desta última situação, alegando que a
interpretação normativa sustentada na decisão recorrida, cuja
inconstitucionalidade pretende ver apreciada, foi uma novidade no processo, com
a qual não contava, pelo que não se pode exigir que a tivesse suscitado
previamente.
Ora a questão da possibilidade de consideração pelo tribunal de 1ª instância de
condenações anteriores sofridas pelo arguido e que não constavam da decisão
administrativa, mas de elementos existentes no processo de contra-ordenação, foi
expressamente abordada nas alegações de recurso apresentadas pelo reclamante
junto do Tribunal da Relação do Porto, na resposta do Ministério Público a estas
alegações, e na resposta ao Parecer do Ministério Público apresentado pelo
reclamante no tribunal de recurso, pelo que não se pode dizer que a
interpretação seguida pelo Tribunal da Relação do Porto, no sentido de acolher
essa possibilidade pudesse ser uma surpresa para o reclamante.
Este teve oportunidade de suscitar perante o Tribunal da Relação do Porto, quer
nas suas alegações de recurso, quer na resposta ao parecer do Ministério
Público, a inconstitucionalidade da interpretação normativa que agora pretende
ver fiscalizada e era exigível que o fizesse, uma vez que o seu sentido era
perfeitamente previsível.
Não o tendo feito, não se mostra preenchido um requisito essencial ao
conhecimento deste recurso, pelo que, revela-se correcta a decisão de não
admissão do recurso interposto, devendo ser indeferida a reclamação apresentada.
*
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A. do despacho que não
admitiu o recurso por si interposto do acórdão do Tribunal da Relação do Porto
proferido em 13-2-2008.
*
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 2 de Julho de 2008
João Cura Mariano
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos