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Processo n.º 424/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. Ldª deduziu reclamação, ao abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do despacho de 12 de Março de 2008 do
relator do processo no Tribunal da Relação de Lisboa que, com fundamento em que
a reclamante não suscitara a questão de constitucionalidade que quer ver
apreciada, antes de ter sido proferida a decisão recorrida, não admitiu o
recurso que interpôs para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do
n.º1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC) do acórdão do
mesmo Tribunal, de 20 de Fevereiro de 2008.
Em síntese, a reclamante alega que o acórdão recorrido adoptou uma
interpretação insólita e inesperada do n.º 3 do artigo 670.º do Código de
Processo Civil, pelo que não era exigível que a antevisse e tivesse suscitado a
questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida.
2. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se nos termos seguintes:
“A presente reclamação é, a nosso ver, manifestamente improcedente.
Para além da razão indicada no despacho de rejeição do recurso – não suscitação
atempada da questão de constitucionalidade – afigura-se que subsiste outro
motivo fundamental para produzir o mesmo efeito: a natureza não normativa da
questão suscitada.
Na verdade, o entendimento ou interpretação, extraído dos preceitos legais
invocados pela entidade reclamante, é totalmente desprovido das características
de generalidade e abstracção, aparecendo indissoluvelmente ligado à
peculiaridade do caso concreto, radicando decisivamente a solução encontrada no
facto de se considerar que o pedido de rectificação de lapsos materiais deduzido
traduzia um uso anormal do processo, dada a evidente e manifesta irrelevância
total das correcções pretendidas.”
3. Ouvida sobre a nova causa obstativa à admissibilidade do recurso
aditada pelo Ministério Público, a reclamante contrapõe que aquilo que pretende
ver apreciado é o critério de decisão, que assume natureza normativa e que o
Tribunal da Relação extraiu das normas dos artigos 667.º, n.º1, 668.º e 670.º,
n.º 3, do Código de Processo Civil, segundo o qual um requerimento de
rectificação de erros materiais, e ainda que essa rectificação tenha sido
deferida, não produz os efeitos previstos naquela última disposição legal no
caso de, segundo o entendimento do tribunal, se tratar de erros que em nada
podem ter afectado a compreensão do texto.
4. Para apreciação da reclamação importa considerar as seguintes ocorrências
processuais:
a) Em 07/11/2007 foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa que
negou provimento aos recursos interpostos pelas arguidas “B., S.A.” e a aqui
reclamante “A., Lda.”.
b) A reclamante apresentou um requerimento de rectificação de seis erros
materiais daquele acórdão.
d) Por acórdão de 12/12/2007, o Tribunal da Relação de Lisboa pronunciando-se
sobre esse requerimento da reclamante, reconheceu “6 erros de escrita (lapsos,
erros ortográficos e sintácticos) que, não obstante o cuidado da revisão,
existem efectivamente naquele texto e que, por tal motivo, não podem deixar de
ser corrigidos” e decidiu “corrigir, nos termos indicados, os lapsos, erros
ortográficos e sintácticos indicados pela reclamante “A., Lda.” (cfr. pág. 6 do
acórdão a fls. 4127).
e) Nesse mesmo acórdão de 12/12/2007, ficou inserido um ponto do seguinte teor
(cfr. pág. 6 do acórdão, ponto 3, fls. 4127):
“3 – Não se pode, no entanto, deixar de dizer que, por se tratar de erros
completamente inócuos e irrelevantes, que em nada podem ter afectado a
compreensão do texto, a pretensão da reclamante não se enquadra no direito de
correcção de erros materiais conferido pelas disposições legais por ela
invocadas, que sempre pressupõem alguma relevância jurídica de tais erros. Para
além da busca da perfeição, sempre louvável, não se descortina sequer qualquer
interesse legítimo no requerido.
Não obstante, e apesar do carácter de certa forma anómalo do requerimento
formulado pela reclamante, não se condena a mesma em custas pelo incidente a que
deu causa”.
g) Em 09/01/2008, a reclamante apresentou, por telecópia, “ao abrigo do disposto
nos artigos 374º, n.º 2, e 379.º do CPP, e 668.º do CPC, aplicáveis por força do
disposto no art.. 41.º-1 do RGCOC e nos arts. 4.º e 425.º-4 do CPP”, um
requerimento de arguição de diversas nulidades do “Acórdão da Relação de Lisboa
de 07/11/2007 (conforme posteriormente rectificado pelo Acórdão de 12/12/2007)”,
incluindo, v.g. nulidades por omissão de pronúncia, por falta de fundamentação,
por contradição insanável e por excesso de pronúncia (cfr. fls. 4141 a 4144).
h) Em 16/01/2008, o relator do processo no Tribunal da Relação proferiu o
despacho de fls. 4146-4147, em que decidiu não apreciar o requerimento da
reclamante de fls. 4141 a 4144, por considerar que o acórdão proferido em
07/11/2007 já transitara em julgado, uma vez que, em seu entender,
– “não foi, no prazo de 10 dias (artigo 105.º, n.º 1, do Código de Processo
Penal) exercido qualquer dos direitos conferido pelo artigo 380.º do Código de
Processo Penal ou arguida a nulidade do acórdão (artigo 379.º do mesmo diploma e
artigo 668.º, n.º 3, do Código de Processo Civil)”, e, assim, seria “claramente
intempestiva a arguição de nulidades feita através do requerimento remetido a
este tribunal pela “A.”no dia 10 de Janeiro de 2008”; e,
– “Tal como dissemos no acórdão proferido no dia 12 de Dezembro (fls. 4122 a
4128), e pelos fundamentos dele constantes, não se pode entender que o
requerimento sobre o qual o mesmo versou consubstancie o exercício do direito de
correcção da sentença previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 380.º do Código
de Processo Penal, não tendo, por isso, esse requerimento interrompido o prazo
para a prática dos mencionados actos processuais”.
j) No dia 31/01/2008, a reclamante requereu, ao abrigo do disposto no n.º 3 do
artigo 700.º do CPC, que sobre a matéria desse mesmo despacho recaísse acórdão
(reclamação para a conferência).
1) Por acórdão de 20/02/2008, o Tribunal da Relação de Lisboa apreciou a
reclamação para conferência apresentada pela reclamante em 31/01/2008, tendo
aderido ao teor do despacho reclamado e decidido não apreciar o requerimento da
reclamante de fls. 4141 a 4144 (requerimento de arguição de nulidade do acórdão
da Relação de Lisboa de 07/1 1/2007, conforme posteriormente rectificado pelo
Acórdão de 12/12/2007).
n) Deste mesmo acórdão de 20/02/2008, a reclamante interpôs, em 06/03/2008,
recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do
n.º 1 do art. 70.º da LTC.
o) Nesse recurso para o Tribunal Constitucional, a reclamante pretende “ver
apreciada a inconstitucionalidade, por violação do direito fundamental do acesso
ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º da Constituição da
República Portuguesa), do princípio da legalidade (art. 203.º da CRP) e ainda do
princípio da separação dos poderes, por invasão das esferas de competência
legislativa da Assembleia da República e do Governo (cfr. alínea d) do art.
161.º, alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º, alíneas a) e b) do n.º 1 do art.
198.º, e n.º 5 do artigo 115.º da CRP), da interpretação feita pelo Tribunal da
Relação de Lisboa – adoptada no presente caso concreto, na decisão recorrida –
das normas contidas nos artigos 667.º, n.º 1, 668.º, e 670.º, n.º 3, do Código
de Processo Civil (na redacção anterior à dada pelo DL n.º 303/2007, de 24/08),
aplicáveis in casu por força do disposto nos artigos 716.º, n.º 1, e 749.º do
CPC, segundo a qual, apesar de apresentado um requerimento de rectificação de
erros materiais e ainda que essa rectificação tenha sido deferida e ordenadas as
rectificações requeridas, a apresentação de tal requerimento não produzia os
efeitos previstos na redacção então vigente do artigo 670.º, n.º 3, do Código de
Processo Civil (redacção anterior à dada pelo DL n.º 303/2007, de 24/08) – v.g.
quanto ao prazo para arguir nulidades ou pedir a reforma da decisão –, no caso
de, segundo o entendimento do tribunal, se tratar de “erros completamente
inócuos e irrelevantes, que em nada podem ter afectado a compreensão do texto”.
p) Nesse seu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional, a reclamante referiu, além do mais, o seguinte ponto “3.º - A
questão da constitucionalidade apenas é suscitada pela reclamante no presente
requerimento por não ter tido oportunidade processual de levantar a questão
antes de ter sido proferida a decisão, pelo que, salvo o devido respeito, lhe
deverá ser reconhecido o direito ao recurso, uma vez que foi apenas o douto
Acórdão recorrido (integrando o douto despacho de fls. 4146 e 4147) que fez a
interpretação e aplicação do conjunto normativo cuja inconstitucionalidade a
reclamante vem arguir, não podendo a reclamante prever antecipadamente que uma
tal decisão viesse a ser tomada.”
q) Em 12/03/2008, o relator do processo no Tribunal da Relação de Lisboa
proferiu despacho sobre o requerimento da reclamante de interposição de recurso
para o Tribunal Constitucional, do seguinte teor:
“Fls. 594 e segs.: uma vez que a reclamante não suscitou no processo, antes de
ter sido proferida a decisão recorrida, a inconstitucionalidade normativa que
ora vem invocada e não se pode considerar que essa questão, face ao que já se
tinha dito no ponto 3 do acórdão proferido em 12/12/2007 (fls. 4127), tendo
surgido de forma inesperada para o reclamante, não admito recurso interposto
para o Tribunal Constitucional pela “A., Lda.”.”
5. O recurso para o Tribunal Constitucional foi interposto ao abrigo
da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. É pressuposto do recurso de
fiscalização concreta de constitucionalidade ao abrigo desta alínea que o
recorrente tenha suscitado a questão de constitucionalidade, de modo
processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida,
em termos de este estar obrigado a dela conhecer [alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º e n.º 2 do artigo 72.º da LTC].
A reclamante reconhece que não suscitou, antes de ser proferida a
decisão recorrida, a questão de constitucionalidade que agora pretende submeter
ao Tribunal Constitucional. Mas alega que, nas concretas circunstâncias do caso,
esse ónus não lhe poderá ser imposto por não ter tido oportunidade para
cumpri-lo, uma vez que foi confrontada com uma aplicação inesperada da norma em
causa. Pretende acolher-se à jurisprudência do Tribunal que tem dispensado a
exigência da colocação da questão perante o tribunal da causa naquelas
situações, excepcionais ou anómalas, em que o recorrente é confrontado com uma
situação de aplicação ou interpretação normativa de todo imprevista ou
inesperada feita pela decisão recorrida (cfr., por exemplo, acórdão n.º 120/02,
publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Maio de 2002).
Sucede que é manifesto que as circunstâncias do caso não permitem
configurar uma situação deste tipo.
Com efeito, a decisão recorrida foi proferida em apreciação de
reclamação para a conferência do despacho do relator de 16 de Janeiro de 2008 do
seguinte teor:
«Os recursos interpostos nestes autos para o Tribunal da Relação de Lisboa foram
apreciados pelo acórdão neles proferido no dia 7 de Novembro de 2007 (fls. 4065
a 4106).
Esse acórdão foi notificado aos recorrentes por via postal registada expedida no
dia seguinte (fls.4109 e 4110).
Essa notificação presume-se efectuada no dia 13 de Novembro (artigo 113º, n.º 2,
do Código de Processo Penal).
Uma vez que não era admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça
(artigo 75º, n.º 1, do RGIMOS), não foi tempestivamente interposto recurso para
o Tribunal Constitucional (artigo 75º, n.º 1, da LTC) e não foi, no prazo de 10
dias (artigo 105º, n.º 1, do Código de Processo Penal), exercido qualquer dos
direitos conferidos pelo artigo 380º do Código de Processo Penal ou arguida a
nulidade do acórdão (artigo 379º do mesmo diploma e artigo 668º, n.º 3, do
Código de Processo Civil), é claramente intempestiva a arguição de nulidades
feita através do requerimento remetido a este tribunal pela “A.” no dia 10 de
Janeiro de 2008.
Tal como dissemos no acórdão proferido no dia 12 de Dezembro (fls. 4122 a 4128),
e pelos fundamentos dele constantes, não se pode entender que o requerimento
sobre o qual o mesmo versou consubstancie o exercício do direito de correcção da
sentença previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 380º do Código de Processo
Penal, não tendo, por isso, esse requerimento interrompido o prazo para a
prática dos mencionados actos processuais.
Assim sendo, o acórdão proferido no dia 7 de Novembro já transitou em julgado.
Não há, portanto, que apreciar o requerimento de fls. 4141 a 4144 apresentado
pela “A.”.
Está aqui claramente expresso o entendimento de que o requerimento de
rectificação, por versar sobre lapsos inócuos para a compreensão do texto, não
interrompeu o prazo para o exercício do direito de arguir nulidades.
Na reclamação para a conferência, a ora reclamante limitou-se a pedir que sobre
a matéria do despacho recaísse acórdão, nos termos do n.º 3 do artigo 700.º do
Código de Processo Civil, não arguindo qualquer questão de
inconstitucionalidade.
Veio, então, a ser proferido o acórdão de 20 de Fevereiro, em que a
pretensão da recorrente é apreciada nos seguintes termos:
“3 – No ponto 3 do acórdão proferido no dia 12 de Dezembro de 2007, este
tribunal, apreciando um requerimento apresentado por uma outra recorrente, no
qual se apontavam lapsos, erros ortográficos e sintácticos do acórdão proferido
no dia 7 de Novembro de 2007, teve já oportunidade de dizer que «por se tratar
de erros completamente inócuos e irrelevantes, que em nada podem ter afectado a
compreensão do texto, a pretensão da recorrente não se enquadra[va] no direito
de correcção de erros materiais conferido pelas disposições legais por ela
invocadas, que sempre pressupõem alguma relevância jurídica de tais erros. Para
além da busca da perfeição, sempre louvável, não se descortina[va] sequer
qualquer interesse legítimo no requerido».
Ora, sendo este o entendimento então expresso, não pode este tribunal deixar de
considerar que aquele requerimento não produziu os efeitos previstos na redacção
então vigente do artigo 670º, n.º 3, do Código de Processo Civil e que,
portanto, o requerimento ulteriormente apresentado pela agora reclamante era
intempestivo.
Assim sendo, não pode este tribunal deixar de reafirmar a decisão do relator
atrás transcrita, subscrevendo os seus exactos termos e fundamentos.
Por isso, a reclamação apresentada pela recorrente não pode deixar de ser
indeferida.”
Nesta sequência, não pode dizer-se inesperada ou surpreendente a
adopção pelo acórdão recorrido do sentido normativo – prescindindo, a benefício
de raciocínio, de discutir, se o objecto do recurso que a recorrente apresenta
tem essa natureza, o que o Ministério Público põe em dúvida – que a reclamante
quer ver apreciado pelo Tribunal Constitucional no presente recurso. Inesperada
pode ter sido a adopção desse mesmo critério pelo despacho do relator. Mas, a
partir daí, nunca a decisão da conferência que, em substância, se limitou a
confirmá-lo, pode constituir surpresa. A reclamante, se entendia que esse
entendimento comportava a adopção de um critério normativo inconstitucional,
deveria ter motivado nesses termos a reclamação para a conferência, ainda que a
título subsidiário, a fim de assegurar o posterior acesso ao Tribunal
Constitucional. Tanto mais que a reclamação para a conferência era necessária,
de acordo com o princípio da exaustão dos meios ordinários (artigo 70.º, n.º 2,
da LTC).
Assim, tendo a reclamante disposto de oportunidade para colocar a questão de
constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida antes de
esta ser proferida e não o tendo feito, o recurso para o Tribunal Constitucional
não pode ser admitido, como se decidiu.
Tanto basta para confirmar o despacho sob reclamação, ficando
prejudicada a apreciação de quaisquer outras questões.
6. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar a
reclamante nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) UCs.
Lisboa, 23 de Junho de 2008
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão