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Processo nº 298/08
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é
recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao
abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei da Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da decisão daquele tribunal de 26 de
Fevereiro de 2008.
2. Em 6 de Maio de 2008 foi proferida decisão sumária, pela qual se decidiu, ao
abrigo do disposto no nº 1 do artigo 78º-A da LTC, não tomar conhecimento do
objecto do recurso, face à não aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio
decidendi, da norma cuja apreciação foi requerida.
É a seguinte a fundamentação da decisão agora reclamada:
«Um dos requisitos do recurso de constitucionalidade interposto é a aplicação
pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja apreciação é
requerida a este Tribunal (artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC).
Nos presentes autos verifica-se que a norma indicada na resposta ao convite
feito ao abrigo do nº 6 do artigo 75º-A da LTC – artigo 400º, nº 1, alínea f),
do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que é
irrecorrível o acórdão da Relação que confirme a decisão de primeira instância
de declarar perdidos a favor do estado determinadas quantias nos termos da Lei
nº 5/2002, de 11 de Janeiro – não foi aplicada, como razão de decidir, no
despacho recorrido. Segundo esta decisão, o acórdão do Tribunal da Relação do
Porto é irrecorrível, no caso, por aplicação da alínea f) do nº 1 do artigo 400º
daquele Código, na versão vigente, segundo a qual não é admissível recurso de
acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem
decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos. Ou
seja, na medida em que a perda de bens a favor do Estado se reporta a matéria
penal, já seria recorrível, nesta parte, acórdão condenatório em pena de prisão
superior a 8 anos que tivesse sido proferido naquelas circunstâncias, o que é
demonstrativo de que não foi aplicada a norma indicada pela recorrente».
3. Desta decisão vem agora a recorrente apresentar reclamação, invocando o
seguinte:
«Entendeu o Venerando Juiz relator do Tribunal Constitucional proferir decisão
sumária, indeferindo a pretensão da recorrente nos termos do art. 78-A da Lei do
Tribunal Constitucional.
Baseou-se tal decisão no facto de não se verificar, quanto ao recurso
interposto, um dos requisitos exigidos para o mesmo, mais precisamente a não
indicação da norma violada ou, neste caso, a indicação de uma norma que não terá
sido aplicada. A este respeito verte o dito despacho que “a norma indicada na
resposta ao convite feito ao abrigo do nº6 do artigo 75-A da LTC – artigo 400º,
nº1, alínea f) do CPP (...) NÃO FOI APLICADA como razão de decidir, no despacho
recorrido.”, para logo de seguida entrar em completa contradição dizendo que
“Segundo esta decisão, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto é irrecorrível,
no caso, POR APLICAÇÃO da alínea f) do nº 1 do art. 400º do CPP (...)”.
Não se compreende, perante tal contradição, a motivação de tal decisão.
Não se compreende como pode o Venerando Juiz relator chegar ao entendimento de
que a norma tantas vezes já aqui referida, do CPP, e de cuja interpretação se
suscitou a inconstitucionalidade, não foi a norma aplicada para obstar à
recorribilidade da sentença do Tribunal da Relação.
Perante tal constatação, pergunta-se então a Reclamante qual terá sido a norma
aplicada, uma vez que desde a fundamentação utilizada pelo TR até à decisão do
STJ não se tratou nem discutiu a aplicação e interpretação de outra norma que
não o referidíssimo art. 400º/1/f do CPP.
Ainda que no despacho recorrido, do STJ, se aluda também ao nº2 do dito artigo,
a título de enquadramento e qualificação do montante em causa como sendo de
cariz civil ou penal, não é essa a norma que efectivamente determina a
irrecorribilidade da sentença proferida em 2ª instância.
É mais do que notório que foi a norma indicada pela Reclamante, a convite do
presente TC a que subjaz a toda a questão controvertida da possibilidade de
recurso da sentença em crise; é ela, no entendimento dos Meritíssimos Juízes que
a este respeito se pronunciaram, que configura o entrave e obstáculo a que seja
admitido recurso da dita sentença; pelo que faz todo o sentido, e porque doutra
forma não se compreenderia, que tenha sido ÚNICA E EXACTAMENTE ESSA a norma
indicada pela ora Reclamante, ao presente Tribunal, para que visse declarada a
inconstitucionalidade da sua interpretação, nos termos já expostos. Não foi,
portanto, o nº 2 do art. 400º, nem qualquer outro, que fundamentou a decisão do
STJ, como resulta límpida e claramente duma breve consulta dos autos.
Convida-se então Vossas Excelências a que procedam a tal consulta, e concluam
pela procedência da presente reclamação, uma vez constatada a estranheza da
decisão sumária aqui em questão, materializada num texto de redacção obscura e
contraditória, não com consentânea com uma aturada e ponderada reflexão quanto à
questão jurídica que aqui se discute».
4. Notificado do teor da reclamação, respondeu o Ministério Público pela
seguinte forma:
«1°
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2°
Na verdade, a reclamante não logrou especificar adequadamente a questão
normativa que pretendia ver apreciada – e que se não prende com a
irrecorribilidade, em termos absolutos, da decisão que decrete a perda de bens a
favor do Estado – mas com a irrecorribilidade (meramente relativa) decorrente da
falta de autonomia de tal segmento da decisão penal, dependendo o direito ao
recurso (mesmo nos casos em que o valor bens perdidos exceda a alçada da
Relação) da gravidade da condenação penal.
3º
Note-se, de qualquer modo, que – mesmo que se considerasse susceptível de
suprimento tal deficiência de especificação – o recurso sempre seria de
considerar manifestamente infundado, por não poder obviamente inferir-se do n° 1
do artigo 32° da Constituição da República Portuguesa a existência de um triplo
grau de jurisdição, quanto a matérias (perda de bens) que nem sequer contende
com a liberdade do arguido – sendo perfeitamente legítima a adopção de um regime
de recorribilidade alicerçado na regra da “dupla conforme”».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A decisão reclamada concluiu pelo não conhecimento do objecto do recurso,
interposto ao abrigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, face à não aplicação, pelo
tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja apreciação foi requerida
a este Tribunal.
Para questionar a decisão de não tomar conhecimento do objecto do recurso
interposto, o que pode fazer ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da
LTC, a reclamante sustenta que a decisão sumária está materializada num texto de
redacção obscura e contraditória.
Contudo, esta adjectivação do texto da decisão reclamada só é possível face ao
teor da própria reclamação, já que esta omite quer a identificação da dimensão
interpretativa do artigo 400º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal cuja
apreciação foi requerida a este Tribunal quer a dimensão interpretativa daquela
disposição legal que foi aplicada, como ratio decidendi, pela decisão recorrida:
«(…) verte o dito despacho que “a norma indicada na resposta ao convite feito ao
abrigo do nº6 do artigo 75-A da LTC – artigo 400º, nº1, alínea f) do CPP (...)
NÃO FOI APLICADA como razão de decidir, no despacho recorrido.”, para logo de
seguida entrar em completa contradição dizendo que “Segundo esta decisão, o
acórdão do Tribunal da Relação do Porto é irrecorrível, no caso, POR APLICAÇÃO
da alínea f) do nº 1 do art. 400º do CPP (...)”».
Podendo este Tribunal apreciar normas, na sua totalidade, em determinado
segmento ou segundo certa interpretação (cf., entre muitos outros, Acórdão nº
232/02, Diário da República, II Série, de 18 de Julho de 2002), a decisão que é
objecto de reclamação confrontou duas dimensões interpretativas extraídas da
alínea f) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal: aquela cuja
apreciação foi requerida ao Tribunal Constitucional – o artigo 400º, nº 1,
alínea f), interpretado no sentido de que é irrecorrível o acórdão da Relação
que confirme a decisão de primeira instância de declarar perdidos a favor do
estado determinadas quantias nos termos da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro; e a
dimensão interpretativa que foi aplicada pelo tribunal recorrido, como razão de
decidir – o artigo 400º, nº 1, alínea f), na interpretação segundo a qual não é
admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas
relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não
superior a 8 anos.
O texto em causa não é, por conseguinte, obscuro e contraditório. É inteligível
e não se presta a interpretações distintas, o que dita o indeferimento da
reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 11 de Junho de 2008
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão