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Processo nº 523/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Em 5 de Maio de 2003 A., Limited, interpôs, no Supremo Tribunal
Administrativo, recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário de
Estado Adjunto e do Ordenamento do Território, de 4 de Março de 2003, que
determinou a demolição da moradia pertencente à recorrente, construída no Lote
n.º …, na Praia da Falésia, em Várzeas de Quarteira, Albufeira.
Por Acórdão de 11 de Novembro de 2004, o Supremo Tribunal Administrativo negou
provimento ao recurso contencioso. Considerou, então, o seguinte, na parte ora
relevante:
5. Alega ainda a recorrente que, a considerar-se a prevalência das citadas
disposições do POOC sobre o PROTAL, as mesmas seriam inconstitucionais por
violação dos arts. 2°, 61° n° 1, 62°, n° 1 e 165°, n°1, al. b) da CRP, pelo que
o despacho recorrido seria nulo por se basear em normas feridas de
inconstitucionalidade.
Mais uma vez carece de razão.
A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem decidido reiteradamente que a nossa
lei fundamental não tutela o direito à edificação como elemento necessário e
natural do direito fundiário, e que a necessidade do licenciamento não afronta ô
direito de propriedade tal como está gizado na Constituição da República (art.
62°, n° 1), devendo o direito de construir ser sempre exercido dentro dos
condicionamentos urbanísticos legalmente estabelecidos, de molde a não serem
afrontados outros direitos e deveres também constitucionalmente consagrados
(cfr. os Acs. de 01.04.2004 — Rec. 1.550/03, de 16.01.2003 — Rec. 1.316/02, e do
Pleno de 31.03.2004 — Rec. 35.338 e de 02.12.2001 — Rec. 34.981).
E isto porque, como expressivamente se sublinha no Ac. de 02.07.96 – Rec. n°
32.459:
“O direito de propriedade só tem natureza análoga aos direitos fundamentais, nos
termos previstos no art. 62°/1 da Constituição da República Portuguesa, enquanto
categoria abstracta, entendido como direito à propriedade, ou seja, como
susceptibilidade ou capacidade de aquisição de coisas e bens e à sua livre
fruição e disponibilidade, e não como direito subjectivo de propriedade, isto é,
como poder directo, imediato e exclusivo sobre concretos e determinados bens.
(...)
Está em causa, pois, o direito de construção e a sujeição deste a normas de
licenciamento, ou seja, uma componente do direito de propriedade que não integra
o seu núcleo essencial, não gozando pois do regime de tutela dos direitos,
liberdades e garantias.”
Assim sendo, a entidade recorrida, ao considerar as referidas normas do POOC
violadas pelo acto de licenciamento, não afrontou as citadas disposições da CRP.
Improcedem deste modo as conclusões 6ª, 8ª e 9ª.
6. Por fim, alega a recorrente que a ordem de demolição é injusta,
desproporcionada e discriminatória em relação a outras situações vizinhas
idênticas.
Ora, como é sabido, e constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal
Administrativo, os princípios constitucionais da igualdade, da justiça e da
proporcionalidade, funcionam como limites da discricionariedade, só neste
domínio encontrando a sua justificação, ou seja, tais princípios só se
configuram como fonte autónoma de invalidade quando a Administração goze de
liberdade para escolher o comportamento a adoptar, não relevando no domínio da
actividade vinculada (cfr. Acs. de 22.04.2004 — Rec. 1.200/03, de 05.12.2002 —
Rec. 1.130/02, de 13.01.2000 — Rec. 36.585, de 13.05.99 — Rec. 42.161, de
20.02.97 — Rec. 36.676, e do Pleno de 20.01.98 — Rec. n° 34.779).
Como se refere no citado aresto do Pleno:
“Os princípios da igualdade e da justiça constituem postulados ou normas de
actuação a serem observados no exercício da actividade discricionária da
Administração, na qual esta detenha liberdade para escolha de alternativas
comportamentais, funcionando pois como limites internos dessa actividade, não
relevando pois no domínio da sua actividade vinculada, consistente esta na
simples subsunção à previsão normativa dos comandos legais vigentes de um dado
caso concreto.”
E assim, esses princípios, segundo a jurisprudência citada, só têm autonomia e
só relevam juridicamente no âmbito da actividade discricionária, confundindo-se,
no domínio da actividade vinculada, traduzida na mera subsunção da situação
concreta a uma previsão normativa, com o princípio da legalidade.
Ora, como é bom de ver, a situação a que os autos se reportam configura, sem
sombra de dúvida, uma actuação vinculada da Administração, por referência ao
conteúdo normativo dos diplomas legais e regulamentares citados, pelo que não
poderia a mesma incorrer na violação dos citados princípios constitucionais,
directa ou indirectamente acolhidos nos apontados preceitos da lei fundamental.
Improcede, assim, a conclusão 7ª.
2. Inconformada, a recorrente intentou interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, o qual, todavia, não foi admitido com fundamento em que do
aludido acórdão, proferido em primeiro grau de jurisdição, cabe recurso
ordinário para o Pleno da Secção, nos termos do disposto no artigo 24.º, alínea
a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Decreto-Lei n.º
129/84).
3. Após vicissitudes processuais, o requerimento apresentado a fl. 306 foi
admitido como recurso para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do
Supremo Tribunal Administrativo, sustentando a recorrente nas conclusões das
alegações que apresentou:
1. O acórdão recorrido deveria ter conhecido da alegação formulada pela ora
recorrente de que a “licença de construção deveria ser considerada também válida
ao abrigo do POOC Burgau Vilamoura (Resolução do Conselho de Ministros n.°
33/99, de 27 de Abril), se prevalecesse a interpretação das normas pertinentes
deste (art.°s 9.º, 20.°, n.° 1 e 91.º) implicitamente sempre atribuída pela
Câmara de Albufeira e em certo momento perfilhada (aparentemente) pela DRAOT”.
2. O acórdão recorrido deveria ter reconhecido a existência de situações
jurídicas tuteladas pelo direito através do instituto dos direitos adquiridos,
reconhecendo, designadamente uma direito adquirido à não alteração essencial das
condições de licenciamento da construção, ou um direito adquirido à obtenção de
uma licença de construção desde que respeitados os termos essenciais do quadro
jurídico vigente à altura do loteamento.
3. Dos art.°s 23.°, n.° 2, e 25.°, n.°s 1 e 2, do Decreto-Lei n.° 390/99, de 22
de Setembro, resulta a regra da coordenação dos instrumentos de ordenamento do
território, com prevalência de princípio dos planos regionais sobre os planos
especiais, admitindo porém que estes possam excepcionalmente revogar ou alterar
regras daqueles, desde que o façam com indicação expressa. Modo expresso esse
que, no caso sub judice, não se verifica.
4. Se se entendesse que a lei aplicável (art.°s 20.°, n.° 1, alínea b), do
Regulamento do POOC, 91.º do mesmo POOC e, especialmente, 105.°, n.° 1, alínea
b), do Decreto-Lei n.° 380/99, de 22 de Setembro), resulta inexoravelmente que a
única decisão legalmente permitida é a ordem de demolição, essas normas,
particularmente a última, violariam o princípio da proporcionalidade.
5. Porém, na melhor interpretação, o 105.°, n.° 1, alínea b), do Decreto‑Lei
n.° 380/99, de 22 de Setembro, não consagra um poder vinculado de demolição.
6. Sendo assim, o acto de demolição só poderia ser praticado se fosse
proporcional, isto é se o fim não pudesse ser atingido através de meio menos
gravoso. No caso vertente, havia alternativas menos gravosas, pelo que o acto
administrativo de demolição viola o princípio da proporcionalidade.
7. O acto administrativo de demolição viola o princípio da igualdade (art.°
262.°, da CRP), uma vez que a autoridade administrativa deu ao imóvel e à
situação da recorrente tratamento diferente do dado a outras situações idênticas
na vizinhança.
8. As disposições habilitadoras do acto administrativo de demolição são
inconstitucionais por violação dos art.°s 2.°, 61.°, n.° 1, 62.°, n.° 1, al. b)
e 165.º, n.° 1, al. b), da CRP).
Por Acórdão de 6 de Março de 2007 foi negado provimento ao recurso, tendo o
Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo
considerado o seguinte no ponto 5. da inerente fundamentação:
5. Vejamos, finalmente, a invocada inconstitucionalidade das disposições
habilitadoras do acto administrativo de demolição por violação dos art.°s 2, 61,
n.° 1, 62, n.° 1, e 165, n.° 1, al. b), da CRP. Relembremos que, sendo o quadro
jurídico o que se deixou apontado, estamos perante uma ordem de demolição de
obra construída em desrespeito frontal a um plano especial de ordenamento do
território, o POOC BurgauVilamoura, e portanto, com fundamento na nulidade do
acto de licenciamento. O art.° 2 define o Estado de direito democrático, o art.°
61, n.° 2, consagra a liberdade de iniciativa económica privada, o art.° 62, n.°
1, consagra o direito à propriedade privada e, finalmente, o art.° 165, n.° 1,
b) atribui competência exclusiva à Assembleia da República para legislar sobre
direitos, liberdades e garantias. O sentido da decisão recorrida, que ora se
reafirma, no contexto do presente recurso é o único que resulta da aplicação em
concreto dos princípios enunciados no citado art.° 2, garantia de todos os
direitos dos intervenientes, separação de poderes e respeito pelas normas
emitidas pelos órgãos competentes para as emanarem. Não transparece de nada do
que se decidiu a mínima lesão de qualquer direito que conforme o livre exercício
da actividade privada (no sentido comum de liberdade de agir no campo económico
com vista à obtenção de lucro). O que resta de substancial desta alegação
prende-se com os contornos do jus aedificandi.
A constatação de que o jus aedificandi não integra o conteúdo essencial do
direito de propriedade, constatação repetidamente afirmada pela jurisprudência
deste Tribunal e do Tribunal Constitucional, tem-se como inquestionável. Com
efeito, se assim não fosse, isto é, se esse direito integrasse o núcleo do
direito de propriedade, qualquer cidadão poderia edificar o que quisesse, como
quisesse, quando quisesse bastando que o fizesse em parcela sua, o que não seria
aceitável nos padrões civilizacionais actuais. O que a consagração
constitucional do direito de propriedade visa é, por contraposição aos sistemas
políticos em que essa propriedade inexiste, afirmar que é garantido aos
cidadãos, a todos os cidadãos, o acesso à apropriação privada de quaisquer bens
móveis e imóveis (nem todos, pois alguns há que são insusceptíveis de
apropriação privada). Todavia, como é sabido, qualquer direito com protecção
constitucional pode ser comprimido (observe-se que a primeira restrição consta
do próprio n.° 1, pois a protecção é concedida nos termos da Constituição, e
também do n.° 2 que logo prevê a requisição e a expropriação) e essa compressão
impõe-se pelo facto de vivermos em comunidade e de termos de fazer a
compatibilização dos direitos individuais de todos os sujeitos que a integram. A
utilização irrestrita dos direitos individuais inviabilizaria a vida em
sociedade como hoje a conhecemos. Como resulta de tudo o que ficou dito atrás,
nos pontos anteriores, e que a recorrente na verdade reconhece tanto que
requereu o necessário licenciamento e respeitou as imposições que lhe foram
sendo impostas e não se abalançou a construir sem qualquer subordinação às
regras vigentes, a área do urbanismo é uma daquelas em que o interesse público
mais releva, relevância que se tem acentuado a ritmo acelerado nos últimos anos,
e onde essa compressão do direito de propriedade se mostra mais visível. Veja‑se
a proliferação dos diversos planos gerais e especiais, os PDM, as medidas
provisórias, a rede natura, a reserva ecológica, a reserva agrícola, etc., etc.,
etc., instrumentos sempre acompanhados de inúmeras restrições construtivas. De
resto, isto mesmo é afirmado por Gomes Canotilho e Vital Moreira, in
“Constituição da República Portuguesa Anotada”, edição 1993, 333, “Limites
particularmente intensos a este aspecto do direito de propriedade são os que
ocorrem no domínio urbanístico e do ordenamento do Território, a ponto de se
questionar se o direito de propriedade inclui o direito de construir – jus
aedificandi – ou se este radica antes no acto administrativo autorizativo
(licença de construção)”. No sentido de que o “jus aedificandi não possui tutela
directa no direito (constitucional) de propriedade” podem ver-se, entre outros,
os acórdãos do TC de 1.6.88 no P. 88-0013, de 18.11.87 no P. 87‑0010, de 13.4.94
no P. 93-0002, de 10.12.86 no P. 84-0111, de 29.6.88 no P. 88-0003 e de 28.10.93
no P. 92-0397. No sentido de que “O jus aedificandi não se inclui no direito de
propriedade privada, a que se refere o art.° 62 da CRP, sendo antes o resultado
de uma atribuição jurídica decorrente do ordenamento jurídico urbanístico pelo
qual é modelado, só podendo ser exercido se se contiver dentro dos limites de
tal modelação e respeitar as restrições por ela impostas, que em nada contende
com a matéria relativa à iniciativa económica privada e ao seu livre exercício,
consagrado no n.° 1 do art.° 61 da CRP” podem ver-se os acórdãos STA de 11.1.05
no recurso 560/04, de 18.5.04 no recurso 167/05, de 14.3.06 no recurso 762/05,
de 14.12.05 no recurso 807/05, de 14.12.05 no recurso 883/03 e de 19.10.05 no
recurso 767/05, entre muitos outros.
Não integrando o jus aedificandi o núcleo do direito de propriedade também se
não integra na protecção que a Constituição concede a esse direito quando lhe
manda aplicar o regime dos direitos liberdades e garantias por considerar o
direito de propriedade como direito análogo aos direitos fundamentais (art.°
17). Nessa vertente, só tem natureza análoga a garantia de acesso à apropriação
privada de quaisquer bens, no dizer do acórdão STA de 2.7.96 proferido no
recurso 32.459, “O direito de propriedade só tem natureza análoga aos direitos
fundamentais, nos lermos previstos no art. 62°, 1 da Constituição da República
Portuguesa, enquanto categoria abstracta, entendido como direito à propriedade,
ou seja, como susceptibilidade ou capacidade de aquisição de coisas e bens e à
sua livre fruição e disponibilidade, e não como direito subjectivo de
propriedade, isto é, como poder directo, imediato e exclusivo sobre concretos e
determinados bens.”
O Diploma legal que incluía a norma a coberto da qual foi ordenada a demolição
do construído em desconformidade com o quadro legal aplicável (art.° 105, n.° 1,
b), do DL 380/99, de 22.9), por violação frontal de um POOC, não afrontava esse
núcleo essencial do direito de propriedade de modo que também se não incluía na
reserva relativa de competência da Assembleia da república, nos termos do art.°
165, n.° 1, a) da CRP, que assim, também não foi violada. De resto, o DL 380/99
foi ele mesmo emitido “No desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela
Lei n.° 48/98, de 11 de Agosto “, que assim seria a base habilitadora, o que só
por si afastaria a apontada inconstitucionalidade.
4. Trouxe então A., Limited, recurso ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), invocando que “(a)s normas cuja
constitucionalidade vem sendo colocada em dúvida no âmbito deste processo pela
recorrente e cuja apreciação se solicita são as do art.º 20.º, n.º 1, alínea b),
do Regulamento do Plano de Ordenamento da Orla Costeira de Burgau-Vilamoura
(Regulamento do POOC), aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º
33/99, de 27 de Abril, em conjugação com os artigos 9.º, n.º 2, e 91.º desse
mesmo Regulamento do POOC e com o artigo 105.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei
n.º 380/99, de 22 de Setembro, na interpretação que lhes foi conferida pelo
tribunal recorrido.” Ainda nos termos do requerimento de interposição de
recurso, “(a)s normas constitucionais violadas são as dos artigos 2.º, 18.º,
n.ºs 2 e 3, 61.º, n.º 1, 62.º, n.º 1 e 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição
da República Portuguesa (CRP).”
5. Admitido o recurso, concluiu assim a recorrente as suas alegações:
1. As normas dos art.°s 20.º, n.° 1, alínea b), 9.º e 91.º do Regulamento do
POOC de Burgau-Vilamoura e do art.° 105.°, n.° 1, alínea b, do Decreto-Lei n.°
380/99, de 22 de Setembro, se interpretadas conforme o STA interpretou, violam o
art.° 165.°, n.° 1, alínea b) da CRP, uma vez que, afectando o direito de
propriedade, direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias,
infringem a reserva de lei da AR.
2. A disposição do 20.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento do POOC, contraria
também o artigo 62.°, em articulação com os artigos 17.° e 18.° n.° 3, todos da
CRP, na medida em que diminui a extensão e o alcance do conteúdo essencial do
direito de propriedade.
3. Eventualmente, é posto em causa o próprio direito de iniciativa económica
privada da recorrente, consagrado no art.° 61.º, n.° 1 da CRP.
4. Afigura-se excessiva ou desnecessária a solução normativa que opta
simplesmente pela imediata demolição.
5. Mostra-se, outrossim, lesado o princípio da segurança jurídica que, conforme
tem sido reconhecido pelo Tribunal Constitucional, aflora em vários preceitos
constitucionais e subjaz à própria noção de Estado de direito democrático
adoptada pela Constituição (designadamente, artigo 2.º).
Por sua vez, o Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do
Desenvolvimento Regional apresentou contra-alegações, onde concluiu:
i) Não advém à recorrente qualquer «direito adquirido a construir», ou ofensa
ao seu «direito de propriedade privada» — seja por força do PROT(AL), seja da
sua licença de construção (datada de 2001), seja de qualquer outro instrumento
legal — que lhe permita arredar as disposições imperativas do POOC de
Burgau-Vilamoura, nomeadamente as que dispõem que:
– “Os espaços naturais de arribas são constituídos por zonas particularmente
sensíveis..., incluindo as arribas e faixas superiores associadas...” (art.
19°); e que,
– “Nos espaços naturais de arribas são interditas “novas construções,
incluindo piscinas, terraços e outras superfícies impermeabilizadas ainda que
afectas a edifícios residenciais... (art. 20º/1 b));
ii) As normas dos arts. 20°, n° 1, alínea b), 9º e 91° do Regulamento do POOC
de Burgau-Vilamoura, aprovado pela Res. CM 33/99, de 27.4, e do art. 105°, nº 1,
alínea b), do DL n° 380/99, de 22 de Setembro, interpretadas como o STA as
interpretou, afigura-se-nos acertada, não violando qualquer norma da CRP,
nomeadamente as dos arts. 61°, 62°, e 165°, n° 1, al. b).
iii) Termos em que, e tudo considerado, haverá de improceder o expendido pela
recorrente, tanto no articulado, como nas conclusões enunciadas sob os n° 1 a 5.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
6. O âmbito do pedido
No presente recurso de constitucionalidade está em juízo, desde logo, a norma
contida na alínea b) do nº 1 do artigo 20º do Regulamento do Plano de
Ordenamento da Orla Costeira de Burgau-Vilamoura (adiante designado por POOC),
aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 33/99, de 27 de Abril, que
dispõe:
1. Nos espaços naturais de arribas são interditas as seguintes actividades:
(…)
b) Novas construções, incluindo piscinas, terraços ou outras superfícies
impermeabilizadas ainda que afectas a edifícios residenciais, hoteleiros ou
turísticos ou a equipamentos desportivos.
Pretende a recorrente que o Tribunal aprecie a constitucionalidade desta norma
em conjugação com outras: as contidas no nº 2 do artigo 9º e no artigo 91º do
Regulamento do POOC, e a contida na alínea b) do nº 1 do artigo 105º do
Decreto-Lei nº 380/99, de 22 de Setembro.
O nº 2 do artigo 9º do POOC prevê que a «ocupação das faixas de risco e de
protecção das arribas» fique obrigatoriamente sujeita à apresentação, pelos
interessados, caso a caso, de «comprovativo das condições de segurança (…),
através de estudos específicos (…)». Por seu turno, determina o artigo 91º do
mesmo POOC que as disposições dele constantes não põem em causa direitos
adquiridos à data da sua entrada em vigor. Finalmente, e sob a epígrafe «embargo
e demolição», determina o nº 1, alínea b) do artigo 105º do Decreto-Lei nº
380/99 (na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 310/2003,
de 10 de Dezembro):
Sem prejuízo da coima aplicável, pode ser determinado o embargo de trabalhos ou
a demolição de obras nos seguintes casos:
(…)
b) Pelo Ministro das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente, quando
violem plano especial de ordenamento do território.
Sustenta a recorrente que este conjunto de normas, «na interpretação que lhes
foi conferida pelo tribunal recorrido», lesa os «princípios e normas»
consagrados nos artigos 2º, 18º, nºs 2 e 3, 61º, 62º e 165º, nº 1, alínea b) da
Constituição. No entanto, para que se compreenda a questão de
constitucionalidade que, por este meio, é colocada ao Tribunal, é necessário que
se insira o pedido - assim mesmo feito no requerimento de interposição do
recurso de constitucionalidade - no contexto mais vasto da situação fáctica e
normativa em que se inscreve.
7. O contexto da questão
Os ‘factos’ que envolvem a questão (compreensíveis em parte pelo relato atrás
feito) podem ser sintetizados como seguem. A recorrente é proprietária, desde
1998, de um lote de terreno no Concelho de Albufeira, com alvará camarário,
datado de 1986, que lhe permitia a construção de uma moradia unifamiliar com o
máximo de dois pisos. Nos termos do Decreto-Lei nº 351/93 – que prevê o regime
de «caducidade» de licenças e aprovações urbanísticas incompatíveis com as
disposições de um Plano Regional de Ordenamento do Território (PROT) que seja
posterior à emissão das mesmas – foi pela recorrente solicitada, e obtida, a
declaração de compatibilidade do alvará atrás referido com as regras de uso,
ocupação de transformação do solo constantes do Plano Regional de Ordenamento do
Território do Algarve (PROTAL), aprovado em 1991. Em consequência, a recorrente
endereçou à Câmara Municipal competente um pedido de licenciamento de obra, o
qual foi deferido por deliberação camarária em Outubro de 2000. Concluída a
obra, foi emitido, em 2002, o correspondente alvará de licença de utilização.
No entanto – e como já se viu – em Abril de 1999 aprovou o Conselho de
Ministros, por resolução, o Plano de Ordenamento da Ordem Costeira (POOC) de
Burgau- Vilamoura, que veio a proibir (no seu artigo 20º) novas construções
«nos espaços naturais das arribas». Com fundamento em tal proibição – e ao
abrigo da habilitação contida no já referido artigo 105º do Decreto-Lei nº
380/99 – ordenou o Secretário de Estado Adjunto e do Ordenamento do Território,
por despacho datado de 2003, a demolição do já construído pela recorrente. De
tal despacho interpôs a A. Ltd. recurso contencioso de anulação junto da Secção
do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo. Sem êxito o
fez. Inconformada, recorre então A. para o Pleno daquele mesmo Tribunal, que
mantém a decisão recorrida.
Nas alegações de recurso (para o Pleno do Supremo Tribunal) arguiu a recorrente
a inconstitucionalidade das «disposições habilitadoras do acto administrativo de
demolição», arguição essa que é largamente desatendida pelo Supremo Tribunal
(fls. 538 e ss. dos autos). É, pois, desta última decisão de aplicação de
«norma», cuja inconstitucionalidade, antes, se suscitara, que se interpõe o
presente recurso de constitucionalidade.
8. As normas sob juízo e as questões de constitucionalidade
Nas alegações de recurso para o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo a
recorrente identificou as «disposições habilitadoras do acto administrativo de
demolição» – disposições essas cuja inconstitucionalidade arguía – como sendo
uma «conjunto» ou uma «solução normativa» integrada essencialmente pelas
seguintes normas:
1ª A norma relativa à proibição de novas construções nos espaços naturais de
arribas (artigo 20º, nº 1, alínea b) do POOC Burgau‑Vilamoura), interpretada de
tal modo que:
2ª Se não permita aos interessados a demonstração da existência de condições de
segurança das novas edificações naqueles espaços, conforme – no seu entender –
possibilitaria o disposto no artigo 9º, nº 2 do POOC;
3ª Se não salvaguarde o direito ao já construído (nas condições verificadas in
casu), conforme – no seu entender – decorreria do disposto no artigo 91º do
POOC;
4ª Se não entenda que o poder de ordenar a demolição [de obras que sejam
construídas em violação do disposto em planos especiais], conferido pela alínea
b) do nº 1 do artigo 105º do Decreto-Lei nº 380/99 à autoridade administrativa,
é um poder de exercício discricionário e não vinculado.
Como acima se viu, é justamente esta a «solução normativa» – que o Supremo
Tribunal Administrativo efectivamente aplicou – que forma o objecto do presente
recurso de constitucionalidade.
São de dois tipos as razões invocadas pelo recorrente para sustentar a
inconstitucionalidade deste «conjunto de normas», ou desta «solução normativa»,
na interpretação que lhe foi conferida pela sentença recorrida. O primeiro tipo
de razões é de natureza orgânica ou competencial. Começa, com efeito, a
recorrente por sustentar que é organicamente inconstitucional – por violação da
reserva de lei parlamentar fixada na alínea b) do nº 1 do artigo 165º da
Constituição – a «solução normativa» que habilitou o acto administrativo de
demolição, por se traduzir ela numa «restrição» a um direito, liberdade e
garantia que só poderia vir a ser regulada por lei do Parlamento. Depois,
continua a sustentar-se a inconstitucionalidade destas mesmas «normas», na sua
«dimensão aplicativa concreta», por lesão (substancial) da garantia
constitucional da propriedade, consagrada no artigo 62º da CRP; do direito à
iniciativa económica privada, consagrado no artigo 61º; e dos subprincípios da
proporcionalidade e da tutela da confiança, decorrentes do princípio do Estado
de direito consagrado no artigo 2º.
Vejamos então se procede alguma destas razões.
9. Da questão de constitucionalidade orgânica
Alega antes do mais a recorrente que é organicamente inconstitucional a «solução
normativa» agora em juízo por ser ela integrada por normas decorrentes de
regulamentos administrativos e de acto legislativo governamental num domínio em
que só a lei parlamentar deveria reger, por ser a «matéria» em causa respeitante
a direitos, liberdades e garantias, conforme o previsto na alínea b) do nº 1 do
artigo 165º da Constituição.
Para justificar semelhante alegação são apresentados três argumentos essenciais.
Primeiro, diz a recorrente, à «solução normativa» agora em juízo é conferido um
sentido ablativo da propriedade, ou, pelo menos, um sentido justificativo da
ablação de faculdades já consolidadas e inerentes ao direito de propriedade;
segundo, o direito a não ser privado da sua propriedade, inscrito no artigo 62º
da CRP, é um direito fundamental, de natureza análoga aos direitos, liberdades e
garantias, pelo que – terceiro argumento – se lhe aplicará o especial estatuto
que a Constituição confere a este tipo de direitos, e no qual se integra a
necessidade de intervenção de lei parlamentar para a sua regulação.
Para fundamentar este raciocínio invoca a recorrente a jurisprudência do
Tribunal Constitucional. Mas – e diga-se desde já – sem nenhuma razão o faz.
É verdade que o Tribunal tem dito, em jurisprudência firme, que o direito de
propriedade privada, apesar de vir inserto no Título respeitante aos Direitos
Económicos, Sociais e Culturais, tem uma estrutura de tal modo complexa que nela
se incluirão, por certo, alguns direitos e faculdades que não deixarão de
apresentar natureza análoga à dos Direitos, Liberdades e Garantias; e que, entre
tais direitos e faculdades análogos se contará seguramente o direito de cada um
à não privação arbitrária da sua propriedade (neste sentido, vejam-se, entre
muitos outros, o Acórdão nº 491/2002, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt e ainda os Acórdãos nºs 431/94 e 267/95, em
Acórdãos do Tribunal Constitucional, respectivamente, 28.º Vol., p. 7 ss., 31.º
Vol., p. 305 ss.).
No entanto, para que se entenda, como pretende a recorrente, que é este o
direito que está em causa no caso concreto – de modo tal que a «solução
normativa» agora em juízo deva ser considerada como parte integrante da reserva
de competência legislativa do Parlamento, nos termos da alínea b) do n° 1 do
artigo 165° da CRP, por dela decorrer um efeito «ablativo» de faculdades
contidas em direito análogo a um direito, liberdade e garantia — fundamental é
que se prove que a Constituição tutela o direito a construir como elemento
integrante da propriedade, oponível enquanto tal ao legislador ordinário. Quer
isto dizer que a questão de constitucionalidade orgânica colocada pela
recorrente só pode ser resolvida se se resolver antes a primeira das questões de
constitucionalidade substancial que foi suscitada: como se afirma na decisão
recorrida (fls. 538 dos autos), «o que resta de substancial [da alegação
apresentada] prende-se com os contornos do jus aedificandi».
Deste tema se tratará em seguida.
10. Das questões de constitucionalidade substancial
10.1. Alega a recorrente que são inconstitucionais «as normas habilitadoras do
acto administrativo de demolição» por lesarem elas substancialmente a garantia
constitucional da propriedade, consagrada no artigo 62º da CRP.
Sobre o que seja, rigorosamente, esta garantia – ou em que é que consista o seu
conteúdo e alcance – se tem ocupado, abundantemente, a jurisprudência do
Tribunal. No já citado Acórdão nº 491/2002, e também no Acórdão nº 187/2001
(igualmente disponível em www.tribunalconstitucional.pt) o Tribunal disse, em
consonância com toda a sua jurisprudência anterior, que a garantia
constitucional da propriedade deveria ser entendida de acordo com alguns
postulados essenciais.
Primeiro, de acordo com o princípio da não identificação entre o conceito
civilístico de propriedade e o seu correspondente conceito constitucional. Com
efeito, o bem jurídico que a Constituição protege no artigo 62º é um bem diverso
daquele outro que é tutelado pela lei civil, quando configura tipicamente os
direitos reais ou, em especial, o direito real máximo. Ao «garantir» a
existência da propriedade, a Constituição protege antes do mais a faculdade que
têm os particulares de aceder a bens susceptíveis de apropriação (res intra
commercium), e de usar e dispor deles nos termos fixados por toda a ordem
jurídica, constitucional e infraconstitucional. Assim sendo – e este é o segundo
postulado que decorre de toda a interpretação que tem sido feita sobre o
conteúdo deste específico parâmetro constitucional – o artigo 62º da CRP
consagra, não apenas direitos fundamentais (com estrutura análoga à dos
direitos, liberdade e garantias), mas também uma importante garantia
institucional.
Os direitos que aqui vão reconhecidos são, quer o já analisado direito de cada
um à não privação arbitrária da propriedade (especificamente tutelado pelo nº 2
do artigo 62º), quer o direito de cada um de aceder aos bens susceptíveis de
apropriação, e de deles fruir e dispor – inter vivos e mortis causa – nos termos
do disposto por todo o ordenamento jurídico (direito especificamente tutelado
pelo nº 1 do artigo 62º). Mas, por causa da existência destes direitos – e por
causa do específico conteúdo que lhes deve ser reconhecido – a «garantia» da
propriedade que vai consagrada no artigo 62º da CRP tem ainda uma importante
dimensão objectiva ou institucional, que se traduz em certas imposições que são
endereçadas ao legislador ordinário. Negativamente, este está desde logo
proibido de «afectar», ou «aniquilar», o núcleo essencial do instituto
(infraconstitucional) da «propriedade», nos termos do qual se exercerão os
direitos reconhecidos constitucionalmente; mas, para além disso – e
positivamente ,– está também o legislador obrigado a conformar, no âmbito da sua
acção reguladora, o conteúdo definitivo e certo que tal instituto possa vir a
ter.
Esta obrigação positiva do legislador ordinário, compreendida na «ordem de
regulação» da «propriedade» que a Constituição lhe endereça, deve ser cumprida
nos termos da Constituição. É isto que se diz na parte final do nº 1 do artigo
62º. Tal significa que, neste domínio, a liberdade de conformação legislativa se
encontra particularmente vinculada ao cumprimento de certos limites
constitucionais: o poder legislativo está obrigado pela CRP a «conformar» a
«propriedade», mas só o pode fazer nos «termos» por ela mesma definidos, ou
seja, tendo em linha de conta o sistema constitucional no seu conjunto.
Alega a recorrente que foi, in casu, violada a garantia constitucional da
propriedade. Ao dizê-lo, está portanto a mesma recorrente a sustentar que as
normas de direito ordinário que lhe interditavam a construção que efectuou não
foram emitidas pelo ‘legislador’ nos «termos da Constituição», visto que
violaram os limites, dispostos pelo sistema constitucional no seu conjunto, à
acção legislativa de conformação da propriedade.
No entanto, e como sempre tem dito o Tribunal (vejam-se, entre muitos outros, os
Acórdãos nºs 329/99, 149/99, 517/99 e 723/2004, todos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt) é esta uma conclusão que nada permite retirar.
A interdição de construção foi fixada por norma de um plano especial de
ordenamento do território, aprovado por Resolução do Conselho de Ministros, em
harmonia com o previsto, desde logo, pela lei de Bases da Política de
Ordenamento do Território e de Urbanismo (Lei nº 48/98, de 11 de Agosto), e pelo
Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (Decreto-Lei nº 380/99,
de 22 de Setembro, que veio desenvolver a lei de bases).
A emissão, por parte do ‘legislador’ ordinário, de todas estas normas,
corresponde desde logo ao cumprimento do disposto no artigo 9º, alínea e) da
Constituição, que identifica como tarefa fundamental do Estado, para além da
defesa da natureza e do ambiente, o «assegurar» de um «correcto ordenamento do
território». Por outro lado, no artigo 65º, a Constituição consagra o direito à
habitação e ao urbanismo, cujo cumprimento obriga o Estado, as regiões autónomas
e as autarquias locais à definição das «regras de ocupação, uso e transformação
dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no
quadro de leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo» (nº 4);
como obriga a satisfação do direito ao ambiente e qualidade de vida (artigo 66º,
nº 2, alínea b) que o Estado promova o ordenamento do território.
Ao contrário, portanto, do que é alegado pela recorrente, as normas em causa não
excederam os limites impostos pela CRP ao legislador, na sua tarefa de
«conformação» da «propriedade» nos termos da Constituição. Bem pelo contrário.
Dado ser o «correcto ordenamento do território», em geral, uma tarefa
fundamental do Estado – e dado corresponder a realização dessa tarefa, além do
mais, ao cumprimentos dos deveres estaduais de realização dos direitos à
habitação e ao urbanismo, e ao ambiente e qualidade de vida – a elaboração das
normas de ordenamento do território que limitam o direito a construir
inscrevem-se, de pleno, no núcleo de faculdades conformadoras de que dispõe o
legislador, quando regula o modo de acesso, uso, e disposição da «propriedade
privada», e o faz – por ordem do disposto na parte final do nº 1 do artigo 62º –
«nos termos da Constituição».
Assim sendo, não se pode considerar que o direito a construir seja um elemento
integrante da tutela constitucional da propriedade, impondo‑se enquanto tal ao
legislador ordinário enquanto direito análogo a um direito, liberdade e
garantia. Pelo mesmo motivo, não pode também concluir-se que todas as normas que
tenham por efeito a «ablação» de um tal direito estejam sob reserva de
competência da Assembleia da República, nos termos do artigo 165°, n° 1, alínea
b) da Constituição.
A conclusão é, aliás, extensível à outra alegação do recorrente, segundo a qual
as normas em juízo violariam ainda o direito à iniciativa económica privada,
consagrado no artigo 61° da CRP.
É certo que, com a consagração de um tal direito – também conhecido por
liberdade de empresa – visa a Constituição garantir que, no contexto de uma
economia de mercado e de uma sociedade aberta, a produção e distribuição de bens
e serviços não sejam coisas vedadas à acção dos privados. Mas também é certo que
os limites de uma tal garantia serão aqueles mesmos que decorrerão de todo o
sistema constitucional; e se, entre eles, se conta a tarefa fundamental do
Estado de assegurar o correcto ordenamento do território (tarefa estadual aliás
concretizada nos termos dos artigos 65º e 66º da CRP), então, o exercício da
liberdade de empresa não poderá deixar de estar limitado pelo valor imperativo
das normas urbanísticas. Isto mesmo decorre do preceito constitucional, que diz
que a iniciativa económica privada se exerce «nos quadros definidos pela
Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral.» (artigo 61º, nº 1)
10.2. Finalmente, sustenta a recorrente que as normas em juízo, «habilitadoras
do acto administrativo de demolição», lesam o princípio do Estado de direito,
consagrado no artigo 2º da Constituição.
A alegação comporta duas vertentes essenciais. Primeiro, diz-se que é lesado o
princípio do artigo 2º por se ter ofendido in casu a tutela da confiança
legítima, sem a qual não é pensável a ordem constitucional de um Estado de
direito; depois, invoca-se a violação do parâmetro da proibição do excesso ou da
proporcionalidade enquanto vínculo de actuação do Estado, que integra de igual
modo – como bem se sabe – a arquitectura essencial do artigo 2º. Vejamos então.
De acordo com a argumentação apresentada pela recorrente, a ofensa, no caso, da
tutela da confiança legítima decorreria do ‘facto’ de se ter interpretado como
se interpretou a norma contida no artigo 91º do POOC de Burgau-Vilamoura, que
determina – como já se viu – que «as disposições constante do POOC não põem em
causa direitos adquiridos à data da sua entrada em vigor».
Segundo a recorrente, a proibição de construir, fixada pelo artigo 20º do mesmo
POOC, deveria ter sido, in casu, ‘lida’ à luz deste princípio de salvaguarda dos
direitos adquiridos. E isto porque se deveria, no seu entender, tomar como
«direitos adquiridos» os relativos a construções já erguidas naqueles espaços
[nos espaços referidos pelo artigo 20º], sempre que essas construções respeitem
a lote de terreno integrado em loteamento validamente aprovado, com declaração
de compatibilidade com o PROT vigente e estejam cobertas por licenças camarárias
de construção e de habitação (fls. 462 dos autos). Se assim se não entender –
diz finalmente a recorrente – far-se-á uma interpretação das normas sob juízo
que é claramente inconstitucional, por se lesar o princípio da protecção da
confiança.
Mais uma vez, porém, não tem razão a recorrente.
De acordo com a jurisprudência do Tribunal relativa à protecção da confiança (e
vejam-se, entre muitos outros, os Acórdãos nºs 287/90, 232/91, 269/2001 e
302/2006, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), para que se possa
entender que uma dada actuação estadual – mormente, a actuação normativa, que é
aquela que aqui interessa – é lesiva deste subprincípio do Estado de direito
dois pressupostos devem ser, sempre, verificados: primeiro, deve o Estado ter
iniciado comportamentos (ou tomado decisões) capazes de suscitar nos privados
expectativas de continuidade; segundo, devem tais expectativas ser legítimas, ou
fundadas em boas razões.
No caso, alega a recorrente que as expectativas quanto ao exercício do seu
direito a construir lhe teriam sido conferidas por um comportamento continuado
dos poderes públicos, que se traduziu quer na emissão de uma licença de
loteamento (i), quer na emissão de uma declaração de compatibilidade dessa
licença com o PROTAL (ii); quer, finalmente, na emissão de licenças camarárias
de construção de obra e de utilização da mesma (iii).
Sucede, no entanto, que os dois últimos actos foram praticados depois da entrada
em vigor da norma urbanística que proibia a realização de «novas construções»
nos «espaços naturais das arribas». Como já se viu, e decorre do relato atrás
feito, a proibição data de 1999, altura da entrada em vigor do POOC do
Burgau‑Vilamoura; enquanto as licenças camarárias de construção e utilização de
obra datam, respectivamente, de 2000 e de 2002.
Não sendo – como acabou de se ver no ponto anterior – «arbitrária» ou merecedora
de qualquer censura constitucional a proibição de construção fixada pelo POOC,
as licenças camarárias que se emitiram depois da sua entrada em vigor não
poderão ter gerado no recorrente quaisquer expectativas que se possam considerar
legítimas, ou fundadas em boas razões. (Recorde-se aliás que, nos termos das
disposições conjugadas dos artigos 103°, 2° n° 1 alínea b) e 3° n° 2 do
Decreto-Lei n° 380/90, são nulas tais licenças). Como não poderiam ter gerado
tais expectativas os actos anteriores, de licença de loteamento e de declaração
de compatibilidade com o PROTAL, dada a diferente incidência que tinham quanto à
possibilidade de construção.
Por último, invoca a recorrente a violação, in casu, do princípio da
proporcionalidade.
É essa invocação que está em causa, quando se diz que, em obediência a tal
princípio, o poder de ordenar a demolição de obra (conferido, como vimos, à
autoridade administrativa pelo artigo 105º do Decreto-lei nº 380/99) deverá ser
entendido como um dever de exercício discricionário e não vinculado; e ainda
quando se diz que a proibição de construção fixada no artigo 20º do POOC deveria
ser lida de acordo com o estipulado no artigo 9º, nº 2 do mesmo POOC. Subjacente
a toda esta argumentação está a ideia segundo a qual, constituindo a demolição
de obra um sacrifício grave para o particular, estarão os poderes públicos
obrigados a esgotar a possibilidade de adopção de alternativas que, sendo menos
gravosas para os privados, realizem no entanto o mesmo fim de interesse público.
Como, in casu, se não cumpriu esse dever estadual de adopção do meio mais
benigno (correspondente, como se sabe, ao standard de exigibilidade, como
segundo elemento do princípio da proporcionalidade), a interpretação normativa
feita pela decisão recorrida – diz a recorrente – foi inconstitucional.
É evidente que toda esta argumentação só faria sentido se, no caso, estivesse
verdadeiramente em causa a restrição de um direito, liberdade e garantia. Se
assim fosse, deveria o legislador (como bem se sabe) ter escolhido o meio mais
benigno
para a realização do interesse público requerido pela restrição. Só que – e como
já se viu – nenhuma das normas sob juízo restringe direito, liberdade e
garantia, qualquer ele que seja; assim sendo, não se vê como lhes pode vir a ser
aplicável, como parâmetro de validade, um qualquer dever (do legislador) de
escolha dos meios de prossecução do interesse público que sejam menos onerosos
para os particulares.
III
Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se não conceder provimento ao recurso,
confirmando-se o juízo da decisão recorrida quanto à questão de
constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco)
unidades de conta.
Lisboa, 9 de Outubro de 2008
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão
Tem voto de conformidade do Senhor Conselheiro Carlos
Fernandes Cadilha que não assina por não estar presente.
Maria Lúcia Amaral