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Processo n.º 153/08
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No âmbito da acção de despejo que correu os seus termos no Tribunal Judicial da
Maia sob o n.º 8089/03.4 TBMAI, A. pediu, a título subsidiário, a denúncia de um
determinado contrato de arrendamento urbano para habitação, com fundamento na
respectiva caducidade.
Após não ter sido sequer conhecida em primeira instância – por prejudicialidade
decorrente da procedência do pedido principal – a referida pretensão veio a ser
finalmente conhecida e julgada improcedente por acórdão do Tribunal da Relação
do Porto proferido em 6-11-2007.
Inconformado com a referida decisão, o Autor interpôs recurso da mesma para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do
artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), pedindo a fiscalização concreta da constitucionalidade da
norma constante do art. 68.º, n.º 2, do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado
pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro (RAU).
Convidado a indicar qual a interpretação normativa daquele preceito do RAU cuja
inconstitucionalidade pretendia ver apreciada, o recorrente apresentou
requerimento donde resulta que a interpretação questionada é a sustentada na
decisão recorrida, segundo a qual o prazo máximo de trinta anos previsto no
artigo 1025.º, do Código Civil, apenas vale para a constituição da relação
contratual locatícia e não para a sua duração quando determinada pela renovação
imposta ao senhorio, não assistindo, assim, a este o direito de denunciar um
contrato de arrendamento urbano para habitação com fundamento no facto do mesmo
durar há mais de trinta anos.
Foi proferida decisão sumária a julgar improcedente o recurso interposto, com a
seguinte fundamentação:
“A constitucionalidade da referida interpretação normativa, ainda que por
referência a outras disposições legais, já foi apreciada em diversas ocasiões
pelo Tribunal Constitucional, o qual concluiu, invariavelmente, pela
conformidade da referida interpretação normativa com as regras e princípios
constitucionais vigentes.
Contudo, não deixará de se equacionar sucintamente os dados da questão e
relembrar a resposta dada pela justiça constitucional.
O artigo 1025.º do Código Civil de 1966 apresenta a seguinte redacção:
“A locação não pode celebrar-se por mais de trinta anos; quando estipulada por
tempo superior, ou como contrato perpétuo, considera-se reduzida àquele
limite”.
Por seu turno, o n.º 2 do art. 68.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado
pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, prescreve que:
“A denúncia do contrato pelo senhorio só é possível nos casos previstos na lei e
pela forma estabelecida”.
O tribunal a quo interpretou as referidas normas – louvando-se para esse efeito
na posição doutrinária assumida pelos Professores Pires de Lima e Antunes Varela
na anotação ao Código Civil – no sentido de que o prazo máximo de 30 anos
previsto no art. 1025.º do Código Civil apenas vale para a constituição da
relação contratual locatícia e não para a sua duração quando determinada pela
renovação imposta ao senhorio nos termos do n.º 2 do art. 68.º do RAU,
concluindo, assim, que não assiste ao senhorio o direito de denunciar um
contrato de arrendamento urbano para habitação com fundamento no facto do mesmo
durar há mais de trinta anos.
Dispõe ainda o n.º 1 do art. 62.º da Constituição que:
“A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida
por morte, nos termos da Constituição”.
O Recorrente entende que a referida interpretação normativa, que nega ao
senhorio a possibilidade de denúncia do contrato de arrendamento urbano para
habitação quando o mesmo já dura há mais de trinta anos e que impõe assim a sua
prorrogação para além deste prazo, viola o direito constitucional à propriedade
privada.
A propósito da pretensa violação do direito de propriedade privada fundada na
renovação automática de um contrato de arrendamento urbano para o comércio, para
além do prazo de trinta anos e contra a vontade do locador, o Acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 147/2005 (publicado no Diário da República, II
Série, de 14 de Junho de 2005, e também disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), considerou que:
“(…) 11. Segundo o disposto no n.º 1 do respectivo artigo 62º, “A todos é
garantido o direito de propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por
morte, nos termos da Constituição”.
Como o Tribunal Constitucional já por diversas vezes observou, não obstante não
estar formalmente incluído entre os direitos, liberdades e garantias, o direito
de propriedade privada inclui uma dimensão – pelo menos, o direito a não ser
privado da propriedade, a não ser nos termos do disposto no n.º 2 do mesmo
artigo 62º – em que o respectivo regime, por força do disposto no artigo 17º da
Constituição, lhe é aplicável (cfr., em especial, o acórdão n.º 491/2002 e a
jurisprudência nele citada, in Diário da República, II série, de 22 de Janeiro
de 2003).
Ora, como se sabe, entre “os direitos” que integram o direito de propriedade
(cfr. o artigo 1305º do Código Civil) inclui-se o poder de fruição do respectivo
objecto, poder com base no qual, tratando-se de propriedade de imóveis, o
proprietário pode dar de arrendamento o prédio correspondente.
Igualmente se sabe que a celebração de contratos de arrendamento, permitindo o
gozo do prédio por pessoa (singular ou colectiva) diferente do respectivo
proprietário (artigos 1022º e 1023º do Código Civil), corresponde a uma forma
socialmente útil de fruição do direito de propriedade. Em particular, o
arrendamento comercial proporciona ao arrendatário um bem – o local de
funcionamento – especialmente relevante no exercício da sua actividade
económica, com peso frequentemente significativo no valor do respectivo
estabelecimento, e cuja estabilidade pode ser, em si, de grande valia.
Isso mesmo reconhece a lei ordinária, por exemplo, quando restringe os casos de
denúncia pelo senhorio (artigos 68º, n.º 2 do Regime do Arrendamento Urbano),
quando prevê a possibilidade de transmissão da posição de arrendatário, em caso
de trespasse, independentemente de consentimento do senhorio (artigo 115º, n.º 1
do RAU), ou quando impõe a continuação do contrato aos sucessores do senhorio
(artigo 112º, n.º 1 do RAU).
12. A verdade, todavia, é que, reconhecer que nada na Constituição impede o
senhorio de pretender manter um arrendamento por mais de 30 anos, afirmação da
qual discorda a recorrente, pois que sustenta que, ainda que contra sua
vontade, o arrendamento se extingue decorrido tal prazo, não é incompatível com
o reconhecimento de que a manutenção do contrato de arrendamento por tal
período de tempo, em virtude de sucessivas renovações, representa uma oneração
séria do direito do proprietário.
Seja como for, e, quer se entenda que a admissibilidade constitucional da
limitação ao direito de propriedade implicada pela norma em análise deva ser
analisada à luz do regime previsto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18º da
Constituição, por estar em causa a dimensão em que aquele direito fundamental é
um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias, quer se considere que
estamos apenas perante uma limitação a um direito económico, cuja
admissibilidade há-de também ser avaliada segundo critérios de
proporcionalidade, exigidos pelo princípio do Estado de Direito (artigo 2º da
Constituição), sempre se tem de concluir pela não existência de qualquer
obstáculo constitucional.
Com efeito, a manutenção do arrendamento comercial, em virtude de sucessivas
renovações, por um lapso de tempo superior a 30 anos revela-se manifestamente
adequada e não excessiva, em si mesma, à garantia do direito de liberdade de
iniciativa económica privada aqui especialmente encabeçado pelo
arrendatário-comerciante (cfr., sobre as exigências do princípio da
proporcionalidade, o acórdão n.º 634/93, Diário da República, II série, de 31 de
Março de 1994), não lesando 'o conteúdo essencial' (n.º 3 do artigo 18º da
Constituição) ou o 'conteúdo mínimo' do direito de propriedade.
Como o Tribunal Constitucional já o afirmou, no seu acórdão n.º 263/2000
(disponível em www.tribunalconstitucional.pt), também aqui se pode dizer que,
apesar de tudo, os “senhorios (...) continuam a poder transmiti-lo e fruí-lo
(convindo-se, contudo, que se não pode escamotear que, na prática, a transmissão
de um prédio urbano dado de arrendamento se antevê mais dificultosa
reportadamente a um outro que se não encontre «onerado» com um tal tipo de
contrato e que, dados os condicionamentos da actualização das rendas, a sua
fruição se pode apresentar como menos proveitosa)”.
Não tem, assim, fundamento a inconstitucionalidade suscitada pela recorrente
(…)».
Esta posição foi reiterada pelo Tribunal Constitucional através do Acórdão n.º
148/2005 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), acrescentando-se então
que:
«(…) 8. O facto de a situação não estar coberta pelo regime do artigo 18.º n.º 2
da Constituição não significa que o agravamento das limitações à liberdade
contratual do locador que dela decorre não possa ser avaliado à luz dos
princípios do Estado de Direito que impedem o legislador de restringir direitos
individuais de modo arbitrário e desproporcionado, ainda que fora das hipóteses
cobertas por aquele preceito (Cfr. Acórdão n.º 205/2000).
Sucede que também por este ângulo a resposta é negativa.
Com efeito, o regime de prorrogação do arrendamento para além de 30 anos da
duração máxima pode consistir numa arbitragem discutível entre os interesses do
proprietário/locador e os do locatário e até ser menos coerente com a
preocupação de evitar a “feudalização” da propriedade que dita a proibição de
estipulação de prazos de duração de contratos de locação superiores a 30 anos
(objectivo, aliás, verificável noutros lugares do sistema; cfr. solução
semelhante quanto ao usufruto e, por remissão, quanto ao uso e habitação, no
artigo 1443.º do Código Civil) e ir ao arrepio da tendência actual para atenuar
este aspecto do regime vinculístico (cfr., neste sentido Pinto Furtado, Manual
do Arrendamento Urbano, p. 149 e ss., onde se procede a uma resenha de direito
comparado; autor que, aliás, se pronuncia no sentido da inconstitucionalidade da
prorrogação forçada para além do prazo do artigo 1025.º do Código Civil, maxime
p.198 e 984-986).
Porém isso não basta para que se conclua pela inconstitucionalidade. Para que a
opção do legislador pudesse ser censurada pelo juiz constitucional à luz deste
parâmetro teria de se apresentar como destituída de fundamento ou obedecer a um
critério legislativo manifestamente desrazoável e inadequado.
Ora, já vimos que o regime de prorrogação forçada do arrendamento para comércio
e indústria obedece a um escopo de tutela da posição jurídica do inquilino que,
do mesmo passo, serve o interesse público de defesa da economia mediante a
protecção da estabilidade empresarial com larga tradição no nosso ordenamento
jurídico e que naturalmente entra nas ponderações do locador quando opta por
essa forma de fruição do imóvel (e também por aí se afastariam preocupações da
tutela constitucional da confiança ou da segurança jurídica relativamente a
contratos celebrados em 1971, como é o caso dos autos).
Esta preferência pela protecção da actividade empresarial em detrimento dos
interesses dos titulares de riqueza imobiliária cabe na margem de
discricionariedade legislativa quanto à conformação da propriedade privada, na
tarefa de modelação normativa da função social do instituto. Encontra
credencial constitucional, designadamente, na alínea d) do artigo 9.º e no n.º
1 do artigo 86.º da Constituição.
A extensão temporal dessa protecção para além de 30 anos de duração global da
relação locatícia, ainda que possa conduzir a uma situação de duração ilimitada,
é adequada ao fim visado e não a torna, por si só, desproporcionada (por
violação do subprincípio da proibição de excesso).
Efectivamente, o equilíbrio da relação não pode ser avaliado isolando o efeito
da norma em causa do conjunto dos direitos e obrigações do locador. Ora, além do
que já se referiu quanto à possibilidade de recuperação do gozo directo do bem,
pela existência de outras causas de denúncia ou de causas de resolução que
traduzem a permanência na titularidade do locador de “competências” inerentes à
propriedade, as rendas são anualmente actualizáveis (artigo 32.º do RAU),
porventura tendo precedido avaliação ou correcção extraordinária (cfr. artigo
9.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, preambular do RAU e diplomas aí mencionados),
pelo que não pode dizer-se que o prolongamento da duração do arrendamento tenha
por efeito necessário tornar irrisória a contrapartida pela cedência do gozo da
coisa (ao menos pela sua conjugação com o efeito da inflação, que é o que ocorre
como mais provavelmente susceptível de arrastar, a longo prazo, essa
consequência) (…)».
Não existe qualquer razão válida para divergir da aludida jurisprudência
constitucional, a qual é inteiramente transponível para o caso concreto, com as
devidas alterações e com as mesmas consequências.
A circunstância do caso sub judice respeitar à denúncia de um contrato de
arrendamento urbano para a habitação não conduz a solução diversa na medida em
que a ponderação dos direitos do locatário habitacional não conduz, antes pelo
contrário, a qualquer fortalecimento da posição do locador, na medida em que,
tal como se escreveu no referido Acórdão 148/2005:
«(…) Convém pôr desde já em evidência, porque será um factor a considerar
ulteriormente no confronto da solução normativa com os parâmetros
constitucionais pertinentes, que não são da mesma natureza os interesses que
substancialmente justificam a prorrogação forçada no arrendamento para habitação
e os que a podem justificar no arrendamento para comércio e indústria e para o
exercício de profissões liberais.
Nos arrendamentos para habitação a regulamentação favorável ao inquilino tem
imediato respaldo na consagração constitucional do interesse colectivo ou social
do direito à habitação, cuja prossecução é imposta ao Estado e que não deixa de
vincular os particulares, como se reconheceu no Acórdão n.º 151/92, publicado no
Diário da República, II Série, de 28 de Julho de 1992, onde, ao avaliar as
normas que subtraem o contrato de arrendamento para habitação à regra da
liberdade contratual e o submetem à regra da renovação automática obrigatória,
se refere que é nelas que 'o legislador, conhecendo como conhece, a falta de
casas para habitação, sacrifica um direito do senhorio a favor do direito do
locatário a dispor de uma casa para sua habitação', adiantando-se que, de
'facto, retira àquele o direito que, em princípio, lhe assistiria de denunciar
livremente o contrato de arrendamento celebrado – direito este que está
compreendido, seja no direito de iniciativa económica privada (artigo 61.º, n.º
1, da Constituição), seja no direito de propriedade privada (artigo 62.º, n.º 1,
da Constituição)', e acrescentando, ainda, que a 'legislação sobre arrendamento
para habitação é fortemente vinculística, sendo um domínio onde a hipoteca
social que recai sobre a propriedade é, talvez, mais forte.'.
No que se refere ao arrendamento para comércio, indústria ou exercício de
profissão liberal não é possível encontrar na Constituição cobertura explícita
ou tão imediatamente evidente como aquela que a jurisprudência tem desvendado
quanto ao arrendamento para habitação.
Efectivamente, o interesse acautelado pelo tratamento mais favorável ao
locatário é aqui de outra natureza, predominantemente económica. Seguindo
Pereira Coelho (Arrendamento, Lições ao Ciclo Complementar de Ciências
Jurídicas, pol. Coimbra, 1984, p. 70), “ … pode dizer-se, em termos gerais, que
a lei pretende garantir a continuidade da exploração comercial ou industrial ou
da profissão liberal exercida no prédio arrendado, facilitar a circulação da
empresa (de que o direito ao arrendamento constitui, por vezes, o elemento mais
importante) e defender a integridade do valor económico do estabelecimento ou
da profissão liberal do arrendatário, valor criado por iniciativa deste [(1) Ou
que de todo o modo ele pagou (no caso de trespasse do estabelecimento ou cessão
do local para exercício da mesma profissão liberal do arrendatário)] e que
poderia ser consideravelmente afectado se o comércio, indústria ou profissão
liberal tivesse de passar a exercer-se em local diferente. Trata-se, pois,
fundamentalmente, de proteger o interesse do arrendatário para comércio,
indústria ou exercício de profissão liberal e ainda, reflexamente, o interesse
geral, dado o valor social de que as respectivas actividades se revestem.”
Atenta a existência da citada jurisprudência, deve ser proferida decisão sumária
no mesmo sentido, nos termos do art. 78.º-A, n.º 1 da LTC.”
O recorrente reclamou para a conferência desta decisão, com a seguinte
argumentação:
“1ª Constitui firmíssima convicção do Recorrente que são materialmente
inconstitucionais as normas dos artºs 68º, nº 2 e 69º, nº 1 do RAU, artº 1101º
do Código Civil (dele excluída a alínea c) e artº 107º do RAU por violação do
direito à propriedade privada consagrado no artº 62º da Constituição da
República, quando interpretadas no sentido de que impedem ao senhorio o direito
de denúncia do arrendamento para habitação com fundamento no facto de o contrato
já ter ultrapassado o prazo de trinta anos a que se refere o artº 1025º do
Código Civil à data da entrada em juízo da acção de despejo destinada,
precisamente, a efectivar a denúncia com aquele fundamento.
2ª Posta assim a questão, veio nestes autos a ser proferida decisão sumária nos
termos do disposto no artº 78-A/98 da LTC que julgou improcedente o recurso com
fundamento na circunstância de a questão de direito ter sido já objecto de
jurisprudência anterior do próprio Tribunal Constitucional, toda ela no sentido
de que inexiste a apontada inconstitucionalidade: porque o Recorrente tem
resolutamente por inconstitucionais aquelas normas e este Tribunal, apenas
apoiado no precedente de jurisprudência anterior, concluiu o contrário – daí a
presente reclamação.
3ª Constitui por natureza objecto desta reclamação, não o de dizer das razões da
inconstitucionalidade suscitada (é tema da alegação) senão o de demonstrar que
não é pelas razões invocadas na decisão sumária que se chega à (impossível)
conclusão da não inconstitucionalidade daquelas normas.
4ª A decisão sumária sustenta a tese da não inconstitucionalidade das normas em
causa em duas ordens de razões, a saber:
a) Inexiste inconstitucionalidade porque a celebração de contratos de
arrendamento corresponde a uma forma socialmente útil de fruição do direito de
propriedade não podendo dizer-se que o prolongamento da duração do arrendamento
tenha por efeito necessário tomar irrisória a contrapartida pela cedência do
gozo da coisa;
b) Inexiste ainda inconstitucionalidade porque, no arrendamento para habitação,
a regulamentação favorável ao inquilino tem imediato respaldo na consagração
constitucional do direito à habitação, não se apresentando a renovação
obrigatória para lá dos trinta anos como uma solução destituída de fundamento ou
obedecer a um critério legislativo manifestamente desrazoável e inadequado.
5ª A ideia de que o caso se resolve colocando a questão ao nível do “direito de
fruição”, entendido este como um dos “direitos” em que se desdobra o direito de
propriedade tal como o seu conteúdo aparece definido no artº 1305 do Cód. Civil
esquece que, no feixe de direitos em que se analisa aquele conteúdo, assume
tanto relevo o direito de fruição, como o direito de disposição como, e até
antes de todos, o direito de uso.
6ª Ao contrário do direito de fruição que corresponde, nos termos do artº 212º
do Cód. Civil, ao poder de colher os frutos naturais (os que provém directamente
da coisa) ou civis (as rendas ou interesses que a coisa produz em consequência
de uma relação jurídica) que a coisa proporciona, o direito de uso corresponde à
primeira vantagem que o titular do direito de propriedade pode extrair da coisa
que é sua, sendo ele, antes que qualquer dos outros, aquele em onde se reflecte,
mais se vê e mais se mede o domínio do proprietário sobre a coisa em relação à
qual incide o direito real de que é titular. Ora,
7ª A continuidade obrigatória do arrendamento para além dos trinta anos fixados
no artº 1025 do Código Civil releva, se não releva do direito de fruição da
coisa, releva, pelo menos e decisivamente, do uso que dela quer fazer ou pode
querer fazer o senhorio/proprietário.
8ª Colocar a questão, como fez a decisão sumária, ao nível do direito de fruição
é colocá-la na sede errada, deixando o intérprete cair num erro hermenêutico
grave que é este: não se responde às objecções relativas ao direito de uso, com
argumentos que, quando muito, seriam exclusivos do direito de fruição.
9ª Se a continuação do arrendamento, do ponto de vista do direito de fruição,
não se analisa, porventura, numa decisão desrazoável e inadequada, quando olhada
do ponto de vista do direito de uso ela é absolutamente inaceitável à luz da
tutela constitucional do direito de propriedade por significar, para o senhorio,
o sacrifício total do seu direito de propriedade. É que,
10ª Mais de trinta anos de privação do uso por imposição da lei e contra vontade
do senhorio, corresponde, por ser o tempo de uma geração, ao sacrifício do seu
“tempo de proprietário, analisando-se numa “feudalização” da propriedade em
favor do inquilino, proibida pelo artº 1025º do Código Civil que acolhe um
sentido de liberdade do prédio que está contido no conceito constitucional do
direito de propriedade a que se refere o artº 62º da Constituição da República.
11ª Nos termos do disposto no artº 18º da Lei Fundamental, a limitação de um
direito por força do conflito com outro direito constitucionalmente garantido
não pode obter-se com o sacrifício total de um, devendo a limitação ser de ambos
com vista à preservação, comprimidamente embora, dos dois.
12ª Impor ao senhorio a continuidade do arrendamento para lá dos trinta anos sob
o pretexto da prevalência do direito social à habitação envolveria sacrificar
em absoluto o direito de propriedade do senhorio em violação do artº 18º da
Constituição que manda, embora com compreensão, que se salvem os dois.
13ª Em tal hipótese, o sacrifício total do direito de propriedade decorreria, a
partir dos trinta anos de renovação obrigatória, da inutilização de um tempo de
propriedade que é do senhorio, oferecendo-o, levado nas asas de uma lei iníqua,
aos filhos deste.
14ª Só que, o que o artº 62º da Constituição tutela, não é o futuro de direito
de propriedade dos filhos, senão o direito actual dos pais...
15ª Inexistindo, ao nível da tutela dos direitos fundamentais, divergências
entre a ordem constitucional italiana e a ordem constitucional portuguesa, não
deve julgar-se sumariamente um recurso nos termos do disposto no nº 1 do artº
78-A da Lei 13-A/98 de 26 de Fevereiro, tomando por não inconstitucional o que,
em Itália, por o ser, levou a adequada alteração da lei ordinária.
16ª Por serem subscritos pelos mesmos Ilustres Senhores Conselheiros (com a
diferença, apenas, de serem diferentes os respectivos Relatores) os dos dois
Acórdãos em que sobretudo se louvou a decisão reclamada não oferecem variedade
plúrima de julgadores, bem podendo dizer-se, metaforicamente mas com autoridade,
que não existem dois, mas apenas um só acórdão a dar existência ao precedente.
17ª Nada justificava, pois, que fosse proferida decisão sumária, cerceando ao
Recorrente o direito de ver julgado o seu recurso com a reflexão e com o voto de
todos e cada um dos Senhores Conselheiros que compõem a Secção do Tribunal
Constitucional a que o recurso se acha distribuído.
18ª Foi, pois, violado o nº 1 do artº 78-A da LTC, na redacção da Lei 13-A/98 de
26 de Fevereiro.”
Os recorridos foram notificados da reclamação e não apresentaram qualquer
resposta.
*
Fundamentação
No caso concreto, ao abrigo do disposto no n.º 1, do artigo 78.º-A, da LTC, o
relator julgou improcedente o recurso mediante prolação de decisão sumária
fundada na circunstância da questão de constitucionalidade a decidir ser
simples, nomeadamente por a mesma já ter sido objecto de duas decisões
anteriores do Tribunal Constitucional, cujo conteúdo veio a merecer a
concordância do referido relator.
O recorrente reclamou da referida decisão para a presente conferência sob a
alegação de que houve violação do disposto no aludido n.º 1, do artigo 78.º-A,
da LTC.
Por um lado, o reclamante entende que as razões invocadas na decisão sumária
reclamada são insuficientes para concluir pela não inconstitucionalidade da
interpretação normativa aplicada na decisão recorrida, na medida em que foi
esquecida a relevância do direito de uso no plano da tutela constitucional do
direito de propriedade.
Por outro lado, o reclamante desvaloriza a existência de duas decisões
anteriores do Tribunal Constitucional para efeito de prolação da decisão sumária
reclamada, alegadamente pela simples circunstância das mesmas terem emergido da
mesma secção do Tribunal e terem sido subscritas pelos mesmos juízes, não
obstante serem diferentes os respectivos relatores.
Analisados os fundamentos da reclamação, importa antecipar que não assiste razão
ao reclamante.
Em primeiro lugar, importa relembrar que, de acordo com o disposto no n.º 1, do
artigo 78.º-A da LTC, o relator pode efectivamente proferir decisão sumária
quando entender que a questão de constitucionalidade é simples, designadamente
por a mesma já ter sido objecto de decisão anterior do Tribunal, e que pode
fundamentar essa decisão por simples remissão para anterior jurisprudência do
Tribunal.
Esta simplicidade que é pressuposto da emissão das “decisões sumárias” não é
reportada à questão de constitucionalidade em si mesma considerada. Para este
efeito, uma questão de constitucionalidade é considerada simples, ainda que
envolva eventualmente uma grande dificuldade de análise e de resolução, desde
que já haja sido decidida pelo Tribunal Constitucional. Nestas condições, a lei
permite que o Tribunal, em lugar de repetir materialmente a apreciação, julgue o
mérito do recurso pela mera incorporação da fundamentação já expendida em
decisão anterior (vide, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 257/2000,
acessível no site www.tribunalconstitucional.pt). Acresce que a lei equipara
“questão simples” a questão já anteriormente decidida pelo Tribunal
Constitucional, sem condicionar essa equiparação à inexistência de polémica ou
de divisão entre os juízes do Tribunal Constitucional (vide o acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 349/2006, acessível no site
www.tribunalconstitucional.pt).
A decisão reclamada acolheu o sentido da jurisprudência proferida, por
unanimidade, no seio da 3.ª Secção deste Tribunal, sobre a questão de
constitucionalidade suscitada pelo reclamante, num contexto em que era – e
continua a ser – ignorada a existência de jurisprudência deste Tribunal de
sentido contrário. Para esse efeito, a decisão reclamada remeteu para a
fundamentação de duas decisões da referida Secção – acórdãos n.º 147/2005 e
148/2005 - pela circunstância não despicienda das mesmas apresentarem uma
fundamentação essencialmente semelhante sem, contudo, deixarem de se revelar
complementares entre si, a que não é alheio o facto dos respectivos relatores
serem diferentes.
Para além disso, analisada a reclamação do recorrente, a verdade é que nela não
se detecta a apresentação de qualquer argumento novo que não tivesse sido já
considerado na decisão sumária reclamada – ainda que por mera remissão para as
referidas decisões da 3.ª Secção deste Tribunal – e que justifique a alteração
do juízo de improcedência que foi proferido sobre o mérito do recurso
interposto.
Especificamente no que respeita à alegada desconsideração da relevância do
direito de uso no complexo de direitos que integram o direito de propriedade,
importa ter presente que o acórdão n.º 148/2005 – cuja fundamentação foi
assumida pela decisão sumária reclamada – não omitiu o tratamento desta questão,
uma vez que não deixou de afirmar a seu respeito:
“(...) Não definindo o texto constitucional o que deva entender-se por direito
de propriedade, não há inteira coincidência a propósito da extensão e
compreensão de tal conceito.
Contudo, uma primeira ideia é certa: quando o artigo 62.º garante o direito à
propriedade privada “nos termos da Constituição” quer sublinhar que o direito de
propriedade não é garantido em termos absolutos, mas dentro dos limites e nos
termos previstos noutros lugares do texto constitucional. Como o Tribunal disse
logo no Acórdão n.º 76/85, publicado no Diário da República, II Série, de 8 de
Junho de 1985, a velha concepção clássica da propriedade, o jus utendi, fruendi
ac abutendi individualista e liberal, foi cedendo o passo a uma concepção nova
daquele direito em que avulta a sua função social. O próprio projecto económico,
social e político da Constituição implica um estreitamento do âmbito de poderes
tradicionalmente associados à propriedade privada e a admissão de limitações ou
condicionamentos, quer a favor do Estado ou da colectividade, quer a favor de
terceiros, das liberdades de uso, fruição e disposição (cfr., de entre outros,
Acórdão n.º 866/96, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 34º, p. 53 e
ss.).
Também não sofre dúvidas que a Constituição garante explicitamente no art.º
62.º três componentes: (i) o direito de aceder à propriedade; (ii) o direito de
não ser arbitrariamente privado da propriedade; (iii) o direito de transmissão
da propriedade inter vivos ou mortis causa. Já o direito de usar e fruir os bens
de que se é proprietário, que é a outra componente do direito de propriedade,
não é explicitamente destacada neste preceito constitucional.
(...)
É certo que a verificação de que a Constituição não define o conteúdo do
direito de propriedade e que o direito de usar e fruir os bens de que se é
proprietário não está explicitamente contemplada no artigo 62.º não conduz a que
o legislador possa modelar o direito de propriedade de modo a despojá-lo de um
conteúdo mínimo de faculdades sem o qual o direito subjectivo ficaria aniquilado
e a própria garantia de instituto perderia substância. Afinal, será esse âmbito
de protecção que os recorrentes querem dizer que não está salvaguardado quando
afirmam que a solução normativa questionada constitui uma “autêntica
expropriação”.
Porém, no complexo de direitos e obrigações do locador, a norma em causa não tem
tal alcance de tornar irrisório o conteúdo do direito de propriedade.
Em primeiro lugar, embora não possa escamotear-se, como se ponderou no Acórdão
n.º 263/2000, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47º vol., págs. 363 e segs.,
que, na prática, a transmissão de um prédio urbano dado de arrendamento se
antevê mais dificultosa relativamente a um outro que se não encontre «onerado»
com um tal tipo de contrato e que, dados os condicionamentos da actualização das
rendas, a sua fruição se pode apresentar como menos proveitosa, a circunstância
de o arrendamento se prolongar ilimitadamente – salvo outros casos de denúncia
ou resolução – não interfere com o núcleo essencial do direito de propriedade
dos senhorios, que continuam a extrair do imóvel o proveito económico que
corresponde a uma forma típica de exploração desse tipo de bens.
Além disso, não é exacto que o facto de a lei não reconhecer ao locador a
faculdade de denúncia com fundamento no facto de o contrato completar, com a
última prorrogação forçada, o período da duração máxima de locação, equivalha a
negar-lhe em absoluto o direito de recuperar o gozo directo da coisa locada.
Além dos casos de resolução do contrato – e pelo menos um deles, a resolução com
fundamento na realização de obras não autorizadas, tem como fundamento último
continuar a pertencer ao proprietário o poder de transformação (cfr. José
Oliveira Ascensão e Luís Menezes Leitão, O Direito, n.º 125, p. 427 ) – o
locador conserva a possibilidade de recuperar o prédio por denúncia do contrato
nas hipóteses previstas actualmente no artigo 69.º do RAU.
Tanto basta para considerar que a norma que se extrai da conjugação dos art.ºs
1025.º, 1051.º, alínea a) e 1054º, n.º 1, do Código Civil, interpretados no
sentido de que o senhorio não goza de direito de denúncia com fundamento em se
terem completado 30 anos de duração do contrato de arrendamento, não viola o
disposto no art.º18.º, n.º2, com referência ao artigo 62.º da Constituição.”
Aderindo-se mais uma vez à jurisprudência constitucional assumida e integrada na
fundamentação da decisão sumária reclamada, impõe-se concluir que, diversamente
do alegado pelo reclamante, não houve qualquer violação do disposto no n.º 1, do
artigo 78.º-A, da LTC, devendo ser indeferida a reclamação apresentada.
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Decisão
Pelo exposto, acorda-se em indeferir a reclamação apresentada por A. da decisão
sumária proferida nestes autos em 9 de Abril de 2008.
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Custas pelo reclamante, fixando‑se a taxa de justiça em 20 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artº 7º, do mesmo diploma).
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Lisboa, 29 de Maio de 2008
João Cura Mariano
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos