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Processo n.º 1190/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Relatório
Por acórdão de 17 de Maio de 2007 (a fls. 404 e seguintes), o Tribunal Central
Administrativo Sul rejeitou o recurso interposto por A., SA, do Acórdão do
Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, de 17 de Agosto de 2005, que julgou
improcedente, por não provada, a acção de contencioso pré-contratual que havia
interposto, por o mesmo carecer de objecto.
Pode ler-se no texto do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, para o
que agora releva, o seguinte:
“[…]
Veio o presente recurso jurisdicional interposto do Acórdão do TAF de Sintra que
julgou improcedente por não provada a acção de contencioso pré-contratual
interposta pelo ora recorrente, na qual se impugnava a deliberação do Conselho
de Administração da B., SA que procedeu à adjudicação do fornecimento de
Equipamentos Infantis ao concorrente C..
Porém, da análise das conclusões da alegação da recorrente resulta evidente que
se limita a repetir o que anteriormente afirmara na sua petição inicial, ou seja
a censurar o procedimento da R., omitindo, contudo, o dever de enunciar os
vícios imputadas à decisão “a quo”, não apontando qualquer vício próprio ou erro
à sentença, mas apenas manifestando a sua discordância com o sentido da decisão.
Ora, constituindo o objecto do recurso jurisdicional a decisão do tribunal “a
quo” e não o acto administrativo cuja anulação vem requerida, o âmbito desse
recurso encontra-se delimitado pelo conteúdo da decisão impugnada, cumprindo
apenas conhecer dos vícios e erros de julgamento que eventualmente padeça a
decisão do tribunal “a quo”, como resulta do comando estatuído no artigo 144.º,
n.º 2 do CPTA e no artigo 690.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Processo Civil.
Com efeito, dispõe o artigo 690.º do Cód. Processo Civil o seguinte:
“ 1 – O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual concluirá, de forma
sintética, pela indicação dos fundamentos porque pede a alteração ou a anulação
da decisão.
2 – Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem
fundamento da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que,
no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 – Na falta de alegação o recurso é logo julgado deserto.
4 (…)
5 (…)
6 (…)
Este artigo 690.º, no seu n.º 1, impõe ao recorrente dois ónus: o ónus de alegar
e o ónus de concluir, incluindo este, quando o recurso verse sobre matéria de
direito, o ónus de indicar as especificações a que se referem as alínea a) a c)
do n.º 2.
É na peça processual chamada de “alegação de recurso” que o recorrente tem de
indicar as razões pelas quais discorda da decisão recorrida. Esta alegação
terminará com as “conclusões”, que são apenas o resumo dos fundamentos ou da
discordância com o decidido, sendo, inclusivamente, ilegal o alargamento do
âmbito destas conclusões para além do que se faz constar no corpo das
“alegações”.
Com efeito, alegar não é só apresentar um requerimento com a forma ou título de
alegação, mas sim atacar a decisão recorrida e dizer as razões por que se
discorda dela para serem apreciadas no tribunal superior (cfr. neste sentido o
Ac. da RC de 2/12/19992 in BMJ 422, pág. 441).
Sendo aqui aplicável o artigo 690.º do Cód. Processo Civil (o artigo 144.º, n.º
2 do CPTA contém idêntica redacção ao n.º 1 do referido artigo 690.º), por força
do disposto no artigo 140.º do CPTA, desde logo se conclui que a alegação do
recorrente infringe as referidas regras, pois não pede a alteração ou anulação
da decisão, limitando-se a apontar à decisão recorrida os vícios do acto
impugnado, pelo que não se justifica o convite ao aperfeiçoamento previsto no
n.º 4 do artigo 690.º, já que em termos substanciais o recorrente carece de
qualquer vantagem e a economia processual o rejeita.
É que, conforme referimos supra, constitui objecto do recurso jurisdicional a
decisão do tribunal recorrido e não o acto administrativo de que foi interposta
a acção junto da instância “a quo”, pelo que o âmbito deste recurso se encontra
delimitado pelo conteúdo da decisão impugnada, salvo a matéria de conhecimento
oficioso ainda não decidida pelo tribunal inferior, e não cumpre, por isso,
conhecer da ilegalidade imputada ao acto administrativo objecto da presente
acção, mas dos vícios e erros de julgamento de que padece a decisão do tribunal
“a quo” (cfr., entre outros, os Acs. do STA de 12/6/1996 in Rec. n.º 36675 e de
4/6/1997 in Rec. n.º 31.245).
Pode igualmente ler-se no Acórdão do STA (Pleno de 15/03/2001 que, pelo menos,
implica a improcedência do recurso: “I – De acordo com o preceituado nas
disposições combinadas dos artigos 676.º, n.º 1, 660.º, n.º 2, 2ª parte, 684.º,
2ª parte e 690.º, n.º 1 e n.º 3 do Cód. Processo Civil, aplicável aqui “ex vi”
do artigo 102.º da LPTA, o recurso jurisdicional tem por objecto a sentença ou o
acórdão recorrido e não o acto administrativo de cujo recurso contencioso aquela
conheceu. II – As conclusões de um recurso consistem na enunciação, em forma
abreviada, dos fundamentos ou razões jurídicas com que se pretende obter o
provimento do recurso, pelo que recai sobre o recorrente o ónus de, nas
conclusões da respectiva alegação, delimitar objectivamente o recurso e indicar
os fundamentos de facto e de direito pelos quais pede a alteração ou anulação da
decisão recorrida, especificando as normas ou princípios pela sentença ou
acórdão violados. III – Deste modo, improcede o recurso jurisdicional em cujas
conclusões da alegação o recorrente se limitou a reproduzir o já alegado no
recurso contencioso, não arguindo qualquer vício ou erro de julgamento próprio
da sentença ou do acórdão recorrido”.
[…]
Pelo exposto, atentos os fundamentos invocados, ao abrigo do disposto no artigo
690.º n.º 1 do Cód. Processo Civil “ a contrario”, e artigo 144.º, n.º 2 do
CPTA, não se pode conhecer do presente recurso jurisdicional, por o mesmo
carecer de objecto.
[…]”
Deste acórdão interpôs A., SA recurso, para uniformização de jurisprudência
(fls. 423 a 447), o qual foi declarado findo, por Acórdão do Pleno do Supremo
Tribunal Administrativo, de 18 de Outubro de 2007, por se julgar não verificada
a oposição de julgados (fls. 472 a 477).
A., SA interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b)
do n.º 1 da Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos (fls. 498 e
499):
“[…]
notificados do douto Acórdão de 2007.10.18, vem, ao abrigo do disposto no art.
70°/l/b) da Lei 28/82 […] recorrer do referido acórdão e do douto Acórdão do
Tribunal Central Administrativo Sul, de 2007.05.17, para o Venerando Tribunal
Constitucional, com fundamento na inconstitucionalidade do art. 690º do CPC,
face às normas e princípios constitucionais consagrados nos arts. 20º e 268º da
CRP, quando interpretados e aplicados com a dimensão e sentido normativos que
lhe foram atribuídos no douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de
2007.05.17, considerando-se que não se justifica o convite ao aperfeiçoamento
quando se verifique falta ou deficiência nas conclusões das alegações de recurso
(v. art. 70º/1/b) da LTC).
A referida questão de inconstitucionalidade foi suscitada expressamente nos
textos n.ºs 14 e 15 e conclusões 8ª e 9ª das alegações apresentadas em
2007.06.20, no TCA Sul, inscrevendo-se assim na esfera de “competência
vinculada” do Venerando Tribunal Constitucional (v. Ac. TC 162/92, de 6 de Maio,
Proc. 241/91, Cons. Messias Bento, www.tribunalconstitucional.pt).
Dado que a referida norma foi aplicada pelos arestos recorridos com a dimensão e
sentido normativos que o ora recorrente sempre reputou de inconstitucionais,
cremos ser inquestionável a admissibilidade do presente recurso (v. arts.
70º/1/b) e 72º/2 da LTC).
[…]”
O recurso de constitucionalidade foi admitido, por despacho de fls. 500.
Por despacho do Juiz Conselheiro Relator (a fls. 506) a recorrente foi
notificada para alegações, “com a advertência de que é parecer do Relator que
não deverá conhecer-se do recurso quanto ao acórdão do Pleno do STA que,
tendo-se limitado a julgar findo o recurso para a uniformização de
jurisprudência, por considerar não verificada a oposição de julgados, não emitiu
qualquer pronúncia quanto à norma ou interpretação sindicada.”.
A recorrente apresentou (a fls. 508 a 532) alegações, nas quais formula as
seguintes conclusões:
“[…]
1ª. A ora recorrente, sem prejuízo do disposto no art. 70º/2, 4 e 6 da LTC, não
se opõe a que o presente recurso apenas tenha por objecto o acórdão do Tribunal
Central Administrativo (TCA), de 2007.05.17, desconsiderando-se o recurso
interposto do acórdão do Venerando Supremo Tribunal Administrativo (STA), de
2007.10.18 que, por razões de ordem processual, decidiu “julgar não verificada a
oposição de julgados e (...) declarar findo o recurso” (cfr. Ac. TC n.°
135/2005, de 2005.03.15, Proc. 110/2005) — cfr. texto n.° s 1 a 5;
2ª. A ora recorrente foi convidada pelo douto despacho de fls. 394 dos autos,
proferido nos termos do art. 690º/4 do CPC, para “sintetizar as conclusões
constantes do seu requerimento de alegações de fls. 342 e segs.”, ao qual deu
completo cumprimento, não lhe tendo sido comunicada qualquer outra falta,
deficiência, obscuridade ou complexidade nas alegações e/ou conclusões
apresentadas, nomeadamente por não “apontar qualquer vício próprio ou erro à
sentença” (v. fls. 405 dos autos) — cfr. texto n.º 6;
3ª. O acórdão do TCAS, de 2007.05.17, decidiu “rejeitar o presente recurso
jurisdicional por o mesmo carecer de objecto” (v. fls. 407 dos autos),
considerando-se inovatoriamente que afinal a recorrente não teria cumprido “o
dever de enunciar os vícios imputados à decisão “a quo”, não apontando qualquer
vício próprio ou erro à sentença” (v. fls. 405 dos autos), e concluindo-se que
“não se justifica o convite do aperfeiçoamento previsto no n.º 4 do artigo 690º,
já que em termos substanciais o recorrente carece de qualquer vantagem e a
economia processual o rejeita” (v. fls. 406 dos autos) - cfr. texto n.° 6;
4ª. A verificar-se a falta ou deficiência inovatoriamente imputada no douto
acórdão recorrido às conclusões das alegações de recurso – por se entender agora
que afinal não teria sido “apontado qualquer vício próprio ou erro à sentença”
–, a recorrente não podia deixar de ser notificada para proceder às necessárias
correcções, nos termos do art. 690º/4 do CPC, interpretado e aplicado com
sentido normativo e conforme com o disposto nos arts. 20º e 268º da CRP – cfr.
texto n.ºs 6 a 8;
5ª. A garantia da via judiciária (v. arts. 20º e 268º/4 da CRP) impõe-se, como
direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, a todas as
entidades públicas e privadas e naturalmente, também aos Tribunais, sujeitos à
Constituição e à lei (v. arts. 17º e 18º/1 da CRP) – cfr. texto n.ºs 6 a 8;
6ª. O art. 690º do CPC, com o sentido normativo que lhe foi atribuído no douto
acórdão recorrido, integra assim um dispositivo legal claramente
inconstitucional, por violação das normas e princípios consagrados nos arts. 20º
e 268º da CRP, pois não pode deixar de proceder-se ao convite nele previsto
quando se suscitem eventuais eficiências das conclusões que não tenham sido
antes debatidas ou que representem enquadramento ou qualificação jurídica
diversa da inicialmente considerada — cfr. texto n.ºs 6 a 9
[…]”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
A fls. 535 o Juiz Conselheiro Relator proferiu despacho com o seguinte teor:
“Como resulta do requerimento de interposição do recurso, bem como das
respectivas alegações (conclusão 6ª), o recurso de constitucionalidade tem por
objecto a norma do artigo 690º do CPC, quando interpretada no sentido de que se
não justifica o convite para o aperfeiçoamento quando se verifique a falta ou
deficiência das conclusões da alegação em recurso jurisdicional.
Decorre, no entanto, da decisão do Tribunal Central Administrativo Sul- único
relativamente à qual é admissível o prosseguimento do recurso- que a
interpretação normativa efectivamente aplicada é a de que se não justifica o
convite ao aperfeiçoamento quando o recorrente não pede a alteração ou anulação
da decisão recorrida e se limita a apontar a essa decisão os vícios do acto
administrativo impugnado, entendendo-se que, nesse caso, o despacho de
aperfeiçoamento não traz qualquer vantagem para o recorrente, em termos
substanciais, e contraria o princípio da economia processual.
A “ratio decidendi” parece, portanto, situar-se, não na desnecessidade do
despacho de aperfeiçoamento quando se verifique falta ou deficiência nas
conclusões da alegação de recurso, mas na sua inutilidade, por o referido
despacho não poder aproveitar ao interessado.
[…]”
Notificada para se pronunciar sobre a questão prévia assim suscitada, a
recorrente veio dizer o seguinte (fls. 537 a 546):
“[…]
1. O douto despacho em análise considerou que a ratio decidendi do aresto
recorrido aparenta “situar-se, não na desnecessidade do despacho de
aperfeiçoamento quando se verifique falta ou deficiência nas conclusões da
alegação do recurso, mas na sua inutilidade, por o referido despacho não poder
aproveitar ao interessado”.
Salvo o devido respeito - e é verdadeiramente muito -, cremos que tal conclusão
do douto aresto recorrido, que integra mero obiter dictum, não afasta a
admissibilidade e procedência do presente recurso, pois nas alegações de fls.
343 e segs. dos autos a ora recorrente impugnou expressamente o acórdão do TAF
Sintra de 2005.08.17, pelo que sempre teria interesse e utilidade no exercício
das faculdades previstas no art. 690° do CPC, interpretado em conformidade com
os princípios constitucionais do contraditório, da proibição da indefesa e do
próprio direito ao recurso (v. arts. 18°, 20° e 268° da CRP).
2. O douto aresto recorrido - acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de
2007.05.17 -, decidiu rejeitar o recurso jurisdicional interposto pela ora
recorrente, por considerar que “o mesmo carece de objecto” (v. fls. 407 dos
autos), com base, essencialmente, nos seguintes fundamentos:
“É na peça processual chamada de “alegação de recurso' que o recorrente tem de
indicar as razões pelas quais discorda da decisão recorrida. Esta alegação
terminará com as “conclusões” que são apenas o resumo dos fundamentos ou da
discordância com o decidido, sendo, inclusivamente, ilegal o alargamento do
âmbito destas conclusões para além do que se fez constar no corpo das
“alegações”.
Com efeito, alegar não é só apresentar um requerimento com a forma ou título de
alegação, mas sim atacar a decisão recorrida e dizer as razões por que se
discorda dela para serem apreciadas no Tribunal superior (cfr. neste sentido o
Ac. da RC de 2/12/1992 in BMJ 422, pág. 441).
Sendo aqui aplicável o artigo 690º do Cód. Processo Civil (o artigo 144°. n°. 2
do CPTA contém idêntica redacção ao n°. 1 do referido artigo 690°), por força do
disposto no artigo 140° do CPTA, desde logo se conclui que a alegação do
recorrente infringe as referidas regras, pois não pede a alteração ou anulação
da decisão, limitando-se a apontar à decisão recorrida os vícios do acto
impugnado, pelo que não se justifica o convite ao aperfeiçoamento previsto no
n°. 4 do artigo 690°, já que em termos substanciais o recorrente carece de
qualquer vantagem e a economia processual o rejeita” (v. fls. 405 v. - 406 dos
autos).
Face a tal decisão e aos elementos e peças processuais que constam dos autos,
cremos ser manifesto, por um lado, que nunca seria legítimo concluir que o
despacho de aperfeiçoamento não aproveitaria à ora recorrente e, por outro lado,
que o âmbito e sentido normativo atribuído ao art. 690º do CPC in casu afrontam
claramente as normas e princípios constitucionais consagrados nos arts. 20º e
268° da CRP.
3. Em primeiro lugar, contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, nas
alegações de fls. 343 e segs. dos autos a ora recorrente impugnou expressamente
e peticionou especificadamente a revogação do acórdão do TAF-Sintra, de
2005.08.17.
[…]
Além disso, a recorrente identificou expressamente os vícios da decisão
recorrida, na conclusão 8.ª do recurso jurisdicional, onde se afirmou:
“O aliás douto Acórdão recorrido enferma assim de manifestos erros de
juIgamento, tendo violado os arts. 2°, 9°, 13°, 22° e 266° a 268° e 271º da CRP,
os arts 7º, 8º, 9º, 11°, 13º, 14°, 15°, 55° e 106° do DL 197/99, de 8 de Junho,
os arts. 3º, 8º, 100º e segs. 124°, 125º, 133°, 143° e 144° do CPA e os arts.
483° e segs. e 562° e segs. do Código Civil” (v. fls. 397 dos autos).
E, concluindo as referidas alegações, a ora recorrente peticionou:
“Deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto Acórdão
recorrido, com as legais consequências” (v. fls. 32 das alegações de recurso, a
fls. 372 dos autos).
Face à posição assumida pela ora recorrente nas alegações de recurso
jurisdicional de fls. 343 e segs. dos autos, nunca seria assim sequer
compreensível como se poderia concluir que “não se justifica o convite ao
aperfeiçoamento quando o recorrente não pede a alteração ou anulação da decisão
recorrida e se limita a apontar a essa decisão os vícios do acto administrativo
impugnado” (v. fls. 535 dos autos), pois in casu verifica-se que a recorrente
pediu a alteração da decisão recorrida, invocando os erros de julgamento de que
tal decisão jurisdicional enferma, não se tendo limitado a apontar-lhe os vícios
do acto administrativo impugnado.
4. Em segundo lugar, é manifesto que a prolação do despacho de aperfeiçoamento
traria vantagens para a recorrente em termos substanciais, sendo absolutamente
conforme com o princípio da economia processual (v. arts. 20º e 268° da CRP;
cfr. art. 690º do CPC).
Com efeito, a vantagem que a ora recorrente retiraria do referido convite
traduzir-se-ia no cumprimento do contraditório e na possibilidade de debater e
justificar as razões de manifesta improcedência da questão inovatoriamente
suscitada, podendo influir na respectiva decisão - sentido normativo do art.
690° do CPC em conformidade com a Constituição -, pois, conforme se demonstrou,
a ora recorrente efectivamente enunciou, apontou e demonstrou erros de
julgamento da decisão jurisdicional recorrida, concluindo que a referida decisão
violou normativos legais e peticionando a sua revogação.
Por seu turno, a economia processual - também indicada como fundamento no douto
aresto em análise -, não constitui um princípio, valor ou princípio supremo, que
justifique e possa fundamentar a preterição do contraditório, maxime numa
situação como a presente, em que a ora recorrente respondeu e cumpriu o convite
que inicialmente lhe foi feito, corrigindo as conclusões no sentido que lhe foi
indicado, para depois se deparar com a rejeição do recurso por razões
inovatórias e diversas, e sobre as quais não lhe foi dada qualquer oportunidade
de se pronunciar ou debater (v art. 3° do CPC; cfr. arts. 20° e 268° da CRP).
Nesta conformidade, cremos ser manifesto que o art. 690º/4 do CPC, quando
interpretado no sentido que lhe foi atribuído no douto aresto recorrido integra
norma claramente inconstitucional, que sempre teria de ser apreciada por este
Venerando Tribunal, por violação do disposto nos arts. 20º e 268° da CRP.
5. Em terceiro lugar, o douto acórdão recorrido integra verdadeira
decisão-surpresa, pois foi rejeitada a pretensão da ora recorrente com
fundamento em questão nova, sobre a qual a recorrente nunca antes tinha sido
convidada a pronunciar-se e que nem sequer se verifica (v. supra n°. 2).
[…]
Nesta conformidade, a ora recorrente nunca poderia ser prejudicada por erros e
omissões que não lhe são imputáveis, rejeitando-se o seu recurso com fundamento
em questões improcedentes e sobre as quais nunca lhe foi dada oportunidade de se
pronunciar, sob pena de violação do contraditório, do princípio da proibição da
indefesa e do próprio direito ao recurso constitucionalmente consagrado (v. art.
8° do C. Civil, art. 156°/1 do CPC e art. 20º da CRP).
Aliás, o direito a ser proferida decisão pelos Tribunais de recurso integra-se
nos direitos constitucionalmente consagrados ao recurso e à impugnação das
decisões judiciais, que representam, além do mais, “uma consequência da
possibilidade de reacção dos particulares contra os actos públicos que ofendem
os seus interesses e o conhecimento dessa impugnação pelos tribunais (...) é uma
imposição da sua independência” (v. Teixeira de Sousa, Estudos Sobro o Novo
Processo Civil, 1997, p.p. 376).
O interesse ou natureza processual que adviria para a ora recorrente do convite,
nos termos do art. 690° do CPC, para exercer o contraditório e suprir as
pretensas deficiências inovatoriamente apontadas às suas alegações, como ratio
decidendi do douto aresto recorrido, resulta assim claramente do disposto nos
arts. 18°, 20° e 268°/4 da CRP, bem como dos arts. 3° e 690º do CPC, sob pena
de, com base em critérios meramente formais, serem postergados direitos
fundamentais da ora recorrente
[…]
Nesta conformidade, mesmo verificando-se a falta ou deficiência que só no douto
acórdão recorrido foi imputada às alegações de recurso, a recorrente não podia
deixar de ser notificada para proceder às necessárias correcções, nos termos do
art. 690º/4 do CPC (cfr. art. 3º do CPC), por tal assumir manifesta vantagem e
interesse processual, face ao teor efectivo das suas alegações de recurso, sob
pena de desrespeito do contraditório e da proibição de indefesa (v. art. 20° da
CRP; cfr. ainda Acs. TC. 569/95, de 17 de Outubro, Proc. 26/95, Cons. Sousa e
Brito; 489/94, de 12 de Julho, Proc. 37/94, Cons. Nunes de Almeida, ambos in
www.tribunalconstitucional.pt 232/94, de 10 de Março, Proc. 152/93, Cons. Nunes
de Almeida, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 27; Blanco de Morais,
Justiça Constitucional, 20º5, 11/726-727).
6. Do exposto resulta claramente que a dimensão e sentido normativo atribuído no
douto aresto recorrido ao art. 690° do CPC violam frontalmente o disposto nos
arts. 20º e 268°/4 da CRP.
[…]”
2. Fundamentação
Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, constitui seu pressuposto
processual a aplicação, na decisão recorrida, da norma ou interpretação
normativa cuja conformidade constitucional se pretende que o Tribunal
Constitucional aprecie.
Este pressuposto processual decorre da natureza instrumental do recurso
constitucional e visa garantir a utilidade da decisão, pois se a norma ou
interpretação normativa cuja conformidade constitucional se pretende que o
Tribunal Constitucional aprecie não coincidir com aquela que foi efectivamente
aplicada pela decisão recorrida, a decisão que vier a ser proferida pelo
Tribunal Constitucional é insusceptível de alterar o sentido da decisão do
tribunal recorrido.
A recorrente interpôs recurso de duas decisões: do acórdão do Pleno do Supremo
Tribunal Administrativo, de 18 de Outubro de 2007, o qual declarou findo o
recurso, para uniformização de jurisprudência, por julgar não verificada a
oposição de julgados, e do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 17
de Maio de 2007, que rejeitou o recurso interposto do acórdão do Tribunal
Administrativo e Fiscal de Sintra, de 17 de Agosto de 2005, por o mesmo carecer
de objecto.
E, como decorre do requerimento de interposição de recurso, pretende que o
Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional da norma do artigo
690.º do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de que não se
justifica o convite ao aperfeiçoamento quando se verifique falta ou deficiência
nas conclusões das alegações de recurso.
Ora, por um lado, o acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, que se
limitou a julgar findo o recurso para uniformização de jurisprudência, por
considerar não verificada a oposição de julgados, não emitiu qualquer pronúncia
quanto à norma ou à referida interpretação normativa.
Por outro lado, como resulta do texto do acórdão do Tribunal Central
Administrativo Sul este, embora tenha invocado o disposto no artigo 690.º do
Código de Processo Civil, não aplicou a interpretação normativa que a recorrente
pretende ver sindicada.
Na verdade, a interpretação normativa efectivamente aplicada é a de que se não
justifica o convite ao aperfeiçoamento, previsto no n.º 4 do artigo 690.º do
Código de Processo Civil, quando o recorrente não pede a alteração ou anulação
da decisão recorrida e se limita a apontar a essa decisão os vícios do acto
administrativo impugnado, entendendo-se que, nesse caso, o despacho de
aperfeiçoamento não traz qualquer vantagem para o recorrente, em termos
substanciais, e contraria o princípio da economia processual.
Não se trata aqui de um mero obter dictum, mas do próprio fundamento jurídico
que conduziu à decisão de rejeição do recurso e que permite considerar que ratio
decidendi se situa, não na desnecessidade do despacho de aperfeiçoamento quando
se verifique falta ou deficiência nas conclusões da alegação de recurso, mas na
sua inutilidade, por o referido despacho não poder aproveitar ao interessado
face aos termos da alegação.
Na resposta à questão prévia que com este mesmo fundamento foi suscitada pelo
Relator, a recorrente sustenta que há lugar à apreciação do objecto do recurso,
com base essencialmente nas seguintes ordens de considerações: i) a recorrente
identificou expressamente os vícios da decisão recorrida, na conclusão 8.ª do
recurso jurisdicional, onde se afirmou que o acórdão recorrido enferma de vários
erros de julgamento e viola diversas disposições legais e constitucionais; ii)
em segundo lugar, nunca seria legítimo concluir que o despacho de
aperfeiçoamento não aproveitaria à recorrente, já que por via dele e no
exercício do princípio do contraditório, esta teria a possibilidade de debater e
justificar as razões da improcedência da questão suscitada, podendo influir na
respectiva decisão; iii) em terceiro lugar, o acórdão recorrido integra uma
verdadeira decisão-surpresa, pois foi rejeitada a pretensão da recorrente com
fundamento em questão nova, sobre a qual não foi convidada a pronunciar-se;
iiii) por tudo, a recorrente conclui que a dimensão e sentido normativo
atribuído no aresto recorrido ao art. 690° do CPC violam frontalmente o disposto
nos arts. 20º e 268°, n.º 4, da CRP.
Ora, nenhum destes argumentos pode servir de fundamento para o prosseguimento do
recurso de constitucionalidade, visto que neste recurso apenas poderá estar em
causa uma questão normativa, que incida sobre uma norma ou um certo sentido
interpretativo que dela tenha sido retirado pelo tribunal recorrido, e nunca a
própria decisão recorrida em si mesma considerada. É, por isso, irrelevante que,
na opinião da recorrente, não tenha sequer havido motivo para a rejeição do
recurso por deficiência das conclusões, ou que não tenha havido razão para o
tribunal recorrido recusar, por inutilidade, o despacho de aperfeiçoamento, ou
que a decisão de rejeição se tenha tornado uma decisão-surpresa contra a qual o
interessado teria direito de contraditório.
O certo é que o Tribunal Constitucional não pode sindicar directamente a
inconstitucionalidade ou a ilegalidade da decisão recorrida, mas apenas apreciar
uma questão de inconstitucionalidade ou de ilegalidade relativamente a uma norma
ou interpretação normativa de que essa decisão tenha feito aplicação. E, neste
plano, a interpretação que a decisão recorrida efectuou – e constitui um dado
processual que o Tribunal Constitucional não pode alterar – foi no sentido de
que se não justifica o convite ao aperfeiçoamento, por aplicação do disposto no
n.º 4 do artigo 690.º do Código de Processo Civil, porque não traria qualquer
vantagem para a recorrente, o que faz supor que, no entendimento do tribunal
recorrido, o vício que afecta as conclusões da alegação de recurso é insuprível
e, como tal, insusceptível de correcção.
No entanto, como se observou, é uma outra a dimensão normativa que a recorrente
identifica como constituindo objecto do recurso de constitucionalidade, visto
que imputa à referida decisão do Tribunal Central Administrativo Sul a
interpretação de que se não justifica o convite ao aperfeiçoamento «quando se
verifique falta ou deficiência nas conclusões das alegações de recurso»,
interpretação essa que a decisão recorrida efectivamente não aplicou.
Assim sendo, não tendo sido aplicada, em qualquer das decisões recorridas - o
acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, de 18 de Outubro de 2007, e
o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 17 de Maio de 2007 -, a
interpretação cuja conformidade constitucional a recorrente submete à apreciação
do Tribunal Constitucional, não pode conhecer-se do objecto do recurso, por
falta de preenchimento de um dos seus pressupostos processuais.
3. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, acordam, na 3.ª Secção do Tribunal
Constitucional, em não conhecer do objecto do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 UC.
Lisboa, 18 de Junho de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão