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Processo n.º 341/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
O arguido A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da Lei da Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça de 18-3-2008 que indeferiu, por falta de fundamento
bastante, a petição de habeas corpus por si apresentada junto do Tribunal
Judicial da Comarca de Oliveira do Bairro e que tem corrido os seus termos sob o
n.º 199/08.8 TBOBR.
No requerimento de interposição de recurso em questão, o arguido declarou
pretender a intervenção do Tribunal Constitucional, alegadamente “(…) por
interpretação materialmente inconstitucional feita pelo Acórdão recorrido como
“ratio decidendi” do princípio da legalidade, bem como do princípio
constitucional da presunção de inocência do Arguido – prevista no nº 2 do Art.
32.º da C.R.P., bem como do constitucional direito ao recurso do Arguido e
consequente efeito suspensivo da decisão condenatória previsto no nº 1 do Art.
32.º da C.R.P. (…)”.
Por despacho proferido neste Tribunal Constitucional, o recorrente foi convidado
a dar cumprimento ao disposto no n.º 1 do art. 75º-A da LTC, identificando a
norma ou a interpretação normativa aplicada na decisão recorrida cuja
inconstitucionalidade pretendia ver apreciada.
No seguimento deste convite, o recorrente apresentou requerimento com o teor
que se passa a transcrever:
“(…) tendo sido notificado para identificar a norma ou a interpretação normativa
aplicadas na decisão recorrida, Vem aos autos dizer que a norma aplicada no
acórdão recorrido como “ratio decidendi” e cuja interpretação materialmente
inconstitucional feita por aquele acórdão consubstancia a violação do direito
constitucional do arguido à presunção de inocência até ao transito em julgado
do acórdão condenatório de 10 de Março de 2008, bem como a violação do
principio da legalidade, é a norma constante do art. 371-A do CPP – redacção da
Lei n.º 48 de 2007 de 29 de Agosto.”.
Foi proferida decisão sumária em 7-5-2008 de não conhecimento do recurso, com os
seguintes fundamentos:
“Dispõe o art. 75º- A, nº 1, da LTC, que “o recurso para o Tribunal
Constitucional interpõe-se por meio de requerimento, no qual se indique a
alínea do nº 1 do art. 70º ao abrigo do qual o recurso é interposto e a norma
cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o tribunal
aprecie”(sublinhado acrescentado).
A jurisprudência constitucional sempre entendeu que constitui fundamento para o
recurso de constitucionalidade a simples invocação da inconstitucionalidade de
uma norma tal como ela foi interpretada e aplicada na decisão recorrida (vide,
v.g., Ac. TC n.º 102/84, ACTC, n.º 4, p. 293; Ac. TC n.º 238/94, DR Série II,
28/7/1994).
Todavia, nesse caso, quando o recorrente questiona apenas certa interpretação de
uma norma, é-lhe exigível que deixe claro e perceptível, logo no requerimento
de interposição de recurso, qual o sentido da norma que tem por violador da
Constituição (vide, v.g., Ac. TC n.º 199/88, DR Série II, 28/3/1988; Ac. TC n.º
269/94, DR Série II, 18/6/1994; Ac. TC n.º 116/2002, ACTC, n.º 52, p. 551; Ac.
507/2006, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
No caso concreto, o Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a
constitucionalidade da norma constante do artigo 371.º-A do Código de Processo
Penal, na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29-8, tal como ela foi interpretada e
aplicada na decisão recorrida.
Porém, apesar do Recorrente ter sido convidado a corrigir o seu requerimento de
interposição de recurso inicial, a verdade é que o requerimento de correcção
continua sem indicar de forma clara e perceptível qual o sentido com que a
referida norma foi aplicada na decisão recorrida e que se tem por violador da
Constituição, razão pela qual não se pode conhecer do recurso interposto e se
profere decisão sumária nesse sentido (artigo 78.º- A, n.º 1 e 2, da LTC).”
O recorrente apresentou reclamação para a conferência nos seguintes termos:
“1.º O reclamante apresentou aos 12 de Março de 2008 no Tribunal Judicial da
Comarca de Oliveira do Bairro uma petição de Habeas Corpus por prisão ilegal nos
termos que melhor constam do seu requerimento que aqui se dá por reproduzido
para todos os efeitos legais
2.º Por acórdão do STJ de 18 de Março de 2008 que aqui se dá por reproduzido
para todos os efeitos legais, tal petição foi indeferida por falta de fundamento
bastante.
3.º Inconformado com tal indeferimento, o reclamante interpôs recurso para este
Tribunal Constitucional, visando a apreciação da inconstitucionalidade da
interpretação feita pelo referido acórdão da norma constante do Art. 371.º-A do
CPP na redacção da Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto.
4.º Aos 16 de Abril de 2008 foi proferido despacho no sentido do reclamante
identificar a norma ou a interpretação normativa aplicadas na decisão
recorrida.
5.º O reclamante por requerimento de 30 de Abril de 2008, que aqui se dá por
reproduzido para todos os efeitos legais, veio aos autos dizer que a norma
aplicada na decisão recorrida foi a norma constante do Art. 371.º-A do CPP supra
identificado.
6.º Contudo, após tal identificação, este Tribunal Constitucional decidiu não
conhecer do recurso interposto com o fundamento de que o recorrente não indicou
de forma clara e perceptível qual o sentido com que a referida norma foi
aplicada na decisão recorrida.
7.º Ora como melhor consta da douta decisão de 16 de Abril de 2008, o recorrente
foi notificado apenas para “identificar a norma ou a interpretação normativa
aplicadas na decisão...”.
8.º Não tendo sido notificado para indicar de forma clara e perceptível qual o
sentido com que a referida norma foi aplicada na decisão recorrida e que se tem
por violador da Constituição,
9.º Tal como agora é referido na douta fundamentação do indeferimento.
10.º Se este Tribunal pretendia que o recorrente indicasse de forma clara e
perceptível qual o sentido com que a referida norma foi aplicada na decisão
recorrida,
11.º Tal exigência deveria ter sido indicada no despacho que ordenou que o
recorrente identificasse a norma ou a interpretação normativa aplicadas na
decisão recorrida,
12.º Tanto mais que essa indicação de forma clara e perceptível no sentido em
que a norma foi aplicada era condição determinante da aceitação do recurso.
13.º Não tendo sido feita essa indicação no referido despacho, não estava o
recorrente obrigado a fazer tal indicação, por tal não ter sido ordenado.
14.º O recorrente apenas estava obrigado a proceder à identificação da norma ou
da interpretação normativa aplicadas na decisão recorrida e isso o recorrente
cumpriu.
15.º Contudo sempre se dirá que “tal indicação de forma clara e perceptível do
sentido com que a referida norma foi aplicada na decisão recorrida”, se mostra
completamente desnecessária, visto que basta uma análise sumária do acórdão sob
recurso para este Tribunal poder concluir pelo sentido da aplicação de tal
norma.
16.ºA referida indicação do sentido da aplicação da norma aplicada na decisão
recorrida deve ser feita oficiosamente por este Tribunal Constitucional pela
análise do acórdão recorrido, a fim de ser garantido ao recorrente o seu recurso
para o Tribunal Constitucional.
17.º A apreciação do recurso do recorrente dirigido a este Tribunal
Constitucional, visando a apreciação da constitucionalidade da aplicação duma
norma do CPP que fundamentou o indeferimento da sua Providência de Habeas
Corpus, não pode estar dependente da arguição pelo recorrente do sentido com que
a referida norma foi aplicada na decisão recorrida,
18.º Quando tal sentido resulta manifesto da decisão recorrida,
19.º sob pena deste Tribunal estar ele próprio a coartar o seu direito ao
recurso.
20.º A decisão sumária sob reclamação, ao negar o direito à apreciação do
recurso do recorrente, com o fundamento de que este não indicou de forma clara e
perceptível o sentido com que a referida norma foi aplicada na decisão
recorrida, quando o despacho de 16 de Abril de 2008 ordenava que este
identificasse apenas a norma ou a interpretação normativa aplicada na decisão
recorrida é ele próprio inconstitucional por violação do direito a recurso
constitucional do arguido, por violação do disposto no n.º 1 do Art. 32.º da
CRP.
21.º Com efeito não tendo o douto despacho de 16 de Abril de 2008 ordenado que o
recorrente procedesse à indicação de forma clara e perceptível do sentido com
que a norma em questão foi aplicada na decisão recorrida, mas ordenou apenas que
o recorrente identificasse a norma ou a interpretação normativa aplicadas na
decisão recorrida, não pode, salvo melhor opinião, decidir-se não conhecer do
recurso,
22.º Sob pena de se recusar o constitucional direito ao recurso do ora
reclamante.
23.º Tanto mais que a alegada indicação de forma clara e perceptível do sentido
da aplicação da norma em apreço, resulta de forma clara e inequívoca do acórdão
recorrido,
24.º Pelo que não deve impor-se ao recorrente tal ónus, cabendo ao Tribunal,
oficiosamente proceder a tal apreciação.
25.º Na verdade o não conhecimento do recurso do recorrente com o fundamento da
falta de tal indicação, representa a denegação do seu direito ao recurso com
fundamento num exagerado formalismo inadequado ao efeito que se pretende obter
com tal indicação,
26.º O qual resulta manifesto do texto da decisão recorrida, e pode ser obtido
pela sua leitura por este Tribunal.
27.º Ora dispondo o Art. 75.º, n.º 1 da LTC que “o recurso resulta claro que não
é necessária qualquer indicação, como condição da admissibilidade do recurso,
de forma clara e inequívoca do sentido com que a referida norma foi aplicada na
decisão recorrida.”
28.º Ora tendo o recorrente dado cumprimento ao disposto no n.º 1 do Art. 75º-A
da LTC, não existe qualquer fundamento legal para o não conhecimento do
recurso. “
O Ministério Público respondeu nos seguintes termos:
“1º A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2º Na verdade, persistindo o reclamante em não identificar claramente qual a
interpretação normativa questionada – deixando, deste modo, de cumprir o ónus de
delimitar adequadamente o objecto do recurso – apesar da oportunidade que, para
tal, lhe foi concedida, é evidente que o recurso nunca estaria em condições de
prosseguir.”
*
Fundamentação
No sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade, a
competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas, ou a interpretações normativas.
Competindo ao recorrente indicar com precisão o objecto do recurso interposto
deve este indicar, com clareza, qual a norma ou o sentido da interpretação da
norma sustentado na decisão recorrida que reputa inconstitucional.
E esta tarefa, por respeito ao princípio do dispositivo que rege esta matéria,
só pode ser efectuada pela parte recorrente, ninguém a podendo substituir.
Ora, no primeiro requerimento apresentado o recorrente limitou-se a dizer que
pretendia recorrer da “interpretação materialmente inconstitucional feita pelo
Acórdão recorrido como “ratio decidendi” do princípio da legalidade, bem como
do princípio constitucional da presunção de inocência do Arguido – prevista no
nº 2 do Art. 32.º da C.R.P., bem como do constitucional direito ao recurso do
Arguido e consequente efeito suspensivo da decisão condenatória previsto no nº 1
do Art. 32.º da C.R.P”, não indicando qual era essa interpretação, nem qual a
norma interpretada.
Convidado a corrigir a insuficiência, no segundo requerimento o recorrente
apenas referiu que “a norma aplicada no acórdão recorrido como “ratio decidendi”
e cuja interpretação materialmente inconstitucional feita por aquele acórdão
consubstancia a violação do direito constitucional do arguido à presunção de
inocência até ao transito em julgado do acórdão condenatório de 10 de Março de
2008, bem como a violação do principio da legalidade, é a norma constante do
art. 371-A do CPP – redacção da Lei n.º 48 de 2007 de 29 de Agosto”, pelo que
indicou a norma cuja interpretação questionava, mas continuou sem explicitar
qual o conteúdo dessa interpretação.
Pretendendo recorrer não do conteúdo duma norma, mas sim duma interpretação
normativa contida na decisão recorrida, não era suficiente indicar a norma sobre
a qual recaía essa interpretação, sendo também necessário indicar o sentido
desta, pois era esse sentido que definiria o objecto do recurso.
Não o tendo feito, mesmo após convidado a corrigir a insuficiência, o
requerimento de recurso não reúne os requisitos essenciais ao seu conhecimento,
pelo que se revela correcta a decisão sumária de não o apreciar.
O não conhecimento do recurso por ausência dos requisitos legalmente impostos,
nomeadamente a indicação do objecto do mesmo, não viola qualquer direito
constitucional ao recurso, porque este não existe quando se encontram ausentes
os seus pressupostos constitutivos.
*
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A., da decisão sumária
proferida nestes autos em 7 de Maio de 2008.
*
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 19 de Junho de 2008
João Cura Mariano
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos