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Processo n.º 84/2008
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Por decisão do Chefe de Serviço de Finanças de Leiria foi aplicada à A. Futebol,
SAD, a coima única de €. 13.236,37, pela prática de diversas contra-ordenações
previstas nos artigos 119.º e 114.º, do RGIT, correspondendo essa coima à soma
material das coimas aplicadas a cada uma das contra-ordenações cometidas.
A A. Futebol, SAD, impugnou judicialmente a aplicação desta coima, tendo o
Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria proferido sentença que, inter alia,
julgou inconstitucional a norma constante do art. 25.º, do Regime Geral das
Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.
Para tanto, o aludido Tribunal fundamentou essa decisão da seguinte forma
“(...) Coloca-se agora a questão de saber se há lugar à aplicação das regras do
concurso, ou não.
Nos termos do artigo 19 do Regime Geral das Contra Ordenações e Coimas, quem
tiver praticado várias contra ordenações é punido com uma coima cujo limite
máximo resulta da soma das coimas concretamente aplicadas às infracções em
concurso.
Também para o Art.º 77 do Código Penal Quando alguém tiver praticado vários
crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado
numa pena única que tem como limite máximo a soma das penas concretamente
aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas
concretamente aplicadas aos vários crimes.
Mas segundo o artigo 25 RGIT, as sanções aplicadas às contra ordenações em
concurso são sempre cumuladas materialmente.
A arguida defende a inconstitucionalidade desta norma.
E com razão, a meu ver.
A norma do artigo 25 RGIT é inconstitucional por várias razões, destacando-se
desde já duas: Em primeiro lugar, porque a mera adição das coimas faz aumentar
injustamente a sua gravidade proporcional, franqueando a porta à ultrapassagem
do limite da culpa (Cfr. Figueiredo Dias Direito Penal Português, 1993, 280).
Em segundo lugar, por violação dos princípios constitucionais da
proporcionalidade (no sentido restrito segundo o qual os meios legais
restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se
a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas em relação
aos fins obtidos), da adequação (no sentido de que as medidas restritivas
legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos
fins visados pela lei) e da exigibilidade (no sentido de que as medidas
restritivas previstas na lei são exigíveis porque os fins visados pela lei não
podem ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e
garantias).
As coimas nunca podem ser desproporcionadas nem inadequadas aos ilícitos nem aos
fins que com elas se prosseguem.
Tão pouco podem exceder a culpa, em sentido global, pela totalidade das
infracções.
Estes – e outros – princípios têm de ser convocados no âmbito do direito fiscal,
para evitar que a sua relativa imaturidade e imprecisão o tornem instrumento de
ganância do político mais do que regra de justiça assente em técnica.
Ora a mera adição das coimas não garante o cumprimento dos princípios
constitucionais sumariamente referidos. Pelo contrário, a cumulação material
desatende à culpa do agente e não tem em conta as regras da proporcionalidade e
da adequação.
Por essa razão, a norma em questão é inconstitucional.
Nestas condições, ao abrigo do disposto o artigo 204 da Constituição recuso a
aplicação do artigo 25 RGIT por inconstitucionalidade e aplico o artigo 19 do
Regime Geral das Contra Ordenações e Coimas, como norma subsidiária prevista no
artigo 3/b) do RGIT.
(...)”.
O Ministério Público interpôs então recurso dessa decisão para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da
Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC),
suscitando a fiscalização da constitucionalidade concreta da norma constante do
artigo 25.º, do RGIT.
Após ter sido proferido despacho liminar neste Tribunal, o Ministério Público
veio apresentar as suas alegações, culminando as mesmas com a formulação das
seguintes conclusões:
“(...) 1º Não pode inferir-se dos princípios constitucionais da culpa e da
proporcionalidade que no caso de pluralidade de infracções, o legislador esteja
constitucionalmente vinculado a adoptar, no campo específico das
contra-ordenações fiscais, a regra do cúmulo jurídico.
2º Na verdade, tais princípios constitucionais operam de pleno na fixação da
coima correspondente a cada uma das infracções em concurso, nada obstando a que
– como decorrência, nomeadamente, da prossecução da eficácia do sistema fiscal –
o legislador possa legitimamente optar pelo estabelecimento da regra do cúmulo
material, desde que se verifique uma situação de efectiva pluralidade de
infracções.
3º Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
A Recorrida não apresentou contra-alegações.
*
Fundamentação
O presente recurso de constitucionalidade versa a matéria dos limites das coimas
aplicadas ao concurso de contra-ordenações.
O artigo 25.º, do RGIT, prescreve que “as sanções aplicadas às
contra-ordenações são sempre cumuladas materialmente”.
Segundo o tribunal recorrido, tal norma encontra-se ferida de
inconstitucionalidade material porque o cúmulo material de coimas viola os
princípios constitucionais da culpa e da proporcionalidade.
Importa, assim, apreciar a constitucionalidade da aludida norma constante do
artigo 25.º, do RGIT, à luz dos referidos parâmetros constitucionais, sem
prejuízo da convocação de normas e princípios constitucionais diversos daqueles
cuja violação foi invocada.
O princípio da culpa tem sido entendido comummente como um princípio implícito
do sistema jurídico-constitucional de política criminal que se deduz da
dignidade da pessoa humana e do direito à liberdade, mencionados nos artigos 1.º
e 27.º, n.º 1, da C.R.P. (FIGUEIREDO DIAS em “Direito Penal – Parte Geral”, tomo
I, pág. 510-515, da 2.ª ed., da Coimbra Editora).
Significa, no essencial, conforme escreveu JOSÉ DE SOUSA E BRITO que “a pena se
funda na culpa do agente pela sua acção ou omissão, isto é, em juízo de
reprovação do agente por não ter agido em conformidade com o dever jurídico,
embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo. A culpa
pressupõe a consciência ética e a liberdade do agente, sem admissão das quais
não se respeita a pessoa nem se entende o seu direito à liberdade. Implica que
não há pena sem culpa, excluindo-se a responsabilidade penal objectiva, nem
medida da pena que exceda a da culpa” (em “A lei penal na Constituição”, in
“Estudos sobre a Constituição”, 2.º volume, ed. de 1978, da Petrony).
O princípio da proporcionalidade quando aplicado à lei criminal, reporta-se,
sobretudo, à necessidade e subsidiariedade da intervenção jurídico-penal,
exigindo que este só deva surgir como a última ratio da política de tutela dos
bens jurídicos. Relativamente à medida das penas, o princípio da
proporcionalidade pouco acrescenta ao princípio da culpa, reforçando a exigência
que a medida da pena reúna os requisitos de necessidade, adequação e justa
medida, por referência às finalidades da punição.
Mas, neste capítulo, há também que tomar em consideração o princípio da
sociabilidade (artigo 2.º e 9.º, da C.R.P.), segundo o qual o Estado deve
procurar a socialização do condenado (vide, neste sentido, FIGUEIREDO DIAS, em
“Direito penal português. As consequências jurídicas do crime”, pág. 74, da ed.
de 1993, da Aequitas Editorial Notícias, e MARIA JOÃO ANTUNES, em “Consequências
jurídicas do crime”, Lições policopiadas, 2007-2008).
Os referidos princípios não esgotam as limitações constitucionais em matéria de
penas.
No que respeita aos limites das penas, a Constituição prescreve expressamente
que “não pode haver penas privativas ou restritivas da liberdade com carácter
perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida” (art. 30.º, n.º 1). Outros
limites resultam ainda de outros artigos da Constituição, designadamente a
proibição da pena de morte (artigo 24.º, n.º 2) e a proibição de penas corporais
(artigo 26.º).
Todavia, não obstante a existência dos referidos princípios e limites, a
Constituição caracteriza-se por conceder um amplo campo de discricionariedade
legislativa em matéria de definição de penas (vide GOMES CANOTILHO e VITAL
MOREIRA, na ob. cit., pág. 196-197).
O problema dos limites das penas coloca-se também quando é necessário punir o
agente pela prática de uma pluralidade de infracções.
Os aludidos princípios constitucionais da culpa, da proporcionalidade e da
sociabilidade ganham especial relevância em caso de concurso de crimes, em
especial na determinação do sistema punitivo mais conveniente para o tratamento
do concurso de infracções, uma vez que existem vários sistemas à disposição do
legislador (vide EDUARDO CORREIA, em “Direito Criminal”, II, pág. 211-215,
reimpressão de 1996, da Almedina, e FIGUEIREDO DIAS, na ob. cit., pág. 279 e
seg.).
Importa, especialmente, confrontar o sistema da acumulação material com o
sistema da pena unitária, na medida em que correspondem àqueles que foram
apreciados na decisão recorrida por constarem, respectivamente, da norma
afastada e da norma aplicada.
Segundo o sistema da acumulação material são de aplicar na sentença tantas penas
quantas as que correspondem aos delitos concorrentes, ou uma pena única,
correspondendo à soma aritmética das diversas penas.
De acordo com o sistema da pena unitária, a soma das penas dos crimes
concorrentes é reduzida juridicamente a uma unidade que funciona como a moldura
dentro da qual os factos e a personalidade do respectivo agente devem ser
avaliados como um todo.
O legislador penal português adoptou um sistema em que o agente é condenado numa
pena única – em cuja medida são considerados, em conjunto, os factos e a
personalidade do agente – e a pena aplicável tem como limites máximo e mínimo,
respectivamente, a soma das penas e a mais elevada das penas concretamente
aplicadas aos vários crimes, sendo que a pena de prisão não pode ultrapassar 25
anos e a pena de multa não pode ultrapassar 900 dias (artigo 77.º, do Código
Penal).
Qual o fundamento para se optar por uma pena unitária e não pelo cúmulo material
das penas aplicadas a cada uma das infracções?
Citando JOSÉ DE FARIA COSTA, dir-se-á que a razão “pela qual o sistema do cúmulo
jurídico se apresenta de maior justeza reside no facto de, com ele, se evitar
que os factos penais ilícitos, após a aplicação da respectiva pena, ganhem uma
gravidade exponencial (...) só o sistema do cúmulo jurídico é dogmaticamente
justificável porque é através dele que obtemos a imagem global dos factos
praticados e, bem assim, do seu igual desvalor global (...) só através do cúmulo
jurídico é possível, enfim, proceder à avaliação da personalidade do agente e,
dessa maneira, perceber se se trata de alguém com tendências criminosas, ou se,
ao invés, o agente está a viver uma conjuntura criminosa cuja razão de ser não
se radica na sua personalidade, mas antes em factores exógenos (...) só assim é
possível chegar à pena justa (...) ou seja: através do sistema do cúmulo
jurídico a culpa é adequadamente valorada” (em “Penas acessórias – Cúmulo
jurídico ou cúmulo material? [a resposta que a lei (não) dá]”, in Revista de
Legislação e de Jurisprudência, Ano 136.º, Julho-Agosto de 2007, n.º 3945, pág.
326-327).
Ao invés, dir-se-á que a solução da acumulação material de penas pode conduzir à
aplicação de penas manifestamente excessivas ou desadequadas, ultrapassando o
limite da culpa, nomeadamente porque não têm em consideração a evolução da
personalidade do agente por referência aos factos globalmente praticados e
porque comprometem a natureza das finalidades das penas, em especial a
reintegração do agente na sociedade, com isso se violando os princípios da
culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade (vide, neste sentido, FIGUEIREDO
DIAS, na ob. cit., pág. 279-280).
Concluindo, o sistema de acumulação material foi preterido pelo sistema de pena
única pelo legislador penal em matéria de concurso de crimes por imposição dos
princípios constitucionais da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade.
Será que as considerações precedentes terão algum âmbito de aplicação em sede de
direito de mera ordenação social, tanto mais que a Constituição não contém
sequer quaisquer normas sobre limites das coimas?
No plano infraconstitucional, à semelhança do que sucede em direito penal, o
direito de mera ordenação social português também repudia a responsabilidade
objectiva, pois, segundo o disposto no n.º 1, do artigo 1.º, do regime geral das
contra-ordenações, aprovado pelo Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro
(RGCO), na redacção do Decreto-lei n.º 244/95, “constitui contra-ordenação todo
o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma
coima” (sublinhado acrescentado).
Todavia, não obstante este ponto de contacto, existem, desde sempre, razões de
ordem substancial que impõem a distinção entre crimes e contra-ordenações, entre
as quais avulta a natureza do ilícito e da sanção (vide FIGUEIREDO DIAS, em
“Temas Básicos da Doutrina Penal”, pág. 144-152, da ed. de 2001, da Coimbra
Editora).
A diferente natureza do ilícito condiciona, desde logo, a eventual incidência
dos princípios da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade.
É que “no caso dos crimes estamos perante condutas cujos elementos
constitutivos, no seu conjunto, suportam imediatamente uma valoração – social,
moral, cultural – na qual se contém já a valoração da ilicitude. No caso das
contra-ordenações, pelo contrário, não se verifica uma correspondência imediata
da conduta a uma valoração mais ampla daquele tipo; pelo que, se, não obstante
ser assim, se verifica que o direito valora algumas destas condutas como
ilícitas, tal só pode acontecer porque o substrato da valoração jurídica não é
aqui constituído apenas pela conduta como tal, antes por esta acrescida de um
elemento novo: a proibição legal.” (FIGUEIREDO DIAS, na ob. cit., pág. 146).
Da autonomia do ilícito de mera ordenação social resulta uma autonomia dogmática
do direito das contra-ordenações, que se manifesta em matérias como a culpa, a
sanção e o próprio concurso de infracções (vide, neste sentido, Figueiredo Dias
na ob. cit., pág. 150).
Não se trata aqui “de uma culpa, como a jurídico-penal, baseada numa censura
ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma
imputação do facto à responsabilidade social do seu autor; dito de outra forma,
da adscrição social de uma responsabilidade que se reconhece exercer ainda uma
função positiva e adjuvante das finalidades admonitórias da coima” (FIGUEIREDO
DIAS em “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”,
in “Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação
Complementar”, I, pág. 331, da ed. de 1983, do Centro de Estudos Judiciários).
E por isso, se o direito das contra-ordenações não deixa de ser um direito
sancionatório de carácter punitivo, a verdade é que a sua sanção típica “se
diferencia, na sua essência e nas suas finalidades, da pena criminal, mesmo da
pena de multa criminal (…) A coima não se liga, ao contrário da pena criminal, à
personalidade do agente e à sua atitude interna (consequência da diferente
natureza e da diferente função da culpa na responsabilidade pela
contra-ordenação), antes serve como mera admoestação, como especial advertência
ou reprimenda relacionada com a observância de certas proibições ou imposições
legislativas; e o que esta circunstância representa em termos de medida concreta
da sanção é da mais evidente importância. Deste ponto de vista se pode afirmar
que as finalidades da coima são em larga medida estranhas a sentidos positivos
de prevenção especial ou de (re)socialização.” (FIGUEIREDO DIAS, em “Temas
Básicos da Doutrina Penal”, pág. 150-151, da ed. de 2001, da Coimbra Editora).
Daí que, em sede de direito de mera ordenação social, nunca há sanções
privativas da liberdade. E mesmo o efeito da falta de pagamento da coima só pode
ser a execução da soma devida, nos termos do artigo 89.º, do Decreto-lei n.º
433/82, e nunca a da sua conversão em prisão subsidiária, como normalmente
sucede com a pena criminal de multa.
Por outro lado, para garantir a eficácia preventiva das coimas e a ordenação da
vida económica em sectores em que as vantagens económicas proporcionadas aos
agentes são elevadíssimas, o artigo 18.º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 433/82 (na
redacção dada pelo Decreto-lei n.º 244/95), permite que o limite máximo da
coima seja elevado até ao montante do benefício económico retirado da infracção
pelo agente, ainda que essa elevação não possa exceder um terço do limite máximo
legalmente estabelecido, erigindo, assim, a compensação do benefício económico
como fim específico das coimas.
Estas diferenças não são nada despiciendas e deverão obstar a qualquer tentação
de exportação imponderada dos princípios constitucionais penais em matéria de
penas criminais para a área do ilícito de mera ordenação social.
Esta autonomia dogmática não pode deixar de se reflectir no tratamento legal do
concurso de contra-ordenações.
Aliás, em matéria de concurso de contra-ordenações, a lei portuguesa tem
apresentado várias soluções (não se cuidando aqui de analisar, por
desnecessidade, o primeiro regime de direito de mera ordenação social que foi
aprovado pelo Decreto-lei n.º 232/79, de 24 de Julho).
O disposto no artigo 19.º, do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, antes da
revisão de 1995, consagrava a aplicação alternativa dos sistemas da exasperação
e do cúmulo jurídico consoante estivessem em causa, respectivamente, uma unidade
de comportamento ou comportamentos autónomos (vide MARIA JOÃO ANTUNES, em
“Concurso de contra-ordenações”, in RPCC, Ano I, Fasc. 3, Julho-Setembro 1991,
pp. 473-474).
O sistema da exasperação traduzia-se na aplicação de uma única coima
correspondente à coima que em abstracto fosse a mais elevada.
Diferentemente, o sistema de cúmulo jurídico resultava da aplicação subsidiária
das regras contidas no artigo 78.º, do Código Penal, na redacção originária.
Após a revisão de 1995, aprovada pelo Decreto-lei n.º 244/95, o artigo 19.º do
regime geral das contra-ordenações passou a adoptar exclusivamente o sistema do
cúmulo jurídico vigente no direito penal, em quase tudo semelhante ao actual
regime do artigo 77.º, do Código Penal, mas com um limite máximo privativo,
nomeadamente o de que a coima aplicável não pode exceder o dobro do limite
máximo mais elevado das contra-ordenações em concurso.
Posteriormente, sem que aquela solução do regime geral das contra-ordenações
tivesse sido alterada até aos nossos dias, o artigo 136.º, n.º 2, do Código da
Estrada, na versão emergente do Decreto-lei n.º 2/98, e o artigo 25.º, do RGIT,
vieram, sectorialmente, adoptar o sistema da acumulação material das coimas, o
que representa um manifesto desvio ao referido regime geral.
A solução do cúmulo jurídico das coimas concretamente adoptada na Revisão de
1995 suscitou sérias reservas por parte de alguma doutrina, (vide Frederico da
Costa Pinto, em “O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da
subsidiariedade da intervenção penal”, in RPCC, 7 (1997), pág. 7-100, e também
em “Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários”, vol. I, pág.
249-254, ed. de 1998, da Coimbra Editora).
Em especial criticou-se a solução do cúmulo jurídico concretamente prevista no
n.º 2, do artigo 19.º, do RGCO, segundo a qual o limite máximo de qualquer
concurso de crimes será sempre o dobro da coima máxima abstracta mesmo que as
infracções se repitam constantemente. Tal solução, nesta visão, permite
beneficiar injustificadamente o infractor reincidente e afecta consideravelmente
a proporcionalidade minimamente exigível entre a sanção das infracções e o
número de factos concretamente cometidos. Especialmente em circuitos onde existe
uma identidade entre a natureza da infracção cometida (de natureza económica) e
a sanção aplicável (de igual natureza), e em que a infracção ocorre precisamente
por motivações de carácter económico, o privilégio do cúmulo jurídico não tem
sentido, por limitar e paralisar a proporção entre a quantidade de factos e o
montante da sanção.
A solução da acumulação material das coimas, aliás prevista na lei alemã para a
situação de concurso real, não padece das mesmas críticas e surge, na opinião de
FREDERICO COSTA PINTO – “como uma solução mais adequada ao regime do ilícito de
mera ordenação social, pelo menos para o caso de concurso real, por respeitar a
proporcionalidade entre o número de ilícitos e o crescimento da sanção e por
possuir neste sector do sistema sancionatório uma idoneidade preventiva a todos
os títulos desejável”.
Independentemente de qual seja a melhor opção legislativa para a punição do
concurso de contra-ordenações, é seguro que as razões que justificam a solução
do cúmulo jurídico em Direito Penal não são transponíveis qua tale para o
direito de mera ordenação social.
A necessidade de conter o limite das penas de prisão dentro de parâmetros de
possibilidade de execução física das mesmas, de humanidade, de respeito pelas
próprias opções do legislador quanto às penas máximas e à ideia de
ressocialização justificam o cúmulo jurídico no sistema penal mas já não fazem
qualquer sentido em caso de concurso de contra-ordenações sancionadas apenas com
montantes pecuniários.
Por outro lado, o referente da culpa jurídico-penal que permite agregar os
vários factos cometidos entre si para efeito de cúmulo jurídico não surge com a
mesma importância estrutural no ilícito de mera ordenação social.
Ora, no caso concreto, as contra-ordenações tributárias praticadas pela
sociedade arguida são sempre puníveis a título de negligência, o que afasta,
desde logo, a violação mais básica do princípio da culpa (artigo 24.º, n.º 1, do
RGIT).
No plano da medida da responsabilidade associada a essas contra-ordenações, as
mesmas são, em princípio, puníveis ora com coima variável entre metade e a
totalidade do imposto em falta, sem que possa ultrapassar o limite máximo
abstractamente estabelecido (artigos 114.º, n.º 2, e 26.º, n.º 1, al. a), e n.º
4, do RGIT), ora com coima de € 500 a € 30.000 (artigos 119.º, n.º 1, e 26.º,
n.º 4, do RGIT).
Acresce que se encontram previstas a dispensa e a atenuação especial das coimas,
respectivamente no n.º 1 e no n.º 2, do artigo 32.º, do RGIT, as quais
pressupõem, em comum, a regularização da situação tributária do infractor.
Aliás, a relevância benigna da regularização da situação tributária do infractor
na medida da sua responsabilidade encontra-se ainda presente em outros três
institutos privativos do RGIT, moldados em função da fase do processo em que
aquela ocorre: o direito à redução da coima (artigo 29.º), a antecipação do
pagamento da coima (artigo 75.º) e o pagamento voluntário (artigo 78.º).
Para além disso, por referência a cada contra-ordenação tributária, a coima
deverá ser graduada em função da gravidade do facto, da culpa do agente, da sua
situação económica e, sempre que possível, exceder o benefício económico que o
agente retirou da prática da contra-ordenação (artigo 27.º, n.º 1, do RGIT).
Isto significa, desde logo, que nenhuma das contra-ordenações tributárias que
integram o concurso real de infracções dos autos é punida com coima fixa uma vez
que é possível individualizar e fazer reflectir em cada coima parcelar a
responsabilidade do agente associada a cada contra-ordenação tributária de
acordo com a sua culpa e as com as circunstâncias do caso concreto.
Acresce que as coimas aplicáveis a estas contra-ordenações tributárias também
nunca podem ultrapassar a totalidade do imposto em falta ou o limite máximo
abstractamente estabelecido se este for inferior.
Assim sendo, é uma evidência que os princípios constitucionais da culpa e da
proporcionalidade não são postos em causa pelo RGIT a propósito da avaliação e
julgamento de cada uma das contra-ordenações em presença.
E é nesta avaliação e julgamento de cada uma das infracções contra-ordenacionais
em concurso que se esgota a projecção plena dos referidos princípios.
Traduzindo-se a culpa contra-ordenacional apenas na imputação de um facto à
responsabilidade social do seu autor, o desvalor global dos factos que integram
as contra-ordenações em concurso e a personalidade daquele evidenciada pela sua
prática não são elementos que exijam necessariamente a sua ponderação para a
determinação de uma coima unitária.
Do mesmo modo, importa relembrar que apenas a compensação do benefício económico
retirado da infracção pelo agente permite garantir a eficácia preventiva das
coimas em matéria tão sensível como a arrecadação das receitas tributárias, e o
cúmulo material de coimas carrega consigo a exigência da anulação da
compensação de todos os benefícios económicos retirados das infracções pelo
agente e encontra neste desiderato a sua legitimação constitucional à luz do
princípio da proporcionalidade em todas as suas vertentes.
Relativamente ao princípio da sociabilidade, o mesmo é perfeitamente estranho em
matéria de coimas, pelo que é incapaz de justificar a opção por qualquer
sistema, nomeadamente o da pena unitária.
Concluindo, os princípios da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade não
proíbem a solução da acumulação material de coimas em sede de direito de mera
ordenação social tributário, sendo que não se vislumbra a incidência negativa de
outra norma ou princípio constitucional.
Deste modo, deve ser julgado procedente o recurso interposto.
*
Decisão
Pelo exposto, decide-se
a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 25.º do Regime Geral
das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho;
b) e, consequentemente, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da
decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de não
inconstitucionalidade.
*
Sem custas
*
Lisboa, 19 de Junho de 2008
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos