Imprimir acórdão
Processo n.º 656/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No âmbito do processo penal comum que correu os seus termos, sob o n.º 17/00.5
IDSRT, no Tribunal Judicial da Comarca de Alcanena, a arguida A. foi condenada,
por acórdão proferido em 22 de Junho de 2006, como autora material de um crime
continuado de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.os 1 e 5,
do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), na pena de 2 anos e 6 meses
de prisão, suspensa na execução sob condição de pagamento da quantia de €
198.870,43, com os legais acréscimos, no prazo de 4 anos.
Na sequência de recurso interposto pela arguida, tal condenação viria a ser
integralmente confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra,
proferido em 10 de Janeiro de 2007.
A arguida reagiu inicialmente contra esta decisão, arguindo a respectiva
nulidade com fundamento em várias situações de omissão de pronúncia, tendo esta
pretensão sido apreciada por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, desta
feita proferido em 13 de Fevereiro de 2008, o qual, não obstante reconhecer
parcialmente razão à arguida, julgou entretanto suprido um dos vícios
processuais invocados pela arguida e acabou por manter a respectiva condenação
nos termos anteriormente decididos.
A arguida interpôs então recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra,
de 10 de Janeiro de 2007 (com as alterações introduzidas pelo aludido acórdão de
13 de Fevereiro de 2008), para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto
nas alíneas b) e g), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:
“1 – Quanto à invocada questão dos juros, o presente recurso é interposto ao
abrigo do disposto no artigo 70 nº 1 alínea b) da Lei 28/82 de 15 de Novembro,
com as alterações introduzidas pela Lei 143/85 de 26 de Novembro, pela Lei 85/89
de 7 de Setembro, pela Lei 88/95 de 1 de Setembro e pela Lei 13-A/98 de 26 de
Fevereiro.
O artigo 14 do RGIT aprovado pela Lei 15/2001 de 5/6, quando interpretado no
sentido de que a suspensão da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao
pagamento da prestação pecuniária tributária e acréscimos legais, ainda que a
dívida se refira à Sociedade no âmbito do processo de recuperação de empresas,
sendo aplicável, quanto a esta, o disposto no artigo 30 de CPEREF, é
materialmente inconstitucional por violação dos seguintes preceitos da Lei
Fundamental:
a) - O princípio da igualdade previsto no artigo 13 nº 3 da Constituição da
República Portuguesa, ao tratar de modo desigual a pessoa singular, quando a
pessoa colectiva não teria de pagar juros.
b) - A legalidade tributária prevista no artigo 103 nº 3 da Constituição da
República Portuguesa ao permitir a liquidação de impostos ao arrepio da
legislação fiscal e das garantias fundamentais dos contribuintes.
c) - Os direitos de defesa previstos no artigo 32 nº. 1 da Constituição da
República Portuguesa ao tomar irrelevante, na aferição da imposição da obrigação
de pagamento da prestação tributária, os elementos atinentes ao sujeito passivo
da relação tributária.
d) - O dever de fundamentação previsto no artigo 205 nº. 1 da Constituição da
República Portuguesa.
2 – Tendo em conta que a Recorrente foi condenada em 1ª Instância no pagamento
da quantia de IVA em falta, com os acréscimos legais, onde se incluem os juros,
desta deviam ter sido excluídos os juros.
3 – A questão dos juros foi levantada nas Alegações do Recurso interposto do
douto Acórdão da 1ª Instância para o Tribunal da Relação e já na Relação no
requerimento apresentado em juízo pela Recorrente em 19/01/2007, através do
qual, se invocou a nulidade do Acórdão de 10/1/2007, por omissão de pronúncia,
onde, reportando-se ao artigo 30 nº 1 do CREREF, se suscitou a
inconstitucionalidade do artigo 14 do RGIT.
II
1 – Quanto à não aplicação da alínea b) do nº 4 do artigo 105 do RGIT, com a
redacção que lhe foi dada pela Lei 53-A/06 de 29/12, o presente recurso é
interposto ao abrigo do disposto no artigo 70 nº 1 alínea g) da Lei 28/82 de 15
de Novembro com as alterações introduzidas, já atrás mencionadas.
2 – Foi proferido douto Acórdão em 10/1/2007 no Tribunal da Relação de Coimbra
que negou provimento ao recurso interposto pela ora Recorrente do Acórdão da 1ª
Instância, que a condenou em pena de prisão, com suspensão da sua execução, com
a obrigação do pagamento do IVA e seus acréscimos legais.
3 – A Recorrente invocou no seu requerimento de 19/1/2007, a nulidade deste
último Acórdão por omissão de pronúncia, ao abrigo do disposto no artigo 379 nº
1 alínea c) 1ª parte do C.P.P., tendo em conta que a alteração na alínea b) do
nº 4 artigo 105 do RGIT introduzida pela Lei 53-A/06 de 29/12, portanto, antes
de 10/1/2007, data em douto Acórdão proferido pela Relação, não foi,
oficiosamente, tomada em consideração e daí a sua nulidade, por não ter sido
aplicado o nº 2 do artigo 4º do C. Penal.
4 – O Exmo. Senhor Doutor Juiz Desembargador Relator, por despacho de
07/03/2007, já depois de ter sido proferido douto Acórdão que negou provimento
ao recurso, ordenou a notificação da Recorrente para proceder ao pagamento do
IVA em falta no prazo de 30 dias, através do respectivo Serviço de Finanças, o
que a Recorrente não fez, fundamentando, no entanto, a sua posição.
5 – Viria a ser proferido douto Acórdão em 15/02/2008, ora recorrido, que
considerou colmatada a omissão de pronúncia relativamente à não apreciação
oficiosa da alteração legislativa ao artigo 105 do RGIT.
6 – Contrariamente, e salvo sempre o devido respeito, entende a Recorrente que
proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder judicial do Juiz
quanto à matéria da causa (artº. 666 nº 1 do C.P.C., aplicável por força do
artigo 4 nº 2 do C.P.P.)
7 – Ao ser colmatada tal falta, o Acórdão recorrido aplicou o artigo 666 nº 1 do
C.P.C. e o artigo 4 nº 2 do C.P.P., normas essas, que deverão ser consideradas
inconstitucionais, de acordo com o Ac. nº 240/97 do Tribunal Constitucional de
12.3.97 (Acs. TC, 36º. – 589), na interpretação segundo a qual entrando em
vigor, posteriormente a uma decisão condenatória do arguido e antes desta ter
formado caso julgado, uma lei penal, que eventualmente se apresenta mais
favorável ao arguido, não pode ter conduzido à modificação da decisão proferida
pelo próprio Tribunal, se a mesma já não for passível de recurso, como, aliás,
foi reconhecido por douto despacho do Exmo. Senhor Doutor Juiz Desembargador
Relator e pelo próprio Exmo. Senhor Doutor Juiz Conselheiro Presidente do STJ,
perante a Reclamação feita nos termos do artigo 405 do C.P.P., onde teve o nº.
2051/08-3 no STJ.
Além de inconstitucionais, tais normas violam o artigo 204 da C.R.P….”.
Neste Tribunal, em 23-9-2008, foi proferida decisão sumária, de não conhecimento
do mérito do recurso, com os seguintes fundamentos:
“1. Dos requisitos específicos de admissibilidade do recurso de
constitucionalidade
Nos termos do disposto no artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da
República Portuguesa (CRP), e no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, cabe
recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que 'apliquem
norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'.
Os requisitos do recurso de constitucionalidade em questão têm sido
aprofundados e consolidados pela jurisprudência do Tribunal Constitucional ao
longo dos anos.
Assim, as decisões jurisdicionais em si mesmas não podem ser objecto de controlo
da constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional.
A fiscalização sucessiva concreta ocorre apenas e precisamente a propósito da
aplicação jurisdicional de uma norma jurídica.
Mais, a apreciação da questão de inconstitucionalidade está condicionada pela
efectiva aplicação (expressa ou implícita) da norma cuja inconstitucionalidade
haja sido suscitada durante o processo.
E a norma é efectivamente aplicada quando a mesma constitui a verdadeira ratio
decidendi e não um mero obiter dictum da decisão recorrida.
Em conformidade com este controlo concreto ou incidental, afirma-se que o
recurso de constitucionalidade tem uma função meramente instrumental aferida
pela susceptibilidade de repercussão útil no processo concreto de que emerge,
não servindo, assim, para dirimir questões meramente teóricas ou académicas.
Para além disso, o recurso previsto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º só
pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da
inconstitucionalidade durante o processo, isto é, de modo processualmente
adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este
estar obrigado a dela conhecer (artigo 72.º, n.º 2 da LTC).
A questão de inconstitucionalidade deve ser suscitada antes de se mostrar
esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre tal questão, na medida em
que o recurso para o Tribunal Constitucional pressupõe a existência de uma
decisão anterior do tribunal a quo sobre a questão de inconstitucionalidade que
é objecto do recurso.
Uma vez que, em regra, o poder jurisdicional se esgota com a prolação da
sentença e dado que a eventual aplicação de norma inconstitucional não constitui
erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial nem a torna obscura
ou ambígua, há‑de entender‑se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial
ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e
atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade.
De igual modo, o requerimento de interposição de recurso e as alegações de
recurso para o Tribunal Constitucional também não constituem meios idóneos e
atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade.
Só em casos muito particulares – em que o recorrente não tenha tido oportunidade
para suscitar tal questão antes de ser proferida a decisão recorrida, ou tendo
tido essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão
de inconstitucionalidade, ou em que, por força de preceito específico, o poder
jurisdicional não se tivesse esgotado com a prolação da decisão final – é que
será admissível o recurso de constitucionalidade sem que sobre esta questão
tenha havido uma anterior decisão do tribunal recorrido.
Para o mesmo efeito, segundo a jurisprudência constante do Tribunal
Constitucional, as partes do processo têm o ónus de considerar as várias
hipóteses de interpretação razoável das normas que a solução do caso pode
convocar e, bem assim, a consideração das posições jurisprudenciais uniformes
dos Supremos Tribunais competentes, por forma a criarem, logo que possível, as
condições processuais que permitam a adequada interposição de recurso para o
Tribunal Constitucional.
Relativamente aos recursos previstos na alínea g), do n.º 1, do artigo 70º, da
LTC, exige-se que a norma ou interpretação normativa arguida de inconstitucional
tenha sido aplicada pela decisão recorrida como seu fundamento e que tenha sido
já julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
2. Do caso concreto
2.1. Da questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa do artigo
14.º, n.º 1, do RGIT (DL 15/2001)
O artigo 14.º, n.º 1, do RGIT prescreve que a “suspensão execução da pena de
prisão é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de
cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos
legais”.
A Recorrente requer a fiscalização concreta da constitucionalidade da referida
norma quando interpretada no sentido de que a suspensão da pena de prisão é
sempre condicionada ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais,
ainda que a dívida diga respeito a uma sociedade que seja objecto de um processo
de recuperação de empresa e beneficie da cessação da contagem de juros prevista
no n.º 1 do artigo 30.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação de
Empresa e de Falência.
A questão assim configurada pela Recorrente levanta dois obstáculos ao
conhecimento do recurso que se situam em planos distintos.
Em primeiro lugar, há que rejeitar que a referida interpretação normativa
tivesse sido efectivamente aplicada na decisão recorrida.
É verdade que a sujeição da sociedade e co-arguida B., S.A., a um processo de
recuperação de empresa e a ulterior declaração de falência constam dos factos
dados como provados na decisão proferida em primeira instância.
Acresce a isso que a arguida e ora recorrente, na qualidade de administradora
da referida sociedade, foi condenada, nas sucessivas instâncias, numa pena de
prisão suspensa na execução sob condição de pagamento da prestação tributária e
dos acréscimos legais em dívida da responsabilidade da referida sociedade.
Porém, a verdade é que, nesta matéria, o tribunal a quo fundamentou a respectiva
decisão da seguinte forma:
“…Questão dos juros:
Verifica-se que a pena aplicada foi suspensa na sua execução, tendo em conta a
condição exigida pelo art. 14 do RGIT.
Aliás verifica-se que a arguida foi beneficiada, pois que apenas se atendeu à
quantia do IVA em falta (no seu período de gestão) no montante de 198870,43€,
não se atendendo ao IRS descontado, retido e não entregue, no montante de
21264,16€.
No acórdão de que se reclama, ficou bem explícito: “Apenas foi aplicada uma
condição de pagamento de quantia estipulada por lei para que possa ser suspensa
a pena de prisão aplicada.
Neste tipo de processos, a suspensão é sempre condicionada ao pagamento de...,
conforme preceitua o art. 14 do RGIT. E a condição aplicada no acórdão foi
somente a indicada e exigida pela lei.
Assim como no regime geral a suspensão da execução da pena pode ser subordinada
ao pagamento de certa quantia – arts. 50 e 51 nº 1 al. a) do CP.
Essa indemnização não está condicionada ao facto de ter sido deduzido pedido
cível de indemnização, é dele independente. “Pagar indemnização, como condição
de suspensão da execução da pena, não está dependente do pedido de indemnização
do art. 71 do CPP” – Ac. do STJ de 11-02-1999, Col. tomo I, pág. 212”.
E, na condenação na 1ª instância apenas se refere, como condição da suspensão:
“Suspender a pena de prisão imposta à arguida A. com a condição de esta no prazo
de 4 anos pagar a quantia de 198 870,43 €, devendo documentar nos autos dentro
de um ano o pagamento de um quarto desta quantia, dentro de dois anos o
pagamento de metade, dentro de três anos três quartos daquela quantia e no
último ano o restante, com os legais acréscimos (art. 14 RGIT)” (sublinhado
nosso).
Ora, em momento algum se refere que devem ser contabilizados ou excluídos juros.
Na eventualidade de virem a ser liquidados juros, e se a ora recorrente
entender não serem devidos, terá oportunidade de exercer a sua defesa, e
insurgir-se contra a liquidação efectuada.
No acórdão não foi apreciada a questão dos juros, nem tinha que o ser porque a
arguida não havia sido condenada no seu pagamento, nem a contabilização dos
juros integrava a condição de suspensão da pena. Apenas se incluíam os
acréscimos legais, o que equivale a dizer que se excluíam todos os acréscimos
ilegais.
Assim, que não se verifica a nulidade de omissão de pronúncia alegada.”
De acordo com o tribunal a quo, nada foi por si decidido sobre a questão
específica da obrigação de pagamento de juros de mora, entendidos estes enquanto
componente dos acréscimos legais da prestação tributária em dívida.
Em conformidade com o decidido, a referida questão apenas se colocará após o
trânsito em julgado da decisão final condenatória, quando vier a ser efectuada a
liquidação da importância global a pagar pela Recorrente para efeito de
suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada.
Uma vez que interpretação normativa delimitada pelo Recorrente não constituiu a
verdadeira ratio decidendi da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, o
recurso de constitucionalidade não seria dotado de qualquer repercussão útil no
processo concreto de que emerge.
Verificada a falta de aplicação da referida interpretação normativa, importa
concluir que não estão preenchidos todos os requisitos de admissibilidade do
recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC.
Em segundo lugar, ainda que aquele obstáculo não existisse, a tramitação dos
autos revela que esta questão de constitucionalidade não foi suscitada de forma
adequada pela Recorrente.
A Recorrente apenas suscitou a inconstitucionalidade da referida interpretação
normativa quando arguiu a nulidade de omissão de pronúncia por referência à
decisão do tribunal superior ora recorrida, sendo certo que já tinha
anteriormente pugnado pela aplicação de uma interpretação normativa de sentido
diametralmente oposto nas respectivas alegações de recurso para o tribunal a
quo, mais precisamente quando então concluiu que a decisão proferida em
primeira instância “(...) não tomou em linha de conta o disposto no art. 30.º
do C.P.E.R.E.F. quanto aos juros” (cfr. conclusão 8.ª das alegações de recurso
para o Tribunal da Relação da Coimbra, que consta a fls. 1734 dos autos).
Todavia, logo nessas alegações de recurso para o tribunal a quo, a Recorrente
tinha o ónus, ainda que a pretexto de uma pretensa omissão de pronúncia, de
equacionar o eventual desvalor jurídico-constitucional de uma interpretação que,
contra o seu entendimento, concluísse pela irrelevância da regra da cessação de
contagem de juros, aplicável aos processos de recuperação de empresa, para
efeito de quantificação da dívida fiscal cujo pagamento condiciona a suspensão
da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada no âmbito do procedimento
criminal.
Assim sendo, haveria, igualmente, que entender que a Recorrente não tinha
suscitado a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar
obrigado a dela conhecer (artigo 72.º, n.º 2, da LIC).
Não se mostrando igualmente satisfeito o aludido requisito específico do recurso
de constitucionalidade, o Tribunal Constitucional não poderá apreciar esta
questão de inconstitucionalidade, devendo ser proferida decisão sumária nesse
sentido, nos termos do artigo 78.º-A, nº 1, da LTC.
2.2. Da questão de inconstitucionalidade da interpretação normativa dos artigos
666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e 4.º, n.º 2, do Código de Processo
Penal
A Recorrente pretende ainda que o Tribunal Constitucional leve a cabo a
fiscalização da constitucionalidade das normas constantes do artigos 666.º, n.º
1, do Código de Processo Civil, e 4.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na
interpretação segundo a qual, entrando em vigor, posteriormente a uma decisão
condenatória do arguido e antes de esta ter formado caso julgado material, uma
lei penal que, eventualmente, se apresente como mais favorável em concreto,
não pode tal lei conduzir à modificação da decisão proferida pelo próprio
tribunal, se a mesma já não for passível de recurso.
Esta interpretação normativa efectivamente já foi julgada materialmente
inconstitucional, por violação do disposto no n.º 4 do artigo 29.º da
Constituição, pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 240/97 (Diário da
República, II Série, publicado em 15 de Maio de 1997).
A situação resolvida pelo referido aresto tinha como pano de fundo a entrada em
vigor da Reforma do Código Penal, aprovada pelo DL 48/95, de 15 de Março, e
prendia-se com o princípio constitucional da aplicação retroactiva da lei penal
mais favorável mercê do abaixamento dos limites máximos da pena de prisão
aplicável a determinados tipos de crime de furto qualificado.
Estava mais concretamente em causa uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça
que recusara a aplicação da nova lei penal – e da nova moldura penal aplicável
ao crime de furto qualificado – em sede de aclaração do acórdão por si proferido
dois dias antes da sua entrada em vigor, sob o fundamento de se mostrar esgotado
o respectivo poder jurisdicional.
Não foi isso – excepto a sucessão de leis penais – que ocorreu nos presentes
autos.
No caso concreto, a Recorrente foi condenada em primeira instância, mediante
decisão proferida em 22 de Junho de 2006, pela prática de um crime de abuso de
confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.os 1 a 5, do RGIT, tendo essa
decisão, por seu turno, sido confirmada pelo acórdão ora recorrido, proferido em
10 de Janeiro de 2007.
Entretanto, em 1 de Janeiro de 2007, tinha entrado em vigor a nova redacção do
artigo 105.º, do RGIT, introduzida pela Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro, cuja
total desconsideração na decisão ora recorrida suscitou, num primeiro momento, a
arguição de nulidade de omissão de pronúncia a esse respeito por parte da ora
Recorrente.
O Tribunal da Relação de Coimbra apreciou a pretensão da Recorrente nesta parte
e proferiu várias decisões cujo verdadeiro sentido importa apreender.
Em 7 de Março de 2007, o juiz desembargador relator proferiu o despacho com o
seguinte teor:
«…Houve alteração ao n.º 4 da al. b) do art. 105.º do RGIT, passando a vigorar a
partir de 1-01-2007, “4- Os factos descritos nos números anteriores só são
puníveis se: b) A prestação comunicada à administração tributária através da
correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do
valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito”.
Vem-se entendendo que desta alteração resulta uma cláusula objectiva de
extinção da responsabilidade criminal, que a verificar-se resulta em benefício
da arguida, e apenas se sabe se se verifica após a notificação ali prevista.
É um imperativo constitucional o da aplicação da lei mais favorável – art. 29.º
da Constituição, e art. 2 nº 4 do CP, sendo aplicável “o regime que
concretamente se mostrar mais favorável ao agente”.
Com tal alteração legislativa, o crime de abuso de confiança fiscal passa a ser
punível se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal da
entrega da prestação e se, após a notificação do contribuinte para proceder à
regularização da situação, pagando a prestação acrescida dos juros respectivos
e do valor da coima aplicável, este a não entregar no prazo de 30 dias, contados
da data da notificação.
Isto quer dizer que a criminalização da infracção passa a depender também da
realização dessa notificação.
Notificação que deve ser feita, dado que ainda não houve decisão com trânsito em
julgado.
[...]
Há pois que, previamente a qualquer outra decisão nos autos, proceder à
notificação a que alude o art. 105 nº 4 do RGIT.
Ficando, para já, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pela
recorrente.
Oficie à Repartição de Finanças [...] para que seja dado cumprimento ao
estabelecido no n.º 4 do art. 105 do RGIT em relação à arguida [...] e decorrido
o prazo previsto na norma, informem este Tribunal em conformidade….
Posteriormente, em 13 de Fevereiro de 2008, o tribunal recorrido conheceu
definitivamente da pretensão da Recorrente respeitante à invocada nulidade de
falta de aplicação da nova lei penal tributária, com a fundamentação que se
passa a transcrever:
“…Como se referiu no despacho de 07-03-2007, a recorrente alegava omissão de
pronúncia:
- questão respeitante aos juros;
- questão atinente à inexistência de dolo;
- não apreciação oficiosa da aplicação da alínea b) do nº 4 do art. 105 do RGIT,
com a redacção dada pela lei 53-A/2006 de 29-12.
Começaremos por analisar a terceira questão.
Al. b) do nº 4 do art. 105 do RGIT.
Nesse mesmo despacho se entendeu que esta alteração legislativa não originou
despenalização da conduta, mas apenas pretendeu dar mais uma oportunidade de
pagamento aos devedores relapsos, no prazo aí estipulado, devendo ser
notificados para o efeito.
Foi o que agora se fez, tendo sido ordenada a notificação da recorrente da
arguida para os termos e efeitos do disposto no art. 105 nº 4 do RGIT, em
relação à arguida e relativamente ao período em que a mesma exerceu a gerência,
até ao início da gestão judicial, 13-04-1999.
Sendo a informação da Direcção de Finanças de Santarém, após a notificação e
decurso do prazo, de que “não foram efectuados pagamentos”.
Cumprida aquela condição de exclusão da punibilidade, verifica-se que os autos
devem prosseguir termos, mantendo-se a infracção.
A eventual nulidade que esta omissão de pronúncia acarretaria daria lugar à
reformulação do acórdão, mas não havendo qualquer alteração significativa (não
se verificou a causa de exclusão da punibilidade), dá-se o mesmo por
reproduzido, para todos os efeitos…”
Resulta à saciedade da decisão recorrida, uma vez reformada, que o Tribunal da
Relação de Coimbra, ao contrário do que pretende fazer crer a Recorrente, não se
recusou a ponderar a aplicação da nova lei penal tributária, entretanto entrada
em vigor, aos factos dados como provados, nem a retirar todas as consequências
jurídicas tidas por relevantes, não obstante a decisão recorrida em questão ser
efectivamente insusceptível de recurso ordinário para o Supremo Tribunal de
Justiça.
A manutenção da decisão de condenação vinda da primeira instância assenta no
entendimento – que aqui não cumpre sindicar – segundo o qual a arguida, e ora
Recorrente, continua a ser responsável criminalmente, mesmo ao abrigo da nova
redacção legal do art. 105.º do RGIT, resultante da Lei 53-A/2006, de 29 de
Dezembro, na medida em que não repôs parcial ou totalmente a verdade fiscal não
obstante ter sido expressamente notificada pela administração fiscal para esse
efeito.
É manifesto que o Tribunal a quo não se recusou a aplicar a nova lei penal
tributária com fundamento no esgotamento do respectivo poder jurisdicional e
que, antes pelo contrário, até diligenciou pela eventual extinção da
responsabilidade criminal da recorrente ao abrigo da nova lei, com os resultados
conhecidos.
Uma vez que a interpretação normativa delimitada pela Recorrente não constituiu
a verdadeira ratio decidendi da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, o
recurso de constitucionalidade não seria dotado de qualquer repercussão útil no
processo concreto de que emerge.
Verificada a falta de aplicação da referida interpretação normativa, importa
concluir que também não estão preenchidos todos os requisitos de
admissibilidade do recurso de constitucionalidade previsto no art. 70.º, n.º 1,
g) da LTC.
Concluindo, o Tribunal Constitucional não pode apreciar as questões de
inconstitucionalidade suscitadas pela Recorrente, devendo ser proferida decisão
sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º-A, nº 1, da LTC.
Desta decisão reclamou a recorrente, apresentando os seguintes argumentos:
“…nas alegações do recurso interposto do Acórdão da 1ª. Instância para o
Tribunal da Relação de Coimbra, a Recorrente aludiu no nº. 5 do Grupo I :
“Sucede que nos termos do artigo 30 do CPEREF se suspende a contagem dos juros
de qualquer natureza dos débitos da Sociedade Arguida “A., SA.”, que entretanto
acabou por falir, o que não foi tomado em linha de conta na sentença recorrida.”
Na 8ª. conclusão dessas Alegações alude-se a que o Acórdão recorrido da 1ª.
Instância não tomou em linha de conta o disposto no artigo 30º. do CPEREF quanto
aos juros.
O que a Recorrente pretende é que o Tribunal definisse que cessando a contagem
dos juros quanto à Sociedade Arguida, o mesmo também havia de ser aplicado à
Arguida, pois o sujeito passivo tributário era aquela e não esta e daí o
tratamento desigual de dois sujeitos perante a lei, o que é efectivamente
inconstitucional.
Se esta questão foi levantada perante o Tribunal da Relação, certamente que o
mesmo deveria ser objecto de apreciação, o que não aconteceu.
Quanto ao que se expressa na douta decisão reclamada quanto aos fundamentos do
Acórdão recorrido emitido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, relativamente à
questão do IRS de onde resultou a Recorrente sair beneficiada, tal argumento não
poderá colher, portanto a matéria de IRS não podia ser objecto de alguma
apreciação pelo Tribunal da Relação de Coimbra, uma vez que estava excluída do
âmbito de recurso.
O Tribunal de recurso devia ter tomado posição sobre todas as questões
levantadas pela Recorrente, onde se inclui a da aplicação do artigo 30 do
CPEREF, o que não fez, sendo certo que ao sujeito passivo tributário, isto é, a
Sociedade Arguida, foi-lhe declarada a extinção do procedimento criminal, o que
ligado à questão da omissão de pronúncia quanto aos juros que deveriam ser
excluídos dos acréscimos legais a que se reportam o artigo 14 nº. 1 do RGIT,
juros esses referidos na parte final da Conclusão 8ª., tem directa ligação com
a violação do artigo 13 nº. 1 da Constituição da República Portuguesa que prevê
a igualdade de tratamento de todos os sujeitos perante a Lei, e a que a
Recorrente fez referência na Conclusão 14ª. das Alegações do recurso da 1ª.
para a 2ª. Instância.
Uma vez que o Acórdão da Relação de Coimbra omitiu a questão dos juros, resultou
o requerimento da arguição de nulidade desse Acórdão.
Crê a Reclamante que se mostram suficientemente invocadas as razões para que o
Tribunal Constitucional conheça desta matéria revogando a douta decisão ora
reclamada.
b) – Da questão de inconstitucionalidade da interpretação normativa dos artigos
666 nº. 1 do Código Processo Civil e 4 nº. 2 do Código Processo Penal.
A Recorrente foi condenada em primeira instância por Acórdão de 22/06/2006 pela
prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105 nºs. 1
a 5 do RGIT tendo sido objecto de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra,
que a confirmou por Acórdão ora recorrido, proferido em 10/01/2007.
Sucedeu que em 1 de Janeiro de 2007 tinha entrado em vigor a nova redacção do
artigo 105 do RGIT, introduzida pela Lei 53-A/2006 de 29 de Dezembro, tendo a
ora
Recorrente Arguida a nulidade de tal Acórdão por omissão de pronúncia nos termos
do artigo 379 nº. 1 alínea c) 1ª. parte do C.P.Penal, o que conduz à nulidade
do Acórdão entretanto proferido, o que o Exmo. Desembargador Relator confirmou
na resposta dada a tal arguição :
“Tem razão a Recorrente e no Acórdão deveríamos ter-nos pronunciado.”
Aceita-se, assim, que deveria ter havido, oficiosamente, uma pronúncia sobre
tal matéria antes de ter sido proferido o Acórdão de 10/1/2007.
Acarretando a nulidade do mesmo Acórdão, o que não aconteceu.
Aplicando, então, directamente e depois da prolação desse Acórdão, defendendo-se
como imperativo constitucional o princípio da aplicação da Lei mais favorável ao
Arguido (artº. 29 da Constituição da República Portuguesa e artº. 2 nº. 4 do C.
Penal), referindo-se por não ter havido ainda decisão com trânsito em julgado,
que deverá ser notificada a Arguida Recorrente, através da Repartição de
Finanças da área da Sociedade Arguida, para dar cumprimento ao constante no nº.
4 do artº. 105 do RGIT relativamente ao período em que aquela exerceu a gerência
até ao início das funções do Gestor Judicial.
Referindo-se, ainda, no douto despacho de 07/03/2007 do Exmo. Desembargador
Relator, que, previamente, a qualquer outra decisão nos autos, há que proceder a
tal notificação feita pelos Serviços da Administração Fiscal.
A ora Reclamante no seu requerimento entregue em 25/07/2007 na Direcção de
Finanças de Santarém, expôs o historial sobre a evolução dos presentes autos e
nos seus nºs. 21 e 22 aludiu-se ao seguinte:
“21
Sendo o Serviço do IVA o sujeito activo e a Sociedade “B.,SA.”, o sujeito
passivo, nenhum pagamento se podia operar no Serviço de Finanças de Alcanena,
por parte da Arguida A., ora Reclamante e em nome da mesma, pois os próprios
registos informáticos só permitem que seja o sujeito passivo e, em nome dele,
que se processem os pagamentos referidos.
22
Acresce que extinto o procedimento criminal da Arguida e desobrigada esta do
cumprimento do pagamento integral do IVA não entregue, não há lugar ao pagamento
de qualquer coima, e a havê-lo, sempre o recibo teria de ser passado em nome da
Sociedade “B., SA.”, porquanto o sistema informático jamais o aceitaria”.
Sucede que a Direcção de Finanças não obstante ser-lhe dirigida tal exposição de
25/07/2007, manteve o maior silêncio sobre possibilidade de o pagamento
eventualmente podia ser feito de modo a contrariar a tese da Arguida.
Além da inexistência de impunidade da Jurisprudência na aplicação da aludida
alínea b) do nº. 4 do artigo 105 do RGIT com a redacção que ultimamente lhe foi
dada, havia também a impossibilidade de os Serviços das Finanças não poderem
receber qualquer pagamento que a Arguida pudesse entretanto efectuar, pois o
mesmo só poderia ser efectuado por via informática, o que já não existia pelo
facto de a Sociedade “B., SA.” ter sido declarada falida havia cerca de 7 anos e
terminados todos os circuitos informáticos de pagamento do IVA.
Aqui chegados levanta-se a questão da aplicação do artigo 666 nº. 1 do C.P.C.,
que refere que “Proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder
judicialmente do Juiz quanto à matéria da causa.”
E acrescenta o seu nº. 2:
“É licito, porém, ao Juiz, rectificar erros materiais, superior nulidade,
esclarecer dúvidas existentes na sentença e reformá-la.
O que não aconteceu nos presentes autos.
O Acórdão de 13/2/2008 considerou colmatada a omissão de pronúncia com o simples
factos de a Arguida ter sido notificada para pagamento do IVA em falta.
Temos, assim, um Acórdão condenatório da 1ª. Instância, datado de 22/06/2006,
submetido a recurso para a Relação de Coimbra que viria a ser proferido um
Acórdão em 10/1/2007 que a confirmou o da 1ª. Instância.
Em 01/01/2007 entrou, entretanto, em vigor a Lei 53-A/2006 de 29/12 mais
favorável à Arguida, só que a mesma não foi tida em consideração no Acórdão de
10/1/2007.
Pugna, assim, a Reclamante, que os artigos 666 nº. 1 do C.P.C. e o artigo 2 nº.
4 do C.P., são inconstitucionais na interpretação segundo a qual entrando em
vigor, posteriormente a uma decisão condenatória do arguido, e antes de esta ter
formado caso julgado material, uma lei penal que eventualmente se apresente mais
favorável em concreto, não pode tal lei conduzir à modificação da decisão
proferida pelo próprio Tribunal, se a mesma já não for passível de recurso.
O que aconteceu nos presentes autos.
A ora Reclamante ao interpor recurso para este Tribunal Constitucional ao abrigo
do disposto no artigo 70 nº. 1 alínea g) da L.T.C. fê-lo com base no Acórdão nº.
240/97 deste Tribunal Constitucional de 12.3.1997 (Acs. TC. 36º. – 589) que
julgou inconstitucionais as normas conjugadas dos arts. 2º. nº. 4, do Cód. Penal
e 666.º, nº 1, do Cód. Proc. Civil, na interpretação segundo a qual, entrando em
vigor, posteriormente a uma decisão condenatória do arguido e antes de esta ter
formado caso julgado material, uma lei penal que, eventualmente, se apresente
como mais favorável em concreto, não pode tal lei conduzir à modificação da
decisão proferida pelo próprio tribunal, se a mesma já não for passível de
recurso, sendo o seguinte o respectivo sumário:
I – Os princípios da irretroactividade da lei penal e da retroactividade da lei
“in melius” não podem, simplistamente, ser visualizados como o verso e reverso
da mesma questão, e isso porque haverá que reconhecer que uma e outro,
geneticamente, têm diversas fontes: enquanto o primeiro recorre do princípio
“nullum crimem sine lege e mulla poenu sine lege”, o que implica que, para uma
sua mera aplicação, bastaria que o arguido tivesse uma conduta que, então, já
fosse considerada como integrante dos pressupostos de uma infracção, já o
segundo, derivado embora do princípio da legalidade, não deixa de derivar
daqueloutros princípios constitucionais tais como os da igualdade e da
necessidade das penas e medidas de segurança.
II – Seguindo-se da postura, apontada pela Constituição, de que as penas e as
medidas de segurança deverão ser justificadas pelo princípio da necessidade,
aferida pela medida da culpa, seria injusta a aplicação de uma punição mais
severa ao agente de uma conduta que, no momento da sua submissão a julgamento,
razões de ordem político-criminal determinaram que deveria ser menos
gravosamente punida que uma conduta como aquela que aquele agente tinha
adoptado.
Como é reconhecida pela própria douta decisão ora reclamada, esta interpretação
normativa foi efectivamente julgada materialmente inconstitucional por violação
do nº. 4 do artigo 29 da Constituição por Acórdão do Tribunal Constitucional nº.
240/97 (DR. II Série, de 15/05/1997).
Tal Acórdão relaciona-se com a aplicação da entrada em vigor da Reforma do Corpo
Penal, aprovado pelo D.L. 48/95 de 15/03 e tem forte ligação, conforme consta da
douta decisão reclamada, com o princípio constitucional da aplicação
relativamente da lei penal mais favorável mercê do abaixamento dos limites
máximos da pena de prisão aplicável a determinados tipos de crime de furto
qualificado.
Nos presentes autos, verifica-se que a alteração verificada na alínea b) do nº.
4 do artigo 105 do RGIT, resultante da Lei 53-A/06 de 29/12, mais não é que o
aparecimento de nova disposição legal mais favorável ao Arguido, à semelhança
de Reforma de 1995 introduzida no Cód. Penal a que se reporta o Acórdão 240/97
deste Tribunal Constitucional, se bem que em crimes diferentes.
A outra semelhança entre ambos os Acórdãos provém do facto de ter sido proferida
sentença, não podendo haver qualquer outro recurso que não fosse para este
Tribunal Constitucional.
O poder jurisdicional dos Exmos. Desembargadores que constituíram a Conferência
da Relação de Coimbra terminou com a prolação do Acórdão de 10/1/2007.
A possibilidade de a mesma ser alterada conforme se alcança do douto despacho de
10/03/2007, vai precisamente em sentido contrário e o mesmo se passa com o
Acórdão de 13/2/2008.
De onde flui que o recurso interposto para este Tribunal deveria ter considerado
que o artigo 666 nº. 1 do C.P.C. e o artigo 2 nº. 4 do C.P. (e não o nº. 2 do
artigo 4º. do C.P.P, aliás, inexistente, como por mero lapso se referiu), como
inconstitucionais.
O que deverá provocar a nulidade dos Acórdãos de 13/02/2008 e 10/01/2007 do
Tribunal da Relação de Coimbra.
Termos em que, procedendo a presente Reclamação, se requer a V.Exas. que seja
revogada a douta decisão sumária proferida neste Tribunal Constitucional, e que
seja proferido douto Acórdão que considere inconstitucionais os artigos 14 nº. 1
do RGIT, 666 nº. 1 do C.P.C. e 2 nº. 4 do C.P., declarando-se a nulidade dos
Acórdãos de 13/02/2008 e 10/01/2007 do Tribunal da Relação de Coimbra.”
O Ministério Público respondeu, pronunciando-se pelo indeferimento da reclamação
apresentada.
*
Fundamentação
Eram duas as questões de constitucionalidade colocadas pelo recorrente a este
tribunal.
Relativamente à que tinha por objecto uma determinada interpretação normativa do
artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, conforme bem se aponta na decisão reclamada, nem a
questionada interpretação foi assumida pela decisão recorrida, nem a mesma foi
suscitada adequadamente perante o tribunal recorrido.
Argumenta o reclamante que se verifica uma omissão de pronúncia na decisão
recorrida relativamente a essa questão.
Não cumpre ao Tribunal Constitucional apreciar e julgar a existência desse vício
decisório, sendo certo que a ausência dos mencionados requisitos essenciais
impedem a fiscalização da constitucionalidade da referida interpretação
normativa.
Quanto à que tinha por objecto uma determinada interpretação normativa dos
artigos 666.º, nº. 1, do Código de Processo Civil, e 2.º, nº. 4, do Código de
Processo Penal, como também se demonstrou na decisão reclamada, ela não se
mostra sustentada pela decisão recorrida, uma vez que é manifesto que o Tribunal
a quo não se recusou a aplicar a nova lei penal tributária com fundamento no
esgotamento do respectivo poder jurisdicional e que, antes pelo contrário,
aplicou a nova lei.
Se dessa aplicação pelo tribunal recorrido não resultou a extinção do
procedimento criminal contra a recorrente isso não equivale a uma recusa de
aplicação da lei nova.
Não integrando a interpretação normativa questionada a ratio decidendi da
decisão recorrida, a natureza instrumental do recurso constitucional impede que
também se proceda à sua fiscalização.
Por estas razões deve ser indeferida a reclamação apresentada.
*
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A. da decisão sumária
proferida por este Tribunal em 23-9-2008.
*
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 2, do mesmo diploma).
*
Lisboa, 15 de Outubro de 2008
João Cura Mariano
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos